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Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia

versão On-line ISSN 1983-8220

Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.5 no.2 Juiz de fora dez. 2012

 

Técnicas hipnóticas, dor crônica e a emergência do sujeito

 

Hypnotic Techniques, Chronic Pain and Subject Emergency

 

 

Maurício da Silva Neubern1

Universidade de Brasília, Brasília, Brasil

 

 


RESUMO

O presente trabalho parte de uma crítica às pesquisas contemporâneas sobre hipnose e dor crônica, nas quais não é conferida ênfase ao papel do sujeito no processo terapêutico. Procura destacar como as técnicas hipnóticas favorecem a emergência da condição de sujeito junto a pacientes portadores de dores crônicas. Partindo de breves ilustrações clínicas, destaca-se como as técnicas promovem uma condição de protagonismo desse sujeito, que assume uma postura ativa diante do processo, e como proporcionam visibilidade a experiências e narrativas que possuem considerável potencial terapêutico, embora comumente sejam marginalizadas pelos discursos dominantes. As técnicas são discutidas em torno de três eixos: a aceitação e o rapport, o conto de historias e as subversões da linguagem. Conclui-se considerando que as técnicas favorecem o desencadeamento de recursos e potencialidades, valorizam o saber e as ações do sujeito e não se mantêm restritas à noção de dor como fenômeno orgânico.

Palavras-chave: Hipnose; Dor Crônica; Sujeito; Subjetividade


ABSTRACT

This paper has as its starting point a criticism of contemporary research on hypnosis and chronic pain in which emphasis is not given to the role of the subject in the therapeutic process. It seeks to demonstrate how hypnosis techniques can contribute to the emergence of the subject in patients suffering from chronic pain. Using short clinical examples one shows how these techniques enable the subject to take an active role in the process and how they bring out experiences and narratives that have considerable therapeutic potential, while still being typically marginalized by mainstream medical rhetoric. The techniques are addressed in three general categories: acceptance and rapport, story telling, and language subversions. One concludes considering that the techniques are in favor of triggering resources and potentials, placing value on knowledge and actions of the subject and not remaining restricted to the notion that pain is a purely organic phenomenon.

Keywords: Hypnosis; Chronic Pain; Subject; Subjectivity


 

 

A literatura contemporânea sobre as pesquisas das relações entre hipnose e dor crônica apresenta uma contradição incômoda na medida em que se destaca a eficácia da hipnose como técnica terapêutica, mas pouco discute sobre a forma como ela atua na transformação da experiência de dor vivida pelo sujeito. Assim, ela pode se referir a grupos populacionais particulares (Jensen & Patterson, 2006), à aplicação de técnicas a problemas específicos (Kandiba & Biniki, 2003; Liossi, 2006; Nogueira, Lauretti, & Costa, 2005) e à avaliação de sua eficácia terapêutica (Carli, Huber, & Santarcangelo, 2008; Patterson, 2004; Turk, Swanson, & Tunks, 2008) de modo a destacar e conferir visibilidade a importantes padrões que podem perpassar demandas cotidianas de pessoas com diferentes demandas que batem à porta dos profissionais de saúde ou esperam pela contemplação de políticas públicas. Malgrado a relevância de tais estudos, pode-se considerar que há um enrijecimento conceitual nada desprezível que leva a uma ótica de considerável reducionismo a respeito do tema. Sob a ótica do modelo médico dominante, promovem uma visão sobre a dor restrita ao biológico, desvencilhada da vivência das pessoas, de suas trajetórias de vida, de suas trocas com o mundo social e cultural que perpassam seu mundo cotidiano (Neubern, 2009a).

Ao mesmo tempo, a hipnose passa a ser concebida como uma técnica linear, como uma intervenção pontual sobre um sinal clínico objetivo, como um procedimento externo ao sujeito, cujo domínio é exclusivo do profissional e sobre o qual o paciente nada tem a dizer ou fazer, a não ser acatar as ordens dos profissionais. Mais que isso, torna-se uma técnica em si, desvencilhada das relações de seus protagonistas e do contexto onde ocorrem, deixando de lado importantes momentos qualitativos do processo terapêutico, como a qualidade do vínculo, a singularidade e a participação do sujeito acometido pela dor crônica (Erickson, 1959). Nessa perspectiva clinicamente equivocada, tais pesquisas não permitem uma explicação, nem mesmo uma discussão mais aprofundada sobre como a hipnose atua e se torna uma técnica eficaz, sobre quais dimensões atua, como proporciona o envolvimento do sujeito e que relações ela pode estabelecer com o contexto terapêutico. Como já ocorreu historicamente (Neubern, 2009b; Stengers, 2001), a contradição em torno da hipnose parece permanecer, pois mais uma vez, se torna alvo de interesse dos pesquisadores que, de sua parte, não explicam, ou trazem uma grande dificuldade em explicar, suas formas de atuação.

No entanto, se a explicação de um ponto de vista nomotético e experimental se torna um grande obstáculo, é possível conceber alternativas qualitativas de reflexão e compreensão muito relevantes sobre o tema a partir de outras óticas e dos estudos clínicos de importantes nomes da hipnose (Erickson, 1983; Roustang, 1991). Caso se tome o corpo como momento fundamental da subjetividade da pessoa, é possível romper com a ótica médica tradicional, posto que esse corpo se torna um espaço de inscrição da cultura, um portador de significados vividos, um território privilegiado da existência (Csordas, 2002; Merleau-Ponty, 2006; 2008). Como a experiência do sujeito com seu corpo passa a significar algo para ele (Gonzalez Rey, 2007; Lakoff & Jonhson, 1999; Johnson, 2007), torna-se possível integrá-la às tramas da vida social, a suas relações com a cultura e o dia a dia da pessoa. Desse modo, independente das diferenças entre tais perspectivas, elas apontam para uma qualificação do corpo enquanto processo vivido, de modo que a experiência de dor passa a ser concebida sob uma nova ótica, (Neubern, 2009a; 2010) na qual, além dos automatismos e aprendizados corporais, relaciona-se às questões com as quais o sujeito lida em seu cotidiano. Ela pode configurar elementos da relação da pessoa com seu emprego ou a perda dele, com seus papéis e heranças na família, sua dinâmica interativa no casamento, suas rupturas de projeto de vida, suas crenças religiosas e as pressões ou distâncias em que é situada em suas redes sociais. Como a dor, independente de qual seja sua causalidade, constituiu-se enquanto subjetividade2, configurada em sentidos subjetivos, emoções e significados, ela se torna passível de influência pela ação humana, o que proporciona perspectivas interessantes para o estudo da hipnose em suas dimensões técnicas e relacionais.

Numa ótica semelhante, torna-se possível conceber o papel do sujeito de outra forma no contexto do tratamento. Rompendo com uma noção determinista e passiva, que caracteriza o indivíduo face ao discurso médico dominante, a condição de sujeito (Gonzalez Rey, 2007; Neubern, 2010) implica numa dimensão de protagonismo que o coloca na condição de ator do processo terapêutico que, malgrado as determinações sofridas, possui um poder de recriá-las e transformá-las em certa medida. Como o contexto não se constitui numa perspectiva ambientalista, formado por variáveis reificadas, mas como um conjunto de registros simbólicos e vividos que perpassam a relação entre as pessoas (Bourdieu, 2000; Morin, 1991), o sujeito é atravessado por tais influências, mas as reconstrói de maneira a criar novos processos e formas de relação nas interações em que toma parte. Desse modo, embora seu poder de ação e construção possua limites, ele estabelece uma relação dialética com o contexto, já que este pode favorecer sua emergência, ao mesmo tempo em que o sujeito pode também atuar de modo a influenciar o contexto e, talvez, até proporcionar que se transforme em termos terapêuticos.

Tal perspectiva é de grande relevância para o estudo das relações entre hipnose e dor crônica, pois rompe com o naturalismo da relação individuo-ambiente, típico dos discursos e práticas dominantes na atualidade dessa área, e abre importantes diretrizes de pesquisa até então pouco exploradas pelas pesquisas contemporâneas nesse assunto, como o que poderia proporcionar a condição de sujeito, qual o papel da técnica nesse sentido e da relação que se estabelece com o profissional que se dispõe a cuidar do paciente.

Desse modo, o presente trabalho tem por objetivo mostrar como as técnicas hipnóticas (Erickson & Rossi, 1979; 1980) podem favorecer a emergência da condição de sujeito (Gonzalez Rey, 2007; Neubern, 2010) do paciente no processo terapêutico, condição que é aqui considerada como momento fundamental para a reconstrução da experiência subjetiva de dor e do contexto. Basicamente, a abordagem dessa relação entre as técnicas e a condição de sujeito será aqui efetuada em dois focos. Por um lado, procura-se destacar como as técnicas favorecem uma postura de protagonismo que faz com que o sujeito saia da condição passiva de indivíduo para se transformar num ator de seu processo terapêutico, de maneira a se tornar alguém capaz de influenciar ativamente sua experiência de dor crônica e modificar a relação com ela, rompendo com a linearidade e o determinismo que geralmente tais experiências impõem às pessoas.

Por outro lado, busca destacar como tais técnicas podem favorecer o acesso e a visibilidade de experiências e narrativas que, em geral, devido à dominância do discurso médico, permanecem marginalizadas das pautas interativas, malgrado seu considerável potencial terapêutico e sua elevada capacidade de reconstrução. Concebe-se que tal gama de experiências possa diversificar as possibilidades terapêuticas do processo, em que o sujeito, enquanto artífice de seu próprio contexto e trajetória, encontra maiores chances de reconstruir sua experiência de dor crônica. Vale, por fim, destacar que para se atingir tais objetivos foram utilizadas algumas breves ilustrações de sessões clínicas nas quais se demonstra a utilização das técnicas hipnóticas e suas relações com os objetivos aqui propostos. Tais ilustrações são oriundas de uma pesquisa do autor, da qual os pacientes participaram de forma voluntária e as exigências éticas foram rigorosamente cumpridas3.

 

Aceitação e Rapport

Quando o terapeuta se coloca disponível para compreender o mundo de experiências do sujeito, mostrando um interesse genuíno por sua pessoa, ele tende a transmitir ao paciente um conjunto de sugestões que conferem importância a seu mundo e a sua própria pessoa, o que pode consistir num convite de grande valia para seu engajamento emocional a uma proposta terapêutica (Neubern, 2010). Passando a se sentir importante e valorizado em suas expressões, o paciente pode se dispor a um processo relacional na condição de sujeito, tanto por atuar de forma ativa a favor do tratamento, como por vencer a distância que muitas vezes marca as relações em que toma parte por conta de sua condição de saúde. Em suma, a partir de um indivíduo afetado unilateralmente pela dor, cria-se um contexto relacional de diálogo e interação em que o paciente se coloca como ator que ocupa uma posição central nesse processo, mais importante do que as dores que vive. Apesar de o terapeuta poder intervir e questionar diretamente sobre sua dor, o foco torna-se falar sobre o sujeito e sua vida, procurando saber quem ele é, o que pensa, gosta, faz e sente, e ainda quem são as pessoas importantes para ele. Há, portanto, um processo que vai da desconstrução da dor para a reconstrução do sujeito: enquanto aquela deixa de ser uma entidade para se tornar uma experiência contextualizada em sua vida, este deixa de ser um indivíduo passivo e controlado por forças externas para se tornar alguém que aprende a se posicionar de forma participativa e criativa em seu processo terapêutico, pois o assunto em pauta torna-se sua vida cotidiana e seu saber, nesse sentido, é profundamente valorizado.

Ao mesmo tempo, a aceitação implica outras dimensões importantes nesse processo. Por um lado, ela facilita a criação dorapport (Roustang, 2006), uma coreografia emocional e corporal em que ocorre uma intensa responsividade mútua que pode facilitar em muito o processo de construção de vínculo na terapia. As expressões faciais, a gestualidade, a intensidade e ritmo da voz, dentre outros, ligados ao que culturalmente se concebe em torno do termo aceitação, facilitam a criação de laços emocionais que se situam além da linguagem e atuam de forma significativa na produção de um contexto favorável ao processo terapêutico.

Desse modo, além de otimizar uma postura ativa e engajada dos protagonistas, terapeuta e paciente, que passam a perceber e sentir possibilidades de atuação concreta na dor, essa dimensão emocional do processo envolve uma materialidade das expressões (Bachelard, 2004) que é decisiva para a transformação da experiência de dor. As palavras, os gestos, as expressões faciais, a pausa entre as falas, a entonação da voz parecem ganhar uma condição material que toca o corpo vivido do paciente como se o acariciassem e o envolvessem de maneira a incutir experiências de leveza, fluidez, movimento, envolvimento e calor, que comumente se contrapõem à materialidade agressiva da dor no corpo do sujeito. Não é sem razões que alguns pacientes descrevem uma espécie de elo energético com seus terapeutas, um elo que, ao ser ativado, já traz uma sensação de segurança e alívio para o que vivenciam naquele momento e que pode ser decisivo numa transformação mais duradoura em suas configurações subjetivas sobre a dor, sobre si mesmos e sobre importantes momentos e relações de suas vidas.

Por outro lado, ao tecer, durante as conversações, uma série de questões a respeito de sua dor, o terapeuta não apenas envolve o paciente numa postura ativa de mapeamento do que vive e do que o atormenta, mas também oferece o espaço de que possa atribuir significados a tais experiências de modo a concretizá-la de forma mais nítida no mundo vivido do sujeito (Neubern, 2009a). Esse tipo de abordagem, muito próxima das perspectivas narrativas (Goolishian & Anderson, 1996; White, 2007), tende a estreitar a relação terapêutica, pois os pacientes comumente se queixam da dificuldade que possuem em encontrar alguém que tenha disposição e paciência para ouvir sobre o que se passa com eles. Ao mesmo tempo, esse tipo de conversação, que também pode ser feita durante a hipnose, possui uma intenção pragmática de reconstrução da experiência, indo além de um exercício intelectual ou da busca de insights.

Logo, por pior que seja, a dor pode passar a ter uma forma e alguns contornos que delimitam sua presença na experiência do sujeito, sendo que, de uma entidade inefável e onipotente que simplesmente o toma e o atormenta, ela passa a ser algo delimitado em seus tempo e espaço vividos e com a qual se pode estabelecer outras formas de relação. Trata-se de uma forma de ação possível do sujeito, pois passa não apenas a identificar melhor as formas de influência da dor (se ela queima, perfura, dilacera, aperta), mas também a estabelecer uma distância temporal e espacial dessa dor de modo a perceber que certas atitudes, posturas e ideias (que implicam em toda uma produção subjetiva de emoções, sentidos e significados) podem ser mais interessantes para que ele modifique tais formas de relação e possa, de sua parte, também influenciar a dor. Assim, em um processo de visualização, por exemplo, em que o paciente consegue simbolizar a dor como uma torrente avassaladora de águas barrentas, ele pode aprender a sair dessa torrente e observá-la de fora; neste processo ele percebe que determinadas formas de pensar, sentir e se relacionar podem empurrá-lo de volta para a torrente e que outras podem situá-lo numa posição segura e tranquila, o que lhe faculta assumir uma opção - importante indicador da condição de sujeito e de um processo terapêutico bem sucedido.

No entanto, a aceitação não se restringe a focar a dor em si mesma, pois abre a conversação e as intervenções hipnóticas às dimensões da vida do sujeito que este entende estar relacionadas com sua experiência. Daí a importância de que o terapeuta possua um sistema teórico flexível (Gonzalez Rey, 2007; Neubern, 2004; 2010), pois diferentes registros simbólicos podem estar presentes na produção dos sentidos subjetivos que constituem a experiência de dor dos pacientes. A exigência do marido que continua cobrando da esposa o desempenho de seus deveres sexuais, a ameaça de desemprego do pai de família, a destruição de um projeto futuro de vida, as relações abusivas com pessoas próximas, a perda considerável de autonomia nos afazeres diários, a inversão de papéis familiares para cuidar do paciente, o questionamento da própria fé e o temor da morte são alguns dos temas que podem perpassar a produção de sentidos dos pacientes sobre a dor que vivem e que precisam ser considerados como constituintes do processo terapêutico.

Uma vez que a dor, independente de sua causalidade, passa a ser concebida como uma experiência subjetiva (Erickson, 1983; Neubern, 2009a; 2009c; 2010), ela sai da condição de uma entidade encapsulada em si, acessível apenas ao saber médico, para um processo que possui múltiplas relações com os contextos de vida do sujeito, o que oferece alternativas de ação terapêutica muito significativas para o processo. Isto porque, malgrado a importância do arsenal médico para lidar com a dor, o processo passa a vislumbrar outras opções de ação que se referem a dimensões que possuem uma relação altamente significativa com as dores do paciente. É assim que uma esposa pode perceber que sua submissão incondicional aos desmandos do marido exige dela uma postura mais assertiva com outras possibilidades de negociação; que sua ansiedade quanto à vinda da dor a antecipa, o que requer um desligamento dessa forma de pensar; que a ruminação sobre a perda financeira a intensifica e ela aprende, então, a focar suas atenções em outros temas e de outras formas; que o excessivo cuidado que presta aos outros lhe traz uma sensação de peso que pode ser em muito reduzida quando integra a noção de autonomia à possibilidade de cuidar. É curioso notar como o trabalho hipnótico dessas dimensões costuma redundar em mudanças concretas e de grande pertinência para o sujeito, não só em termos dos modos de se inserir nos cenários sociais e na produção de novos sentidos subjetivos, mas também na intensidade de suas dores.

 

Conto de Histórias

O conto de histórias consiste numa dimensão central do processo hipnótico (Erickson, 1954), principalmente por ocorrer numa relação terapêutica, afetivamente implicada e com alto potencial de simbolização que possui considerável impacto de transformação nas influências do contexto. Nesse sentido, o uso da linguagem vai além de uma prescrição direta que deve ser seguida por uma ou mais respostas do sujeito, como ocorre nas técnicas hipnóticas de inspiração clássica (Neubern, 2009b). Quando o terapeuta conta uma história ao paciente em transe, ele oferece uma estrutura complexa de significados que poderão proporcionar novas construções de sentidos subjetivos sobre a experiência de sua dor crônica. Como nem sempre a história possui uma ligação explícita com sua situação, nem é apresentada como uma ordem, o paciente tende a não se sentir pressionado para responder de tal ou qual forma, mas se sente convidado a participar despretensiosamente do processo, criando suas próprias associações, metáforas (Lakoff & Johnson, 2003), experiências (Csordas, 2002) e imagens (Casey, 2000) sobre aquele conto. Dito de outro modo, ele cria, de forma espontânea, diversas formas de experiências que podem abrir novas perspectivas quanto à forma como seus problemas estão configurados e quanto a possíveis alternativas para lidar com eles. Recursos e aprendizados antigos podem ser evocados, novas relações estabelecidas, ligações entre processos e percepções que geram sofrimento podem ser desfeitas de modo que o paciente pode, gradativamente, se apropriar dessas ferramentas e estabelecer novas formas de gerar significados e emoções nas dores crônicas que o afetam.

Ao se contar uma história ao paciente, ela não precisa possuir uma semelhança explícita com a situação por ele vivida, mas uma proximidade com sua temática simbólica que, geralmente, não é percebida conscientemente por ele. As dores de fibromialgia de Dona Felícia, 50 anos, pareciam muito ligadas a um papel de cuidado acentuado e unilateral, em que seus familiares exigiam suas atenções sem oferecerem colaboração ou contrapartida de qualquer espécie. Diante da crise psiquiátrica de sua irmã, ela temia intervir e arcar sozinha com muitas responsabilidades pessoais e financeiras que em muito aumentariam a sensação de peso em suas costas, o que, em sua experiência, desencadeava dores acentuadas. O terapeuta, então, seguindo uma série de dispositivos técnicos (Erickson, 1983), contou-lhe uma história em que ela poderia ver uma bela rosa, visualizar suas grandes e vistosas pétalas, como também seus espinhos pontudos e afiados. Ela poderia ficar ali, numa posição mais distante, bem confortável e relaxada, apenas apreciando a rosa até que percebesse que poderia se aproximar dela sem ter problemas com os espinhos. Então, ao perceber que seu corpo permitia que ela se aproximasse de uma forma segura, ela poderia ir até a rosa sem pressa e enxergar a melhor forma de abordá-la, isolando seus espinhos e apreciando seu perfume e suas cores. Como estava num transe agradável e relaxante, ela poderia fazer isso várias vezes, inclusive percebendo que poderia estar ali, repousada naquela poltrona do consultório, e, ao mesmo tempo, junto à bela rosa que tanto lhe chamou a atenção.

Neste relato, que contribuiu para que a paciente estabelecesse mudanças muito significativas em suas dores e em seu círculo social, é possível perceber a semelhança implícita entre uma série de referências simbólicas da história e de sua situação familiar (Peirce, 1998). A paciente, que aparece no relato como protagonista (como também em sua família), possui interesse num objeto muito especial que a chama e encanta (a rosa), que em muito se aproxima de sua relação com outro objeto de atenção - sua irmã. Tal semelhança também ocorre na forma de influência ambígua que os objetos exercem sobre a protagonista: ao mesmo tempo em que encantam (pela beleza das pétalas e pelos laços afetivos familiares), também exigem prudência (seja pelos espinhos, seja pelas dores da fibromialgia), o que coloca a paciente em grande e conflituosa dúvida quanto a como se posicionar diante desse dilema. No entanto, diante de tantas semelhanças, a história busca acrescentar uma pequena diferença tocando num tema central de seu conflito - a distância vivida (Merleau-Ponty, 2008) - como forma de inspirar algumas possibilidades distintas de relação com tal objeto.

É neste ponto que há uma ênfase numa posição relaxada e confortável, em que ela pode apreciar a rosa (e refletir a situação de outro ângulo), como na possibilidade de se mover até a rosa (ir até a irmã), isolar seus espinhos (proteger-se dos perigos de assumir sozinha as responsabilidades) e apreciar aquele momento (isto é, exercendo o papel de cuidadora da família, tão importante para ela). Assim, em contraste com a rigidez com que se via nas relações familiares, o conto a situou numa posição flexível em que há a possibilidade do movimento, da reflexão e da leveza, sem que precisasse abrir mão de responsabilidades e tarefas importantes para ela. Não foi sem razões que, embora tivesse assumido a frente dos cuidados da irmã, ela reuniu a família, e conseguiu propor uma negociação produtiva com seus membros que puderam dividir as responsabilidades de cuidado com sua irmã, reduzindo em muito a ansiedade e a intensidade de suas dores.

No entanto, ao mesmo tempo em que essa linguagem oferece várias alternativas de reconfiguração da experiência de dor, não há qualquer apelo para que o paciente produza um insight, principalmente diante do terapeuta que, numa perspectiva tradicional, espera por associações específicas que comprovem a pertinência de suas intervenções e teorias (Neubern, 2004). O que importa é que a história se transforme numa produção legítima do paciente, de maneira a se tornar um processo apropriado por ele que, mesmo permanecendo inconsciente, pode ser acionado e utilizado no dia a dia a seu favor (Erickson & Rossi, 1979). Trata-se de uma apropriação que implica a geração de processos emocionais, redes de significados e sentidos subjetivos que conferem o teor pessoal do paciente a tal produção e estabelecem uma relação dialógica com suas ações no cenário social, de modo a influir em suas formas de relacionar e compreender o mundo e os outros. Isso permite que a experiência de dor possa se transformar, assumindo novos contornos, relações e formas para o paciente, uma vez que passa a integrar novos processos de produção subjetiva.

 

Subversões da Linguagem e Inconsciente

Outra dimensão importante da linguagem hipnótica, que ocorre embutida na coreografia corporal do rapport e atua como modelador de grande valia do contexto, é um uso de linguagem específico que parece, em larga medida, contar com uma forma interessante de subversão da linguagem: as referências indiretas ao inconsciente. Seja pelo uso excessivo de palavras e pronomes indefinidos, que parecem funcionar como índices (Peirce, 1998), seja pelas repetições e redundâncias, seja pela atribuição de intenção e poder a outras partes do sujeito, o processo de construção das sugestões se passa com referências a uma instância além das deliberações conscientes do sujeito que é situada na condição de quem possui sabedoria e poderes capazes de criar algum tipo de solução para atender as demandas do sujeito. Em certas circunstâncias, as referências a tal dimensão ou instância ocorrem por meio da técnica do entremeamento (Erickson, 1966), ou seja, a repetição e a quebra da sequência das expressões de sofrimento do sujeito por meio da interpolação de outras experiências presentes no acervo de aprendizados e experiências da subjetividade do paciente. Esse tipo de técnica é particularmente útil em situações de crise na qual o paciente parece se encontrar tão profundamente paralisado pelo sofrimento que se sente arrastado pela sequência de expressões, de modo a não lograr uma solução para tal situação. Tal experiência assemelha-se a uma sensação de arrastamento, em que o sujeito parece ser tomado por torrentes emocionais de modo a não conseguir pensar ou agir de outra forma.

Assim, ao se remeter à traição do marido, que fez com que contraísse uma doença venérea, Dona Clara, 50 anos, expressava-se entre gritos e choros que a induziram a um transe espontâneo e muito sofrido: "... (choros e gritos)... ele é um monstro (choros)... um monstro... depois de tantos anos (choros)... olha só o que me fez... como isso dói... que ódio! Que ódio!...". Tais expressões, emitidas repetidamente, passaram a ser acompanhadas por socos e arranhões dirigidos contra o próprio corpo, de maneira que o terapeuta se colocou a segurar suas mãos de forma suave e firme, estabelecendo uma continência para protegê-la. Simultaneamente, ele utilizou as seguintes palavras:

... sim, ... um monstro ... um monstro ... respire ... um ódio grande .... suavemente ... um ódio grande ... suavemente respirando ... que te fez sofrer muito ... respire suavemente ... sofrer muito ... e você conhece esse sofrimento ... e pode senti-lo ... e respirar fundo, ouvindo seu inconsciente ... e aí em seu corpo ... fluindo o ar ... perceber como está essa dor ... que forma tem ... e como seu inconsciente ... respirado com suavidade ... pode chegar e ajudar a transformar essa dor ....

Essa técnica consiste na ênfase (geralmente num tom de voz diferenciado) conferida a determinados trechos da fala (daí o itálico) que são interpolados entre trechos que espelham ou repetem as falas e expressões do paciente, passando as sugestões, de forma indireta, de que existe uma sequência paralela de experiências àquela expressada pelo paciente. Essa sequência aponta para uma dimensão de corporeidade ou sabedoria além do pensamento deliberado do sujeito - portanto, inconsciente - mas que, ao mesmo tempo, não se constitui como algo externo a ele, já que se encontra em sua subjetividade e pode se tornar acessível ao sujeito. Como ilustrado no trecho acima, isso pode ser notado quando as sugestões se referem a sua própria respiração e ao seu inconsciente, que se afigura como instâncias que podem chegar e ajudar a transformar essa dor.

Nesse ponto, o entremeamento pode oferecer algumas possibilidades interessantes, sendo que a primeira delas parte da responsividade que caracteriza orapport entre terapeuta e paciente. Uma vez que se encontram vinculados por essa forma de relação, ao repetir as expressões do paciente, o terapeuta passa a acatá-las, mas também a emiti-las como sugestões, o que consiste num convite um tanto bizarro à primeira vista, de que o paciente reproduza novamente as experiências que tanto o atormentam. Entretanto, à medida que o faz, ele passa a exercer certo controle sobre essas experiências, o que parece tirá-lo, ao menos em partes, da posição submissa em que o sofrimento o colocou. Tudo se passa como se, aos poucos, as rédeas da influência fossem colocadas em suas mãos, de maneira que o paciente assuma seu protagonismo diante de sua dor, aliviando-a, principalmente por meio da produção de determinados fenômenos hipnóticos, como anestesia, deslocamento, dissociação, regressão de idade, dentre outros (Erickson & Rossi, 1980). Assim, é o próprio sujeito quem aprende a romper com a sequência de experiências dolorosas porque passa a interpolá-la com outros tipos de experiências de seu próprio repertório que, muitas vezes, já se encontram ativados num nível inconsciente para lidar com a dor, mas parecem ainda ser ignorados pelo paciente.

É interessante notar que semelhante processo, talvez pela própria ausência de coerência ou lógica habituais, é muito mais um convite ao fazer do que ao pensar, um processo no qual o sujeito se desvencilha da busca de conteúdos para se entregar à transformação de formas e sequência de experiências. Curiosamente, entregando-se a esse jogo, aparentemente fora da lógica, o sujeito mergulha numa interação com esse universo do não pensado (daí a noção de inconsciente), em que há uma predominância da reação e assume uma postura que acaba por proporcionar novas configurações de sentido a suas experiências, em que há o império do simbólico (Peirce, 1998). Vale considerar que, geralmente, tais processos de reconfiguração são acompanhados por um alívio nada desprezível das dores crônicas do sujeito.

Outro tipo comum de subversão da linguagem na hipnose ocorre quando se modificam os objetos designados4 pelas sentenças ou ainda quando se conferem intencionalidade e poder a partes do corpo e da psique do paciente como se pudessem influir sobre as demandas trabalhadas na terapia. As sugestões utilizadas com Dona Marina, 56 anos, que padecia de intensas dores de fibromialgia, são muito ilustrativas nesse sentido. Esta senhora teve seus sofrimentos desencadeados pelo luto ocorrido em função da morte de sua irmã, o que lhe trazia uma perda de gosto pela vida, como pelos alimentos, um cansaço infindável, e um afastamento sistemático de vários papéis que ocupava no cenário social e familiar. A seguir, alguns exemplos de sugestões que foram usados com frequência em suas sessões hipnóticas:

... e quando somos crianças, aprendemos a sentir o gosto das coisas ... cada criança costuma ter um doce preferido ... e ela vai aprendendo sobre ele ... sobre as nuances de seus gostos ... e possui rituais para comer esse doce ... às vezes em grupo, em meio às conversas e histórias da família, ... às vezes escondida embaixo da escada ... e cada uma tem o seu jeito de aprender sobre esse doce ... e isso fica gravado no corpo, na memória do corpo ... que sabe que essas lembranças estão lá ... mesmo que esquecidas, estão guardadas e esperando ...

É interessante destacar que, após esse conjunto de sugestões, a paciente relatou se lembrar de alguns momentos de sua infância em que, junto com sua irmã, comia arroz doce e tomava café ao pé do fogão de lenha de sua casa na roça, o que era muito prazeroso para ambas. Tal relato é importante para a compreensão deste processo, uma vez que, explicitamente, ele tem a criança como objeto, é a ela que se refere em seus diferentes momentos de aprendizado sobre o doce. Porém, em sua vivência durante o transe hipnótico (ou seja, no interpretante) a paciente toma essa figura geral - a criança - e a traduz em suas próprias experiências, relembrando momentos de grande importância de sua infância muito ligados à figura principal de sua demanda clínica (a irmã). Há aqui, portanto, uma subversão interessante promovida pela experiência subjetiva da paciente que transforma o objeto da sentença em sua própria figura, quando ainda menina, e o faz por um movimento próprio sem qualquer ordem expressa do terapeuta.

No entanto, é importante destacar um aspecto de grande valia nesse momento do processo que obedece a uma estrutura de conto de histórias. O objeto designado com o qual ela se identifica - a criança - aparece ligado a experiências de aprendizado (o que remete a um movimento progressivo da experiência subjetiva) e de prazer (o que é situado como um aprendizado importante da constituição subjetiva de uma pessoa). Assim, ao se identificar com tal objeto, ela acaba evocando em seus próprios recursos uma experiência dinâmica e crescente, que se contrapõe à vivência de paralisação do luto, e uma experiência de vida e aquisição de prazer que se contrapõe à sua vivência de falta de gosto pela comida e pelas coisas da vida em geral.

Desse modo, a própria figura da irmã, no presente configurada em sua subjetividade à dor, à perda pela morte e ao desgosto, é resgatada por ela mesma em termos desses aprendizados que remetem a uma infância prazerosa, cheia de aprendizados, de bons momentos e rica em trocas afetivas. Assim, o objeto designado aparece nas sentenças ligado a uma série de outras experiências e, em suas vivências imaginárias, relaciona essas experiências positivas à figura de sua irmã, que é resgatada em novas possibilidades de configuração. Esse conjunto de sugestões permitiu a evocação de experiências da própria história de Dona Marina que puderam retomar maior espaço em seu mundo vivido de modo a favorecer o início de um processo de reconfiguração da experiência quanto à figura de sua irmã.

Já o seguinte conjunto de sugestões remete a essa alteração do sujeito das sentenças, que se tornam potências ativas, além da atenção e das deliberações conscientes do paciente, que podem atuar sobre ele de maneira a auxiliá-lo na modificação de sua experiência de dor crônica.

E você está aqui e minha voz chega até você... e uma parte sua talvez possa ir para outro lugar, como quando olhamos para o horizonte e nos projetamosem nossas lembranças... vemos cenas... imagens... e sentimos como se nossos pensamentos fossem embalados por uma leveza... e podemos ficar ali... vivendo um tempo que parece não passar... e a outra parte sua fica aqui e trabalha a minha voz... do jeito que ela sabe... e fico pensando o que seu inconsciente já pôde mostrar pra você... cada vez que você pensa numa parte de seu corpo, você pode perceber o que acontece com ela... agora... se você pensa em sua mão... você pode perceber os músculos que se soltam... talvez os batimentos cardíacos... o sangue correndo por dentro e esperar... o que seu inconsciente vai mostrar e fazer com sua mão... seus braços...

Nesse conjunto de sugestões, a paciente se vê transportada a outro lugar e contempla imagens e processos, embora não saiba nem cogite saber por quem ou pelo o quê, nem como essa força, que age sobre ela, proporcionou tal processo dissociativo. Essa mesma força ou instância, que aparece na primeira parte de forma implícita e posteriormente é designada como inconsciente, é situada como uma cuidadora eficaz capaz de proporcionar alterações de grande relevância em sua relação com o mundo (Merleau-Ponty, 2008): alterou sua vivência de tempo, proporcionando uma temporalidade que parece não passar, mas numa vivência que, ao contrário da dor, é bastante agradável. Modificou sua relação com a espacialidade, conduzindo-a a lugares diferentes de sua experiência habitual, onde pôde se sentir leve e livre, desvencilhando-se do peso da experiência dominante em seu cotidiano. E proporcionou mudanças em sua corporeidade, à medida que lhe permitiu se desvencilhar do corpo (onde a dor é hegemônica) para transitar por um mundo distinto, onde seu corpo pôde resgatar outras experiências vividas.

No entanto, o jogo interativo que se estabeleceu, por meio desse conjunto de sugestões, entre a paciente, seu corpo e seu inconsciente também merece ser destacado em termos do potencial de mudanças que proporcionou. À medida que as sugestões a situaram na condição de quem, numa posição confortável e relaxada, pode exercer algum tipo de ação sobre seu corpo, pensando em cada parte dele, e aguardando alguma expressão do inconsciente, Marina saiu de uma relação passiva e unilateral, em que apenas sofria a ação da dor, para uma posição em que alguma ação, mesmo que pequena, se tornasse possível. É dessa forma que a dor sai da condição de uma entidade, como no discurso biológico, para se concretizar como uma espécie de experiência sobre a qual é possível algum tipo de mapeamento, de conhecimento de suas formas de interação com o sujeito, em suma, de uma influência capaz de transformá-la, principalmente devido às novas formas de produção simbólica (White, 2007).

Por outro lado, essa nova pauta interativa instaurada pelas sugestões proporcionou uma possibilidade criativa também ligada a essa dimensão designado como inconsciente. O inconsciente, após uma sequência de sugestões óbvias e acessíveis à ação do sujeito, isto é, de pequenas ações que ele poderia realizar facilmente, foi associado a uma perspectiva de surpresa, de expectativa de algo desconhecido e benéfico que estaria prestes a acontecer. Tal sequência entre aquilo que é facilmente realizado (como poder pensar numa parte do corpo) e aquilo que é colocado de forma indefinida (aquilo que será feito pelo inconsciente) favorece o desencadeamento de experiências, aprendizados e recursos já desenvolvidos em sua subjetividade ao longo da trajetória do sujeito (Erickson, 1983). Assim, apesar de o termo "dor" não aparecer explícito em nenhum momento desta sequência de sugestões, foi ela quem justificou o acontecimento daquela relação terapêutica, constituindo-se como um dos principais elementos da configuração de seu sofrimento. Ela se tornou, desse modo, o alvo ou o objeto implícito das sentenças para o qual deveriam ser voltados todos os recursos mobilizados pelas sugestões, mas que, possivelmente, não eram de conhecimento da paciente que também esperava curiosamente por eles. Cumprindo com a profecia inerente a tais sugestões, Marina se surpreendeu ao perceber que seus braços haviam desenvolvido uma analgesia que aliviou consideravelmente suas dores naquela região e o fato de poder repetir tal procedimento em casa foi um indicador significativo de mudanças em suas relações com tais dores.

 

Considerações Finais

Uma conclusão central possível para a presente discussão é a de que a transformação do contexto para as pessoas que padecem de dores crônicas consiste, sobretudo, numa retomada da subjetividade humana, seja na consideração com relação às suas experiências, seja na forma de se engajar nas relações terapêuticas com as mesmas. Na compreensão aqui desenvolvida, as técnicas hipnóticas rompem com algumas noções tradicionais que associam as sugestões ao engano, à farsa e à ilusão (Neubern, 2009b; Stengers, 2001), para serem situadas como elementos que se constroem e são qualificados pela condição humana dos sujeitos, nela implicados como protagonistas. Sustenta-se que a consideração dessa dimensão é fundamental para a modificação terapêutica eficaz do contexto e das experiências de dores crônicas dos pacientes, tanto pela complexidade dos registros simbólicos nelas implicados, como pela necessidade do protagonismo dos sujeitos no processo terapêutico (Neubern, 2009a; 2010). Daí decorre que a produção das técnicas hipnóticas e a emergência da condição de sujeito não são originárias de fenômenos extraordinários, nem da inspiração em metáforas distantes da realidade das pessoas, como o computador ou o laboratório (Goolishian & Anderson, 1996), mas de atividades tipicamente humanas, como entrar em relação empática com o outro, contar histórias e brincar com a linguagem de modo a poder explorá-la, torná-la um jogo e até subvertê-la.

Desse modo, a aceitação e orapport tornam-se importantes instrumentos terapêuticos uma vez que situam a relação entre terapeuta e pacientes de acordo com uma pauta muito distinta do modelo médico habitualmente destacado nas pesquisas correntes sobre dores crônicas (Jensen & Patterson, 2006). Implicam, fundamentalmente, na existência de um interesse legítimo sobre a pessoa do paciente e sua experiência de dor crônica - ponto que jamais pode ser menosprezado, sob o risco de um abalo irreparável nas possibilidades de intervenção - que resulta em duas consequências de grande relevância terapêutica. Primeiramente, ao demonstrar interesse pelo paciente e colocar a conversação em pauta sobre a vida e não sobre a dor numa perspectiva técnica, o terapeuta o convida a uma relação marcada por maior horizontalidade, uma vez que o paciente pode se colocar, com propriedade, a respeito de temas e questões de seu cotidiano em que seu saber e suas potencialidades também são valorizados e reconhecidos. Daí a possibilidade de que assuma um papel de protagonista, típico da condição de sujeito. Essa forma de relação o motiva ainda mais quando o paciente percebe que ele mesmo pode influenciar ativamente sua experiência, como quando consegue modificar determinadas crenças ou formas de relação que amplificam sua dor.

Por outro lado, esse convite relacional consiste também numa mudança de foco de grande importância para busca de soluções, uma vez que a dor sai da condição de uma entidade hermética e exclusiva do saber médico para uma experiência cotidiana perpassada por temas e processos vividos pelo sujeito, em que outras formas de agir e pensar se tornam possíveis. Paralelamente ao que as intervenções médicas estejam realizando, a conversação avança de maneira a moldar a relação com temas e narrativas, auxiliando o sujeito a se movimentar de outras formas por entre tais processos e, consequentemente, a produzir novos sentidos subjetivos sobre eles.

Já o conto de histórias torna-se um recurso técnico da mais alta relevância por consistir numa forma graciosa e sutil de participação do sujeito em seu próprio processo que o induz a modificar sua experiência a partir de seu repertório particular de vivências e recursos subjetivos (Erickson, 1954). Daí a sensação de espontaneidade com que muitos sujeitos relatam tanto a produção de processos automáticos de corporeidade (Casey, 2000; Csordas, 2002), de onde podem surgir muitos fenômenos hipnóticos, como a criação de metáforas (Lakoff & Johnson, 2003), e a alteração de referências eu-mundo (Merleau-Ponty, 2006; 2008) em termos de tempo, corpo e espaço vividos. Pode-se considerar que a reconfiguração da experiência acontece, em grande parte, devido a um contexto em que contar histórias se torna uma prática possível, ou seja, uma prática social que possui um teor lúdico e leve que rompe com a tensão habitual do contexto de tratamento e incute uma série de possibilidades de caminhos para a mudança. É curioso notar como o conto de histórias, ao mesmo tempo em que evoca o protagonismo do sujeito, parece incutir uma materialidade (Bachelard, 2004) que faz considerável diferença no contexto terapêutico, sendo mesmo capaz, como ilustrado aqui nos casos clínicos, de resgatar experiências e aprendizados (como o prazer, o gosto, a alegria) que se contrapõem ao que os pacientes estão comumente habituados quando padecem de dores crônicas.

Na mesma linha de reflexão, é possível conceber que as subversões de linguagem contribuem para a fabricação do contexto terapêutico à medida que proporcionam o resgate da noção de inconsciente (Erickson, 1966), não apenas como conceito, mas como potência viva e embutida nas trocas relacionais. O entremeamento, a princípio, costuma causar estranhamento nas pessoas, uma vez que rompe com as formas lineares e corriqueiras de pensar e se expressar sobre uma dada situação. A repetição da sequência de expressões do paciente intercalada por sugestões que remetem à outra ordem de experiências pode incutir uma sensação de espanto ou estranheza, mas, ao mesmo tempo, evocar recursos e potencialidades além daquilo que o sujeito havia pensado e concebido de forma deliberada sobre seu problema. De modo similar, quando se inverte o sujeito das frases na construção da sugestão, existe o espaço para a emergência do desconhecido, de algo que parece vir de fora, se apossar de partes do corpo ou da mente e possuir um poder de influência capaz de alterar a experiência vivida pelo paciente.

Diferentemente das noções clássicas de hipnose, onde o inconsciente é determinista e se impõe ao sujeito (Neubern, 2009b; Stengers, 2001), o inconsciente é trazido por essas técnicas como uma dimensão com a qual o sujeito passa a se relacionar, a estabelecer uma espécie de comércio em que pode ter acesso a sistemas de processos que já existem, mas que ele mesmo desconhece, como na afirmação de Cyrulnik (2009) segundo a qual, no inconsciente, o sujeito sabe, mas não sabe que sabe. A colocação dessa possibilidade de relação na pauta interativa de um tratamento como o de dores crônicas é de grande relevância não apenas pelo acolhimento das expressões estranhas e carregadas de emoção que surgem, mas também pela chance que se confere aos protagonistas (terapeuta e paciente) de acessar o que não foi pensado ou buscado como caminho terapêutico possível. Mais que isso, no fundo parecem transmitir a mensagem de que existe algo especial no sujeito que, mesmo que ele pareça desconhecer, pode ser acessado de modo a fazer com que adquira uma nova condição de poder sobre a experiência que o paralisa, machuca e tanto o faz sofrer. Em suma, tal tipo de relação com o inconsciente parece implicar o curioso paradoxo de mergulhar o paciente numa fonte desconhecida (e, de certa forma, mágica) que, apesar de estranha a ele e ao terapeuta, pode proporcionar elementos para que ele se constitua como sujeito de seu próprio processo.

 

Referências

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Recebido em: 17/05/2011
Aceito em: 10/07/2012

 

 

1 Contato: mneubern@hotmail.com
2 Subjetividade, na perspectiva aqui adotada, é a constituição psíquica do sujeito e implica na produção de sentidos subjetivos produzidos a partir da dialética do sujeito com os diferentes momentos de inserção no mundo sócio-cultural (Gonzalez Rey, 2007). Ela se organiza numa ótica configuracional, isto é, sistemas subjetivos que integram processos cognitivos e emocionais, de onde emergem os sentidos. Nesta perspectiva, a dor crônica será aqui concebida como experiência subjetiva, mesmo que possua causalidades físicas (Neubern, 2009a).
3 Pesquisa aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade de Brasília. Desse modo, os nomes dos pacientes citados neste artigo são fictícios para proteger a identidade dos mesmos.
4 De acordo com Peirce (1998) o signo designa o objeto, aquele outro além dele mesmo, e implica também no interpretante, isto é, a interpretação, o significado que evoca no sujeito. Numa perspectiva similar, Merleau-Ponty (2006) destaca um nível corporal (de matéria e vida) e outro espiritual como distintas ordens de significação.