A Organização Mundial de Saúde (OMS) define a infertilidade como uma doença do sistema reprodutor caracterizada pela incapacidade engravidar após 12 meses de relações sexuais frequentes e sem contracepção, sendo considerada um problema de saúde pública que afeta de 10% a 15% dos casais em todo o mundo (Goldman, 2017; World Health Organization [WHO], 2010).
Estudos (Melamed, 2007, 2009; Souza, Cenci, Luz, & Patias, 2017; Zaia, 2017) apontam que o diagnóstico de infertilidade normalmente provoca um impacto negativo no bem-estar do casal, implicando disrupção do projeto de vida das pessoas envolvidas e podendo desencadear uma situação de crise. Além disso, vários outros estudos (Dyer, Lombard, & Spuy, 2009) documentaram implicações sociopsicológicas negativas associadas à infertilidade em países em desenvolvimento. Esses estudos apresentaram maiores escores na escala de ideação paranoide, seguida pela escala de sensibilidade interpessoal e pelo Índice de Gravidade Global, a escala de psicoticismo e, depois, a escala de depressão. A escala paranoide de ideação captura o comportamento paranoico como um modo de pensar desordenado, que varia de hostilidade, desconfiança e medo de perda de autonomia a delírios e sentimentos de grandiosidade.
Na busca de tratamento para infertilidade, casais se submetem a técnicas de reprodução assistida (TRA) de baixa e alta complexidade, como a inseminação intrauterina (IIU) e a fertilização in vitro (FIV). Quando inicia um tratamento para infertilidade, o casal se depara com os riscos à sua saúde e incertezas quanto ao resultado, pois não há garantias de que o tratamento logrará êxito. Essas condições costumam suscitar medo, ansiedade e frustração (Lee et al., 2010).
Dessa forma, a infertilidade e seu tratamento envolvem importantes questões socioculturais e psicológicas, além de trazer alterações emocionais e transtornos na vida dos casais que com ela convivem, o que sinaliza a necessidade de se avaliar seu impacto no estado emocional dos envolvidos. Diante desse quadro, a prática de intervenções psicológicas se mostra necessária, tanto como medida de proteção à saúde mental dos casais inférteis quanto como recurso para proporcionar melhor resposta aos tratamentos (Gradvohl, Osis, & Makuch, 2013b). O objetivo deste trabalho foi descrever o perfil sociopsicológico de casais atendidos pelo serviço de Psicologia no ambulatório de reprodução humana assistida de um hospital público do Distrito Federal, Brasil, de forma a obter subsídios para adequar melhor os serviços às necessidades dos pacientes.
Método
Trata-se de um estudo retrospectivo, descritivo, observacional de série de casos de casais atendidos no ambulatório do serviço de Psicologia de um centro de reprodução humana assistida, localizado em um hospital público do Distrito Federal, Brasil. Esse centro é referência no DF em TRAs (FIV e IIU), sendo o único da região que realiza tais tratamentos pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Foi realizada uma análise estatística descritiva a partir de dados dos prontuários de 130 casais atendidos no período de julho de 2017 a maio de 2018, segundo os pressupostos do método quantitativo de investigação.
As variáveis estudadas foram: idade de cada um dos cônjuges, assim como naturalidade, local de residência, escolaridade, religião, quantidade de filhos, número de anos tentando engravidar, tipo de tratamento a ser realizado, se procuraram outros tratamentos e número de tentativas anteriores, tempo aguardado para a primeira tentativa, causa da infertilidade, se contam ou não com rede de apoio social, como está a relação do casal, se referem antecedentes psiquiátricos, grau de ansiedade de cada um, presença ou não de humor deprimido, fatores geradores de estresse relacionados ao tratamento e aptidão do casal para iniciá-lo. Esses dados haviam sido coletados pelo serviço de Psicologia durante o primeiro atendimento psicológico do casal e anexados aos prontuários dos pacientes.
Após a coleta das informações, os dados foram organizados, tabulados e submetidos à análise estatística descritiva, utilizando como ferramenta o software Statistical Package for Social Science (SPSS), versão 22.0. Foram confeccionadas as tabelas simples de cada variável, a fim de analisar a distribuição na amostra estudada. Depois da análise univariada, foram feitas tabelas cruzadas e verificou-se a associação entre as variáveis por meio do teste Qui-Quadrado. Nos casos em que houve célula com valor esperado inferior a cinco, utilizou-se o teste exato de Fisher. Aplicou-se ainda a Análise de Variância (Anova) com teste post hoc de Tukey para comparação de médias de uma variável quantitativa em relação a uma variável qualitativa. Foram considerados estatisticamente significativos os testes que apresentaram p-valor inferior a 0,05.
O projeto de pesquisa foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal (CEP-SES/DF) sob o nº CAAE 44647315.3.0000.5553. Foi dispensada a assinatura de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, por se tratar de um estudo retrospectivo, no qual os pacientes estavam fora de acesso. As autoras declaram não haver conflitos de interesse.
Resultados
Evidenciou-se que a maior parte das mulheres em busca de tratamento para infertilidade apresentava entre 30 e 39 anos (73,9%), enquanto os homens apresentavam entre 35 e 44 anos (58,4%), sendo a média de idade feminina 35 e a masculina 39 anos. Embora o serviço não faça distinção por orientação sexual, a totalidade desta amostra era de casais heterossexuais (100%). O número de homens católicos (55,4%) é maior que o número de mulheres (48,5%), sendo essa religião a mais prevalente na amostra (51,9% do total), estando em segundo lugar a religião evangélica (31,9%). Não foram encontradas associações estatisticamente significativas entre o tipo de religião e o grau de ansiedade referido, tanto pelos homens quanto pelas mulheres.
Com relação à escolaridade, a maior parte dos homens e mulheres tinha ensino médio ou ensino superior completo, totalizando 68,5% da amostra (Tabela 1).
Tabela 1 Características da população feminina/masculina atendida pelo serviço de 2017-2018 (Brasília – Distrito Federal – Brasil)
Variáveis | N | % | N | % | |
---|---|---|---|---|---|
Escolaridade | Ensino Fundamental Incompleto | 3 | 2,3 | 10 | 7,7 |
Ensino Fundamental Completo | 3 | 2,3 | 12 | 9,2 | |
Ensino Médio Incompleto | 5 | 3,8 | 5 | 3,8 | |
Ensino Médio Completo | 46 | 35,4 | 44 | 33,8 | |
Superior Incompleto | 14 | 10,8 | 12 | 9,2 | |
Superior Completo | 43 | 33,1 | 40 | 30,8 | |
Pós-Graduação | 16 | 12,3 | 7 | 5,4 | |
Religião | Católica | 63 | 48,5 | 72 | 55,4 |
Evangélica | 45 | 34,6 | 38 | 29,2 | |
Cristã | 8 | 6,2 | 8 | 6,2 | |
Sem religião | 6 | 4,6 | 7 | 5,4 | |
Espírita | 3 | 2,3 | 3 | 2,3 | |
Agnóstica | 1 | 0,8 | - | - | |
O utra | 4 | 3,1 | 2,0 | 1,6 | |
Total | 130 | 100,0 | 130 | 100,0 |
Fonte: Elaborada pelas autoras.
Quanto à naturalidade, 39,2% das mulheres são naturais do Distrito Federal, sendo esta a mais prevalente. Em segundo lugar, têm-se 14,6% de pacientes procedentes de Goiás e 9,2% de Minas Gerais, ambos correspondendo ao “entorno” do DF. Todas as outras regiões do Brasil e exterior somam 36,9%. A maior prevalência da procedência dos homens também foi o Distrito Federal (36,9%), seguido de Minas Gerais (15,4%) e Goiás (8,5%). As outras regiões do Brasil e exterior somam 39,2%. Apesar de procedências bem diversificadas, a grande maioria dos casais (83,8%) mora no DF. 13,1% dos casais moram em Goiás, o que mostra que esse centro também é referência para o entorno (Tabela 2)
Tabela 2 Características dos casais atendidos pelo serviço de 2017-2018 (Brasília – Distrito Federal – Brasil)
Fonte: Elaborada pelas autoras.
O tempo médio de união dos casais foi de 12,9 anos, e o tempo médio tentando engravidar foi de oito anos. Não se encontrou associação entre o grau de ansiedade das mulheres e dos homens e a quantidade de anos tentando engravidar.
Apenas 23,8% dos homens relatam ter tido união estável anterior, sendo que a maior parte destes (80%) não teve filhos dessas relações. Em comparação, 17,7% das mulheres relatam união anterior e 86,9% delas não tiveram filhos dessas relações. Assim, 20% dos homens e apenas 13,1% das mulheres com uniões anteriores tiveram filho(s).
No que tange à adoção e filhos biológicos, 3,1% dos casais tinham um filho adotado e 8,5% já tinham um filho biológico, tendo desenvolvido a infertilidade somente após o nascimento desse filho (infertilidade secundária). Não houve associação significativa entre ter filhos adotados ou mesmo de apenas um dos cônjuges e grau de ansiedade dos pacientes.
O casal em tratamento no referido hospital tem direito a, no máximo, duas tentativas de IIU e duas de FIV. O tempo médio de espera para a primeira tentativa foi de 3,5 anos, sendo que 75,4% dos casais estavam na primeira, 23,1% na segunda e 1,5% na terceira tentativa. A grande maioria (75,4%) estava em sua primeira tentativa nesse hospital e não havia tentado outros tratamentos, ao passo que 24,6% já haviam tentado outros tratamentos em clínicas particulares.
Quanto ao tipo de tratamento realizado, 77,7% estavam em tratamento de FIV, 16,9% IIU e 5,4% TEC (transferência de embriões congelados). Com relação à causa da infertilidade, 40% dos casos eram por fator feminino, 27,7% por fator masculino e 6,9% ambos. Ainda havia 23,8% dos casais cuja infertilidade não tinha causa aparente. Também não houve associação entre o grau de ansiedade, tanto do homem quanto da mulher, e o fator da infertilidade (Tabela 3).
Tabela 3 Características relacionadas ao tratamento dos casais atendidos pelo serviço de 2017-2018 (Brasília – Distrito Federal – Brasil)
Variáveis | N | % | |
---|---|---|---|
Tipo de tratamento | FIV | 101 | 773,7 |
IIU | 22 | 16,9 | |
TEC | 7 | 5,4 | |
Total | 130 | 100,0 | |
Quantidade de tentativas | 1ª | 98 | 75,4 |
2ª | 30 | 23,1 | |
3ª | 2 | 1,5 | |
Total | 130 | 100,0 | |
Tempo do aguardo para a primeira tentativa em anos | - | 12 | 9,2 |
1 | 10 | 7,7 | |
2 | 3 | 2,3 | |
3 | 25 | 19,2 | |
4 | 50 | 38,5 | |
5 | 20 | 15,4 | |
> 5 | 10 | 6,9 | |
Sem informação | 1 | 0,8 | |
Total | 130 | 100,0 | |
Tratamento antes do Hospital Materno Infantil | Não | 53 | 40,8 |
Sim | 33 | 25,4 | |
Total | 130 | 100,0 | |
Causas da infertilidade | Feminina | 52 | 40,0 |
Masculina | 36 | 27,7 | |
Outras causas | 42 | 32,3 | |
Total | 130 | 100,0 |
Fonte: Elaborada pelas autoras.
Em relação à rede de apoio, 88,5% dos casais relataram contar com rede de apoio social para lidar com a infertilidade. De todos os casais, 40,8% relataram contar com a família, 25,4% com família e amigos, 1,5% só com amigos; e de 20,8% dos casais não houve essa informação. Realizou-se um cruzamento das variáveis rede de apoio e grau de ansiedade feminina, obtendo-se um p-valor de 0,001 no Teste exato de Fisher, o que evidencia uma associação significativa entre essas duas variáveis. Assim, conclui-se que as mulheres que não contam com rede de apoio têm mais chance de apresentar grau de ansiedade grave.
A maior parte dos pacientes (80,8%) nega antecedentes psiquiátricos, ao passo que 19,2% relatam ter tido quadro de ansiedade, depressão ou uma combinação dos dois. Quanto ao grau de ansiedade relatado em relação ao tratamento, constatou-se que, em geral, as mulheres se sentem mais ansiosas que os homens, uma vez que 42,3% delas relataram ansiedade “moderada”, seguida de “leve” (36,9%) e “mínima” (11,5%); e a maior parte dos homens relatou ansiedade “leve” (41,5%), seguido de “moderada” (31,5%) e “mínima” (21,5%) (Tabela 4).
Tabela 4 Características psicológicas dos casais atendidos pelo serviço de 2017-2018 (Brasília – Distrito Federal – Brasil)
Variáveis | N | % | N | % | |
---|---|---|---|---|---|
Grau de ansiedade | Grave | 9 | 6,9 | 4 | 3,1 |
Moderada | 55 | 42,3 | 41 | 31,5 | |
Leve | 48 | 36,9 | 54 | 41,5 | |
Mínima | 15 | 11,5 | 28 | 21,5 | |
Sem informação | 3 | 2,3 | 3 | 2,3 | |
Total | 130 | 100,0 | 130 | 100,0 | |
Grau de depressão | Sim | 10 | 7,7 | - | - |
Não | 119 | 91,5 | 130 | 100,0 | |
Sem informação | 1 | 0,8 | - | - | |
Total | 130 | 100,0 | 130 | 100,0 | |
Estado mental | Alterado | 10 | 7,6 | - | - |
Normal | 119 | 91,5 | 130 | 100,0 | |
Sem informação | 1 | 0,7 | - | - | |
Total | 130 | 100,0 | 130 | 100,0 |
Fonte: Elaborada pelas autoras.
Analisando os prontuários dos casais, quanto ao exame do estado mental, a única alteração encontrada foi humor deprimido, tendo acometido apenas mulheres (7,7% dos pacientes). A grande maioria (91,5%) apresentou exame do estado mental normal e em 0,8% dos prontuários não constava essa informação.
Quanto aos fatores geradores de estresse relacionados ao tratamento, 30% dos pacientes relataram não haver nenhum, tendo sido a resposta mais frequente (Tabela 5). Não foi encontrada associação entre a presença de algum fator gerador de estresse e a presença de humor deprimido.
Tabela 5 Características de estresse relacionadas ao tratamento dos casais atendidos pelo serviço de 2017-2018 (Brasília – Distrito Federal – Brasil)
Fatores geradores de estresse | N | % |
---|---|---|
Nenhum | 39 | 30,0 |
Demora do tratamento | 16 | 12,3 |
Incerteza quanto ao resultado | 13 | 10,0 |
Determinados procedimentos ou exames | 10 | 7,7 |
Elevada quantidade de exames e/ou consultas | 8 | 6,2 |
Espera por resultados de exames | 6 | 4,6 |
Fila grande da FIV | 6 | 4,6 |
Tempo de espera nas consultas para atendimento | 6 | 4,6 |
Fracasso de tentativas anteriores | 2 | 1,5 |
Morar longe de Brasília | 2 | 1,5 |
Pressão social | 2 | 1,5 |
Conflitos do casal | 1 | 0,8 |
Não saber a causa de infertilidade | 1 | 0,8 |
Outros | 8 | 6,2 |
Não informado | 10 | 7,7 |
Total | 130 | 100,0 |
Fonte: Elaborada pelas autoras.
Por fim, 90,8% dos casais estavam aptos do ponto de vista psicológico para a realização do tratamento, ao passo que 9,2% dos pacientes precisavam ser reavaliados ou não estavam aptos momentaneamente. Os que não estavam aptos se enquadravam em algum critério de exclusão indicado pela American Society for Reproductive Medicine (2013): psicopatia severa, discórdias conjugais graves, coerção de um membro do casal, psicopatologias preexistentes que o tratamento ou gravidez pudessem agravar, abuso de substâncias, perdas não resolvidas e determinadas situações peculiares.
Discussão
Considerando a média de tempo dos casais tentando engravidar (oito anos) e o tempo médio de espera para início do tratamento (3,5 anos), observa-se que a maioria dos casais lidou com a infertilidade por aproximadamente quatro anos antes de procurar tratamento.
Somando-se a isso a média de idade feminina (35 anos), constatou-se que os casais não procuram tratamento de imediato e, quando têm a chance de realizá-lo, a mulher já se encontra em uma fase da vida em que já há uma grande queda na sua capacidade reprodutiva (Abreu et al., 2006; Cavalcante & Cavagna, 2009; George & Kamath, 2010; Lett, 2017). Dessa forma, nossos achados corroboram as ideias do estudo sobre fatores de risco e prevenção da infertilidade (Cavalcante & Cavagna, 2009), quando mencionam uma tendência moderna da mulher de buscar inserir-se no mercado de trabalho, priorizando o sucesso profissional em detrimento da maternidade. Essa tendência moderna da mulher de adiar a maternidade provavelmente constitui o principal fator de risco para a infertilidade.
A demora para o início do tratamento pode indicar também uma dificuldade de acesso aos serviços públicos de alta complexidade. Uma melhor divulgação desses serviços possivelmente ajudaria os casais com dificuldades para engravidar a ter mais facilidade de acesso e, consequentemente, maior rapidez no início do tratamento.
Embora neste estudo não se tenha encontrado associação entre o grau de ansiedade das mulheres e dos homens e a quantidade de anos tentando engravidar, alguns estudos (J. R. Chachamovich, E. Chachamovich, Zachia, Knauth, & Passos, 2007; Gameiro, Nazaré, Fonseca, Moura-Ramos, & Canavarro, 2011; A. M. Hirsch & S. M. Hirsch, 1995; Melo & Martins, 2017) mostraram relação de mais idade e tempo de infertilidade com redução nos níveis de estresse, refletindo possivelmente a habilidade de homens e mulheres de se adaptar à vida sem filhos.
No serviço em questão, a taxa de sucesso da IIU é de 10% a 15%, e a de FIV, de 30% a 40%. Considerando a proporção de casais que realizavam FIV e IIU e a proporção de casais na primeira tentativa e na segunda em diante, surgem algumas hipóteses.
Uma delas é que parte dos casais desiste após a primeira tentativa, possivelmente devido aos motivos citados na Tabela 5, tais como a demora do tratamento e a incerteza quanto ao resultado. A demora em realizar todos os exames requeridos na rede pública merece destaque, dentre esses fatores, uma vez que foi a queixa mais prevalente. A experiência nesse serviço mostrou que a lista dos exames é extensa e sua validade curta, e isso leva muitos casais a decidir arcar com os custos na rede particular, no sentido de agilizar o tratamento. Como nem todos os casais têm recursos financeiros para isso, alguns acabam desistindo do tratamento.
Outra hipótese é que os casais, na segunda tentativa em diante, não são encaminhados pela equipe médica para novo atendimento psicológico, sendo decorrente disso uma subnotificação. A equipe de Psicologia tem acesso aos prontuários de todos os pacientes, mas sendo objetivo na equipe apenas o primeiro acolhimento na entrada no serviço. Pela demanda elevada, essas famílias não são acompanhadas, de maneira satisfatória, durante todo o processo.
O fato de a maior parte dos pacientes ter concluído o ensino médio ou superior apresenta uma clientela mais esclarecida, mas com dificuldades de arcar com os elevados custos do tratamento na rede particular. Essa informação corrobora dados que relatam que, diferentemente de outros tratamentos em saúde, as TRAs oferecidas pela rede pública atende uma clientela heterogênea, de diferentes localidades, níveis educacionais e socioeconômicos.
Mais homens referem relação conjugal anterior em comparação com as mulheres, assim como o fato de já ter filhos, ao contrário dos achados deste estudo (Gradvohl et al., 2013a). No estudo supracitado, pouco mais de um quarto da amostra (25,7%) afirmou já ter vivido outra união conjugal anterior à atual, 64,3% disseram que a união atual já durava mais de cinco anos e 86,1% relataram enfrentar o problema de infertilidade havia dois anos ou mais. Pouco mais de um quarto das mulheres (27,7%) e 16,8% dos homens afirmou já ter filhos de uma união anterior.
Provavelmente devido ao fato de dedicarem-se mais à vida profissional em detrimento da vida pessoal, as mulheres deste estudo tiveram menos uniões anteriores, em comparação com os homens, assim como menos filhos dessas uniões. Como a grande maioria dos casais mora no DF (83,8%), pode-se supor, também, que as ofertas de emprego nessa região para mulheres são melhores, em comparação com a região onde foi realizado o estudo supracitado.
Nos resultados, encontra-se a maior parte das causas de infertilidade por fator feminino e, de todos os sujeitos da amostra, só as mulheres apresentaram humor deprimido. Observou-se, também, que as mulheres apresentaram mais ansiedade, em comparação com os homens.
Os achados corroboram as ideias de outros estudos (Spotorno, Silva, & Lopes, 2008; Trindade & Enumo, 2002) em que as mulheres tendem a se sentir responsáveis pela infertilidade ou pelo êxito do tratamento, sendo, assim, mais propensas a desenvolver transtornos psicológicos. Além disso, a maioria lida com a infertilidade por anos e é no corpo da mulher que se expressam os fracassos das tentativas de gestar (Medeiros & Verdi, 2010).
A prevalência de ansiedade e humor deprimido nas mulheres sugere como causa o fato de elas não terem vivenciado a gravidez e maternidade, considerando que os homens tiveram mais filhos de outras relações. Isso corrobora os achados de outro estudo brasileiro, no qual mulheres em tratamento para infertilidade, sem ainda terem tido filhos, apresentaram maior ansiedade em comparação com as que já eram mães (Moreira, Melo, Tomaz, & Azevedo, 2006). Nesse meio em que se vive, as mulheres idealizam a maternidade desde a infância, quando já manifestam esse desejo ao brincarem de bonecas. Os homens, por outro lado, tendem a considerar a paternidade como um projeto a ser construído e idealizado apenas após um relacionamento conjugal estável (Fisher & Hammarberg, 2012; Sonego, Dornelles, Lopes, Piccinini, & Passos, 2016).
Pode-se inferir como outra possível causa para a prevalência de ansiedade e humor deprimido nas mulheres uma pressão social para ter filhos, pois vivem em uma sociedade em que a maternidade ainda é vista como destino biológico e associada à realização feminina (Gradvohl et al., 2013b).
Tem-se por experiência que algumas mulheres preferem não contar com rede de apoio, pois isso implica também maior pressão social, pois daí decorrem inúmeros questionamentos de quando chegará o esperado bebê. No entanto, esta pesquisa revelou que as mulheres que não contam com rede de apoio têm mais chance de apresentar elevado grau de ansiedade. Dessa forma, mesmo que contar com a família e/ou amigos gere certa cobrança desagradável, o apoio recebido revelou-se fator de proteção de saúde mental para a mulher em tratamento de infertilidade.
Vale salientar que, embora se tenha observado poucos sintomas de ansiedade nos homens, estudos qualitativos e quantitativos (Dyer et al., 2009) concordam que a infertilidade se mostra uma experiência perturbadora também para eles. Provavelmente por uma questão cultural, os homens evitam falar de suas emoções e dificuldades relacionadas à infertilidade.
Todas essas diferenças relacionadas a gênero observadas neste estudo confirmam as ideias de Wright et al. (1991), quando afirmam que mulheres e homens experienciam e lidam de diferentes formas com as dificuldades resultantes da infertilidade e seu tratamento. Isso reafirma a importância de se considerar as questões de gênero no tratamento da infertilidade, bem como as necessidades específicas de homens e mulheres, ainda que o foco da atuação do psicólogo no contexto da reprodução assistida seja o casal, como configuração única que transcende à soma das partes.
Também se mostra salutar manter uma concepção global do paciente como ser humano, buscando integrar os diversos aspectos de sua individualidade e sua singular relação com o meio. Isso propicia uma ampliação e enriquecimento da relação da equipe com o casal, conduzindo a novos horizontes preventivos, diagnósticos e terapêuticos.
Assim, deve-se levar em conta o caráter multifacetado da infertilidade como vivência humana, considerando que, assim como outras doenças, ela provoca uma ruptura nos aspectos biológicos, psicológicos, sociais e espirituais dos pacientes, demandando ações de cura que atendam a esses fatores (Dal-Farra & Geremia, 2010). A partir dessa concepção, fala-se em tratar o casal, e não em tratar a infertilidade, compreendendo que seu sofrimento transcende a dimensão orgânica.
Este estudo apresenta duas limitações: 1. Por se tratar de um estudo retrospectivo, descritivo e observacional, esses achados, já estabelecidos, podem ser insuficientes quanto às conclusões aqui apresentadas, embora forneça um ponto de partida importante para inovações e estudos posteriores. 2. O fato de os dados terem sido coletados no atendimento psicológico, no qual a aptidão do casal é avaliada para prosseguimento do tratamento. Nessa ocasião, pode haver um receio do casal de não ser considerado apto, levando-o a “mascarar” seu verdadeiro estado emocional ou a subestimar certas vivências, não as compartilhando com o profissional. Se isso acontece, o casal perde oportunidade de tirar maior proveito do atendimento psicológico, de discutir suas dificuldades, anseios e expectativas e, assim, de encontrar um meio de ressignificar suas vivências.
A despeito dessa limitação, e sendo a infertilidade considerada como problema de saúde pública e passível de provocar diversos transtornos na vida do casal, entende-se que os resultados deste estudo podem contribuir para a construção de protocolos de atendimento cada vez mais adequados às necessidades dos casais em tratamento contra a infertilidade.
Considerações finais
Os achados do presente estudo reafirmam a importância da intervenção do psicólogo no contexto da reprodução humana assistida. Sendo o homem um ser biopsicossocioespiritual, uma abordagem integral do paciente se faz necessária, levando-se em consideração não apenas os aspectos biológicos do paciente infértil, mas a vivência de sua infertilidade e suas implicações na vida do casal.
Dos casais estudados, somente as mulheres apresentaram humor deprimido, alteração no exame do estado mental e, em geral, mostraram-se mais ansiosas em relação ao tratamento do que os homens; em especial aquelas que não contam com rede de apoio social. Questões psicológicas, sociais e de gênero devem ser vistas como uma parte importante no tratamento da infertilidade.
Entende-se que esse cuidado integral do paciente, respeitando suas singularidades e adequando as práticas em saúde às suas necessidades, constitui um modo eficaz de promover saúde.