Na psiquiatria clínica, o termo insight passou a ser utilizado, em geral, no início do século XX, e seu significado remete à percepção ou consciência do paciente, em relação aos mais variados estados mentais e comportamentais, levando em consideração sintomas e sinais psíquicos, bem como a elaboração secundária dessas experiências (Garcia, Steil, & Rocha, 2018). Pode-se enfatizar que insight também é descrito como o estado ou forma de autoconhecimento, expressando no paciente um maior entendimento sobre o distúrbio que o está afetando, ou mesmo a forma como o distúrbio prejudica a sua interação com o mundo (Abel, 2015).
Conforme salienta Abel (2015), o insight está atrelado ao conhecimento que o sujeito tem sobre sua doença. Garcia et al. (2018) destacam que em tais momentos os indivíduos percebem que alguns dos seus sentimentos e sensações estão em desacordo com a realidade. Colaborar para a produção do insight nos pacientes é um fator determinante para a boa continuidade do tratamento (Konstantakopoulos, Tchanturia, Surguladze, & David, 2011). Os pacientes que não têm uma adequada capacidade de insight passam a evitar o contato com serviços de saúde mental, fazendo com que o tratamento se prolongue, em média, 10 anos. Vale ressaltar que tais ocorrências variam de indivíduo para indivíduo (Abel, 2015).
As investigações acerca da ocorrência de insight, por um lado, iniciaram-se no século XIX com as ciências que estiveram voltadas para o funcionamento cerebral. Devido ao interesse na falta de conhecimento de alguns pacientes acerca de seus comprometimentos neurológicos graves, os quais pareciam estar alheios e negavam a presença da deficiência, mesmo com evidências em contrário, por exemplo, a inconsciência a respeito da hemiplegia, a qual recebeu a alcunha de anosognosia, sendo posteriormente aplicada à falta de consciência de outros distúrbios e deficit neurológicos (Marková & Berrios, 2011). Nessa concepção, buscava-se, principalmente, identificar estruturas cerebrais ou circuitos neuronais específicos que pudessem estar subjacentes ao fenômeno (Abel, 2015).
Destaca-se que, como na esquizofrenia, os pacientes que têm bipolaridade apresentam prejuízos destacáveis para a percepção clínica de sua doença e sintomas. Os prejuízos de insights são maiores no decorrer dos episódios afetivos e todo o insight sobre a doença é um constructo que envolverá autoconsciência (Camelo et al., 2019). Importante salientar que as abordagens neurológicas e psiquiátricas para o estudo do insight seguiram caminhos paralelos e têm como influência escolas de pensamento, como a Psicanálise, a Gestalt e, mais recentemente, a Psicologia Cognitiva, embora seja possível observar que tais abordagens se revelam convergentes em pesquisas que cruzam disciplinas profissionais.
Essa realidade pode ser evidenciada pela extensiva utilização de termos como “perda de insight”, “autocomprometimento”, “consciência”, “anosognosia”, “desconhecimento”, “negação”, entre outros (Marková, 2005). Desse modo, o insight é capaz de adquirir um sentido ainda maior do que uma consciência de mudança, envolvendo também o sentido que os pacientes fazem dessas mudanças.
Os autores Leonardi, Andery, & Rossger (2011), em seu artigo intitulado “O estudo do insight pela análise do comportamento”, trouxeram que insight é uma resolução súbita de algum problema que ocorre quando dois ou mais repertórios, aprendidos ou separados, voltam a se conectar em uma nova situação, vindo a produzir sequências originais de comportamentos. Nesse viés, os juízos avaliados por meio do insight atingem vários aspectos da compreensão do indivíduo, como conhecimento geral, autoconhecimento, experiências e interpretações, sendo essas últimas dependentes de atitudes, da cultura etc. (Marková, 2005).
Há uma grande relevância no que se refere à realização de pesquisas acerca do insight, uma vez que tais pesquisas implicam em uma busca por uma maior compreensão da realidade ontológica. Viabilizam, portanto, o trabalho com as resistências, necessidades e capacidades e representações individuais (Abel, 2015). Percebe-se que, em tempos de discursos polarizados, as ciências da mente não estão alheias a posições extremas e análises apressadas acerca de seus fenômenos. Surge, dessa forma, uma problemática sobre a capacidade do diagnóstico de desordens mentais, por intermédio do uso de manuais com extensivas classificações, serem capazes ou não de “criar” a loucura.
Nesses termos, buscou-se no presente trabalho, com base no constructo insight, a consciência que os indivíduos envolvidos na pesquisa têm a respeito de seu próprio transtorno. Foram investigados os desdobramentos referentes à consciência dos sintomas e estados de humor, como também a aceitação do diagnóstico recebido pelos participantes do estudo. Destaca-se ainda que os participantes que integram o presente estudo apresentam, na sua totalidade, transtornos do humor.
Os sujeitos com transtornos dessa natureza apresentam expressivas comorbidades, bem como risco de suicídio, prejuízo social e profissional e baixa adesão ao tratamento, sendo características principalmente relacionadas à depressão e ao transtorno afetivo bipolar, respectivamente (Costa, 2008). Diante dessas considerações, tem-se como objetivo intrínseco e norteador da proposta compreender o conjunto de questões concernentes à repercussão de conviver com um diagnóstico de transtorno de humor, por intermédio das significações e elaborações que o sujeito faz do seu processo de adoecimento mental e do conhecimento a respeito do transtorno.
De acordo com Whitbourne e Halgin (2015), os transtornos psicológicos apresentam critérios que os delimitam, tais como significância clínica, a qual compreende o grau de prejuízo mensurável do comportamento; validade diagnóstica, caracterizada pela possibilidade de predição do comportamento futuro ou respostas ao tratamento; comportamentos que refletem uma disfunção nos processos psicológicos, biológicos ou do desenvolvimento. O processo de diagnóstico envolve vários aspectos clínicos específicos, e pode-se enfatizar que sua elaboração é, predominantemente, baseada em dados clínicos, por intermédio do exame psíquico, e complementada por exames e testes específicos.
Vale ressaltar que não existem, de modo geral, sintomas patológicos totalmente específicos nos transtornos, e o diagnóstico corresponde à totalidade de dados clínicos momentâneos, colhidos mediante exame psíquico; e evolutivos, por meio da anamnese, história dos sintomas e evolução do transtorno. Grande parte das vezes, o diagnóstico só poderá ser realizado com a observação do curso da doença, evolução do quadro clínico e no movimento de repensar e refazer continuamente o diagnóstico (Whitbourne & Halgin, 2015).
Conforme Dalgalarrondo (2008), as ciências da mente e as disciplinas voltadas para a saúde mental têm focos distintos de análise e de classificações de sintomas psicopatológicos, evidenciado no modo como variadas linguagens, provenientes de diferentes escolas de pensamento, compreendem a psicopatologia (Whitbourne & Halgin, 2015). Em um viés integrativo, o diagnóstico pode ser analisado a partir de sua finalidade de compreender adequadamente o indivíduo e seu sofrimento, como também de escolher a estratégia terapêutica mais apropriada, sem excluir os aspectos pessoais e singulares de cada sujeito (Dalgalarrondo, 2008).
Diante do exposto, os autores do presente trabalho não buscaram identificar a etiologia, e sim contribuir para a discussão da importância quanto à aquisição de insights acerca de próprio transtorno mental e, principalmente, no que se refere à maneira como tal informação é recebida, e interpretada. Nesse sentido, o trabalho propôs-se a fomentar questionamentos a respeito de quais posicionamentos podem ser tomados pelos profissionais de Saúde Mental a orientarem suas práticas acerca da comunicação e desdobramentos de diagnósticos de transtornos mentais.
Método
O presente estudo foi realizado em um Ambulatório de Psiquiatria de um Hospital Universitário de uma cidade do interior do Rio Grande do Sul. Foram entrevistados oito usuários que utilizam esse serviço da rede de Saúde Mental, os quais, em algum momento de suas vidas, foram diagnosticados com algum transtorno de humor/afetivo.
Foram utilizados como critérios de inclusão a realização do tratamento por, no mínimo, três meses, uma vez que, em tais condições, o usuário já teria um vínculo estabelecido com o serviço, para além de uma primeira consulta. e estaria vivenciando por mais tempo o citado tratamento psiquiátrico. Os participantes foram selecionados depois de pesquisa no prontuário, no qual constavam os transtornos escolhidos para o estudo, devendo eles estar presentes no ambulatório nos dias de coleta em decorrência de consultas previamente agendadas. Uma vez identificada essa possibilidade de inserção, nenhum outro critério de conveniência foi aplicado. Os usuários que estavam presentes foram convidados individualmente e, ao aceitar, preencheram o TCLE. O roteiro de entrevistas foi redigido de forma a abarcar os objetivos das pesquisas, por meio dos relatos dos entrevistados. Esse mesmo roteiro foi, ainda, revisado por psicólogos, uma mestranda e um doutor em Psicologia, no que se refere à ordem e pertinência das perguntas.
As categorias de análise foram definidas a posteriori, conforme o conteúdo das entrevistas, de acordo com as temáticas que circularam mais entre as falas dos usuários, ou seja, na repetição de conteúdos significantes para análise. Os critérios de inclusão para a pesquisa foram os seguintes: indivíduos com idade mínima de 18 anos, cujo tratamento estava vinculado ao ambulatório de psiquiatria, que realizem tratamento para transtornos do humor há pelo menos três meses. Estabeleceram-se como critérios de exclusão sujeitos que apresentaram algum comprometimento cognitivo e/ou de comunicação que pudessem ser observados no momento da avaliação , bem como fatores que poderiam afetar o andamento e compreensão da entrevista.
A pesquisa apresenta um delineamento qualitativo, sendo os dados coletados por meio de entrevista semiestruturada. Após a realização dessa etapa, o material obtido foi transcrito e analisado pelo método de Análise de Conteúdo de Bardin (2010), priorizando a obtenção de categorias abrangentes e condizentes com a fala dos entrevistados. A presente pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa, pelo Parecer n. 2890635, CAAE 97496318700005346, respeitados os preceitos éticos descritos nas Resoluções n. 466/2012 e n. 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde.
Resultado e discussões
Foram entrevistadas oito pessoas, sendo cinco homens e três mulheres, com idades entre 31 e 63 anos, com uma média de 47,8 anos. Nessa etapa, nenhum paciente foi excluído do estudo pelos critérios anteriormente destacados.
A respeito do grau de instrução, pode-se observar heterogeneidade, com participantes apresentando ensino fundamental incompleto até ensino superior completo. Em relação ao diagnóstico dos entrevistados, cinco declararam ser portadores do transtorno de humor bipolar, dois declararam ter depressão e um participante declarou não saber a respeito de seu diagnóstico. De acordo com os conteúdos das entrevistas, foram elencadas as seguintes categorias: “Consciência do transtorno”; “Aceitação do diagnóstico”; “Adesão ao tratamento”; “Psicoeducação”; “Medicação; medicamentalização e paradigma biomédico”; e “Estigma”.
Consciência do transtorno
A partir da entrevista, os interlocutores da pesquisa foram convidados a falar sobre suas experiências de conviver com o diagnóstico de um transtorno do humor. Primeiramente, foi investigado o nível de conhecimento a respeito do transtorno, ou seja, o quanto esses usuários conseguiam elaborar o insight sobre seu diagnóstico, o qual corresponde, de acordo com David (1990), a uma consciência acerca do transtorno mental, bem como na forma como se referem a seus sintomas e na adesão ao tratamento, aspectos que serão tratados mais detalhadamente em outras categorias de análise. As falas a seguir evidenciam tal posição:
U01: Sim, eu tenho bipolaridade. Antes tinha problema de depressão. E me dava aquelas crise de me botar nas pessoas, de quebrar as coisa em casa. É, daí eu tive depressão em várias fases.
U06: Sim, o diagnóstico genérico que eu recebi lá em 1984 era depressão. E me tratei com o diretor do Hospital São Pedro, em Porto Alegre, Dr. [nome do médico], mais de 10 anos e tinha um diagnóstico genérico de depressão, mas eu vejo pela medicação alguma coisa como transtorno bipolar. Só que eu tenho, assim, de 80% a 90% de fases de depressão e 5% só de euforia. Eu só tenho euforia na hora que eu entro no supermercado, aí eu compro um pouquinho além do que deveria. Acho que é da minha doença, porque nada explica isso aí, no normal eu sou um cara econômico, mas no mercado eu gasto a mais. Eufórico na hora que entro no mercado.
As falas citadas envolvem a percepção dos usuários sobre as mudanças em sua vida atribuídas ao transtorno mental, o reconhecimento e a nomeação de uma psicopatologia psiquiátrica, bem como a apropriação de termos específicos relacionados aos diagnósticos.
U04: Aí o médico disse: tu é bipolar, que é uma oscilação de humores e tudo, o tratamento começa assim, tu vai entrar no grupo. E o grupo na época era mensal, né, início de mês, e vamos ver como é que fica com o tempo, pode mudar e tu passaria a ser de dois em dois meses, né. Que é como agora, né. E é isso.
O usuário da fala anteriormente citada é o único dos entrevistados que utiliza atualmente outras ferramentas terapêuticas além da medicação, citando o grupo terapêutico do próprio ambulatório. Essa modalidade de intervenção e cuidado é frequentemente adotada em serviços de atenção psicossocial, por caracterizar-se como uma estratégia que envolve custos menores e tecnologias mais leves em produção de saúde para sua implementação. Gomes e Lafer (2007) levantaram dados sobre psicoterapias em grupo com pacientes com transtorno bipolar, estudo no qual os resultados apontam principalmente para intervenções combinadas e psicoeducativas (categoria que será abordada mais adiante). Os autores ainda discutem o fato de que tal modalidade de atendimento em grupo poderia ser vantajosa em instituições com grande número de pacientes.
O insight é de grande relevância clínica no curso do transtorno bipolar. Foi demonstrado que o insight é frequentemente prejudicado no transtorno bipolar (TB), especialmente na mania (Camelo et al., 2019). Ao avaliar o insight em indivíduos com transtornos do humor, várias características concernentes aos sintomas, à fase da doença e ao temperamento afetivo parecem estar relacionadas à consciência do transtorno.
A respeito do transtorno bipolar, pacientes com mania apresentam menor insight acerca da doença do que quando na fase depressiva ou eutímica, quando também comparados à depressão unipolar. No entanto, em comparação a pacientes com esquizofrenia, conforme destacam alguns estudos, o nível de insight em sujeitos com transtorno bipolar ainda é maior do que em pacientes com esquizofrenia (Silva, Mograbi, Landeira-Fernandes, & Cheniaux 2014; Silva et al., 2018).
O estudo de Silva et al. (2014), no qual se realizou uma revisão sistemática sobre insight em pacientes com transtorno bipolar (TB), obteve como resultado que o insight parece ser mais prejudicado no TB e menos em pacientes com esquizofrenia. Varga, Magnusson, Flekkøy, Rønneberg, & Opjordsmoen (2006) realizam uma pesquisa sobre o nível de insight e suas relações e avaliações em pacientes bipolares. Como resultado, encontrou-se que 70% dos pacientes foram classificados com insight prejudicado. Achados suportam a hipótese de que o insight prejudicado e outras disfunções neurocognitivas estavam presentes em uma grande porcentagem de casos entre pacientes bipolares.
Realizaram-se vários estudos que investigaram a relação entre o insight e as mudanças cognitivas com pacientes neurológicos e, após isso, com pacientes bipolares e esquizofrênicos. Pesquisas com pacientes neurológicos, incluindo indivíduos com demência, mostraram que o comprometimento cognitivo está associado a um insight deficiente (Camelo et al., 2019).
Uma pesquisa realizada por Camelo et al. (2019), destacou que, em relação ao insight, os resultados foram semelhantes aos de vários outros que encontraram maior prejuízo na mania do transtorno bipolar (TB) do que na eutimia ou depressão. Os pesquisadores enfatizaram que há uma correlação entre níveis mais baixos de percepção e maior prejuízo referente ao desempenho da atenção, inibição e teste de flexibilidade cognitiva. Realizaram-se vários estudos que investigaram a relação entre o insight e as mudanças cognitivas com pacientes neurológicos e, após isso, com pacientes bipolares e esquizofrênicos. Pesquisa com pacientes neurológicos, incluindo indivíduos com demência, mostraram que o comprometimento cognitivo está associado a um insight deficiente (Camelo et al., 2019).
Na pesquisa anteriormente citada, realizada por Camelo et al. (2019), os autores destacam que, em relação ao insight, os resultados foram semelhantes aos obtidos em vários outros trabalhos que encontraram maior prejuízo na mania característica do transtorno bipolar (TB) do que na eutimia ou depressão. Os pesquisadores enfatizaram ainda que há relação entre níveis mais baixos de percepção e maior prejuízo referente ao desempenho da atenção, inibição e teste de flexibilidade cognitiva.
Os participantes do presente estudo foram usuários do serviço de psiquiatria e utilizam medicação para intervenção em seus sintomas, bem como, no momento da entrevista, não demonstravam estar passando por fases maníacas do transtorno bipolar. Tais fatores podem gerar um impacto favorável à apresentação do insight, à evocação de memórias referentes à sua história de vida e ao contato com temas de saúde mental.
U01: É, eu começo a perceber o meu sistema nervoso, que ele começa a ficar mais agitado, fico mais braba. Tem essas maneiras que me ataca. Às vezes eu fico calma demais na cama, não levanto, só quero dormir, nada mais. E outras vezes muito violenta. Duas coisas completamente diferentes. Transtorno, uma coisa assim, diferente de humor.
U02: É, o doutor me disse assim, que eu [...] que é os nossos, como é que é, os emocionais, como daqui a pouco tu tá muito alegre, daqui a pouco tu tá chorona, daqui a pouco tu tá irritada, daqui a pouco tá tudo de ponta cabeça.
U04: Ah mudou, mudou. É que é o tipo da doença, a gente fica mais isolado socialmente, né, e tem dificuldades de comunicação, assim, com as pessoas e... É, a vida, do jeito que dá.
Nesses excertos, evidencia-se o monitoramento dos sintomas por meio do reconhecimento dos distintos estados de humor pelos sujeitos e o reconhecimento das próprias mudanças de humor. Os pacientes reconhecem e atribuem à doença as mudanças nos estados de humor e pontuam mudanças globais relativas à decorrência do transtorno em suas vidas. Observam-se também as formas subjetivas dos usuários avaliados em sentir e nomear tais estados mentais.
Aceitação do diagnóstico
Os participantes do presente estudo atualmente utilizam apenas acompanhamento terapêutico do ambulatório de Psiquiatria, no qual, de modo geral, fazem uso somente de psicofármacos para lidarem com o sofrimento psíquico. Nesse sentido, outro elemento destacado no discurso dos entrevistados diz respeito a um processo subjetivo de aceitação do diagnóstico psiquiátrico recebido. Além de o insight estar presente ou não nos indivíduos diagnosticados com transtornos do humor, a aceitação aparece na forma de internalização do saber médico por meio de conceitos, classificações e práticas como a medicamentalização, conforme evidenciado nos depoimentos a seguir.
U04: Olha, essa aceitação, no começo, ela é muito difícil, né. Pelo fato da doença mental, é problema do início, que é muito difícil, muito complicado isso aí e acabei me aceitando. É aquela coisa que as pessoas sempre, hoje em dia, psiquiatria, remédio psiquiátrico... A gente até já briga com médico, porque o tal do Clonazepam, que é pam né, de tudo essas porcarias que terminavam com pam... U01: Eu fiquei apavorada, porque eu nunca tinha ouvido falar em bipolaridade. Sabia que era uma depressão, cada vez pior. Cada vez mais violenta. Começava a quebrar as coisa e brigar com o marido dentro de casa, coisa mais horrível. Ele tinha que disparar, fugir. Eu acho que faz parte disso aí. Eu acho que, pelo que eu li um pedacinho daquele quadro ali, deu pra entender que faz parte do meu modo de ser.
Esses relatos explicitam sentimentos de impacto emocional diante do recebimento da notícia do diagnóstico, mas que foram de alguma maneira elaborada por esses sujeitos ao longo de seu tratamento. Pode-se inferir que cada um deles encontrou, a sua maneira, formas de produzir identidade com o diagnóstico, ou seja, de identificar-se com a doença como “parte do seu modo de ser”, estabelecendo uma noção identitária com esse sujeito.
Nesse sentido, Maheirie (2002) postula que a constituição da identidade se estabelece de maneira ambígua, processo no qual o sujeito sintetiza contrários, entre o que é individual ou coletivo, próprio ou alheio, de forma polarizada. Ao utilizar-se o conceito de identidade, é possível elucidar sujeitos e coletividades e gerar identificações, mesmo que tais identificações estejam em constante mudança.
U04: Hoje eu vejo com neutralidade, convivo com isso há mais de 20 anos, né, então. Tá bem mesmo. Tem uma aceitação, é. É tranquilo, não tem problema. Não tem por que esconder também, as pessoas sabem, então, tá tudo certo. Não, porque hoje há a ideia que bipolar é tão comum, depressão é tão comum, né, ansiedade é tão comum. Pacientes que tomam Sertralina, Clonazepam, isso aí e tomam remédio pra dor de cabeça, então... É comum a aceitação.
U08: A respeito da doença, eu não sabia o que que é que eu tinha, né, eu digo que pra mim não era uma depressão, né, pra mim era a maior tristeza do mundo, mas se aquilo se chama depressão, então que fosse, né. Mas é difícil da gente poder aceitar, assim, que tu tá com depressão, né, que a depressão é uma doença, é bem difícil, sabe.
Atribui-se à conceitualização de um diagnóstico psiquiátrico um modo de renomear e categorizar o sofrimento, como visto na fala: “a maior tristeza do mundo”. A entrevistada relata a dificuldade de aceitar como patológico o afeto vivenciado de forma subjetiva e singular. No relato a seguir, um paciente fala sobre o papel da aceitação da doença em sua vida.
U06: Eu não escondo a minha doença, tem pessoas que escondem, eu não escondo, é até uma maneira de eu pedir socorro para o mundo, é falando que eu tenho essa doença. Eu passei a aceitar que eu era um depressivo. Aceitei. Nunca tive vergonha de contar que eu tinha depressão. Porque ser vítima de uma doença não é vergonha nenhuma.
A aceitação, para o usuário anteriormente aludido, conforme é possível perceber, adquire um caráter de busca por ajuda, transformando o processo de adoecimento psíquico em oportunidade de explicitar aos outros e aos profissionais suas queixas e demandas psicológicas. Bleger (1998) ressalta o papel terapêutico da entrevista diagnóstica. Para o autor, além do caráter normativo e de aprendizado, a entrevista traz em si uma experiência vital importante para o entrevistado, no sentido de frequentemente ser a única possibilidade para o sujeito de falar com sinceridade sobre si mesmo com alguém que não o jugue, mas que o compreenda.
Nesse sentido, convém pontuar a necessidade de uma prática a partir do cuidado humanizado para esses usuários que necessitam não apenas de uma conceitualização diagnóstica de seu caso, mas de um entendimento integral da singularidade de sua história de vida. O processo de acolhimento transcende a noção de receber, ouvir a demanda e encaminhar o paciente, ao deslocar o foco da atenção do entrevistador de priorizar o saber técnico para perceber o sujeito e seu sofrimento psíquico. Assim, o acolhimento configurase como uma tecnologia leve, geradora de trabalho vivo, produtora de vínculo e encontro de sujeitos autônomos (Neumann & Zordan, 2011). Com a aceitação e trabalho com o diagnóstico recebido, encontra-se um caminho intermediário entre a massiva rotulação e identificação estigmatizadoras do diagnóstico para uma aceitação assertiva, corresponsável e singular do sujeito ao seu tratamento para, enfim, trabalhar as questões psicossociais envolvidas em seus sofrimentos.
Adesão ao tratamento
Transtornos do humor configuram-se como patologias psiquiátricas crônicas e recorrentes, em que o diagnóstico e o tratamento tornam-se dificultosos. A adesão ao tratamento define-se no movimento do indivíduo em seguir as recomendações clínicas, como a utilização de medicamentos prescritos ou outras intervenções em pelo menos 80% do total, de acordo com doses, horários, tempo de tratamento (Leite & Vasconcelos, 2003; Dewulf, Monteiro, Passos, Vieira, & Troncon, 2006).
No transtorno bipolar, fatores ligados ao paciente, à medicação utilizada e aos profissionais de saúde estão relacionados à baixa adesão ao tratamento, bem como a frequência de episódios maníacos e depressivos, as durações de internações hospitalares e tentativas de suicídio dificultam a adesão (Greenhouse, Meyer, & Johnson, 2000). As falas a seguir assinalam alguns desses aspectos mencionados como fatores que desfavorecem a adesão.
U01: Fez, fez muita diferença pra mim, por causa que eu era, assim, uma pessoa completamente descontrolada, em todos os sentidos, e agora, depois que eu me mudei pra cá, que eu tive internada também, eu tentei voltar agora pra realidade de tudo. Cair na realidade de tudo. Que quando eu fui internada, não sabia nem onde eu tava. Que eu comecei a tomar bebida de álcool, aí abandonei remédio. Me deu vontade de tomar vinho, acabei tomando vinho. Mas não tomei remédio.
U02: Não, agora tá tudo normal, meu relacionamento tá superbem, do que era antes, né, então acho que a [refere se à filha] mudou muito a minha vida, sabe? E eu tentava muito querer me matar, sabe? Aí, com a chegada dela, tudo mudou. Então, assim, né. Até essa história, inclusive a Dra. [nome da médica] quis me internar, né, porque eu tava tentando me matar de uma forma ou de outra, e a doutora disse que “se tu não parar, eu vou acabar te internando aqui”. Aí foi que eu tomei a decisão, disse não, agora eu vou parar com isso, vou mudar essas atitudes...
Os relatos dessas entrevistadas, as quais referiram terem sido diagnosticadas com transtorno bipolar, enfatizam a influência de circunstâncias como as internações hospitalares, consumo de álcool e tentativas de suicídio. De acordo com Miasso, Cassiani, & Pedrão (2008), a não adesão ou a baixa adesão ao tratamento no transtorno bipolar constituem problema de saúde pública devido a sua magnitude. As consequências da não adesão manifestam-se na falta de controle do transtorno, no aumento de internações evitáveis e aumento no custo de cuidados em saúde. No entanto, as pacientes demonstram em seu discurso fatores de mudança ao longo do tempo, levando a uma adesão positiva do tratamento, a qual gerou crenças de mudanças em vários aspectos de suas vidas.
Na fala do usuário a seguir, o qual refere que a maioria de seus sintomas são depressivos, ressalta-se o fator da não eficácia medicamentosa, apesar do tempo de uso e da persistência no tratamento. Kennedy (2013) postula que aproximadamente 50% dos casos de depressão não respondem satisfatoriamente ao tratamento de primeira escolha, e tais limitações podem contribuir para o abandono do tratamento.
U06: [...] só usei da psiquiatria formal. Em Porto Alegre o meu médico era o presidente, o diretor do Hospital São Pedro, Dr. [nome do médico], um grande médico, meu amigo pessoal. Eu me tornava amigo dos meus médicos e isso facilitava o tratamento.
U08: [...] agora a Dra. [nome da médica], assim, ela é encantadora, é aquilo assim, quando tu tá mal, assim, tá mal, tá ruim, quero dizer na parte sentimental e tudo, tu precisa de alguém que te ouça, que converse contigo, mas se precisar te dizer alguma coisa ali, né, porque tem que ter essa proximidade, acho, entre a psicóloga e o paciente, entre a psiquiatra e o paciente, né. Isso aí ajuda, porque eu já cheguei vezes e vezes diante da Dra. [nome da médica], assim, né, mal, de acabar, assim, chorando, ficando muito mal, ficando muito mais tempo com ela, que eu sei que ela podia, e ela, e ela, em nenhum momento ela cortou o assunto ou se manifestou que tava em horário já esgotado. E, assim, ela, além da medicação, ela tem, assim, né, a palavra. Às vezes não precisa, assim, tu dizer tanta coisa, mas o pouco que vale é a qualidade daquilo que tu vai dizer, né.
Ao elencar aspectos favoráveis, os entrevistados U06 e U08 narram a importância do vínculo com o profissional para a adesão ao tratamento e eficácia deste. O vínculo estabelece-se como um instrumento relacional para a circulação de afetos entre sujeitos, como também se constitui em uma estratégia efetiva na horizontalização e democratização das práticas de cuidado, ao favorecer a negociação entre os indivíduos envolvidos no mesmo processo (Lima, Moreira, & Jorge, 2013). Nesse sentido, o vínculo entre profissionais de saúde e usuários configura-se em uma possível ferramenta para construir uma melhor qualidade de atenção à saúde, inclusive no que tange à integralidade do cuidado (Camelo, Angerami, Silva, & Mishima, 2000).
Medicação, medicamentalização e paradigma biomédico
Todos os participantes da pesquisa são usuários de um serviço de Psiquiatria de um hospital geral, atendidos por meio de consultas especializadas e para atualização da receita dos psicofármacos. Como citado anteriormente, na categoria de “Adesão ao tratamento”, a necessidade da medicação cumpre importante papel na terapêutica dos transtornos do humor, fazendo com que sua má adesão e má gestão traga como consequências problemas de saúde pública. No entanto, nesta categoria, pretende-se analisar a relação de significado que o sujeito faz do medicamento e apontar críticas à medicamentalização como única forma de tratamento e alívio irrestrito do sofrimento psíquico, bem como a relação do sujeito ao deparar-se com o poder biomédico em sua vida.
Nesse contexto, convém contextualizar o movimento da Reforma Psiquiátrica, iniciado em meados dos anos 1970, o qual propôs romper a hegemonia do modelo asilar dos manicômios realizando transformações no contexto de assistência à saúde mental. Assim, houve uma busca para superar o paradigma biomédico e estabelecer o paradigma psicossocial de atenção à saúde mental (Fonseca & Jaeger, 2012). Os depoimentos a seguir versam sobre alguns elementos para discussão sobre esses conceitos.
U01: E ele [o médico da cidade natal da entrevistada] disse que eu tinha que procurar meus médicos aqui, os psicólogos, os psiquiatras. Ele que me mandou que viesse pra cá pra tomar remédio. Daí, imediatamente minhas filhas vieram pra cá, meus filhos. Notei, assim, que o tratamento e o remédio tá me ajudando muito, só que me deixa muito lenta pra trabalhar, né. Pra fazer movimento, as coisas, eu fico lenta. Ele me transforma mais calma e fico muito lenta. Mas eu me sinto bem tomando os remédios, sem eles não consigo viver. Aqui eu venho uma vez por mês, três vezes por mês, conforme me chamam nas consultas. Eu gosto de vir aqui porque os médicos são muito atenciosos, e os remédios tão sendo muito bons e eu não posso deixar de tomar. Tô tomando direitinho, na parte da noite. Tô muito bem.
U08: Cada remédio que eu pegava de uma caixa, eu sabia que aquilo tinha um significado, que era diminuir ali aquela dor, aquela angústia, aquele sintoma. Comecei a ter um pouco mais de discernimento do assunto, comecei a praticar o uso do remédio.
Nessas falas, evidencia-se que o tratamento se dá somente com uso de medicação, da qual não se consegue viver sem, mesmo com efeitos colaterais, como explicitado pela entrevistada U01. O tratamento se dá por intermédio de longos períodos de espera entre uma receita médica e outra e nota-se que o sentido do transtorno se funde com a utilização da medicação, conforme a entrevistada U08.
U04: Mas quando esqueço, aí [começo a] sentir, sentir. Ah, hoje eu não tomei o remédio. Eu controlo por blister também, um comprimido da direita e um à esquerda. São dois comprimidos por dia, então um de manhã e um de noite. Fico mais agitado, mais ansiado, porque eu tomo Clonazepam, sou dependente de Clonazepam, então. Isso, faz sentido porque o medicamento faz um efeito, né, a gente se acalma, se controla tudo.
U05: Antes tava muito ruim né, só ouvia as vozes, depois deu essas coisas em mim, né, daí depois foi o pesadelo, em 2009. Agora os remédios são altos e baixos, né, tô bem, tô mal. Tem vez que eu surtava, às vezes... Tem dias que... Eu sou uma pessoa normal, não tenho nada. Tem mês que, bah... Quando eu vim na consulta a outra vez, fiquei um mês e pouco com um tremelico, assim, na cabeça até a ponta dos pés. Aí tomei os remédios, fui pra igreja, foi o que acalmou, né.
Nos fragmentos transcritos, observa-se que os usuários se referem à medicação como um alívio, algo que tem capacidade de acalmar seu sofrimento. O entrevistado U04 relata ser dependente de um psicofármaco, mas justifica-se em razão da supressão dos sintomas atribuída ao remédio. O entrevistado U05 menciona, além do uso da medicação, que frequenta a igreja, ao trazer o aspecto religioso, que, conforme apontado por Murakami e Campos (2012), configura-se uma dimensão que pode contribuir positivamente no tratamento de pacientes com transtornos mentais, por meio de continência emocional e social e ensinamentos de práticas em prol da qualidade de vida.
U06: Porque eu comecei a tomar o anafranil e voltei a dormir de noite, que eu já não dormia mais direito. Eu voltei a dormir à noite, eu parei de vomitar, que eu andava vomitando, tudo dos nervos. Eu andava até fumando algum tipo, algum cigarrinho pra aliviar os nervos, o que matou meu pai foi o cigarro. Aí, com o tratamento, abandonei cigarro, me voltei só pra medicina, eu acredito cegamente na medicina. E na psicologia.
U07: Aqui tô pegando [a receita]; o doutor me indicou o remédio que eu tomava lá, tô pegando de novo. Os mesmos remédios tô tomando de novo. Sim! Sim, pra tomar os remédios que o doutor me manda, né. Daí eu tomo de manhã, tomo de noite. [...] Fui morar com ela lá fora, numa vila. Lá eu fiquei ruim, ruim, ruim. Não tomava o remédio. Daí eu vim, daí ela me levou. Ela me levou em [cidade natal do entrevistado], aí eu consultei com o Dr. [nome do médico]. Aí o doutor me receitou os remédios, eu fiquei meio adoentado, aí ela me trouxe pra cá. [...] Hoje eu quero ver se consigo viver a minha vida, né, como Deus quer e o doutor, né... Tem que pensar em vocês, vocês que são os doutor, vocês que mandam a gente.
Na categoria “adesão ao tratamento”, observou-se a relação médico-paciente a partir de falas que explicitavam a noção de vínculo. Nessas falas, observa-se uma assimetria nessa relação, podendo ser explicada pelo paradigma biomédico e pelo poder médico na vida dessas pessoas. Explicita-se no depoimento dos usuários, por meio da fala do entrevistado U06 em: “acredito cegamente na Medicina”, o qual, apesar de demonstrar ambivalências, na maior parte do seu discurso revela não ter tido melhoras, mesmo com o tratamento persistente. Já o paciente U07 alega que quer encontrar um jeito de viver como Deus e o “doutor” querem, atribuindo forte valor de autoridade aos profissionais, que “mandam a gente”.
Ribeiro e Ferla (2016) discutem como a Medicina, como campo profissional e de saberes, passou a ocupar o papel central na Modernidade, atuando como protagonista na saúde dos indivíduos e no valor das vidas humanas. Com essa legitimidade alcançada pela ciência médica, o modelo de saúde centra-se na figura do médico, na doença como foco das intervenções, no consumo de procedimentos de alta tecnologia e no uso desmesurado de medicamentos, estabelecendo a hegemonia do modelo biomédico. Os autores ainda pontuam que, apesar dos questionamentos a esse modelo vigente, ainda existem muitos desafios para que mudanças reais nos serviços sejam implementadas. Os autores do presente trabalho enfatizam, além disso, que, mais do que fomentar antagonismos entre áreas distintas do conhecimento, torna-se importante postular a complementaridade e o diálogo entre elas.
Pode-se observar nos trechos selecionados para essa categoria que os entrevistados têm pouca autonomia e conhecimento a respeito da medicação utilizada. Conferem valor à terapêutica (e algumas vezes ao próprio transtorno) apenas sob a utilização de psicofármacos. Nesse sentido, convém referir à estratégia da Gestão Autônoma da Medicação (GAM), formulada no Canadá e que foi adaptada para a realidade brasileira e vem sendo implementada atualmente em vários serviços de atenção psicossocial. A GAM tem por pressupostos enfrentar a primazia do tratamento com fármacos, a dependência absoluta da Medicina (medicalização), em detrimento de outras formas de cuidado. Dessa maneira, a GAM propõe que os indivíduos que usam psicofármacos tenham uma postura crítica em relação ao uso, ao ter como princípios o direito do usuário à informação e o direito a aceitar ou recusar tratamentos (GAM, 2014).
Estigma
Os novos modelos de atenção em Saúde Mental advindos do ideário da Reforma Psiquiátrica trazem a pauta do estigma das pessoas com transtornos mentais para discussão. Goffman (1988) retoma o conceito de estigma sobre a lógica de categorização dos sujeitos estabelecidas em ambientes sociais. Nesse sentido, o autor evidencia o caráter profundamente depreciativo do estigma, que torna os indivíduos rotulados ou reduzidos a uma pessoa diminuída, desonrada, desconsiderando a sujeito de forma comum e total. Os entrevistados explicitaram, conforme os trechos a seguir, suas experiências sob o estigma da doença mental.
U04: Ah não, quando veio a psiquiatria, né, que era o doente mental, né, é um choque que é grande mesmo.
U06: A minha esposa me xinga: ah, tu disse que a [filha] tá com a psiquiatra lá da universidade, jamais fala psiquiatra na frente das colegas dela. Vão tachar a menina de “louca”. Tá, daí eu aceitei então. Não falar que a [filha] tá em tratamento, a minha filha. Mas eu não acho nada de errado a pessoa falar que está indo num psiquiatra ou num psicólogo.
U01: Antigamente os outros me chamavam de louca. Fulana, tu é louca. É teu jeito de tu ser. Tu não pode ser certa, né...
Nessas falas, os entrevistados explicitam impressões acerca do transtorno mental como um impacto, bem como utilizar-se da Psiquiatria; a depreciação social da loucura; como também o louco sendo caracterizado como anormal, desviante, “não pode ser certa”, ou até mesmo fazendo referência a certa periculosidade nos comportamentos apresentados. Weber (2012) assinala que mesmo atualmente, com maior aceitação dos transtornos mentais, estes ainda estão fortemente imbuídos de sentido pejorativo, por ignorância, sentimento de ameaça e vulnerabilidade. Mantém-se a associação com pessoas violentas, agressivas, incapazes, ditas “loucas”, bem como funde-se com a noção de desvios sociais, sentimentos, crenças, valores religiosos de cada cultura.
U06: Mas, por outro lado, tem uma coisa bem interessante pro teu estudo. Eu sou a terceira geração de todos os homens que eu conheci da linhagem masculina, eu sou a terceira geração que tem problemas mentais ou depressão. Porque o meu avô era conhecido em [cidade natal do entrevistado] como Cabo [nome do avô] ou “Cabo Louco”. Não que ele fosse louco, mas, naquela época, como eles não tinham adjetivos, apelidaram ele de “Cabo Louco”. Meu pai, quando morreu, meu pai era fumante e o cigarro matou ele aos 60 anos, mas ele tinha problemas psiquiátricos, a vida inteira teve. Um dos motivos que ele fumava muito é que ele tinha problemas psiquiátricos não tratados.
U08: Então eu vi, eu cresci vendo a minha mãe tomando a medicação, bem antigamente ainda, coisa de 45 anos atrás, era tudo bem assim, era que nem tu ir no dentista pra extrair ou pouca coisa mais que isso. E a mesma coisa é a depressão, a depressão era aquilo, “tá doente dos nervos”, e aí tratavam com “faixa preta”, hoje em dia tu tem outros recursos.
Nos discursos citados, os usuários assinalam a relação com a loucura presente em suas famílias, assim como explicitam estigmas sociais do passado. Para Nunes e Torrenté (2009), as transformações culturais em uma sociedade não acontecem imediatamente em respostas a mudanças na legislação, e nem sempre os efeitos das novas práticas são suficientemente conhecidos. Os esforços dirigidos à mudança dos modelos de cuidado e estratégias de inclusão social de sujeitos portadores de transtornos mentais visam garantirlhes um novo lugar na sociedade, e, consequentemente, produzir mudanças no estigma social estabelecido.
Considerações finais
Ao analisar a consciência em relação ao transtorno mental dos sujeitos com transtorno do humor, ou seja, o insight, a maioria, exceto um dos indivíduos, conseguiu articular em seu discurso conteúdos e vivências relativas ao diagnóstico e fatores de mudança em suas vidas. No relato dessas experiências, foi possível sobrepujar as classificações diagnósticas genéricas e deparar-se com facetas distintas e subjetivas do sofrimento psíquico, evidenciando elementos que escapam aos manuais de psicopatologia. Não se trata, portanto, de negar a importância dessas classificações, que, por sua vez, facilitam a interlocução dos profissionais no campo da saúde, mas sim de ir além do que elas, de fato, podem abarcar.
Diante dos dados qualitativos explicitados por meio dos conteúdos das entrevistas, foi possível elucidar aspectos em Saúde Mental, ao transcender o paradigma saúde-doença, para então analisar a produção de cuidado para pessoas com sofrimento psíquico mediante um paradigma psicossocial. Os resultados deste estudo reforçam que ainda é possível ressaltar novas formas de intervenção com esses pacientes, implementando diretrizes e políticas de cuidado que enfoquem a humanização, a clínica ampliada, os saberes multiprofissionais, haja vista que a maioria desses sujeitos percebem o fármaco como única forma de tratamento, enfatizando o ainda hegemônico paradigma biomédico.
O insight torna-se um fator imprescindível, primeiramente para a compreensão das possíveis idiossincrasias ligadas aos sintomas do transtorno bipolar, ademais, pode favorecer uma postura crítica, no que se refere à efetividade dos tratamentos propostos, contribuindo, ainda, para uma busca proativa em relação às melhores opções nessas mesmas situações. Ou seja, o insight acaba influindo diretamente na compreensão e na tomada de decisão quanto ao curso da própria vida.
Novos focos de análise, paradigmas e pesquisas relativas a psicopatologias, Saúde Mental, como também de aspectos da consciência subjacentes, podem ser úteis para investigar elementos da experiência em primeira pessoa do indivíduo que utiliza terapêuticas para aliviar o sofrimento psíquico. Por meio da perspectiva desses indivíduos, como usuários de serviços de saúde pública, horizontalizam-se os saberes para uma prática voltada ao sujeito de forma holística e singular, além do diagnóstico.