Este trabalho parte do pressuposto de que as relações vinculares, intersubjetivas, são de extrema importância para a constituição subjetiva de um sujeito do inconsciente, que é também um sujeito do vínculo (Kaës, 2011; Moguillansky, 2011). Neste contexto, entendemos a parentalidade como uma construção e um processo exercido na relação dos pais com os filhos, que vai muito além de questões biológicas e engloba aspectos conscientes e inconscientes, atravessando a história da família e a subjetividade de cada um dos envolvidos na dinâmica familiar, isto porque para que o bebê sobreviva física e psiquicamente, é necessário que ele esteja inscrito numa história prévia (Gorin, et. al, 2015; Zornig, 2010). Assim, o aparato psíquico não está previamente constituído, sendo que as pulsões sexuais, o eu, as defesas, o superego bem como o ideal do eu se constituem em uma história vincular (Janin, 2011).
Do ponto de vista dos processos de subjetivação, o vínculo parento-filial assume uma grande importância, principalmente porque se constitui no material psíquico inicial que o bebê tem à sua disposição. É importante ressaltarmos, entretanto, que para o bebê, a representação dos pais não é exatamente do pai ou da mãe, mas dos cuidados e investimentos recebidos (Solis-Ponton, 2004). Assim, ao falar sobre a mãe, nos referimos a um ou mais responsáveis por estes cuidados e investimentos que caracterizam uma ‘maternagem suficientemente boa’, ou seja, aquela que a partir da identificação com o bebê, pode adaptar-se às suas necessidades e proporcionar sua sobrevivência psíquica, representando, para o bebê, um ambiente suficientemente bom. Este grande investimento da função materna no bebê é denominado por D. W. Winnicott, de ‘preocupação materna primária’ (Winnicott, 1960).
Tal identificação estaria relacionada ao ‘narcisismo primário’, momento no qual ocorre a revivescência do narcisismo vivido primitivamente pelos pais, o qual será depositado na criança, atribuindo-lhe todas as perfeições e considerando-a ‘Sua Majestade, o Bebê’, de acordo com Freud (1914/1980). O narcisismo primário seria, então, “um estado precoce em que a criança investe toda sua libido em si mesma” (Laplanche & Pontallis, 1998, p.290) e este investimento narcísico dos pais na criança, é o que denominamos ‘narcisismo parental’. Assim, o narcisismo é um dos pontos relevantes quando se pensa nos vínculos parentais, sobre os quais trataremos aqui. Nas palavras de Freud (1914/1980).
Também se inclinam a reivindicar para a criança o direito a privilégios aos quais eles, os pais, há muito tiveram de renunciar. A criança deve ter melhor sorte que seus pais, não deve ser submetida aos mesmos imperativos, que eles tiveram que acatar ao longo da vida [...] ela deve realmente tornar-se do novo o centro e a essência da criação do mundo (Freud, 1914/1980, p. 110).
Este momento de onipotência narcísica, vivido pelo bebê, é considerado relevante para os processos de subjetivação porque a vivência do narcisismo primário oferece o sentimento de si próprio e permite que ele se sinta vivo quando sua mãe se ausenta (Solis-Ponton, 2004). Além disso, o narcisismo primário seria relevante porque desponta como a união da imagem unificada que a criança faz de seu próprio corpo e da revivescência do narcisismo parental, levando à formação do eu ideal. Esse eu ideal está ligado a uma idealização do objeto - a criança - ao qual o investimento narcísico dos pais é direcionado. Encarnar o ideal de perfeição e onipotência é uma meta que reaparecerá ao longo de toda a vida, particularmente nas relações amorosas (Freud, 1914/1980; Garcia-Roza, 2004; Janin, 2011).
Além disto, o narcisismo é importante para a formação do Eu porque seria a partir dele e dos subsequentes momentos de desamparo - de ausências colocadas pela mãe, mostrando a condição de não onipotência do bebê, num esboço da sua diferenciação com relação ao objeto primário – através da qual a criança poderá reconhecer a existência de objetos externos e de um eu. Desta forma, a partir de experiências de desamparo a criança pode diferenciar-se e investir em objetos externos (escolha de objeto anaclítica) ou recolher sua libido ao eu (escolha de objeto narcísica), denominado ‘narcisismo secundário’ (Freud, 1914/1980). O narcisismo, a partir disso, “deixa de ser concebido como uma perversão e passa a ser apontado como forma necessária de constituição da subjetividade. O narcisismo é a condição de formação do Eu” (Garcia-Roza, 2004, p.42). O desenvolvimento do Eu estaria, então, relacionado ao esvanecimento do narcisismo primário:
O desenvolvimento do ego consiste num afastamento do narcisismo primário e dá margem a uma vigorosa tentativa de recuperação deste estado. Esse afastamento é ocasionado pelo deslocamento da libido em direção ao ideal do ego imposto de fora, sendo a satisfação provocada pela realização desse ideal (Freud, 1914/1980, p.117).
Partindo do já descrito, é possível delinear a que se refere o termo ‘narcisismo parental’, espinha dorsal desta pesquisa. O conceito abarca além do investimento narcísico dos pais na criança, descrito por Freud (1914-1980), necessário e de grande valor constituinte para a subjetividade conforme explicitamos anteriormente, os possíveis sintomas decorrentes de certo excesso neste investimento, que abre a possibilidade para uma recusa da transmissão geracional e simbólica, assim como o grande abrandamento da interdição, pela incapacidade de os pais frustrarem a si mesmos e aos seus filhos.
Devemos sublinhar, neste ínterim, que quando S. Freud escreveu “Introdução ao Narcisismo” em 1914, o fez a partir de conceitos de família, infância, e maternidade da época moderna, na qual estava inserido, questionando algumas dessas concepções, inclusive. Segundo Ariès (1975) a infância, a família e a ideia que temos dela não é natural e sofreu diversas modificações ao longo da história. Considerando que estas modificações influenciam, não só o discurso científico, mas também a subjetividade, faz-se necessário pensar a respeito destas transformações e das características das famílias no contemporâneo.
Roudinesco (2003) coloca que Freud contribuiu para a construção de uma nova concepção de família ocidental a partir do declínio da soberania do pai e do princípio da emancipação da subjetividade, já que “ao perder sua auréola de virtude, o pai, que a dominava, forneceu então uma imagem invertida de si mesmo, deixando transparecer um eu descentrado, autobiográfico, individualizado, cuja grande fratura a psicanálise tentará assumir durante todo o século XX” (Roudinesco, 2003, p. 21). Contribuiu também para uma concepção de família e uma estrutura de parentesco, cujo cerne da aliança e filiação é pautado na ‘obrigação do trabalho’ e na potência do amor.
Em relação à marca do narcisismo no contemporâneo, Roudinesco (2003) destaca a forte contestação do Édipo na última década, num retorno à norma centrada na busca da reconstrução de si, através da passagem de um Édipo renegado a um narciso triunfante. Seria este último, o “mito de uma humanidade sem interdito, fascinada pelo poder de sua imagem: um verdadeiro desespero identitário” (Roudinesco, 2003, p. 160). Neste contexto, a família contemporânea, segundo esta autora (Roudinesco, 2003) seria uma rede fraterna, sem hierarquia ou autoridade, formada a partir do desejo individual de cada membro. Nesta conjuntura, Rojas (2010) coloca que as relações familiares estão cada vez mais frágeis e instáveis, alterando assim os cuidados parento-filiais de acordo com uma logica própria do mercado neoliberal.
Diante do descrito anteriormente, buscamos, através de uma revisão sistemática de literatura, compreender como autores da psicanálise entendem a influência do narcisismo para a parentalidade no contemporâneo.
Metodologia
Este estudo utilizou como metodologia a revisão sistemática de literatura (COSTA, et. al., 2015). proposta por Bardin (2011). Esta revisão se deu com a combinação de palavras-chave [parental], [parentalidade], [contemporaneidade], utilizando como operador booleano AND. O procedimento de coleta de dados foi realizado no período entre 25.09.2018 e 10.10.2018, nas seguintes bases de dados: CAPES, PEPSI, INDEXPsi e SCIELO, bases essas que foram selecionadas por sua relevância no campo da psicologia.
Os materiais selecionados responderam aos seguintes critérios de inclusão: utilizar o referencial teórico psicanalítico e terem sido publicados entre 2007 e 2017, contemplando todos os tipos de publicação (teses, livros, dissertações e artigos) em qualquer idioma. Os resultados foram organizados divididos em categorias temáticas, mutuamente exclusivas, tal como propõe Bardin (2011). Neste artigo, selecionamos uma dessas categorias, cujo foco é o tema da parentalidade, que será descrito, a seguir. Após essas etapas, o trabalho foi enviado a juízes, ou seja, duas pessoas da área da psicologia, para averiguar a validade da categorização, havendo concordância em relação à distribuição dos materiais. O Fluxograma 1, descreve este procedimento.
Fluxograma 1 Síntese das etapas metodológicas realizadas.
Coleta dos materiais | Organização das categorias temáticas | Análise dos materiais |
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Busca nas bases de dados a partir dos descritores. Resultado total encontrado (em todas as bases de dados com todas as combinações de palavras-chave): 301 materiais Leitura flutuante dos resumos dos materiais. Retirada dos materiais que não correspondiam aos critérios de inclusão, restando 133. Retirada dos materiais que se repetiam, resultando 76. |
Criação de categorias mutuamente exclusivas, de acordo com a temática dos 76 artigos, realizada a partir da leitura flutuante. Divisão dos artigos nas categorias temáticas. Envio para juízes para validar a categorização. |
Eleição da categoria temática que mais s se aproximava do problema de pesquisa para análise: a categoria parentalidade (n=6). Subdivisão da categoria escolhida em dois temas centrais, para facilitar a discussão dos materiais: (I) implicação do desejo dos pais para a parentalidade e (II) posturas paentais narcísicas. Realização de leituras complemetnares pra a discussão dos resultados. |
Fonte: Elaborado pelas autoras.
Resultados
A partir da coleta de dados encontramos, entre os resultados que correspondiam aos critérios, excluindo os que se repetiam, 76 resultados. Estes foram distribuídos em nove categorias temáticas, conforme apresentado no Fluxograma 1, que incluíam: discussões contemporâneas da psicanálise com foco na prática clínica (18%), maternidade (11%), parentalidade (8%), educação (5%), trabalho (9%), toxicomania (7%), discussões contemporâneas da psicanálise com foco em questões teóricas (28%), corpo (9%) e aqueles que não se encaixaram em nenhuma das categorias temáticas anteriores (5%).
A categoria analisada foi a ‘Parentalidade’ que contava com seis artigos científicos, todos publicados em revistas brasileiras, que estão descritos na Tabela 1.
Tabela 1: Descrição dos materiais analisados.
Título | Autores | Ano de publicação | Tipo de estudo | Objetivos |
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‘Influência do desejo parental nas altas habilidades/superdotação: uma abordagem psicanalítica’ | Pretto | 2010 | Teórico | Entender como as características da superdotação na criança podem ser uma forma de realizar os desejos narcísicos dos pais. |
‘Vínculos afetivos de adolescentes borderline e seus pais’ | Jordão & Ramires | 2010 | Empírico | Investigar as características dos vínculos afetivos de adolescentes borderline e seus pais. |
‘A ‘fragilização das funções parentais’ na família contemporânea: determinantes e consequências’ | Zanetti & Gomes | 2011 | Teórico | Apresentar os determinantes desta fragilização e suas consequências para a família contemporânea. |
‘Parentalidade e o desenvolvimento psíquico na criança’ | Veludo & Viana | 2012 | Teórico | Realizar uma revisão a partir da hipótese de que a parentalidade marcada pelo narcisismo influencia no desenvolvimento infantil. |
‘Monoparentalidade programada e reprodução assistida: da ‘produção independente à utilização de semem pós mortém’ | Quayle & Dornelles | 2015 | Empírico | Realizar considerações sobre a tessitura e a constituição do sujeito na família. |
‘A experiência paterna da gestação no contexto de reprodução assistida’ | Sonego, et. al | 2016 | Empírico | Investigar a experiência paterna no contexto da reprodução assistida. |
Fonte: Elaborado pelas autoras
Estes materiais foram subdivididos em novas (sub) categorias, para proceder à análise de conteúdo: a primeira (I) trata das implicações do desejo dos pais para a parentalidade, na qual destacamos (a) a impossibilidade de ter um bebê, vivida como uma ferida narcísica, (b) e o desejo de ter um filho como projeto individual dos pais. As principais publicações discutidas são as de Quayle e Dornelles (2015), Pretto (2010), Sonego et. al (2016). Na segunda (II) subcategoria, cujo tema são as posturas parentais narcísicas, sublinhamos (a) quando as características da criança abalam os objetivos narcisistas dos pais, bem como (b) as dificuldades dos pais em frustrar e colocar os interditos para a criança. As principais contribuições são de Veludo e Viana (2012), Zanetti e Gomes (2011) e Jordão e Ramires (2010). A seguir, discutiremos os resultados da categoria parentalidade a partir das subcategorias descritas.
Discussão acerca da Parentalidade
Implicações do desejo dos pais para a parentalidade
Na primeira subcategoria de análise: as implicações do desejo dos pais para a parentalidade, entendendo que este diz sempre respeito a um desejo inconsciente, que tende a realizar-se de acordo com o processo primário e as primeiras vivências de satisfação (Laplanche & Pontalis, 1998). Destacou-se, nos materiais analisados (Pretto, 2010; Quayle & Dornelles, 2015; Sonego, et. al., 2016; Zanetti & Gomes, 2011), que o desejo por ter um filho relaciona-se ao de uma completude narcísica ou como uma forma de transcender a mortalidade. Pretto (2010) sublinha que a isto também se conecta as fantasias de completude e onipotência. Este se relacionaria tanto aos pais quanto as mães, como destacam Sonego et. al (2016) ao estudar a experiência de pais (homens) em processos de reprodução assistida: a gravidez da companheira possibilitaria que aqueles pais obtivessem esta gratificação narcísica descrita por Freud (1914/1980).
Esta ênfase à ideia deste desejo de imortalidade e completude narcísica é, portanto, uma herança amplamente destacada na literatura do texto da obra de Freud (1914/1980): “O ponto mais vulnerável do sistema narcísico, a imortalidade do Eu, tão duramente encurralada pela realidade, ganha, assim, um refúgio seguro abrigando-se na criança.” (Freud,1914/1980, p. 110). O sujeito, assim, chega ao mundo com a missão de assegurar a continuidade do conjunto ao qual ele pertence, e em troca, o conjunto investe narcisicamente nele. Tal configuração é o P. Aulaguiner denominou aliança inconsciente estruturante, um contrato narcísico que atribui a cada indivíduo um lugar determinado no grupo, indicado pelas pessoas que sustentaram os discursos, que transmitem ideias e valores, como mitos fundadores do grupo (Kaës, 2011).
Pretto (2010) destaca ainda a complexidade do desejo materno, que seria perpassado além de satisfações narcisistas, por identificações com o bebê e sua própria mãe. Sonego, et. al. (2016) incluem a isto que este desejo começaria a ser produzido na infância, com o complexo de Édipo e processos identificatórios, em conformidade com Freud (1921/1980), ao defender que a identificação é o traço mais remoto do laço emocional com as outras pessoas e que tem papel importante na história primitiva do complexo de Édipo.
A impossibilidade de realizar este desejo de ter um bebê poderia ser vivida, em ambos os casos, como ferida narcísica para os pais. Quayle e Dornelles (2015), em consonância com Sonego at. al (2016), apontam a existência desta ferida em relação ao interdito para a procriação (imposto biológica ou socialmente), o que influenciaria na decisão das pessoas em buscar uma alternativa, como a reprodução assistida, muito embora, como destacam Sonego at. a(2016) este processo seja perpassado por sofrimento e dor (do ponto de vista físico e psíquico).
Diante da forma como o desejo por ter um filho aparecia nos materiais desta primeira categoria de análise (I), em especial nos que diziam respeito à reprodução assistida, dividimos essa sub-categoria, destacando destacamos, em nossas análises, diferentes aspectos desta mesma questão: a impossibilidade de ter um bebê, vivida como ferida narcísica, em especial no caso de homens, em casais (a) e no caso de famílias monoparentais. (b).
A respeito desta (a) primeira questão, Sonego, et. al, (2016) enfatizam que para os homens, esta ferida narcísica está associada à quebra do ideal de virilidade imposto socialmente, ‘diminuindo’ seu valor como homem e gerando ansiedade, estigmatização, vergonha, culpa, entre outros. Frente a isto, podem surgir sentimentos de perda e frustração pessoal que influenciarão nos processos identificatórios do ser homem e ser pai (Sonego, et. al, 2015). É interessante pensarmos, neste sentido, às construções históricas e sociais do ideal de virilidade masculino ao quais as autoras se referem.
Segundo Del Priore (2013), uma das características mais importantes do homem no Brasil colonial era a genealogia e a transmissão de nome e de bens. A partir de Gilberto Freyre, del Piore (2013) também aponta: o homem era definido, nos dicionários, como “o que fazia filhos” (p.159), demonstrando assim o peso social da virilidade nos modos de subjetivação da época. Muito embora o papel do pai nas famílias contemporâneas, principalmente após a instituição das escolas e da medicina higienista no Brasil, tenha se transformado, de forma a conferir ao pai a necessidade também de afeto, para a manutenção de um compromisso com a construção do bom cidadão, valorizando a intimidade do lar (Costa, 1979; Del Priore, 2013), ainda resiste no contemporâneo esta herança da grande valorização do masculino associado à virilidade.
Em relação ao que a segunda subcategoria (b), em especial no que diz respeito ao desejo por um filho relacionado a um projeto individual a ser alcançado nas famílias denominadas monoparentais, Quayle e Dornelles (2015) apontam motivos relacionados a um tipo de projeto individual para as técnicas de reprodução assistida, lembrando que estes não são exclusivos de famílias monoparentais, ou seja, ‘não são exclusividade de modelos familiares pouco ortodoxos’ (Quayle & Dornelles, 2015, p. 35). Sobre isto, Bauman (2004) acrescenta que o filho poderia funcionar, em tempos líquidos, como objetos de consumo emocional: “objetos de consumo servem a necessidades, desejos ou impulsos do consumidor. Assim como também os filhos. Eles não são desejados pelas alegrias do prazer paternal ou maternal” (Bauman, 2004, p. 61). Apesar disto, o autor destaca o fato de os filhos não trazerem somente prazeres, mas exigirem também renúncias.
Mesmo no caso específico das famílias monoparentais Weissmann (2015) aponta que cabe pensarmos nos diferentes tipos de famílias monoparentais baseando-nos na forma com que cada uma se constitui (viuvez, escolha pessoal etc.). Weissmann (2015) afirma que, muitas vezes, nas famílias estudadas em sua pesquisa, brasileiras e de classe média baixa, surgem da busca de um parceiro sexual e tem a parentalidade como consequência. Nestes casos, os homens muitas vezes não reivindicam para si o lugar de pai, não se encarregando dos filhos que geraram. Roudinesco (2003) aponta os casos, na França, em que famílias de classe média alta que buscam bancos de sêmen para suprir seu desejo de ter um filho, relacionando a maternidade como mercadoria.
Perelson e Fortes (2016) acrescentam a esta problemática que a circulação de gametas (tanto femininos quanto masculinos) nas novas formas de reprodução da sociedade contemporânea giram em torno “da tecnociência (e sua vontade de tudo saber, ver e controlar), a lógica mercadológica (que transforma tudo em produto e em valor intercambiável) e o inconsciente (marcado pelos fantasmas mais arcaicos)” (Perelson & Fontes, 2016, p. 164), demandando tanto dos doadores quanto daqueles que receberão os gametas importante esforço de elaboração.
De acordo com Quayle e Dornelles (2015) em concordância com Weissmann (2015), na maioria das vezes estas famílias monoparentais são formadas por uma mulher e seu(s) filho(s), e tem em comum uma parentalidade vivenciada individualmente. Estas primeiras autoras associam este fato ao empoderamento da mulher a partir da segunda metade do século XX, relacionado a uma tentativa de controle e manipulação de um contexto narcísico específico. Encomendando uma criança, (entendendo que uma encomenda necessita sempre outro para que se viabilize) exercer-se-ia uma soberania. Nas palavras das autoras:
seria possível ir além: não se trata de uma parentalidade exercida “independentemente” de um partner, um parceiro/a; trata-se, claramente, da exclusão dessa parceria, da opção pela independência e pela caracterização de mais um “projeto de vida” a ser perseguido e obtido individualmente, tendo em vista a realização pessoal. (Quayle & Dornelles, 2015; p. 33).
Nas famílias estudadas por Weissmann (2015), de forma geral, a sexualidade entre a mãe e seu parceiro está delineada por um movimento inconsciente da mãe, de não aceitação de dois sujeitos como diferentes para formar um filho, numa fantasia inconsciente da mãe na qual ela rouba o sêmen do pai, “a mãe aparece roubando o que ele tem – e o que ela precisa – para cumprir com seu anseio de ter um filho” (Weissmann, 2015, p. 273).
Nestes casos, em que o desejo por um filho estaria relacionado a uma realização pessoal dos pais, é importante pensar no espaço psíquico que será criado para esta criança dentro da família, em especial quando o procedimento de reprodução assistida utiliza sêmen pós morten, ou seja, no qual o pai da futura criança já morreu (Quayle & Dornelles, 2015). Weissmann (2015) coloca a ideia de Berenstein (2001) de que é preciso diferenciar o desejo de um filho (desejo possível de por em prática em contato com o outro e produz um terceiro como representação vincular) e o desejo de ter uma criança que seria uma prorrogação de seu próprio ego, sustentando a fantasia de um filho como falo.
Posturas parentais narcísicas e sua implicação para a colocação do interdito e para o desenvolvimento da criança
As transformações sociais e o crescente individualismo de nossa sociedade transpostos para o exercício da parentalidade são evidenciadas nos materiais analisados no sentido de uma dificuldade dos pais em frustrar seus filhos e colocar os interditos da cultura, na passagem do princípio do prazer para o princípio da realidade e na insuficiência da postura parental narcisista frente às características da criança, que abalam seus próprios objetivos, ou seja, os objetivos dos pais, analisados nessa segunda subcategoria deste estudo (II).
Sobre a dificuldade dos pais em frustrar os filhos, Veludo e Viana, (2012) apontam que o desejo parental, sustentado por imperativos sociais, de revogar as leis da sociedade pode fundamentar uma postura muito permissiva diante da criança, em relação aos seus comportamentos e desejos. As autoras somam a esta ideia que, ao suprir as demandas narcisistas dos filhos, os pais estimulariam a supremacia do princípio do prazer, adivinhando e realizando todos os pedidos da criança.
Zanetti e Gomes (2011) apontam esta realidade de fragilização da autoridade e a dificuldade dos pais em frustrar os filhos, associada a sentimentos de culpa, dúvida e insegurança em relação a seu posicionamento. De acordo com as autoras, esse fenômeno estaria ligado a determinantes (1) históricos com a transformação do papel e do lugar da criança na família e na sociedade atuais, sendo este sentimento de infância atrelado à educação, enquanto instrução e disciplina. Junto a este sentimento de infância, desenvolveu-se também a ideia de família, que com o passar do tempo, acabou centrando-se na criança. As autoras defendem, a partir de Postman (1999), que o sentimento de infância está novamente desaparecendo, associado à acessibilidade cada vez maior de informação. Além disso, a falta de autoridade dos pais poderia estar associada, também aos crescentes meios de comunicação e as propagandas, que colocam os adultos e as crianças numa certa simetria geracional.
Além disso, Zanetti e Gomes (2011) destacam também as implicações para a transmissão simbólica, já que estas condições de igualdade adulto-criança ofuscam a autoridade paterna, fundada no delírio de que existiria uma forma ideal de educar a criança, de que seria possível reivindicar os interditos da cultura. Neste sentido, Kehl (2001) defende o perigo quando a criança passa a ser critério do adulto, como efeito de um abandono de responsabilidade e de autoridade, já que o que funda a autoridade paterna é uma posição subjetiva sustentada pelo laço simbólico. O abandono ocorreria quando o adulto não ocupa sua posição diante da criança. Embora os atores desta autoridade paterna sejam substituíveis, é imprescindível um olhar sobre a criança, ao mesmo tempo responsável e desejante.
Relacionado a isto, Zanetti e Gomes (2011) destacam entre os determinantes (2) socioculturais do combate ao autoritarismo confundido com o combate ao princípio de autoridade e o advento cada vez maior das ciências e dos saberes com discursos especializados, que poderiam levar os pais a desconfiarem de sua competência para educar seus filhos, desqualificando o saber dos mesmos em relação ao desempenho de suas funções. Como as regras não estão claras para os próprios pais, se tornam inconsistentes diante dos filhos. Ademais, os pais teriam cada vez mais dificuldade de dizer não aos seus filhos por esperarem uma retificação social e científica de seu dizer. Desta forma, as autoras defendem que a sociedade assumiu a ciência no lugar da função paterna, o que implica numa renuncia do adulto em educar a criança, em nome de uma parentalidade ideal.
A preocupação maior destes “discursos especializados” estava em buscar sensibilizar os pais acerca da necessidade de maiores cuidados em relação a seus filhos, mas acabaram por provocar um sentimento exacerbado em que, atualmente, a criança é colocada no lugar de protagonista e de quem decide sobre seu futuro. (Zanetti & Gomes, 2011, p. 495).
Corroborando com esta tese, Kamers (2006) traz que a intimidade como ideal de vida privada e familiar é a base para a invenção de um terceiro especializado, que diria como intervir e como educar a criança. A parentalidade seria então, um dever público. Essa tese concorda com a de Roudinesco (2003) segundo a qual a autoridade dos pais na atualidade é dividida entre os pais estes e o Estado. Além disso, relaciona-se com a de Lasch (1932), que entende a falta de autoridade dos pais como uma possível consequência do discurso do saber especializado que dita a forma correta de se educar uma criança, o que tornaria-os os pais inseguros diante de seus filhos.
Kehl (2001) aponta, ainda, que na sociedade contemporânea, os pais sentem-se sempre em dívida em relação a uma forma ideal de parentalidade e conjugalidade. Isto seria fortalecido por uma idealização do passado, fortalecido pelas mídias sociais. Esta idealização reforça um imaginário de que as formas vinculares da sociedade moderna eram mais seguras em relação às formas de desamparo enfrentadas atualmente. De acordo com a autora (Kehl, 2001), tanto as famílias modernas como as contemporâneas têm desencadeado psicopatologias e mal-estares, mas o peso desta dívida em relação a um ideal de família moderna haveria detido os adultos de se autorizarem diante de seus filhos e, com isto, se encarregarem dos riscos da educação.
Por fim, seguindo a tese de Zanetti e Gomes (2011) os aspectos (3) econômicos incluem a competição individualista, dita democratizante que fortalece a lógica da culpabilidade pelos próprios fracassos e da falta de confiança no grupo social. Lasch (1983) aponta que a cultura do narcisismo fundamenta-se na realidade de um mundo exterior menos durável, com memórias coletivas cada vez mais debilitadas, o que intensifica o medo da separação, enfraquecendo recursos psicológicos para lidar com esta realidade. E concluem: “os novos valores da família estruturam-se em torno do caráter idealizado de cuidados, de respeitos à autonomia e às individualidades, e conjectura-se que essas foram as formas em que “individualismo”, “igualdade de direitos” e “narcisismo” têm-se apresentado na família” (Zanetti & Gomes, 2011, p. 479).
A partir disto, Veludo e Viana (2012) sublinham a importância da oferta de um ambiente suficientemente bom aos filhos. Este ambiente inclui providencia, segundo Winnicott (2012) que a criança não continue vivendo uma situação de onipotência quando ela já dispõe de mecanismos que lhe permitem conviver com frustrações do meio ambiente. Assim, os pais não podem evitar a todo custo o sofrimento da criança, já que é essencial para estruturação do psiquismo, isto porque, segundo Janin (2002) uma função parental suficientemente boa implica que os pais já tenham normas incorporadas e que permitam à a criança uma construção de uma representação narcisista de si mesmo estável e coerente, que possibilite o conhecimento singular de seu corpo e de sua história. Este reconhecimento básico para que ela a criança possa criar um funcionamento desejante, uma imagem valorosa de si e uma bagagem de normas e ideais que possam sustenta-la nos momentos de crise.
Ainda, na visão de Janin (2011), é imprescindível que a criança possa tolerar fraturas narcísicas, o que não é possível se os pais não suportarem a queda de ‘sua majestade’, ao quebrar a onipotência da criança. Faze-lo seria intolerável para os pais porque eles se sustentariam através do filho (supostamente ideal) ao possibilitarem à criança todos os prazeres, já que, negar algo implicaria conhecer os limites e dificuldades dos próprios pais. Em suma, a existência do adulto sustentar-se-ia na imagem ideal da criança e, além disso, o adulto não seria capaz de frustrá-la e, assim, realizar os interditos da cultura, já que isso frustraria o próprio adulto (Kammers, 2006). Para Kammers (2006) uma consequência disso seria uma recusa na transmissão geracional.
Ainda podemos pensar, diante do exposto e da aceleração dos meios de comunicações e da grande variedade de informações, inclusive para crianças, numa possível horizontalidade entre as gerações, que poderia, inclusive, inverter-se, de forma que as crianças fiquem num lugar de autoridade em relação aos pais (Rojas, 2010). Para Rojas (2010), nestes casos, a criança sofreria uma situação de desamparo, já que a sustentação das identificações da criança ocorre através do apoio e da interdição, que possibilitam a transmissão psíquica. Segundo a autora (Rojas, 2010), as operações de sustentação e de interdição, operantes na construção subjetiva do psiquismo infantil se baseiam na assimetria inicial adulto-criança, ou seja, nos distintos graus de conformação subjetiva entre uns e outros, implicando, aos adultos, responsabilidades. A autora relaciona a isto as grandes modalidades de evitação e de postergação do sofrimento, a qual os psicofármacos e algumas tecnologias se colocam a serviço, bem como a grande incidência clínica da desmentida, como um possível “recurso para um psiquismo que requer habitar as lógicas mercantis e o mundo que as tecnologias e a comunicação vêm construindo” (ROJAS, 2010, p. 5, tradução nossa).
Considerações finais
Os materiais coletados e apresentados nesta pesquisa de revisão sistemática de literatura destacam a expressão do narcisismo dos pais na atualidade em duas grandes subcategorias.
A primeira delas diz respeito ao desejo pelo bebê, em especial no que se refere às implicações da reprodução assistida para a construção da parentalidade em dois casos especialmente: (1) nos casos de casais, nos quais se destacou as feridas narcísicas dos pais envolvidos nestes procedimentos (Sonego, et. al., 2016), geralmente relacionados à questão da infertilidade, em especial quando se tratam de homens; e (2) em famílias monoparentais (Quayle & Dornelles, 2015), geralmente formadas por mulheres. Em ambos haveria uma questão que incide diretamente nos investimentos narcísicos parentais: a figura paterna mostra-se mais frágil, enquanto a materna está mais destacada. A partir disto, podemos pensar na implicação do desejo parental para a construção da parentalidade, sobretudo quando esta se inicia com uma ferida narcísica nos pais ou quando dificulta a criação de um espaço psíquico para a criança dentro da família.
Podemos refletir que o lugar central ocupado pelo filho associado à cultura contemporânea baseada no prazer e no sucesso individual incidiu na mudança de investimento narcísico na família. Dito isto, podemos notar a mudança nos lugares ocupados pelas funções paterna e materna, sendo que, nesse aspecto, a figura paterna foi aquela que mais sofreu com o enfraquecimento parental. Isto transforma as formas de investimento e de exercício da autoridade, ou seja, os interditos sociais, bem como no que se refere à necessidade de se pensar no terceiro (função paterna) como inscrição de alteridade, o que, segundo os materiais analisados, tem mostrado fragilidades nas formas contemporâneas de exercer a parentalidade.
Isto em consonância com Roudinesco (2003), afirmando que o patriarca em nossa sociedade está mutilado. Isto poderia influenciar na passagem do narcisismo primário para o secundário e no desvanecimento da célula narcísica, o que, segundo Freud (1914/1980) é essencial para a formação do Eu, com importantes consequências para o desenvolvimento da criança. Podemos pensar então que os estudos em psicanálise e família contemporânea carecem ainda de pesquisas sobre a função paterna no contemporâneo e as consequências deste no âmbito da simbolização e da transmissão.
A segunda categoria destaca a postura parental dos pais diante dos filhos. Zannetti e Gomes (2011) colocam a denominada por elas, fragilização das funções parentais, relacionada a uma dificuldade dos pais em impor limites aos desejos e pulsões dos filhos, frustrá-los e em colocar a diferenciação de gerações, importante para a transmissão psíquica. Veludo e Viana (2012) também destacam a importância do narcisismo parental para a passagem do principio do prazer para o princípio da realidade e a inserção da criança na cultura. Sublinhando mais uma vez a relação entre a expressão do narcisismo parental para a construção das subjetividades contemporâneas, diante do contexto sociocultural no qual nos encontramos e as consequências no âmbito da transmissão simbólica.
Neste sentido, destacamos que quando a imagem ideal da criança sustenta o adulto, a própria ideia de criança e a posição desta em relação ao adulto apresentam diferenças em relação àquela conhecida na sociedade moderna, estudada por Freud. Neste contexto, a queda da autoridade dos pais possibilita o que Rojas (2010) denominou de simetria geracional, sublinhando mais uma vez a relação entre a expressão do narcisismo parental para a construção das subjetividades contemporâneas, diante do contexto sociocultural no qual nos encontramos. Apontamos também as consequências no âmbito do desenvolvimento simbólico e da transmissão psíquica, que só podem ocorreriam num contexto no qual existia uma há diferenciação geracional e a diferenciação de lugares de autoridade na família, aspecto este que, segundo Inglez-Mazarella (2006) é tão importante quanto à a diferenciação entre os sexos para a organização psíquica.
Em suma, em todos estes aspectos apontados, evidenciamos as transformações nas experiências narcísicas parentais, principalmente no que diz respeito à dificuldade em exercer a função de contenção pulsional e do desejo infantil bem como a precariedade da constituição simbólica, que pode ser vislumbrada como uma falha na sustentação psíquica. É possível notar a transformação desse lugar de contenção e apoio para outro, no qual os pais se apoiam nos filhos, fato que sinaliza importantes mudanças, sobretudo na configuração dos lugares ocupados na trama familiar, baseada principalmente numa simetria nos papéis ocupados por pais e filhos.
É necessário ponderar que este estudo possui limitações por trabalhar com uma amostra reduzida de literatura (seis artigos científicos brasileiros). Com base no exposto, concluímos o estudo, com uma reflexão acerca das novas configurações da transmissão psíquica geracional, baseada principalmente nos lugares parento-filial definidos na malha psíquica familiar, necessita ser melhor compreendida no cenário que pudemos vislumbrar a partir dos resultados obtidos através da presente pesquisa. Desta forma, a contribuição deste estudo para a área está em pensar os atravessamentos da contemporaneidade para a constituição do psiquismo, que é intersubjetiva.