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Revista Psicologia Organizações e Trabalho

versão On-line ISSN 1984-6657

Rev. Psicol., Organ. Trab. v.2 n.1 Florianópolis jun. 2002

 

RESENHA

 

A dor que vem do trabalho1

 

 

Analía Soria Batista

Doutora em Sociologia do Trabalho. Pesquisadora do Laboratório de Psicologia do Trabalho do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília

 

 

O livro Saúde Mentale Trabalho: leituras é imprescindível para todos que desejem acompanhar uma viagem pelos labirintos do trabalho, uma atividade que ocupa cada vez mais o tempo da vida, invocada como categoria que funda a possibilidade de compreender uma variedade de afecções psíquicas e físicas, algumas mais cientificamente desvendadas que outras. A dor e o sofrimento que homens e mulheres experimentam de forma difusa e/ou silenciosa, tomam corpo neste livro instigante cujos autores conseguem arrancar as mazelas dos interstícios da produção para lhes dar nome e significado, desdobrando-as numa rede de sintomas e rastros psíquicos e físicos.

O trabalho, uma atividade cada vez mais fatigante e asfixiante nas organizações empenhadas na geração de uma multiplicidade de valores de troca, é invocado como elemento gerador da dor e do sofrimento, desmistificando, assim, um território visivelmente inflacionado na atualidade pelos discursos sobre a exigência de competitividade, autonomia e criatividade.

O livro é produto da contribuição de vinte e dois autores originários de diferentes campos disciplinares e poderia ser lido como uma simples coletânea de artigos relativos à saúde do trabalhador no ambiente de trabalho. Porém, ele é caudatário da possibilidade de uma outra leitura, mais fecunda, sem dúvida, compreendendo que se trata de uma multiplicidade de contribuições, que tem como pano de fundo uma referência identitária comum: uma paixão e um desejo compartilhados com relação à compreensão de uma atividade nomeada, mas fugidia. É também, sem dúvida, uma obra ciente da complexidade do seu objeto e que, por isso, visa ir além das artificiais e artificiosas fronteiras das ciências denominadas autónomas, traduzindo um convite generoso a intelectuais de diversas áreas.

Apesar de algumas ambigüidades, é o trabalho a categoria que funda, no conjunto dos textos apresentados, a possibilidade de compreender como e por que se vive, se adoece e se morre no futurista e desencantado século XXI. Trata-se, pois, de um ancestral comum destinado a arrojar luzes e sombras sobre as angustiantes trajetórias sociais de homens e mulheres destinados à produção de mercadorias. Seres convictos da impossibilidade de sobreviver na mais pura negação de si, que deixam nas suas biografias mais ou menos curtas, mais ou menos impressionantes, os rastros de uma dor infligida pelas prescrições pseudocientíficas de um mundo do trabalho antropofágico.

É um livro autorizado a dialogar em dois movimentos. Anuncia-se primeiro uma busca do objeto nomeado como trabalho; prevê-se, depois, ingressar nas entranhas do trabalho. Busca-se o trabalho e logo se anuncia a dissecação, a violação de seu íntimo, numa procura obcecada por atingir o secreto do mecanismo da produção da dor. Convida-se a buscar o trabalho (Primeiro Movimento: em busca do trabalho), depois, (Segundo Movimento: por dentro do trabalho) provoca-se a mergulhar no trabalho. Mas essa divisão acaba sendo um mero artifício destinado a colocar ordem numa produção intelectual que resiste a abandonar-se a deslocamentos pendulares. Por isso, os deslocamentos previstos no livro acabam sendo negados pelas contribuições intelectuais. Na verdade, a grande parte dos artigos constitui em viagens por dentro do antitrabalho, que se revelam no controle/prescrição, na defesa/resistência e na dor/sofrimento. Por esta razão, devo me eximir aqui de realizar uma leitura comandada pelas prescrições dos organizadores, seguindo sinais identificados nas contribuições e que permitam traçar outras trajetórias.

Karl Marx evocou uma atividade de trabalho portadora de idealidade e veracidade, de planejamento e execução, capaz de sintetizar, numa praxis dialética, sujeito e objeto. Uma atividade cujas prescrições derivavam de um plano de ação tendente à realização de um produto ou de um sonho, uma autoprescrição necessária, anti-reificadora, portadora de uma racionalidade transparente. A partir desse momento, o trabalho enquanto atividade humana edificante, portador de uma unidade de intelecto e operação, converteu-se num mito engendrador de uma ansiedade de retorno.

Jogada nas garras do sistema que produz mercadorias, essa atividade foi condenada a uma duplicidade asfixiante: produção de valores de uso e produção de valores de troca, isto é, trabalho e antitrabalho, ou negação da atividade de trabalho. A partir desse momento, a atividade humana denominada trabalho é portadora do gérmen de sua própria negação. A partir dessa constatação, foi possível identificar a dor que vem da negação da atividade de trabalho.

No livro, o trabalho será invocado como objeto de análise fugidio e comparecerá muito mais como espectro, negação. Paradoxalmente, o encontro com o trabalho será possível pela via indireta do encontro com o antitrabalho. Assim, o trabalho como possibilidade de prazer permanecerá como uma figura fantasmagórica, espécie de evocação mítica de um passado sem geografia e sem data. O espectro do trabalho comparece no discurso da alienação, que reivindica o retorno do controle sobre o processo de produção como forma de diluição do sofrimento. O trabalho aparece como sua própria perda; a recuperação dessa atividade e a diminuição da dor invocarão o controle operário. Um controle perdido com a organização taylorista do trabalho que, na busca do controle/prescrição, submete o trabalho e, por conseguinte, os trabalhadores, ao suplício medieval do esquartejamento, ao quebrar impiedosamente a unidade de concepção e execução, tornando a execução o território do esmigalhamento do trabalho.

A atividade de trabalho fundada no coletivo dos trabalhadores aparecerá também sob a forma de modos operatórios atingidos pela regulação decidida por aqueles que trabalham. A possibilidade de uma regulação autorizada pelo grupo aparece como fator central para evitar ou limitar o sofrimento psíquico. Na ausência da possibilidade de controle ou regulação dos modos de operar o trabalho por parte dos trabalhadores, as metamorfoses do capital levam, cada vez mais, a um incremento das violências interpessoais nas organizações. Poderes e hierarquias estabelecidas no local de trabalho manifestam-se em relações sociais que provocam a denominada "doença dos nervos". O mundo do trabalho é evocado corno cenário de terrores psicológicos que podem desdobrar em martírios fisicos. Novamente, o trabalho é evocado a partir de relacionamentos sociais contaminados pelas impurezas brutais do antitrabalho.

A doença dos nervos parece espalhar-se cada vez mais. Mais ainda, não chegou o momento de igualar, no sentido da repulsa do coletivo, a morte fisica à morte psicológica, o assassinato do trabalhador à doença dos nervos dos empregados. Ao corpo nu e esfaqueado, baleado, estrangulado contrapõe-se o corpo nu sensualizado ou erotizado. Ao terror da morte, contrapõe-se o glamour da vida imageticamente construída. O outro aparece nas fronteiras de seu próprio corpo. Um corpo gritando seu lugar na geografia, mistificando, isto é, tornando matéria pura, pó divino, a presença do eu. Sua destruição apaga o indivíduo. Mas a destruição da alma é quase sempre incapaz de deslocar o corpo. A morte comparece corno real e verdadeira no primeiro caso; tem-se os vestígios do sangue, a fria e pálida pele. No segundo caso, a morte, sorrateira, oculta-se nos labirintos de um corpo ainda jorrando vida.

A representação do trabalho corno um objeto de estudo fugidio emerge, inevitavelmente, na discussão sobre os pressupostos epistemológicos do campo científico. Mergulha-se na discussão trazendo ao centro do drama o sujeito cognoscente e o objeto de conhecimento. Num movimento assaz pendular, são trazidos à tona discursos científicos acusados de idealismo. Proclama-se a inelutável realidade do trabalho, muito além da representação, do discurso, da vivência, numa assunção evidente da discussão sobre a relação sujeito-objeto na produção do conhecimento científico.

Mas é importante lembrar que o trabalho, essa atividade espectral desenhada por Marx no longínqüo século XIX, (categoria que permite sintetizar, com base no conceito de praxis, a paranóica divisão entre um mundo corno idéia e um mundo corno matéria, a partir da evocação dos processos de objetivação/subjetivação.

A reconstrução da trajetória dos estudos centrados na psicopatologia do trabalho, até desembocar numa abordagem que privilegiará a análise da normalidade antes que da doença, mostra uma guinada interessante. Deixa-se de procurar a negação da saúde de trabalhadores e trabalhadoras no contexto do antitrabalho, enfatizando-se a compreensão da relação antitrabalho-normalidade. Essa mudança parece efetivamente sinalizar para a necessidade de se abandonar a idéia mítica de uma atividade de trabalho não alienante, trazendo para o centro da discussão a possibilidade de o sujeito gestionar uma atividade efetivamente posta como alienante e alienadora. Mecanismos de defesa ou formas de resistência psicológica desenvolvidos por aqueles que trabalham serão analisados à medida que permitem compreender que aquilo que se considera normalidade/saúde mental é produto do investimento psíquico do individuo que resiste à sua própria perda instigada pelo antitrabalho. Encara-se abertamente a dor de homens e mulheres tentando tecer as mediações necessárias e imprescindíveis entre a afecção psíquica e/ou fisica e as manifestações organizativas, tecnológicas e sociais do antitrabalho, tanto quanto desfaz, na consideração da relação trabalho-saúde-doença, a divisão entre o mundo do trabalho e a rua, sendo integrados numa análise que procura atingir a esfera doméstica e as mais longínquas estruturas sociais.

A intimidade entre dor e antitrabalho evoca um sujeito que trabalha e sofre, aprisionado entre as exigências da sobrevivência, a subjetividade dominante no sistema que produz e reproduz mercadorias e o arsenal de recursos sociais, tecnológicos e organizativos que caracteriza o local de trabalho. Uma diversidade de abordagens teórico-metodológicas é invocada no momento da elucidação do fenômeno. Tem-se um objeto de análise fugidio denominado trabalho, analisa-se a sua negação, o antitrabalho, e existe uma intimidade a desvendar: o corno da dor, o porquê da dor no trabalho. Reivindica-se polifonia teórico-metodológica. Um abandono dos paroquialismos. Urna espécie de desconstrução, que permita invocar o bom senso de ponderar que ferramentas científicas serão mais fecundas para revelar o fenômeno. Buscas obsessivas que traduzem marchas e contramarchas caracterizadas pelo diálogo e o distanciamento com relação aos ancestrais.

A procura incestuosa das mediações necessárias para compreender trabalho e dor nem sempre tem final feliz. E essa intimidade que o olhar atento do pesquisador tem que poder observar. Mas é um território identificado/inventado que parece carecer de pressupostos. Essa esfera tem uma estrutura identificável? Na ausência dela, os estudos exprimem variáveis-nexos entre ambos universos. Nos estudos, mostra-se difícil identificar com clareza esse tipo de intimidade.

Mas logra-se tecer mediações entre o trabalho, o sujeito e a doença na contribuição que coloca no centro da reflexão certas características de personalidade do sujeito, a brutalidade do controle que emerge da organização do trabalho e a afinidade eletiva entre as dimensões pessoais e do local de trabalho. Esse encontro constrói um território de exacerbações típicas da psicopatologia.

O tempo é invocado de forma diferente em duas oportunidades. Por conta da reconstrução histórica da trajetória da histeria na sociedade e dos estudos destinados a dar conta dela, fica claro que as afecções psíquicas são construídas socialmente, sendo portadoras de uma historicidade calcada em hierarquias e poderes que comandam os modos de identificar, compreender e tratar a doença.

Uma reflexão sobre o tempo fecha essa obra abrindo uma porta para novos investimentos na compreensão de fenômenos originais. Trabalhadoras e trabalhadores portadores de uma nova subjetividade do tempo, constituída a partir de uma exacerbação dos tempos da fábrica, pulverizados agora sob o impacto de tecnologias da comunicação, experimentam num mesmo espaço e num tempo acelerado a racionalidade do trabalho e a intimidade da vida doméstica. Sofre-se sob o impacto da objetivação de um mundo humano, demasiadamente humano.

Evidentemente, o fio condutor escolhido para esta trajetória não consegue esgotar a obra, rica em matizes e possibilidades de reflexão. Por último, reflete-se que homens e mulheres passam a maior parte da vida tentando gestionar uma realidade de antitrabalho, a saúde e o bem-estar sempre na "corda bamba parecendo depender de um titânico esforço para realizar uma atividade de trabalho (físico/psíquico) afirmativa, que consiga apagar, limitar ou manter sob controle, os vestígios negativos das prescrições e dos relacionamentos sociais que constituem o suporte da alienação no ambiente de trabalho. Boa leitura.

 

 

1 Resenha do livro de Maria da Graça Jaquese Wanderley Codo (Org), Saúde mental e trabalho: leituras.Publicado em 2002 pela Editora Vozes, Petrópolis, com 420 páginas.

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