SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.12 número2Modelos lógicos em avaliação de sistemas instrucionais: dois estudos de casoPrazer no trabalho: o lugar da autonomia índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

artigo

Indicadores

Compartilhar


Revista Psicologia Organizações e Trabalho

versão On-line ISSN 1984-6657

Rev. Psicol., Organ. Trab. vol.12 no.2 Florianópolis ago. 2012

 

O trabalho do cuidado: uma análise psicodinâmica

 

The work of caretaking: a psychodynamics analysis

 

 

Suzana Canez da Cruz Lima

Universidade Federal Fluminense - Rio das Ostras

 

 


RESUMO

O presente estudo analisa as formas de sofrimento e o uso de estratégias defensivas do/a cuidador/a social de abrigo de crianças e adolescentes. Tem como aporte teórico os princípios da Psicodinâmica do Trabalho e do pensamento e pesquisas desenvolvidas por Molinier (2008; 2009). Nesta investigação foi adotado o método proposto pela Psicodinâmica do Trabalho com a realização de discussões grupais com oito cuidadoras responsáveis pelo cuidado de crianças de zero a seis anos de idade do abrigo municipal de Macaé, localizado no Estado do Rio de Janeiro. Os resultados indicam que o trabalho do/a cuidador/a é uma atividade complexa que se constrói na relação com o outro, o que exige forte mobilização subjetiva e contínua necessidade de inventividade. O sentimento de impotência - de dúvida nos modos de fazer -, o medo frente às condições de precariedade e falta de segurança no trabalho e, principalmente, a falta de reconhecimento são as formas de sofrimento evidenciadas entre as cuidadoras pesquisadas. Constatamos que as estratégias defensivas são uma forma coletiva de lidar com as deficiências da organização do trabalho e que tais recursos criam um distanciamento afetivo entre cuidador/a e usuário. Concluímos ainda que nossos achados de pesquisa demonstraram a construção de estratégias defensivas sexuadas já identificadas em outras categorias profissionais do cuidado.

Palavras-Chave: Psicodinâmica do Trabalho, Trabalho do Cuidado, Sofrimento no Trabalho, Estratégias de Defesa.


ABSTRACT

The present study analyzes the suffering and the defense strategies put into play by the social caretaker of a municipal shelter for children and adolescents. Our investigation, relying on the principles of the Psychodynamics of Work, and on the thoughts and research studies developed by Molinier (2008; 2009), adopted the methodology proposed by the Psychodynamics of Work for group discussions with eight caretakers in charge of children, ranging from 0 to 6 years of age, in a municipal shelter in Macaé, Rio de Janeiro state. Our findings show that the work of the caretaker is a complex activity built on the relationship with the other, which demands a strong subjective mobilization and requires continuous inventiveness. The sense of helplessness - doubts concerning the 'means ways of doing' -, the fear generated by precarious working conditions and lack of safety at work, aggravated by the lack of recognition, constitute the suffering evident among these women caretakers.We conclude that the defense strategies are a collective means of dealing with the deficiencies of the work organization and that such resources establish an affective distancing between caretaker and care recipient. We further understand that our findings demonstrate the construction of sexual defense strategies already identified in other professional categories of caretaking.

Keywords: Psychodynamics of Work, Caretaking Work, Suffering at Work, Defense Strategies.


 

 

Os estudos brasileiros sobre o trabalho do cuidado, de forma geral, referem-se, principalmente, aos cuidadores de idosos e/ou de familiares destes - parentes que voluntariamente assistem pessoas doentes em seu domicílio. Dessa forma, os estudos limitam-se, muitas vezes, ao cuidador não profissional, abordando de forma limitada este saber fazer profissional e sua relação com a saúde. Acreditamos que este fato esteja relacionado à falta de reconhecimento da função de cuidador como categoria profissional devido a sua associação com as tarefas historicamente tidas como de fácil realização (Masson, Brito & Sousa, 2008).

Nosso objetivo neste texto é discorrer sobre a complexidade do trabalho do cuidado, especialmente a partir da psicodinâmica do trabalho e do pensamento e das pesquisas desenvolvidas por Molinier (2008, 2009). De forma mais específica, pretendemos pensar a complexidade deste trabalho a partir da análise sobre as formas de sofrimento e o uso de estratégias defensivas do/a cuidador/a social de abrigo que acolhe crianças e adolescentes em situação de abandono e afastados do convívio familiar; contexto inserido no campo da assistência social.

Para discutirmos sobre este universo de trabalho, nos apoiamos nos dados de uma investigação sobre a experiência subjetiva do/a cuidador/a social atuante no abrigo municipal de Macaé do Estado do Rio de Janeiro. Neste texto, trataremos especialmente dos dados investigados junto ao grupo de cuidadoras responsáveis pelas crianças de zero a seis anos de idade. Contudo, a investigação propriamente dita foi bem mais extensa e desenvolvida como a tese de doutoramento da autora, intitulada "Coletivo de Trabalho e Reconhecimento: uma análise psicodinâmica dos cuidadores sociais" defendida no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações da Universidade de Brasília em setembro de 2011.

Consideramos que a relevância da investigação proposta reside na escassez por nós identificada de estudos científicos sobre a saúde mental nesta forma de trabalho. Vemos essa necessidade de estudos reforçada pelos dados governamentais, que mostram o cenário brasileiro atual dos trabalhadores da assistência social marcado pela precarização das condições de trabalho, pela falta de renovação de quadros técnicos, pela falta de capacitação e por formas de contratos que não oferecem estabilidade de emprego, direitos trabalhistas ou um plano de carreira. "Esta é a realidade geral, encontrada tanto em nível nacional, estadual e municipal" (PNAS, 2004, p. 10).

Diante da proposta do texto, podemos nos questionar: Quem é o/a cuidador/a social? Já foram muitas as denominações para esta ocupação profissional: mãe social, agente, educador/a, dentre outras. De acordo com as orientações técnicas para serviços de abrigamento (CONANDA/CNAS, 2009, p. 106), que integram os serviços de alta complexidade do Sistema Único de Assistência Social, "cuidador são pessoas selecionadas para trabalhar em instituições de acolhimento, com o objetivo de cuidar, proteger e educar crianças e adolescentes acolhidos nesses serviços por meio de medida protetiva".

Os estudos científicos (Janczura, 2005; Nogueira & Costa, 2005a, 2005b; Oliveira & Miltnitsky-Sapiro, 2007) ressaltam a importância do profissional cuidador como elemento central no desenvolvimento das crianças e adolescentes em situação de abrigamento. Contudo, identificam uma série de dificuldades que expressam as condições precárias de trabalho: número insuficiente de cuidadores/as, contratos de trabalho instáveis e, especialmente, falta de profissionalização e capacitação dos/as cuidadores/as.

Tais autores denunciam a falta de reconhecimento desta prática profissional - ainda marcada pela invisibilidade decorrente de sua naturalização como atividade da mulher e por seu histórico como atividade de caridade, de voluntariado - e defendem o espaço de formação e acompanhamento necessário para este profissional na sua prática.

A análise neste estudo sobre a experiência de trabalho do/a cuidador/a está sustentada pelos pressupostos teóricos e metodológicos da psicodinâmica do trabalho. Esta abordagem é atualmente considerada um dos principais referenciais teóricos que têm contribuído para o campo de estudos da saúde mental no trabalho no Brasil.

De acordo com a psicodinâmica, o sofrimento no trabalho é inevitável, uma vez que o trabalho coloca o sujeito frente ao real, ao incerto, ao inesperado; o que, inicialmente, conduz a uma experiência de fracasso e de impotência. O trabalhador experimenta o fato de que as prescrições necessariamente não são suficientes para uma atividade com êxito e é preciso inventar na atividade.

Esta experiência de fracasso é, inicialmente, vivenciada de forma passiva, simplesmente sentida. Porém, em seu processo surge uma série de sentimentos, tais como a surpresa, a raiva, o receio, a decepção, que mobilizam uma reação. Assim, o sofrimento protesta por alívio, demanda ser transformado. De uma posição passiva, converte-se numa busca ativa de transformação. É através da capacidade do sujeito de tolerar esse sofrimento que sua transformação se faz possível, uma vez que é o próprio sofrimento que guia sua inteligência para voltar-se à solução dos impasses colocados pelo real.

A partir destas considerações, o sofrimento não é uma patologia, não é só uma consequência lastimável - dependendo da mobilização psíquica gerada pela organização do trabalho, ele pode, pelo uso da criatividade, transformar-se numa experiência de prazer e dessa forma fortalecer a saúde do trabalhador ou então transformar-se em patogênico e conduzir ao adoecimento.

Assim, temos que um dos destinos possíveis para o sofrimento é a possibilidade de tolerá-lo e superá-lo. É a capacidade de suportar, agir e superar os obstáculos impostos pelo real. Esta é a possibilidade que se denomina de sofrimento criativo. Dessa forma, o sofrimento pode se transformar em prazer a partir de duas condições: quando a organização do trabalho oferece espaço para o uso da engenhosidade do trabalhador na sua atividade e quando esta contribuição pode ser reconhecida pelos outros (Dejours, 2007).

A inteligência prática precisa ser reconhecida no trabalho, seja pela hierarquia como por seus pares. Em função de sua contribuição, de seu esforço e de sua inventividade, o indivíduo espera uma retribuição simbólica na forma de reconhecimento à sua identidade. "As contribuições singulares são espontâneas, na medida em que o sujeito espera em resposta à sua contribuição para a organização real do trabalho uma retribuição simbólica em termos de reconhecimento de sua identidade" (Dejours, 1994, p.134).

Este reconhecimento só pode ocorrer no espaço público da fala, espaço no qual as opiniões e as soluções podem ser formuladas e compartilhadas pelos trabalhadores no coletivo de trabalho. "Da qualidade dessa discussão dependem o sentido do trabalho, o reconhecimento da inteligência e da engenhosidade para enfrentar estes obstáculos" (Dejours, 1999, p. 32).

Quando estas condições não podem ser acessadas pelos trabalhadores, só resta a possibilidade de negação do sofrimento, o que conduz ao uso de estratégias defensivas individuais e coletivas ou, até mesmo, ao surgimento de patologias. Como afirma Dejours (1996, p. 171), "a transformação do sofrimento em criatividade passa por um espaço público na fábrica. Em troca, cada vez que o espaço público tender a se fechar, a criatividade estará ameaçada".

Em outras palavras, como o sofrimento é inevitável, o seu reconhecimento e a busca de sua ressignificação conduzem à saúde, a vivências de prazer, enquanto que sua negação - caminho do sofrimento patogênico - conduz às estratégias defensivas individuais e coletivas ou até mesmo à patologia. Ambos, prazer e sofrimento, muitas vezes se mostram de forma concomitante no trabalho, dada a sua complexidade.

As estratégias defensivas coletivas utilizadas são específicas de acordo com as situações de trabalho e não podem ser generalizadas. Este é um mecanismo que requer a participação de todos os trabalhadores integrantes de um mesmo grupo de trabalho.

Frente a determinado sofrimento no trabalho, os trabalhadores podem juntos, por meio da construção de regras compartilhadas, estabelecerem estas estratégias para se defender da realidade causadora de dor. Elas atuam sobre a percepção da realidade, transformando-a e, especialmente, eufemizando-a, minimizando, assim, a percepção dos motivos no trabalho que os fazem sofrer. Dessa forma, este recurso defensivo possibilita aos trabalhadores se protegerem contra o sofrimento. Como estas estratégias se constroem a partir de evidências da própria realidade de trabalho, elas podem ser facilmente abandonadas quando o objeto real - a organização do trabalho - é transformado.

Entretanto, o uso de tais estratégias defensivas cria um obstáculo para que os trabalhadores pensem e reajam contra os elementos da organização do trabalho, gerando alienação. Por outro lado, seu uso exacerbado pode levar ao esgotamento e iniciar o processo de adoecimento do trabalhador. As estratégias coletivas de defesa têm sido analisadas ao longo da construção deste referencial teórico. Este é um conceito original utilizado por esta abordagem proveniente dos seus achados de campo.

Outro aspecto importante de ser abordado, diz respeito ao atravessamento de gênero nas relações instituídas no trabalho do cuidador social. De acordo com Molinier (2004a), Dejours afirmou, num gesto de aproximar a psicodinâmica da discussão de gênero no trabalho, que cada sofrimento é sexuado, sendo alguns masculinos e outros femininos uma vez que as situações de trabalho que os produzem são diferentes.

O trabalho das mulheres vem sendo historicamente relacionado à esfera doméstica. No caso do trabalho dos cuidadores, mesmo sendo realizado por homens e mulheres, este tem tido o crivo de estar associado às atividades domésticas ditas femininas e, consequentemente, tem sido naturalizado - tido como fruto das características inatas femininas.

Entendemos que o trabalho em si é invisível, uma vez que não se vê as esperanças e expectativas depositadas no trabalho, também não se vê o sofrimento e o prazer vivido nesta experiência, nem os esforços dispensados - sejam eles individuais ou coletivos - e as formas de inteligência que ele suscita. Contudo, algumas atividades são tidas como mais invisíveis por não se transformarem num objeto concreto. Este é o caso do trabalho de cuidado com pessoas doentes ou em situação de vulnerabilidade. "O 'relacional' se define muito mais na esfera do não trabalho que, propriamente, na do trabalho" (Molinier, 2008, p.7).

Observamos um problema recorrente no trabalho feminino que é a falta de reconhecimento, especialmente no trabalho de cuidado em que, muitas vezes, se desqualifica que a preocupação com o outro implica trabalho (Cruz Lima, 2003; Masson, Brito & Sousa, 2008; Molinier, 2008, 2009). A naturalização do ato de cuidar impede que seja visto o cuidar como trabalho, em que justamente é nesta experiência do trabalhar que a forma de cuidar se aperfeiçoa, não simplesmente pela boa vontade, mas por condições organizacionais favoráveis.

 

MÉTODO

Objetivo do estudo

O objetivo geral deste texto refere-se a investigar as formas de sofrimento e o uso de estratégias defensivas do/a cuidador/a social de abrigo de crianças e adolescentes do município de Macaé, localizado no Estado do Rio de Janeiro.

Campo de investigação

O estudo foi realizado no Abrigo Centro Municipal de Apoio à Criança e ao Adolescente (Cemaia), vinculado à Secretaria Municipal de Assistência Social, localizado na cidade de Macaé, no Rio de Janeiro.

Conforme mencionado anteriormente, esta análise está restrita às discussões grupais com o grupo de cuidadoras responsáveis pelas crianças de 0 a 6 anos. Este grupo é composto por oito mulheres entre 30 e 50 anos de idade, com escolaridade variando entre ensino fundamental e médio concluído e a maioria possui mais de oito anos de trabalho na instituição. Os nomes das participantes foram substituídos para a preservação da identidade das trabalhadoras.

 

PROCEDIMENTOS

O caminho metodológico adotado nesta investigação segue o método proposto pela psicodinâmica do trabalho, de acordo com Dejours (2008). Nosso objetivo foi criar um espaço coletivo de discussão, espaço da palavra, propício para a compreensão, interpretação e elaboração/perlaboração do sofrimento das cuidadoras produzido em sua relação com a situação de trabalho.

Como indica Molinier (2001, p.134), "a enquete em psicodinâmica do trabalho não visa transformar o trabalho, mas modificar a relação subjetiva com o trabalho... A enquete é uma aventura que pergunta: o que faz sofrer no trabalho?" (tradução nossa).

O grupo foi coordenado pela pesquisadora e contou com a presença de duas alunas participantes da pesquisa, alunas de graduação do curso de Psicologia da Universidade Federal Fluminense de Rio das Ostras. Foram realizados seis encontros semanais com o grupo, com duração de uma hora cada um, perfazendo um total de seis horas. A realização do grupo ocorreu no próprio local de trabalho. O tema de discussão esteve focado nas relações existentes entre a organização do trabalho e o sofrimento no coletivo de trabalho, tendo como ponto de partida a demanda do grupo de trabalhadoras. Os encontros seguiram a seguinte proposta:

• - Primeiro encontro: apresentação dos participantes, discussão sobre os objetivos e elaboração do contrato do grupo para a atividade;

• - Segundo encontro: discussão sobre o trabalho norteada pelas seguintes questões: O que eu faço? O que é bom? O que é difícil;

• - Terceiro encontro: continuidade da discussão orientada pelas questões surgidas no segundo encontro;

• - Quarto encontro: elaboração de um plano de ação para a transformação e gestão coletiva da organização do trabalho;

• - Quinto encontro: discussão e validação do relatório final;

• - Sexto encontro: discussão do grupo com a gestora da instituição sobre o relatório final da atividade.

No início das sessões foi discutida com o grupo a restituição da sessão anterior, elaborada pela pesquisadora. O uso da restituição teve por objetivo favorecer a reflexão do grupo em construção sobre seu modo de funcionamento. Foi utilizado o recurso da gravação de todos os encontros, devidamente autorizada pelo grupo. Como descrito acima, a partir do processo de interpretação do conteúdo registrado em cada uma das sessões, foi elaborado um relatório final validado com o grupo de trabalhadores.

O trabalho do cuidador social

Este item refere-se ao conteúdo expresso pelas participantes que foi construído a partir das restituições, o que significa interpretações que foram sendo validadas pelo coletivo.

Ao longo dos encontros, as participantes expressaram que o trabalho do/a cuidado é um trabalho difícil, especialmente pelas situações de violência, de tristeza e de abandono que estão presentes no dia a dia, como, por exemplo, ouvir das crianças: "Minha mãe vem me buscar?" (Cuidadora If), "Tia, liga para a minha mãe" (Cuidadora If).

Sobre a rotina de trabalho, de forma geral, foram descritas as seguintes atividades diárias que se iniciam em torno das sete e meia da manhã: servir o café da manhã, arrumar o quarto, organizar o banho, acompanhar durante o dia e a noite (recreação, assistir televisão, acompanhar o sono da tarde e outras ações), arrumar para a escola, acompanhar almoço, lanche e jantar e levar para atendimento médico ou de outra natureza. Rotina marcada pelo tempo, por horários fixos, rígidos estabelecidos pelo horário de funcionamento da escola, o horário das consultas de atendimento médico e assim por diante.

A organização dos plantões é por duplas de cuidadoras. Em cada plantão "uma fica com os maiores (crianças) e a outra fica com os bebezinhos, na outra semana troca" (Cuidadora Ib). Cada plantão é de vinte quatro horas com folga de setenta e duas horas.

As participantes relataram que no cumprimento do plantão existe muita flexibilidade entre as duplas para atender às necessidades dos grupos de crianças: "Quando, assim, tem muita criança no berçário, uma tá sempre dando suporte para a outra... a gente tá sempre atendendo aos dois lados" (Cuidadora Id). "A gente reveza quando tem muita criança" (Cuidadora Ia). Elas identificaram a flexibilidade no trabalho e a forma cooperativa da equipe como aspectos muito positivos do seu cotidiano. Esclareceram que é um trabalho que exige muito controle emocional, atenção e vigilância: "Eu voltava para casa chorando... Você tem que manter a postura, calma, tem que manter um plantão e uma imagem" (Cuidador Ie).

Diversos sentimentos relacionados ao trabalho foram mencionados ao longo dos encontros num desabafo sobre o trabalho. A maioria das participantes comentou que gosta do trabalho que realiza, que entrou nesta atividade sem saber exatamente o que realizaria, ou seja, não escolheu esta atividade, mas que gosta do trabalho. Como comentou uma cuidadora: "Eu tô satisfeita com o serviço porque eu estava sem trabalhar... se deixarem eu fico aqui até 10 anos... eu gosto do que eu faço, eu gosto das crianças e o dinheiro também eu preciso" (Cuidadora Ie).

O grupo comentou sobre o sentimento de impotência, que é a sensação de não ter como resolver determinadas situações diárias, onde se perguntam: "O que que eu faço?" (Cuidadora Ie), "Toda hora você tá: e agora?" (Cuidadora If).

Comentaram que é forte este sentimento de impotência e muito doloroso: "Eu não fiz nada e fui chorar no berçário... isso dói muito, é muito difícil. Essa é a minha maior impotência: 'como vai refletir esta atitude que eu tomei'" (Cuidadora If).

Outro sentimento trazido pelo grupo, já presente na fala anterior, refere-se ao sentimento de responsabilidade que reflete a clareza de que a instituição as responsabiliza pelo plantão e de que sua atitude com as crianças também tem repercussões na vida delas: "Porque é tua a responsabilidade e aí o que acontece... 'A culpa é de vocês'... uma criança cai, 'Ah, a culpa é tua' ...a responsabilidade é muito grande" (Cuidadora Ia).

Um sentimento recorrente foi o sentimento de estar só, esclarecido pelo grupo que é vivido principalmente pela insatisfação quanto à equipe técnica não se colocar próxima no trabalho. Como comentaram as cuidadoras: "...aí você leva para alguém (profissional da equipe técnica) que possa resolver, entra por um ouvido e sai pelo outro, eles não resolvem, elas não fazem nada" (Cuidadora Ia).

Associado a este sentimento de solidão foi percebido que essas cuidadoras não se sentem ouvidas no trabalho. Reclamaram que as informações sobre as crianças não são compartilhadas com elas: "...informação de lá para cá não tem" (Cuidadora Ie). Esclareceram que levam muita informação para a equipe técnica, mas recebem poucas informações: "A gente fica sabendo o histórico das crianças pela própria família que vem visitar e que chega e conta" (Cuidadora Ie) "E pela própria criança" (Cuidadora Ih).

Acreditam que eles deveriam ter mais informações "porque quem fica 24 horas com eles somos nós, eles ficam até às cinco horas e vão embora" (Cuidadora Ia). Desta forma, não sentem que a palavra delas é valorizada.

Nas discussões sobre as dificuldades com a equipe técnica foi compreendido que falta um trabalho cooperativo e integrado entre eles: "Falta (pausa com silêncio) é pensar junto" (Cuidadora Id), "Dar um suporte também ajudando, orientando, estando junto...não tem" (Cuidadora If).

Outro sentimento abordado, ao longo dos encontros com o grupo, refere-se ao medo. Medo proveniente de diversas situações presentes no trabalho, como dos pais violentos das crianças abrigadas, de problemas de segurança do prédio, dentre outros, como identificado nos relatos abaixo: "eu tô sobressaltada o tempo todo, eu tô sobressaltada há 11 anos" (Cuidadora Ig).

Outra forma de sofrimento discutida pelo grupo diz respeito ao desgaste em função das condições precárias do contrato de trabalho. Todas essas cuidadoras são contratadas pela prefeitura, forma de contrato que não oferece segurança, estabilidade no trabalho nem férias. "Aqui nós trabalhamos de contrato... existe todo um desgaste, nós não temos férias, a gente trabalha direto... tem gente aqui que trabalha há oito anos aqui direto... quer queira ou não... eu acredito que muito dessas coisas acontece por desgaste emocional nosso... é muita coisa acumulada para muito tempo" (Cuidadora Id).

Ainda sobre o contrato de trabalho, queixaram-se do número de cuidadoras da instituição. Apontaram que a falta de pessoal impede que a atividade seja realizada de forma mais adequada, o que prejudica o relacionamento das crianças e cuidadoras, provocando a sobrecarga para o grupo.

Sobre o papel de sua atribuição como cuidador/a, as cuidadoras assinalaram que é favorecer o desenvolvimento e a educação das crianças. Entretanto, debatem-se sobre ser a sua função oferecer um mero e simples cuidado de alimentação e higiene ou se envolver mais com a educação das crianças, como pode ser observado nesta fala: "Eu acho muito legal a criança sair daqui e chegar lá em casa e a mãe dizer, você mudou, sei lá, alguma coisa ele vai ter que levar daqui, eu acho legal isso, mas quando a gente vai fazer diz que não, que a gente só vai ficar assim" (Cuidadora Ie).

Essas cuidadoras por mais que expressem o entendimento de que são responsáveis pela educação das crianças, parece que se mantêm presas às atividades mais operacionais do cuidado.

Como formas de enfrentar as dificuldades do trabalho, identificamos especialmente o que foi denominado estratégia do silêncio, uma situação que reflete o uso desta estratégia refere-se ao preenchimento do relatório diário.

As cuidadoras consideram importante o preenchimento do relatório diário para o monitoramento das atividades do abrigo. Entretanto, algumas sentem receio de registrar no relatório episódios diários difíceis pela dificuldade de comunicação existente com a equipe técnica: "Você tá de mão no relatório e agora? Relato ou não, ah não sei Tia, eu não vou relatar, não, não deveria" (Cuidadora If).

Outra situação que demonstra a estratégia do silêncio, diz respeito ao vínculo com a própria criança, como expressa esta cuidadora: "... já que eles lá técnicos acham que a gente não pode ter acesso às informações, então eu chego para trabalhar e procuro ocupar as crianças, brincar ...eu procuro pra eles (crianças) não lembrarem, porque eles falam mesmo e eu não dou margem, primeiro porque eu não gosto, ...eu prefiro não tocar no assunto... eu procuro ocupar para eles não falarem porque eu não sei o que eu vou falar" (Cuidadora Ie).

Dentre as carências identificadas no abrigo, elas reforçam, especialmente, a necessidade de capacitação delas próprias no exercício do seu trabalho, como pode ser observado no diálogo relatado a seguir: "Não precisava nem a gente sair da instituição, gente que viesse na instituição, para a gente aprender" (Cuidadora Id). "Concordo plenamente com a tia" (Cuidadora If). "A gente trabalharia melhor para o bem-estar deles aqui dentro" (Cuidadora Id).

Uma evidência do sofrimento produzido neste trabalho refere-se ao fato de várias cuidadoras deste grupo terem contado que buscaram atendimento psicológico em função, principalmente, de suas angústias relacionadas ao trabalho.

 

DISCUSSÃO

Pretendemos aqui discorrer sobre as formas de sofrimento e as estratégias defensivas adotadas pelas cuidadoras sociais participantes da investigação. Analisar o sofrimento vivenciado por este grupo de profissionais nos conduz a criar a cena de seu drama e, por isso, inicialmente, resgataremos a concepção do trabalho de cuidado que sustenta este estudo, especialmente o pensamento e as pesquisas desenvolvidas por Molinier (2004a, 2004b, 2008, 2009).

Partimos da definição de cuidado como sendo uma série de experiências e atividades em que o profissional é aquele que formaliza saberes (savoirs) sobre o cuidar. Neste sentido, negamos que o cuidar baseia-se numa disposição psicológica inerente ao desenvolvimento da mulher - posição que exige a desnaturalização do cuidado e do sujeito. Como defende a Psicodinâmica do Trabalho, é o trabalho que transforma o sujeito e não o sujeito que precede o trabalho. Desta forma, "nós não nascemos cuidadores, nós nos tornamos. E nós nos tornamos pelo trabalho" (Molinier, Laugier & Paperman, 2009, p.15) (tradução livre).

O trabalho do cuidado se processa a partir das experiências no cotidiano, é sob os constrangimentos impostos pelo cuidar que ele se desenvolve, constrangimentos estes que se traduzem em exigências que demandam o uso das competências relacionais/afetivas, físicas e cognitivas.

Avaliamos que esta é uma experiência de trabalho permeada por particularidades. Situa-se nas fronteiras entre o privado e o público, uma vez que se aproxima das atividades domésticas ao mesmo tempo em que coloca em evidência outra dicotomia, aquela referente à sexualidade - trabalho.

Do ponto de vista psicanalítico, o trabalho de cuidar não pode ser pensado dissociadamente do sexual. A relação com o corpo da criança é investida pelos próprios desejos e fantasias inconscientes do/a cuidador/a. O cuidado mobiliza afetos que têm sua raiz no inconsciente sexual, na história infantil do sujeito, na sua própria vivência de ter sido um bebê vulnerável e que estarão presentes na relação de cuidado de alguma forma, mesmo quando o corpo do outro irrite, cause repulsa ou indiferença.

Neste sentido, a ambivalência, a flutuação de diferentes sentimentos, também está contida no serviço ao outro. As crianças, as pessoas vulneráveis e dependentes não instigam apenas sentimentos de amor, mas também podem excitar os desejos de ódio; desejos estes que não pertencem ao âmbito do patológico, mas fazem parte da dinâmica psíquica. Pode-se dizer que essa é a bipolaridade do trabalho de cuidar - afeição e desafeição constituem os polos. "Torna-se impossível dissociar o amor do ódio quando se trata do cuidado do corpo" (Molinier, 2004b, p.231).

Os relatos manifestaram, com muita sutileza, essa ambiguidade: "A criança vem um lixo, chega aqui suja, a gente pega e faz tudo... vem aquele sentimento de raiva: 'Pô! A mãe bota cinco filhos no mundo e não cuida de nenhum!'" (Cuidadora Ia).

Estes são indícios da forte mobilização subjetiva presente no ato de cuidar, assim, compondo esse jogo de afetos, uma condição que pode ser despertada no cuidar é o apego. Criticamos uma orientação frequentemente repassada para os/as cuidadores/as de que ser um profissional do cuidado implica não se apegar às pessoas que necessitam desse cuidado.

Negar o apego inerente ao cuidado, preconizar um cuidado sem apego, acreditar que o profissionalismo implica no desapego, é se proteger de saber de que carne vulnerável, excitada, excitável, é feito este apego e como que este apego modifica as decisões éticas (Molinier, 2009, p.246).

Um caso relatado pela pesquisadora Carpentier-Roy (1991) demonstra bem a transgressão na situação de cuidado, movida por esta relação de apego: as cuidadoras de pacientes de HIV preferiam tirar as luvas como forma de não recusarem a eles um último contato mais próximo.

Salientando aqui o caráter sexual, ambíguo e de apego/afetivo do cuidar, estamos, então, falando da possibilidade, complexa e repleta de contradições, de um compromisso com a pessoa a ser cuidada na sua totalidade, em que além de atender as necessidades mais básicas - alimentar, limpar e cuidar do sono - o compromisso é também com o seu desejo, é oferecer um lugar legítimo ao corpo-sujeito, um corpo que é portador de uma história singular, que pensa e busca sentido para a sua existência.

Estas são questões que ilustram a complexidade do real no trabalho de cuidar, onde a linha tênue entre o plano profissional e pessoal está sempre em evidência no metier. Daí, a importância do coletivo para construir acordos normativos sobre o 'bom cuidado'.

Estas, então, são algumas questões iniciais, consideradas por nós premissas fundamentais sobre o trabalho de cuidar, que gostaríamos de desenvolver inicialmente para poder tratar das formas de sofrimento que identificamos nas cuidadoras responsáveis pelas crianças até 06 anos de idade do abrigo pesquisado.

O sofrimento no trabalho, de acordo com Dejours (2004), é inevitável uma vez que coloca o sujeito frente ao real, frente ao incerto, ou seja, frente a tais constrangimentos impostos pelo cuidar. Num primeiro momento, é uma experiência de fracasso e de impotência, onde o trabalhador se depara com o fato de que as prescrições existentes não são suficientes ou os conhecimentos são ineficazes e, assim, o saber-fazer é derrotado. Nesta condição, o sofrimento protesta por alívio e será através da passagem desta posição passiva para uma busca ativa de transformação que poderá ocorrer a invenção e a vivência de prazer no trabalho.

Este grupo de cuidadoras expressa esta experiência de fracasso e de impotência em suas indagações: "O que que eu faço?" (Cuidadora Ie). Parece-nos que frente à complexidade de sua atividade, mesmo com seu saber-fazer construído na prática elas não têm conseguido encontrar respostas, seja pelas poucas prescrições existentes seja pelos escassos conhecimentos técnico-científicos disponibilizados. Mais do que prescrições ou conhecimentos, o que parece ser mais crítico para a invenção no trabalho é a falta de um espaço de discussão em que tais impasses vinculados ao cuidar possam ser debatidos, elaborados e, principalmente, reinventados.

O espaço de discussão entre os pares é frágil. As cuidadoras trabalham em plantões de duplas; então, já no próprio espaço de trabalho, se encontram pouco. As reuniões formais ocorrem em intervalos de 45 dias e, como já foi mencionado, são marcadas por relações verticais e por uma comunicação instrumental (Zarifian, 2001), que dificultam o espaço da palavra.

O grupo utiliza a estratégia de se telefonar diariamente, independentemente da cuidadora A ou B ser responsável pelo plantão ou não - uma troca que atravessa os muros do abrigo, uma demonstração sensível de cooperação, crucial e imprescindível para o trabalhar, mas que não parece suficiente para dar conta da variabilidade que o ato de cuidar de crianças abrigadas demanda. Mais crítica ainda mostra-se a relação estabelecida entre as cuidadoras e a equipe técnica, em que a circulação da palavra está bloqueada e regida meramente pela cobrança. O que resta então para responder à indagação dessas cuidadoras: "O que que eu faço?" (Cuidadora Ie).

Como nos indica Dejours (1999, p.171), "Quando as pessoas não se compreendem mais, quando não conseguem mais se comunicar e construir uma inteligibilidade comum das relações de trabalho, elas não ficam só decepcionadas: elas se defendem". Então, resta defender-se, criar estratégias defensivas frente à impossibilidade de construir junto o trabalho de cuidado. Para Molinier (2004b),

as estratégias coletivas de defesa são centradas em um universo simbólico partilhado que tira sua consistência do fato de ser organizado por crenças ou atitudes que reduzem a percepção das realidades suscetíveis de gerar um estado de sofrimento. Elas orientam o desenvolvimento da capacidade de pensar, ocultando uma parte substancial da experiência que já não faz mais parte do debate (p.235).

Observamos que é adotada uma dinâmica defensiva pautada no silêncio, estratégia de calar-se para a gestão, mas também de fazer calar a criança abrigada.

Em relação à coordenação e à equipe técnica, o silêncio das cuidadoras se instala, por exemplo, na omissão de fatos na elaboração do relatório diário e na pouca participação durante as reuniões.

A dinâmica do silêncio também se faz presente no vínculo com a criança. A estratégia defensiva busca fazer calar os sentimentos das crianças e, assim, também calar seus próprios sentimentos e sua dor por não saber o que fazer diante desta experiência. Uma cuidadora expressa esta atitude defensiva de forma muito clara quando desabafa: "Eu procuro ocupar (as crianças) para eles não falarem porque eu não sei o que eu vou falar" (Cuidadora Ie). É como indicam Gernet e Dejours (2011, p.65), "na ausência de reconhecimento, a dúvida quanto à relação mantida com o real por intermédio do trabalho pode surgir".

Outras duas atitudes defensivas não foram discutidas de forma exaustiva com o grupo, mas foram comentadas e observadas durante nossa convivência no dia a dia do abrigo. Uma delas diz respeito ao comportamento das cuidadoras de ficarem restritas ao trabalho operacional, no sentido, de focarem suas tarefas nos cuidados higiênicos, tais como alimentar a criança, dar banho, colocar para dormir e assim por diante, esquecendo-se do seu papel educativo no exercício do cuidado. Na verdade, mais do que ficarem restritas a tais cuidados de higiene, o que mais nos chamou a atenção foi a maneira como os realizam: com rapidez, impaciência e movimentos bruscos. Além disso, também presenciamos situações que podemos caracterizar como desrespeitosas: maneira de falar com a criança em voz alta, com xingamentos e ameaças inadequadas.

Estas atitudes foram chamadas por Nogueira e Costa (2005b, p.42).) de "cuidados burocráticos" e "pequenas violências", que se colocam a serviço de evitar "o contato com os sentimentos das crianças e, consequentemente, com seus próprios sentimentos"

Em outras palavras, "na tentativa de se proteger e se manter afastada destes sentimentos e de toda a complexidade envolvida neste trabalho, a mãe social agride, desconsidera e, consequentemente, mantém uma distância que a protege" (Nogueira & Costa, 2005a, p.43).

A partir de nossa investigação, complementamos que tais recursos defensivos, construídos de forma coletiva, buscam evitar sentimentos negativos oriundos da relação com a criança em situação de abandono, porém, também visam afastar a dor da dúvida, da impotência de não saber como lidar com estas adversidades do cuidar - sentir que não possuem as ferramentas para realizar o 'bom cuidado'. Assim, estamos defendendo que tais comportamentos estão vinculados a pressões organizacionais. É uma forma coletiva de lidar com as deficiências da organização do trabalho e não um comportamento individual patológico, tese muitas vezes defendida acerca de episódios de maus tratos a crianças em situação de abrigamento.

Um olhar mais atento suscita a reflexão acerca das estratégias coletivas de defesa adotadas por esse grupo numa leitura sexuada. Numa primeira etapa de estudos em psicodinâmica do trabalho, foi possível fazer uma leitura sexuada das estratégias coletivas construídas entre os homens no trabalho, enfatizando a virilidade nas suas estratégias como no exemplo da construção civil. Na lógica da virilidade, os trabalhadores conseguem desprezar, esconder, enfim, controlar o seu medo a partir de demonstrações de coragem. Como menciona Molinier (2004a, p.17), "aquele que sofre deve se calar e/ou partir, senão ele passa por um fraco, um 'afeminado', uma 'mulher'". Esta forma de defesa sustenta-se psicologicamente na necessidade do homem de confirmar a sua identidade masculina (Molinier, 2004a).

Comentamos inicialmente neste texto sobre a bipolaridade inerente ao trabalho do cuidado, ou seja, que o amor e o ódio são indissociáveis quando se trata do trabalho de cuidar do outro. No caso do nosso estudo, falamos de um cuidado particular que envolve crianças com históricos de abandono, de violência e de maus tratos, marcas que estão no corpo machucado, mas também no comportamento, que demanda muita atenção: são marcas mais difíceis de ver.

Percebemos também a tensão entre a compaixão e a repulsa durante o desenvolvimento da clínica do trabalho. Identificamos a repulsa, a agressividade das cuidadoras nos intervalos das sessões da clínica do trabalho, momentos em que presenciamos o uso dos "cuidados burocráticos" e, especialmente, das "pequenas violências". No entanto, este conteúdo da repulsa, da raiva, não se tornou palavra nas sessões da clínica do trabalho. Estamos querendo dizer que a agressividade é negada pelas próprias cuidadoras.

Observamos que as cuidadoras que atuam com as crianças de 0 a 06 anos utilizam a estratégia coletiva de defesa do embelezamento da realidade, ou seja, elas elaboram um discurso sobre o seu cuidado com as crianças que omite a agressividade gerada pelo contato com as crianças salientando a relação de amor: "Hoje aqui nós somos mãe" (Cuidadora Ic).

Essa forma de estratégia defensiva também foi encontrada na pesquisa com auxiliares de puericultura citada por Molinier (2004b), que, como menciona a autora, é construída na lógica de embelezar a atividade e fazer calar o negativo. Essa é uma forma defensiva que corresponde ao que Dejours denomina "mulheridade" - condutas em que a mulher se esforça para cumprir o que é esperado socialmente das mulheres, numa posição feminina de submissão; assim como a virilidade é o que se espera da identidade masculina. É por demais reprovado na nossa sociedade que as mulheres expressem agressividade com crianças, ainda mais crianças vitimizadas por situações de muito sofrimento.

Assim sendo, constatamos que nossos achados de pesquisa demonstraram a construção de estratégias defensivas sexuadas já identificadas em outras categorias profissionais do cuidado (Molinier, 2004a, 2004b, 2008).

Numa breve síntese dos nossos achados, acreditamos então que sentimento de impotência - de dúvida nos modos de fazer -, o medo frente às condições de precariedade e falta de segurança no trabalho e, enfim, a falta de reconhecimento são formas de sofrimento presentes entre as cuidadoras pesquisadas. A caminho encontrado para lidar com o desamparo e a solidão no trabalho é manter o silêncio e o segredo. Neste sentido, o silêncio e a tática do segredo sobre o trabalho coincidem com o fracasso da dinâmica do reconhecimento (Gernet & Dejours, 2011).

Evidenciamos que nessa forma de trabalhar os conflitos suscitados pela confrontação com o real essas cuidadoras não têm encontrado espaço para debater nem esses conflitos, nem os argumentos técnicos e nem tampouco os valores éticos envolvidos no trabalho, estes últimos também tão essenciais para o trabalho de cuidar.

O silêncio e segredo que permeiam o cotidiano dessas cuidadoras, por um lado as protege da dor no trabalho, mas, por outro, corroem ainda mais as relações, indicam como caminho a passividade e o individualismo, que os imobiliza neste lugar da solidão e do desamparo. Como aponta Bottega (2009), "o preocupante, na retração dos trabalhadores e em sua condição de não falar, é que o silêncio não produz soluções. Ele afasta, cada vez mais, o sujeito de qualquer processo possível de solução" (p.160).

Quando as instituições que lidam com dificuldades das relações afetivas de toda ordem não conseguem lidar com tais desafios, a tendência como defesa é o endurecimento afetivo na dinâmica institucional (Arpini, 2003). Neste sentido, temos o risco indicado por Bleger (1984) de que a instituição pode repetir o problema que pretende curar. No contexto desta investigação, é o risco do abandono que produz o abandono.

Acreditamos que para que o abrigo não seja um lugar de exclusão e abandono e sim um lugar de desejos e possibilidades há que existir espaço para a palavra do cuidador, onde se possa oferecer um compromisso legítimo com o corpo-sujeito, ou seja, um compromisso com as inúmeras crianças e adolescentes abrigados como pessoas que buscam (re)construir a sua história e deixar para trás a situação dramática de terem sido "filhos da solidão e da espera" (Magno & Montenegro, 2002, p.1).

 

CONCLUSÃO

Consideramos que a presente investigação oferece algumas contribuições para o campo de estudos da saúde mental no trabalho. São poucas as pesquisas científicas voltadas para analisar o trabalho do/a cuidador/a social; assim sendo, pensamos que nossa investigação oportuniza uma análise que leva em consideração uma série de particularidades e dificuldades presentes na experiência subjetiva deste grupo profissional.

Este estudo teve por objetivo analisar as formas de sofrimentos e as estratégias adotadas pelas cuidadoras sociais de abrigo de crianças e adolescentes. Identificamos, nesta experiência singular, mas que parece representar parte do cenário deste espaço de trabalho, o quanto que esta atividade é marcada pela falta de reconhecimento, pela negação da palavra do/a cuidador/a. Neste sentido gostaríamos de salientar a importância deste profissional e o desafio que se coloca no campo da assistência social de dar visibilidade e escuta para este profissional imprescindível no acompanhamento de crianças e adolescentes acolhidas nestes serviços.

 

REFERÊNCIAS

Arpini, D.M. (2003) Repensando a perspectiva institucional em abrigos para crianças e adolescentes. Psicologia Ciência e Profissão. 21(3),70-75.         [ Links ]

Bleger, J. (1984). Psico-higiene e Psicologia Institucional. Porto Alegre: Artes Médicas.         [ Links ]

Bottega, C.G. (2009). Loucos ou heróis: um estudo sobre o prazer e sofrimento no trabalho dos cuidadores sociais com adolescentes em situação de rua. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Porto Alegre. Porto Alegre.         [ Links ]

Carpentier-Roy, M.C. (1991). Corps et âme. Psychopathologie deu travail infirmier. Montréal: Liber.         [ Links ]

Conselho Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) & Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) (Coord.). (2009). Orientações Técnicas: Serviços de Acolhimento para Crianças e Adolescentes. Brasília.         [ Links ]

Cruz Lima, S.C. (2003). Trabalho doméstico: uma trajetória silenciosa de mulheres. Rio de Janeiro: Virtual Científica.         [ Links ]

Dejours, C., & Abdoucheli, E. (1994). Itinerário Teórico em Psicopatologia do Trabalho. In Dejours, C.; Abdoucheli, E. & Jayet, C. (Org.). Psicodinâmica do Trabalho: Contribuições da Escola Dejouriana à análise da relação, prazer, sofrimento e trabalho. (pp. 119-145). São Paulo: Atlas.         [ Links ]

Dejours, C. (1996). Uma nova visão do sofrimento humano nas organizações. In Chanlat, J.F. O indivíduo na organização: dimensões esquecidas. (pp.149-174). Vol.1. 3ª Ed. São Paulo: Atlas.         [ Links ]

Dejours, C. (1999). Sofrimento, prazer e trabalho. In Dejours, C. Conferências Brasileiras: identidade, reconhecimento e transgressão no trabalho. (pp.15-48). São Paulo: Fundap: EAESP/FGV.         [ Links ]

Dejours, C. (1999). Homens, mulheres e suas relações de trabalho. In Dejours, C. Conferências Brasileiras: identidade, reconhecimento e transgressão no trabalho. (pp.124-165). São Paulo: Fundap: EAESP/FGV.         [ Links ]

Dejours, C. (2007). A psicodinâmica do trabalho na pós-modernidade. In Mendes, A.M.; Cruz Lima, S.C. & Facas, E.P. (Orgs) Diálogos em Psicodinâmica do Trabalho. (pp.13-26). Brasília: Paralelo 15.         [ Links ]

Dejours, C. (2004). Subjetividade, trabalho e ação. Revista Produção, 14(3),27-34.         [ Links ]

Dejours, C. (2008). Addendum. Da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho. In Lancman, S. e Sznelwar, L.I. (Orgs). Christophe Dejours. Da psicopatologia à dinâmica do trabalho. (pp. 49-106). 2 ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, Brasília: Paralelo 15.         [ Links ]

Gernet, I., & Dejours, C. (2011). Avaliação do trabalho e reconhecimento. In Soboll, L.A. e Bendassolli, P.F. Clínicas do trabalho: fundamentos, abordagens e aplicações. (pp.61-70). São Paulo: Ed. Atlas.         [ Links ]

Janczura, R. (2005). Abrigos para adolescentes: lugar social de proteção e construção de sujeitos? Revista Virtual Textos & Contextos, 4, ano IV.         [ Links ]

Magno, A. B., & Montenegro, E. (2002). Os órfãos do Brasil. Correio Braziliense. Suplemento Especial. Brasília.         [ Links ]

Masson, L.P., Brito, J.C., & Sousa, R.N.P. (2008). O trabalho e a saúde de cuidadores de adolescentes com deficiência: uma aproximação a partir do ponto de vista da atividade. Saúde Soc. São Paulo, 17(4),68-80.         [ Links ]

Molinier, P. (2001) Souffrance et théorie de l'action. Travailler, Paris 7(7),131-146.         [ Links ]

Molinier, P. (2004a). Psicodinâmica do trabalho e relações sociais de sexo. Um itinerário interdisciplinar. 1988-2002. Revista Produção, 14(3),014-026.         [ Links ]

Molinier, P. (2004b) O ódio e o amor, caixa preta do feminismo? Uma crítica da ética do devotamento. Psicologia em Revista, Belo Horizonte, 10(16),227-242.         [ Links ]

Molinier, P. (2008) A dimensão do cuidar no trabalho hospitalar: abordagem psicodinâmica do trabalho de enfermagem e dos serviços de manutenção. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 33(118),06-16.         [ Links ]

Molinier, P. (2009). Quel est le bon témoin du care? In Molinier, P.; Laugier, S.& Paperman, P. Qu'est-ce que la care? Souci des autres, sensibilité, responsabilité. (pp.233-252). Paris: Éditions Payot & Rivages.         [ Links ]

Molinier, P.; Laugier, S.& Paperman, P. (2009). Introduction. In Molinier, P.; Laugier, S.& Paperman, P. Qu'est-ce que la care? Souci des autres, sensibilité, responsabilité. (pp.07-34). Paris: Éditions Payot & Rivages.         [ Links ]

Nogueira, P.C., & Costa, L.F. (2005a). A criança, a mãe social e o abrigo: limites e possibilidades. Revista Brasileira de Crescimento e Desenvolvimento Humano. 15(3),36-48.         [ Links ]

Nogueira, P.C., & Costa, L.F. (2005b). Mãe social: profissão? função materna? Estilos clínicos, 10(19),162-181.         [ Links ]

Oliveira, A.P.G., & Milnitsky-Sapiro, C. (2007). Políticas Públicas para adolescentes em vulnerabilidade social: Abrigo e provisoriedade. Psicologia Ciência e Profissão, 27(4),622-635.         [ Links ]

Política Nacional de Assistência Social (PNAS). (2004). Brasília. Recuperado em 30 de julho de 2010, de http://www.social.rj.gov.br/familiar/pdf/pnas.pdf.         [ Links ]

Zarifian, P. (2001). Comunicação e subjetividade nas organizações. In Davel, E. & Vergara, S. C. Gestão com pessoas e subjetividade. (pp.151-170). São Paulo: Atlas.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 20.12.2011
Aprovado em: 01.03.2012