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Revista Psicologia Organizações e Trabalho

versão On-line ISSN 1984-6657

Rev. Psicol., Organ. Trab. vol.15 no.3 Brasília set. 2015

https://doi.org/10.17652/rpot/2015.3.605 

Análise do trabalho portuário: transformações decorrentes da modernização dos portos

 

Analysis of dockworkers' activities: changes due to the ports' modernization process

 

Análisis del trabajo portuario: transformaciones resultantes de la modernización de los puertos

 

 

Regina Heloisa MacielI; Rosemary Cavalcante GonçalvesI; Tereza Glaucia Rocha MatosI; Marselle Fernandes FontenelleI; João Bosco Feitosa dos SantosII

IUniversidade de Fortaleza, Fortaleza, CE, Brasil
IIUniversidade Estadual do Ceará, Fortaleza, CE, Brasil

 

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo deste trabalho foi investigar as percepções dos trabalhadores de dois portos, um público e um privado, de um mesmo estado brasileiro, sobre suas condições de trabalho. O método consistiu em grupos focais com apresentação de trechos de filmagens dos locais de trabalho, utilizando o quadro teórico da ergonomia. Os áudios foram transcritos e submetidos à análise de conteúdo. Observou-se que mudanças na gestão e organização, decorrentes da flexibilização das relações de trabalho e aumento do controle, e pressão por produtividade são aspectos relevantes das mudanças, mais evidentes no porto privado do que no público. O trabalho portuário é considerado predominantemente físico, mas a atividade possui complexidades que requerem do trabalhador competências para solucionar as dificuldades vivenciadas no confronto entre o trabalho real e o prescrito. A lógica tecnicista, trazida pelo processo de modernização, pode ter levado a prejuízos à saúde dos trabalhadores e a acidentes.

Palavras-chave: Trabalhadores portuários; ergonomia; modernização portuária; saúde do trabalhador.


ABSTRACT

This study aimed to investigate the perceptions of workers from two ports in the same Brazilian state, one public and one private, about their working conditions. The method consisted of focus groups with the presentation of film clips of workplaces, using the theoretical framework of ergonomics.The audios were transcribed and subjected to a content analysis. It was observed that changes in management and organization,due to the process of increasing the flexibility of labor relations, and increased control and pressure for productivity, are relevant aspects linked to the changes, more evident in the private than in the public port. Dock work is considered predominantly physical, but the activity is complex and requires worker expertise to resolve the problems experienced in the confrontation between actual and presumed work. The technical logic, brought about by the modernization process, has led to worker health problems and work accidents.

Keywords: Dockworkers; ergonomics; port modernization; worker health.


RESUMEN

El objetivo de este estudio fue investigar las percepciones de los trabajadores de dos puertos de un mismo estado brasileño, siendo un público y otro privado, sobre sus condiciones de trabajo. El método consistió en grupos focales con presentación de fragmentos de filmes de los lugares de trabajo, utilizando el marco teórico de la ergonomía. Los audios fueron transcritos y sometidos a un análisis de contenido. Se observó que los cambios en la gestión y organización, derivados de la flexibilización de las relaciones laborales, y mayor control y presión para la productividad, son aspectos relevantes de los cambios, más evidentes en el puerto privado que en el público. El trabajo de estiva es considerado predominante físico, pero la actividad tiene complejidades que requieren que el trabajador resuelva las dificultades que experimentan en la confrontación entre el trabajo real y el prescrito. La lógica mecanicista, introducida por el proceso de modernización, puede haber causado daños a la salud de los trabajadores y accidentes.

Palabras-clave: Trabajadores portuarios; ergonomía; modernización de puertos; salud del trabajador.


 

 

Em 1993, iniciou-se o processo de modernização dos portos com a promulgação da Lei 8.630/93. Mais recentemente, a Lei 12.815/2013 (nova lei dos portos) aprofundou o processo de mudanças, estabelecendo novos critérios para a exploração e o arrendamento para a iniciativa privada de terminais de movimentação de cargas em portos públicos, bem como novas regras que facilitam a instalação de Terminais de Uso Privado (TUPs) (Britto et al., 2015). O processo instituiu uma nova forma de gestão do trabalho portuário que abalou profundamente a vida dos trabalhadores. A reestruturação produtiva imposta pelas leis trouxe grandes metamorfoses na organização e no controle do trabalho portuário, afetando diretamente as condições de trabalho daqueles que vivem do porto e, indiretamente, das regiões onde novos portos estão sendo implantados (Bezerra, Rigotto, Pessoa, & Silva, 2014; Medeiros, 2005).

A modernização portuária modificou a maneira de realizar e de organizar o trabalho, que veio acompanhada de um extenso processo de privatizações e de investimentos em novas tecnologias portuárias. Nesse contexto, desenvolve-se a pesquisa apresentada aqui, cuja proposta foi avaliar as condições de trabalho e os riscos à saúde de trabalhadores portuários envolvidos em atividades operacionais de movimentação e armazenagem de mercadorias de navios e, assim, identificar as transformações no mundo do trabalho em consequência da modernização portuária.

A lei de modernização dos portos de 1993 foi o único documento norteador de todas as mudanças do sistema portuário brasileiro até 2012. O novo marco legal promovido pela chamada nova lei dos portos (Lei 12.815/2013) aprofundou os ajustes no setor portuário. Ambas as leis vêm promovendo uma profunda reestruturação no cotidiano das práticas portuárias brasileiras, apostando na iniciativa privada como forma de solucionar os problemas do setor. Entre as principais transformações, pode-se citar a extinção do monopólio da administração portuária nos serviços de movimentação de cargas, que passa a ser executada por operadoras credenciadas; a alteração na sistemática de exploração das instalações; as mudanças na forma de prestação de serviço e nas relações de trabalho; e as alterações no modelo de gestão e na participação do estado na atividade portuária (Castro-Junior & Capraro, 2014).

A reestruturação produtiva imposta pela lei levou a um extenso processo de privatizações e de investimentos em novas tecnologias portuárias, trazendo para esse cenário novos atores, denominados de operadoras e prestadoras (empresas que realizam a logística do trabalho portuário). As operadoras e as prestadoras também adotaram um novo gerenciamento empresarial para elevar a qualidade dos serviços e reduzir os preços. A lógica empregada é a de que quanto maior a movimentação de cargas através do uso de máquinas e menor a quantidade de trabalho humano, mais barato fica o serviço (Torres, 2008). As mudanças ocasionaram a redução dos postos de trabalho, a inclusão e a extinção de funções, a introdução do trabalhador multifuncional, o aumento da jornada e do ritmo de trabalho, assim como o estabelecimento de patamares superiores de produtividade, exigidos pelos compradores dos serviços.

Gomes e Junqueira (2008) acreditam que a ação adotada pela força modernizadora supervaloriza a razão técnica, deixando de lado a questão dos trabalhadores e sua exposição aos riscos inerentes ao trabalho. Para os trabalhadores, a modernização portuária tem significado a perda da autonomia, com o aniquilamento da capacidade de gerirem, através dos sindicatos, a mão de obra e os interesses da categoria. As mudanças afetaram os valores da tradição e o sentimento de pertencimento que faziam sentido com a união sindical (Nascimento, 1999). Antes da modernização, os trabalhadores eram marcados por relações de parentesco ou amizade, em que o exercício do trabalho dependia mais de informações personalizadas, de favores ou, ainda, pela condição política (sindicato), do que pela resposta dada pelo mercado ou por empresas especializadas na contratação de mão de obra. Hoje, os trabalhadores são contratados a partir de processos de seleção impessoais. Assim, há uma desintegração do grupo de trabalho tradicional, com mudanças na composição das equipes de trabalho (Machin, Couto, & Rossi, 2009).

O objetivo deste trabalho foi verificar as principais diferenças e semelhanças no trabalho portuário em um porto público e em um porto privado de economia mista da mesma região do país. A comparação é importante porque um dos portos sofreu transformações decorrentes do processo de modernização que atingiu todos os portos do mundo, enquanto o segundo já havia sido construído e organizado dentro dos preceitos das modernas trocas portuárias. Assim, por meio da fala dos trabalhadores, buscou-se identificar os principais problemas do trabalho e vivências dos envolvidos em atividades operacionais de movimentação e armazenagem de mercadorias de navios nos dois portos estudados e, a partir dos discursos, analisar as transformações ocorridas em consequência da modernização portuária.

 

MÉTODO

Este estudo baseia-se na análise ergonômica do trabalho (AET), com técnicas de: (a) observações, filmagens e entrevistas em campo e (b) grupos focais. Neste trabalho, serão relatados os resultados obtidos por meio dos grupos focais. O estudo adota a perspectiva da ergonomia centrada na atividade humana, que se insere na tradição dos estudos ergonômicos (Laville, 2007; Montmollin & Darses, 2011). Nessa abordagem, a atividade ocupa lugar central na análise ergonômica do trabalho, que tem por objetivo compreender o trabalho real em confronto com o trabalho prescrito. A análise da atividade não se restringe aos comportamentos observáveis, mas busca compreender a lógica da ação, reconstituindo os encadeamentos que explicam as ações dos operadores (Montmollin & Darses, 2011).

Wisner, já em 1987, propunha que a análise do trabalho fosse dirigida não apenas às observações diretas das situações de trabalho, mas também às tomadas de informação junto aos trabalhadores. Isso porque a observação nem sempre é suficiente para analisar o trabalho, sendo necessários dados que complementem os fornecidos pelos comportamentos explícitos e visíveis. A análise ergonômica utiliza técnicas que têm por objetivo colocar a fala do trabalhador acerca de seu trabalho no centro da análise. Por essa razão é que foram conduzidos os grupos focais, escolhidos por (a) promoverem um espaço de discussão, em que os trabalhadores podem expor coletivamente suas impressões sobre o trabalho; e (b) permitirem o afloramento de uma narrativa resultante da interação de participantes com experiências semelhantes, seguindo o preconizado na análise coletiva do trabalho (Ferreira, 2015).

Contexto do estudo: Os portos estudados

As atividades portuárias nos portos organizados (públicos) são realizadas por trabalhadores avulsos que, por definição, prestam serviços a várias empresas, agrupados em entidades de classe, contratados por intermédio delas e sem vínculo empregatício. Caracteriza o trabalho avulso a intermediação do sindicato ou órgão específico de colocação de mão de obra, a curta duração dos serviços e a prevalência da forma de rateio para a remuneração (Carrion, 2003). No caso dos TUPs, as prestadoras passam a gerir a mão de obra da forma que lhes for mais conveniente, independente do Órgão Gestor de Mão de Obra (OGMO) e dos sindicatos.

O trabalho nos portos varia de acordo com a mercadoria a ser transportada ou manuseada, seu acondicionamento e o transporte requerido. O trabalho é diversificado e definido como nobre e não nobre. No primeiro caso, utiliza-se a maquinaria; no segundo, depende-se exclusivamente do esforço físico. O tipo de carga define a remuneração (Aguiar, Junqueira, & Freddo, 2006). O estado onde foi realizado o estudo possui dois portos que atendem a toda a sua demanda de comércio portuário. O porto organizado entrou em operação em 1953 e se utiliza do sistema de mão de obra avulsa (trabalhadores portuários avulsos - TPA), associado às contratações feitas pelos operadores portuários com a intermediação do OGMO. Em contrapartida, o TUP surgiu dentro dos parâmetros estabelecidos pela Lei de Modernização dos Portos, gerindo suas atividades através de Prestadoras de Serviços Operacionais e não possui OGMO. As empresas se utilizam de mão de obra própria, em geral, terceirizada, cujos contratos de trabalho são por tempo indeterminado (Medeiros, 2005).

Atualmente, o porto organizado possui infraestrutura para a movimentação de diferentes tipos de mercadorias e emprega aproximadamente 300 TPA registrados no OGMO. Esses trabalhadores estão ligados a sindicatos específicos: estivadores, portuários, conferentes, vigias e arrumadores. O OGMO é responsável pela segurança e pelas demais relações trabalhistas.

No TUP, as prestadoras são responsáveis pela contratação da mão de obra, tratam das questões de segurança dos trabalhadores e do fornecimento de equipamento de proteção individual (EPI), bem como da segurança dos equipamentos utilizados. No entanto, essa responsabilidade é compartilhada com uma empresa pública, responsável pela administração do porto, que possui um setor de segurança do trabalho.

Duas prestadoras atuam no TUP na estivagem e desestivagem1 junto aos navios. A primeira possui aproximadamente 200 funcionários (60 na estivagem e desestivagem de navios) e, a outra, 45. As prestadoras são responsáveis pela definição dos ternos (equipes de trabalho) de acordo com suas próprias programações e demais definições quanto ao trabalho de estiva e capatazia, embora seja voz corrente no TUP que lá não há estivadores, apenas trabalhadores. Há uma diferença marcante na forma de contratação do trabalho entre as duas empresas. A empresa A paga um salário fixo aos seus estivadores e a empresa B mantém um sistema de pagamento similar ao existente no porto organizado, isto é, os trabalhadores recebem de acordo com a carga estivada (faina).

Participantes

O convite aos participantes foi feito com a colaboração dos sindicatos. Todos os participantes eram estivadores ou portuários do sexo masculino. Os critérios de seleção foram: ser trabalhador portuário em atividades de movimentação e armazenamento de mercadorias, estar ativo e consentir em participar do estudo. A idade média dos entrevistados foi de 35 anos (variando de 24 a 42 anos) e a maioria tinha ensino fundamental completo.

Instrumento

O roteiro de condução dos grupos focais consistiu em, inicialmente, apresentar trechos das filmagens das atividades realizadas pelos portuários no local de trabalho, produzidas na primeira parte da pesquisa. Os clipes tinham duração de dez minutos e apresentavam diversas operações portuárias: dentro dos navios, no cais e no pátio. Em seguida, era aberto espaço para debater as percepções acerca da realidade do trabalho.

Procedimentos

Os grupos focais ocorreram no espaço da universidade e no centro de treinamento de um dos portos estudados durante o ano de 2012. Foram realizados três grupos focais, com 5, 4 e 10 trabalhadores, respectivamente. Os grupos foram mistos, com trabalhadores dos dois portos em todos eles. Dada à dificuldade de se identificar os sujeitos que falam nos grupos focais, optou-se por não definir individualmente as falas dos trabalhadores, indicando-as como discurso do trabalhador.

As sessões dos grupos focais foram gravadas e, posteriormente, transcritas. A análise baseou-se na técnica de análise de conteúdo temática (Colbari, 2014; Millward, 2011). A análise das entrevistas seguiu as etapas de (a) compreensão geral das falas, (b) identificação dos núcleos de sentido ou ideias centrais dos discursos dos sujeitos, (c) categorização por agrupamento dos núcleos de sentido e (d) discussão dos resultados a partir das categorias.

O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa sob o número 159/2010. Todos os participantes assinaram e receberam uma cópia do Termo de Consentimento Livre Esclarecido.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A partir da análise de conteúdo temática das entrevistas com os grupos focais foram obtidas quatro categorias principais: (a) flexibilização das relações contratuais de trabalho, (b) organização do trabalho, (c) segurança no trabalho e (d) estratégias operatórias.

Flexibilização das relações contratuais de trabalho

É que no porto [organizado] a gente trabalhava no avulso, né? E agora [no TUP] estou de carteira assinada. No porto privado, como dizem, a gente trabalha de carteira assinada. (Trabalhador)

Foram constadas diferentes formas de contratação nos dois portos. No porto organizado, o trabalhador possui vínculo com o OGMO e é denominado trabalhador portuário avulso (TPA). No terminal privado, os trabalhadores possuem contrato celetista com uma das duas empresas prestadoras de serviços. Contudo, os entrevistados relataram que existem outros tipos de contratação em ambos os portos. O TPA pode, em certas circunstâncias, ser cedido pelo OGMO para trabalhar no TUP com prazo indeterminado. Atualmente, existem 46 TPAs cedidos a uma das empresas que opera no TUP. Nesse caso, o trabalhador é avulso e celetista. Observou-se que os TPAs com vínculo também com prestadoras do TUP não querem perder o registro no OGMO.

No porto organizado, ainda há o trabalhador avulso cadastrado, chamado de bagrinho, que não é registrado no OGMO, mas, eventualmente, pode ser contratado para realizar atividades quando ocorre falta de mão de obra. Percebe-se que há preocupação com a contratação dos bagrinhos, subcontratados para exercerem a função de estivador. Os entrevistados enfatizaram que esses trabalhadores não possuem treinamento adequado e, em geral, não são sindicalizados. Segundo eles, está se tornando bastante comum a contratação desses trabalhadores no porto organizado e os sindicatos também ganham com isso, porque não fazem as deduções dos encargos referentes ao TPA registrado.

No porto organizado, os TPAs são remunerados por intermédio do OGMO e ganham por produtividade. Os TPAs registrados têm os mesmos direitos aos benefícios previdenciários do celetista, isto é, aposentadoria, auxílio acidente, salário família, férias, décimo terceiro salário, entre outros. Os entrevistados consideram que, devido ao ganho por produtividade, os TPAs têm dificuldades para se organizar financeiramente. O trabalhador ganha pelo que faz e não tem salário fixo, ou seja, ele pode gastar muito em um mês porque ganhou mais e, no outro mês, não ter dinheiro suficiente porque não conseguiu produzir o mesmo do mês anterior. A produtividade do avulso é aferida por tonelada de carga movimentada, mas há diferenças de remuneração por tipo de faina. O trabalhador mais astuto é aquele que consegue se engajar nas fainas de maior produtividade.

No TUP, o portuário recebe salário fixo e mais benefícios (como vale-alimentação e vale-transporte), podendo também receber por produtividade a depender da empresa empregadora. Como a maioria dos trabalhadores não mora na mesma cidade onde se localiza o terminal, as empresas oferecem local para dormir, com alimentação, geralmente em pousadas.

Com relação às prestadoras do TUP, os entrevistados relatam que uma das empresas oferece melhor remuneração porque paga um salário mais a produtividade, enquanto a outra só oferece salário fixo. Para o estivador com salário fixo, o valor corresponde a aproximadamente 1,5 salário mínimo. Contudo, a empresa proporciona melhor remuneração para as outras funções operacionais que não a estiva, como os guindasteiros, por exemplo. Segundo os entrevistados, "ninguém quer trabalhar nessa empresa porque ela não paga produtividade e o avulso no porto organizado ganha mais". Ainda sobre a remuneração, no TUP, o trabalhador não se preocupa com o tipo de carga que vai trabalhar, porque a faina tem um preço único.

Os relatos evidenciam que o trabalho no TUP é percebido como melhor do que no porto organizado quando se trata de remuneração, pois o salário fixo, com carteira assinada, sugere o sentimento de segurança, de saber o que vai ganhar no fim do mês; enquanto o avulso vive na incerteza com relação ao ganho para seu sustento. Além disso, a disponibilidade de trabalho diminuiu no porto organizado em função da transferência de manuseio de cargas para o TUP. De acordo com os relatos, os trabalhadores mais satisfeitos são os da empresa do TUP, que paga um salário fixo mais a produtividade dividida pela turma de estivadores, quer tenham trabalhado, quer não, no manuseio da carga.

No discurso dos trabalhadores é possível perceber como a existência de diferentes modalidades de contratos de trabalho vem promovendo a precarização do vínculo tradicional do trabalho portuário, o que acaba afetando a identidade histórica desses trabalhadores. Até a implantação do OGMO no porto organizado, a matrícula dos estivadores no trabalho da estiva era controlada pelo sindicato. Referindo-se ao Sindicato dos Estivadores de Santos, Aguiar et al. (2006) esclarecem que o fechamento da categoria era uma das estratégias políticas do sindicato que, com isso, garantia maior remuneração aos sindicalizados, ao mesmo tempo em que assegurava maior poder político. Isso significa que, com menor número de trabalhadores na estiva, e selecionados por ele, o poder de negociação do sindicato junto aos operadores portuários era maior, uma vez que tinham condições de parar o porto com sucesso. O mesmo ocorreu nos outros portos organizados brasileiros.

No caso do porto organizado, com o advento do OGMO, os preços da estivagem de mercadorias e, consequentemente, os ganhos do trabalho dos estivadores e dos outros TPAs são estabelecidos pelo OGMO que também controla a distribuição do trabalho. Na fala dos trabalhadores transparece um descontentamento em relação aos ganhos, que diminuíram em comparação ao período anterior ao OGMO, mas eles também afirmam que "agora está mais organizado, a gente ganha menos, mas tem os direitos garantidos".

No caso do TUP, ficam evidentes as diferenças entre as duas empresas. A empresa que paga apenas o salário fixo possui trabalhadores mais jovens, sem experiência no trabalho portuário e, segundo o técnico de segurança da empresa, "é um trabalho como outro qualquer", descaracterizando a identidade do trabalhador portuário. A outra empresa, no entanto, levou para o terminal portuário quase um quarto dos trabalhadores do porto organizado, garantindo-lhes um salário fixo, mais os ganhos de uma porcentagem do preço da estivagem das cargas. Um deles coloca que:

Na verdade, eu acho que o que é mais interessante aí é que no avulso você não sabia o quanto você ganhava e no vinculado você tem o salário que você conta com ele todo mês, então fica melhor pra você se organizar. (Trabalhador)

Organização do trabalho

Quanto à organização do trabalho, foram identificadas cinco subcategorias relevantes na análise: autonomia, tempo de trabalho, equipes de trabalho, relacionamento e treinamento.

Autonomia

A vantagem do avulso é que ele é livre. Você é livre, liberto, você vai trabalhar se você quiser, não é obrigado! (Trabalhador)

Na visão dos entrevistados, a vantagem do trabalho avulso é que o trabalhador é livre e pode trabalhar quando quiser. Ele tem liberdade, enquanto o operário com vínculo empregatício tem de cumprir normas e ficar à disposição da empresa. Como desvantagens, relatam o fato de o TPA do porto organizado ter que trabalhar mais se quiser ganhar mais, e não sabe o que vai ganhar no final do mês, além da possibilidade de perder o registro, caso não compareça à chamada2 em um prazo maior do que seis meses.

Essa ilusão de autonomia pode ser encontrada também em outros trabalhos ditos autônomos, como o caso dos catadores de materiais recicláveis, denominados por Medeiros e Macêdo (2007) de autônomos proletários, uma vez que a autonomia só vai até o ponto da necessidade de sobrevivência. No caso em estudo, é possível identificar três situações distintas:

A primeira refere-se ao TPA, agora controlado pelo OGMO. Embora esse trabalhador ainda mantenha certa independência e autonomia, os ganhos do trabalho diminuíram e a quantidade de trabalho oferecida também, uma vez que grande parte das mercadorias que chegavam ao porto organizado desembarca agora no TUP.

A segunda diz respeito aos trabalhadores de uma das empresas do terminal, que ganham apenas um salário fixo, e caracterizam-se por ter menos experiência e pouca autonomia no trabalho.

A terceira situação é a dos trabalhadores também do TUP, que mantêm o melhor dos dois mundos. Os trabalhadores possuem carteira assinada, ganham salário fixo mais adicionais por produtividade. Além disso, de acordo com as informações fornecidas pelos trabalhadores, os 46 estivadores da empresa dividem a produtividade igualmente, tendo ou não sido escalados para a faina, mantendo, assim, o controle de quando e como trabalhar. Essas situações desiguais apontam disfunções e falta de isonomia entre trabalhadores que realizam a mesma atividade nos mesmos locais.

Tempo de trabalho

(...) se bem que com essa lei agora esta doze horas mesmo [a jornada] , não esta permitindo mais não, porque agora estão denunciando, é fiscalizado. (Trabalhador)

A escalação no porto organizado é feita em sistema de rodízio pelo OGMO a fim de garantir a igualdade de oportunidade de trabalho entre os TPAs. No TUP, os trabalhadores se revezam em turnos, com entrada nos horários de 7h, 13h, 19h ou 1h. Contudo, os turnos variam por prestadora. Em uma, o turno é de 6 por 12 horas, e na outra, 12 por 36 horas. Os entrevistados disseram que antes da lei de modernização dos portos de 1993 era comum o portuário trabalhar até 72 horas sem descanso. Porém, hoje, há fiscalização e maior controle sobre a jornada de trabalho.

Como principal desvantagem do trabalho em turnos, os trabalhadores relatam não poder ter descanso semanal e só ter folga nas férias. Contudo, é possível ocorrer períodos maiores de descanso quando não há navio atracado, podendo ficar até três ou quatro dias sem trabalharem. Mesmo assim, disseram que, nesses casos, o trabalhador fica à disposição da empresa para quando o chamarem, ou seja, não ficam efetivamente de folga. Os trabalhadores do TUP ainda referem a dificuldade de ficar longe da família. Como diz um entrevistado: "Só fica ruim por causa das mulheres e dos meninos, né?".

Em síntese, a característica comum é o trabalho em turnos, que pode variar entre turnos noturnos ou diurnos, com duração de 12 ou 6 horas. Com as atuais regulamentações e fiscalizações pelos órgãos governamentais, observa-se a preocupação das empresas em fazer cumprir a legislação no que diz respeito à jornada. As queixas apresentadas pelos entrevistados são frequentes entre os que trabalham nesse tipo de sistema e refletem a dificuldade de ajustar o tempo de trabalho, tempo biológico e tempo familiar e social, o que pode resultar em distúrbios do ciclo vigília-sono e fadiga crônica (Hansen & Holmen, 2011).

Equipes de trabalho

(...) porque tem muita gente que está fazendo a operação errada. Se a turma viesse trabalhando puxando chan por chan3, terminando, aí não teria problema, aí o pessoal, todo mundo teria espaço. Mas não, esse pessoal, eles só querem tirar do meio por que lá está a produção dele ali. (Trabalhador)

A composição das equipes, chamadas de ternos, depende do tipo de carga movimentada. Os entrevistados disseram que, no passado, os ternos eram compostos por até 18 homens e que, atualmente, variam em torno de 4 a 8 de acordo com a carga. Explicam que a redução do pessoal se deve ao emprego de novas tecnologias. Porém, a diminuição dos ternos também é decorrente da reestruturação produtiva, levando a um ritmo de trabalho mais elevado pela diminuição do número de trabalhadores nas equipes ou ternos.

No porto organizado, os pesquisados relatam que houve melhoria na distribuição do trabalho com a criação do OGMO, pois antes os sindicatos manipulavam para que alguns trabalhadores conseguissem o serviço que queriam. Contudo, afirmam que ainda há muita desorganização na hora da chamada, que concorre para discussões entre os TPAs para obterem o melhor serviço. Como a remuneração é feita com base no trabalho realizado por cada terno, existem cargas que possibilitam maior produtividade, sendo preferidas àquelas que requerem maior esforço e menor produção.

Sobre o pensamento de equipe, os relatos revelam haver certa falta de cooperação entre os ternos. Um exemplo é a operação de descarga de cimento, em que o trabalho prescrito estabelece que a retirada dos bags4 do porão do navio deve ser feita nível por nível (chan por chan, na linguagem dos estivadores), a fim de evitar a formação de paredes que correm o risco de desabar e provocar acidentes. Contudo, no trabalho real, observou-se que os estivadores tendem a iniciar a retirada pelo meio, formando elevadas barreiras de bags juntoàs paredes do porão. Os entrevistados disseram que isso ocorre porque o conferente não fica no local o tempo todo e há falta de cooperação entre as equipes. Cada equipe empenha-se em fazer sua tarefa da forma mais fácil, sem se preocupar com a que virá depois. Os motivos citados são a facilidade de fazer o trabalho e o ganho por produtividade.

Os relatos evidenciam que a redução do número de trabalhadores nos ternos e a pressão por produtividade interferem nas relações de cooperação entre as equipes, que podem comprometer tanto a segurança quanto a qualidade do trabalho. Essa mesma problemática foi encontrada em outros portos brasileiros (Machin et al., 2009; Medeiros, 2005; Motter, Santos, & Guimarães, 2015).

Relacionamentos

Desde o momento que se formam os ternos já são pessoas conhecidas. E se não for conhecida basta uma semana pra conhecer todo mundo. Muitos são muito brincalhões, e quem não gosta de brincadeira também já vê logo ali, e já não fica mais brincando. Fica aquela amizade, mas já não fica mais brincando. (Trabalhador)

Teve discussão. Assim, de boca a boca, que o conferente mandou fazer uma coisa que eu estou vendo que não vai dar certo, aí fica aquela discussão. (Trabalhador)

Quando indagados sobre o relacionamento com a equipe, os pesquisados disseram que o clima é de camaradagem e de brincadeiras durante a realização do trabalho. Os ternos são formados por pessoas que já se conhecem há muito tempo, por isso o relacionamento tende a ser bom, isso no caso do porto organizado e de uma das empresas do TUP. Com os superiores, também disseram ter um bom relacionamento, embora aconteçam discussões e divergências devido à forma de realizar determinadas operações. Por exemplo, o estivador pode não concordar com o conferente sobre um determinado procedimento que, em sua visão, envolve risco, e discutir o assunto.

Um dos entrevistados, com a função de sinaleiro, disse ter discordado da orientação do conferente e ligado para o superior a fim de que resolvesse a situação. Atribuem como um dos motivos para os conflitos entre conferentes e operadores a pressão por produtividade. Nesse caso, os trabalhadores são pressionados pelas chefias a realizarem operações que envolvem riscos para o alcance de metas. Outra dificuldade com os superiores deve-se às cobranças por controle de carga horária de uma das empresas do TUP.

Em síntese, o relacionamento com os colegas é amigável e descontraído, enquanto nas relações com a chefia, que nos casos citados referem-se ao conferente, tendem a ocorrer discussões em torno do trabalho a ser executado. Isso revela que trabalhadores antigos e mais experientes não se submetem facilmente às autoridades hierárquicas, fazendo isso em função do conhecimento tácito ou savoir-faire, adquirido ao longo do tempo. Também, evidencia-se a diferença entre o que é prescrito e o que é trabalho real, que requer constante tomada de decisão diante de imprevistos e condições concretas do trabalho (Abrahão, Sznelwar, Silvino, Sarmet, & Pinho, 2009; Guérin, Laville, Daniellou, Duraffourg, & Kerguelen, 2004).

Treinamento

Já os meninos não, foram pegados todos assim, vamos dizer assim, rebolaram eles pra lá, sem um preparo, sem um nada. Eles foram pegando jeito só com o trabalho, sem nada. Aí não tem o preparo como a gente daqui, que a gente é que vamos mesmo trabalhar com ele, nós já prepara ele, já pra não ter esse tipo de acidente, tanto ele como a gente fica seguro. (Trabalhador)

Embora a legislação portuária preveja a promoção de formação profissional e treinamento em questões de segurança e saúde no trabalho, de acordo com o relato dos entrevistados, a capacitação para o serviço é feita no próprio local de trabalho pelos portuários mais experientes, que consideram o repasse de conhecimento importante para garantir que o trabalho seja realizado com segurança pela equipe. No TUP, os novos trabalhadores vão para o serviço sem treinamento adequado. Durante os relatos nos grupos focais, foi possível perceber que os trabalhadores têm expectativas de progredirem profissionalmente. Um dos entrevistados relatou que foi ajudante, caminhoneiro, conferente e, atualmente, é sinaleiro. A ascensão está atrelada à aquisição de habilitação que se faz com treinamentos oferecidos pelo OGMO ou empresas operadoras.

Dessa forma, observa-se que a maior parte da aprendizagem para o serviço, principalmente dos trabalhadores mais novos na função, é feita no próprio exercício da atividade. O trabalho é muito variável, com diversos produtos, diferentes formas de execução, condições ambientais variáveis e imprevistos constantes, que requerem tempo para aprendizagem. Regras e normas prescritas não contemplam essas variações. A aprendizagem é, basicamente, feita no dia a dia por meio de observações e instruções dos mais experientes (Guérin et al., 2004).

Segurança no trabalho

Com relação à segurança no trabalho, foram abordadas as subcategorias medidas de proteção e acidentes de trabalho.

Medidas de proteção

A área que a gente trabalha é muito perigoso, principalmente com ferro, com peso, muitas toneladas e tudo. Se você levar problema pra área, é complicado, às vezes a gente conta que tá com problema pro companheiro, aquela distração, que se eu tiver problema com esposa, alguma coisa assim, se levar pra área, aí é um risco muito grande. (Trabalhador)

Vou dizer uma coisa pra vocês, esse guindaste, todo equipamento é falho. É falho. Pode chegar que falhe na hora e leve a cabine e pifa. (Trabalhador)

Quando indagados sobre a questão da segurança, os entrevistados percebem que existem riscos no ambiente de trabalho. Atribuem o perigo ao fato de lidarem com cargas volumosas e pesadas e afirmam que a atividade requer muita atenção e, por esse motivo, trabalham com cuidado para evitar acidentes.

Com relação às ferramentas e maquinários, os entrevistados disseram que há possibilidade de acidentes, como a queda de materiais, devido a falhas nos equipamentos, por vezes causadas por falta de manutenção. Essa preocupação fica explícita quando se referem à conduta de passar por debaixo de carga suspensa, mesmo conhecendo os riscos e as normas de segurança.

Ainda sobre a tecnologia, os entrevistados disseram que atualmente os equipamentos dispõem de maior segurança. Como exemplo, descrevem a carreta banheira, que tem chapas laterais que evitam que o contêiner deslize, e os lockers5 mais modernos que travam os contêineres. Sobre os riscos relacionados às intempéries, destacou-se a velocidade dos ventos que dificulta a realização das tarefas e aumenta o risco de quedas. "A ventania é tão grande que só falta tirar a gente de cima", afirma um entrevistado.

Os participantes relatam que hoje em dia os portos estão mais preocupados com as questões de segurança, havendo maior fiscalização e orientação aos trabalhadores. Porém, antes da lei de modernização, era comum que os portuários desafiassem o perigo, com comportamentos arriscados como pular de uma pilha de mercadorias para outra ou escalar contêineres sem equipamentos de proteção.

Também sobre vestimentas e equipamentos houve melhorias após a lei. Hoje as empresas exigem o uso de fardamento padronizado, além de capacete, luvas e bota. Anteriormente, "o trabalhador ia trabalhar no porão do navio só de sunga", disse um dos entrevistados, justificando o fato ao calor no local.

Com relação às normas de segurança, tanto o OGMO como as prestadoras possuem equipe técnica de segurança no trabalho que fiscaliza o cumprimento de regras protetivas. A visão dos trabalhadores é positiva no que se refere à preocupação das empresas com a saúde e segurança no trabalho. Apesar disso, os entrevistados disseram que é comum o não uso de EPI pelos trabalhadores. Relatam que não usam os equipamentos de proteção porque precisam se movimentar, passar de cima de um contêiner para o outro. Dessa forma, a operação levaria mais tempo se tivessem que fazer uso de EPI. Como afirma um deles: "Eu não acredito nessa prevenção não, porque é como eu disse, pelo fator tempo, impede a produtividade". Os participantes referem, ainda, que o não uso de medidas protetoras é devido à tendência de minimizar os riscos e de achar que nada vai acontecer. Além disso, relataram que o trabalhador pensa que os 30% de insalubridade pagam o risco da atividade.

Em suma, os trabalhadores demonstram ter percepção dos riscos no trabalho mas, dizem ter havido melhorias nas medidas preventivas de segurança nos últimos tempos. No entanto, a pressão por produtividade é um fator significativo que concorre para o não cumprimento de regras de segurança. Mais uma vez, ficam evidentes as divergências entre o prescrito e a situação real de trabalho. Nesse caso, condutas de risco podem significar algo mais do que mecanismos de defesa individuais no sentido de negar o perigo e mostrar virilidade e coragem (Dejours, 1992), mas um recurso necessário para poder cumprir o que foi previamente determinado, embora não explicitado na tarefa.

Acidentes de trabalho

Ele perdeu a vida não foi por que a castanha caiu. Ele perdeu a vida por que ele estava sob carga suspensa e o bê-á-bá da segurança portuária jamais, em hipótese alguma a pessoa deve ficar sob carga suspensa. (Trabalhador)

Os trabalhadores do TUP consideram que ocorrem poucos acidentes no trabalho e que são mais frequentes acidentes fora do porto, no transporte das mercadorias. É o caso de motoristas que se acidentam na estrada devido à fadiga por carga horária extensa e trabalho noturno. Sobre as principais causas de acidentes referem quedas ou deslizamentos de materiais, bem como quedas de altura, que causam esmagamento, fraturas ou morte.

Dois acidentes de trabalho fatais foram relatados. Um aconteceu devido à queda de um locker na cabeça do portuário. O guindaste içou a carga e quando a levantou, o locker deslocou e caiu. O motivo do acidente é atribuído ao trabalhador que não seguiu as normas. O outro acidente fatal ocorreu com um motorista de caminhão que freou a carreta e a carga deslizou para cima da cabine. O motivo foi devido ao motorista não ter travado o contêiner na carreta. Os entrevistados afirmaram que os operadores geralmente não travam o contêiner por ser uma operação custosa, que requer descer da carreta, travar, fazer o trajeto, e depois destravar. Além disso, há tendência de minimizar os riscos, pois o trajeto com a carga sem travas é curto. Chama atenção a forma como os trabalhadores atribuem à sorte ou a Deus o fato de não se acidentarem de forma grave. "Só não perdi meus dedos porque acho que foi Deus que não deixou", relatou um entrevistado.

Quanto à compreensão dos trabalhadores sobre os acidentes de trabalho, percebe-se a predominância da ideia de culpabilização da vítima. Nos casos citados, passar embaixo de carga suspensa e não travar o contêiner à carreta são ações indevidas para as quais os trabalhadores seriam corretamente orientados em treinamento. Há uma visão reducionista acerca dos acidentes, em que as causas geralmente são atribuídas aos operadores, como erro humano, negligência, ato inseguro ou descumprimento de normas de segurança. Contudo, essa análise não contempla fatores como pressão por tempo, produtividade, cansaço, sobrecarga, etc., nem põe em questão a análise sistêmica da organização do trabalho que possibilitou o acidente. Assim, a explicação não contribui para a compreensão do processo causal dos acidentes, prejudicando a adoção de medidas de prevenção eficazes. Esse tipo de imputação dos acidentes a atos inseguros do trabalhador é comum na nossa cultura (Jackson-Filho, Vilela, Garcia, & Almeida, 2013; Vilela, Iguti, & Almeida, 2004).

Estratégias operatórias

Tem momentos que ele [o locker] trava. E não consegue destravar, por exemplo, destrava três cantos e fica um canto preso. Aí o guindaste vai e quebra né? (...) Aí ele vai e arrebenta. Que ele pra quebrar com o peso é só pegar um pouquinho que num instante ele destrava. (Trabalhador)

Um segura, deita [sobre o contêiner] , a gente segura as pernas e a gente tenta. Mas não é certo não, o certo mesmo é como ele tá dizendo, é pegar e quebrar. (Trabalhador)

Durante os grupos focais, algumas estratégias operatórias ficaram visíveis nos relatos dos entrevistados, revelando que entre o trabalho prescrito e o trabalho real o trabalhador necessita fazer adequações e criar novas formas de fazer para conseguir realizar trabalhadores atividade (Daniellou, Simard, & Boissières, 2010; Guérin et al., 2004). Para Dejours (2011), o trabalho prescrito é aquele previsto pela organização, para o qual são fixados regras e objetivos. Já o trabalho real consta da atividade do sujeito, em que ele põe em jogo todo o seu corpo, experiência e afetividade, com base nas reais condições de trabalho. Algumas vezes, o novo fazer pode colocar em risco a segurança dos indivíduos (Fabiano, Curró, Reverberi, & Pastorino, 2010).

Na operação de destravar o locker de contêiner, o operador fica em cima do contêiner e utiliza uma espécie de vara para realizar o destravamento. Nessa operação não se utiliza nenhum equipamento de segurança. Uma estratégia operatória é empregada quando a trava fica presa e o operador não consegue destravá-la. Nesse caso, é comum fazer uso do guindaste para quebrar a trava. Outra forma de destravar é o operador deitar-se sobre o contêiner enquanto um colega o segura pelas pernas para que não caia. Um entrevistado diz que "eles tão certo, é desse jeito aí, tá normal".

Os participantes deixam entrever no discurso que nem todos realizam tarefas arriscadas, sendo destinadas aos mais corajosos, isto é, aqueles que aceitam correr o risco. Parece haver falta de definições mais precisas sobre a forma segura de realizar as operações, cabendo aos trabalhadores tomarem decisões sobre a maneira de executá-las, conforme a situação e sua própria condição de fazê-lo (competências, força, coragem, experiência, etc.).

Na atividade de sinalização, os operadores são treinados em sistema de código internacional fazendo uso das mãos. Apesar disso, algumas dificuldades para a realização da tarefa exigem comunicação verbal. Nesse caso, como estratégia operatória, os trabalhadores fazem uso de gestos e de algumas palavras aprendidas na convivência com os estrangeiros. Quando necessário, recorrem ao conferente ou ao seu superior - o conferente de plano. Apesar da linguagem de sinais ser padronizada, cada sinaleiro tem sua própria maneira de fazer o sinal, e é preciso que ele se adapte ao modo de entendimento do guindasteiro. Alguns sinaleiros usam o capacete para sinalizar, a fim de facilitar a visualização do guindasteiro. O rádio, embora seja uma boa tecnologia, muitas vezes não é usado pelos problemas com o idioma ou por falta do equipamento pela equipe do navio.

As entrevistas narrativas revelam o quanto os trabalhadores são solicitados a desenvolver estratégias operatórias, geralmente improvisadas, para ajustar o processo de produção e garantir os resultados definidos. As improvisações, como forma de adaptação, requerem mobilização da inteligência e criatividade dos trabalhadores (Dejours, 2004). Contudo, esses modos de operar, muitas vezes, os expõem a riscos que podem afetar sua saúde e segurança (Daniellou et al., 2010).

Por outro lado, a modernização dos portos ou sua reestruturação produtiva acabou por aumentar os riscos de acidentes por dois motivos principais. O primeiro diz respeito à pressão pela produtividade que envolve não apenas um ritmo mais elevado de trabalho, mas, também, a diminuição do número de trabalhadores por terno. O segundo relaciona-se à perda da identidade da categoria e à contratação de trabalhadores jovens e sem experiência que acabam por não possuir ou ter uma imagem operatória falha das situações de risco. No caso estudado, isso ocorre no novo terminal (TUP), especificamente na empresa onde os trabalhadores recebem salários fixos e não há exigências de experiência anterior com o trabalho portuário. Esse mesmo fenômeno foi relatado por Fabiano et al. (2010) em um estudo sobre os acidentes no Porto de Gênova, Itália. Os autores concluem que o grande aumento no número de trabalhadores jovens e com pouca experiência no manuseio de contêineres e de outras cargas e atividades causou um aumento considerável do risco de ocorrência de acidentes.

Este estudo possibilitou compreender a atividade dos trabalhadores portuários e suas consequências sobre saúde e segurança. A análise mostrou que o processo de modernização portuária refletiu em mudanças nas formas de gestão e organização do trabalho. Os resultados revelam três aspectos relevantes decorrentes das mudanças: flexibilização das relações de trabalho, aumento do controle e pressão por produtividade. Essas mudanças são mais evidentes no terminal portuário privado do que no porto público. Além disso, como apontado na literatura (Daniellou, Laville, & Teiger, 1989; Guérin et al., 2004; Wisner, 1994), constatou-se que, apesar do trabalho em estudo ser considerado predominante físico, a atividade possui complexidades que requerem do trabalhador inteligência criativa e mobilização de competências para solucionar as dificuldades vivenciadas no confronto entre o trabalho real e o prescrito (Dejours, 2004; Teiger, 2005).

A era da acumulação flexível vem acarretando problemas que se caracterizam pela desregulamentação, flexibilização, terceirização e uma série de ações que visam à prevalência do capital sobre a força humana de trabalho (Antunes, 2002). Essas metamorfoses também se refletem no mundo do trabalho portuário, na medida em que se percebe o surgimento de novas formas de contratação e remuneração, sem que haja maior preocupação com a proteção aos direitos do trabalhador.

Por outro lado, a redução no tamanho das equipes aliada às pressões para produzir mais em menos tempo são fatores que contribuem para a deterioração das relações laborais e expõem os trabalhadores a riscos. Concordando com Gomes e Junqueira (2008), a preocupação em supervalorizar a técnica em detrimento dos riscos e agravos ao trabalhador é fato nestes portos.

A análise permitiu perceber, também, como os trabalhadores nos portos privados vêm gradativamente perdendo sua autonomia, ao mesmo tempo em que há maior controle sobre suas atividades. No porto público, durante a pesquisa, foi constatada maior liberdade dos trabalhadores, tanto no que se refere à escolha do que e quando fazer, como em relação à forma de organizar o trabalho.

Além dessas mudanças, o estudo evidenciou o distanciamento entre tarefa e atividade, que requer a utilização de diferentes estratégias regulatórias do operador para realizar o trabalho. Para Dejours (2005), esse distanciamento mobiliza a inteligência astuciosa, ou inteligência prática, na situação real de trabalho para fazer face aos imprevistos, situações móveis e mutáveis. Dejours (2004) é categórico ao dizer que nenhuma organização e nenhum sistema funcionam por si mesmos, mas requerem o zelo - inteligência e vontade - de homens e mulheres para fazê-los funcionar. Assim, verifica-se que a lógica tecnicista sozinha, atualmente aplicada na organização, gestão e prescrições do trabalho portuário, de certo modo uma imposição da lei de modernização dos portos, pode levar a prejuízos para a saúde dos trabalhadores e a acidentes de trabalho.

 

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Endereço para correspondência:

Regina Heloisa Maciel
Universidade de Fortaleza
Av Washington Soares 1321
Edson Queiroz, Fortaleza, CE, Brasil 60811341
Telefone: (85) 34773000
Email: reginaheloisamaciel@gmail.com

Recebido em: 15/04/2015
Primeira decisão editorial em: 03/06/2015
Versão final em: 11/06/2015
Aceito em: 19/06/2015

 

 

1O processo de estivagem de cargas consiste em arranjar itens (cargas) no porão de um navio. Esse serviço portuário é realizado por trabalhadores denominados estivadores ou estivas.
2A chamada é a alocação dos trabalhadores nos diversos trabalhos do porto. A chamada no porto organizado estudado ocorre três vezes ao dia, precedendo os turnos de trabalho. O trabalhador possui uma matrícula e os números são chamados em sequência. Quem está presente na hora da chamada é convocado para o trabalho.
3Termo que se refere à maneira de estivar uma carga por camadas no porão do navio. Chan por chan significa fazer camadas completas por todo o espaço do porão, uma de cada vez.
4Bags são embalagens com vários sacos de cimento.
5Peça de metal com aproximadamente 30 cm colocada nos cantos do contêiner que trava automaticamente um container a outro. Nos portos estudados eram também chamadas de castanhas.

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