O trabalho é uma dimensão importante da vida em sociedade. O trabalho, e suas formas de realização, refletem a estrutura e a dinâmica dos processos econômicos/produtivo s e das relações sociais, em diferentes períodos históricos. Por meio do trabalho, as pessoas têm a oportunidade de desenvolver suas habilidades e sentir-se valorizadas como membros ativos de uma comunidade. O trabalho é um importante elemento na construção da identidade.
O direito ao trabalho é um dos pilares dos direitos socioeconômicos das pessoas (Sarkin & Koenig, 2011). E, ao mesmo tempo, admite-se que o trabalho é um direito humano fundamental à vida em sociedade (Comisión Nacional de los Derechos Humanos [CNDH, 2016]; Balestero Casanova, 2020). A admissibilidade dessa afirmação, apesar de não ser recente, ainda é um desafio, na prática, para governos, organizações e sociedade, pois reflete a complexidade dos aspectos econômicos, sociais e psicológicos relacionados ao papel do trabalho na vida das pessoas e na organização da sociedade.
As raízes dessa afirmação podem ser identificadas na evolução do processo civilizatório, com destaque para a Revolução Industrial, nos séculos XVIII e XIX. Os avanços científicos e técnicos, ao longo desse período, aperfeiçoaram os processos de mecanização na extração, produção e transporte de matérias-primas, o desenvolvimento de novas tecnologias de comunicação, de informatização e gestão do trabalho. Todos esses aspectos transformaram significamente a economia e a vida em sociedade, impulsionando o crescimento e urbanização das cidades, o consumo de bens e serviços e o ingresso acentuado de mulheres no mercado de trabalho (Peck, 2015).
A produção de artefatos militares desempenhou um papel relevante nesse cenário de transformações. Durante as guerras e os conflitos armados, especialmente nos séculos XIX e parte do século XX, houve uma busca acelerada por novos instrumentos e produtos que pudessem fortalecer o poder bélico e político dos países. Essa demanda militar impulsionou a inovação tecnológica e o desenvolvimento de novos equipamentos, que posteriormente foram aplicados à vida civil, especialmente nos postos de trabalho (Sarkin & Koenig, 2011).
Esse cenário de transformações e inovações tecnológicas provocou, também, problemas sociais, sanitários e humanitários significativos, construído sob intensa exploração de mão de obra, condições precárias de trabalho, fadiga, problemas de saúde e acidentes de trabalho. No início do século XX, a intensificação dos movimentos trabalhistas e de reivindicação por mudanças nas relações de trabalho, associada às diversas lutas por direitos humanos e civis (proteção da vida, das liberdades e dos direitos individuais perante o Estado e outras instituições), ganha fôlego e se fortalece. Proliferaram-se movimentos sociais, entidades corporativas e científicas, assim como tratados internacionais, voltados à construção de políticas e garantias de proteção e promoção dos direitos fundamentais de todas as pessoas, independentemente de raça, gênero, religião, origem étnica ou status social (International Labour Organization [ILO], 2019).
Do ponto de vista histórico, é possível compreender a relação intrínseca entre "trabalho" e "direitos humanos" por meio de duas perspectivas. A primeira, mais tradicional, construída especialmente na passagem do século XIX para o século XX, que considera o trabalho como um meio de subsistência, individual e coletiva, base do sistema produtivo e das relações econômicas em sociedade. Essa concepção remonta à consolidação e expansão do sistema de produção capitalista, ao incremento do trabalho assalariado e às lutas por direitos trabalhistas (Van der Linden, 2019). A ausência de garantias legais e sociais voltadas à proteção dos trabalhadores, frente à insalubridade das condições de trabalho e à fragilidade nas relações de emprego, emergiu como um dos principais desafios a serem enfrentados pelos trabalhadores, desde então. Não bastava existir acesso ao trabalho, ele precisava ser decente.
Ao longo do século XX, ganhou relevância uma segunda perspectiva de compreensão do trabalho, centrada em seu valor, significado e potencialidades - que poderia ser denominada de dimensão humana do trabalho -, geralmente enfatizada de duas maneiras distintas, mas complementares. A primeira ênfase destaca a interdependência entre as condições de trabalho, o bem-estar dos trabalhadores e a busca por justiça social. Reconhece que as condições nas quais as pessoas trabalham têm impacto direto em sua qualidade de vida e bem-estar geral, destacando a importância de garantir ambientes de trabalho seguros, saudáveis e justos para todos os trabalhadores (Burchell et al., 2014). A segunda ênfase, por sua vez, reforça a compreensão do trabalho não apenas como uma necessidade ou meio de subsistência, mas também como uma atividade que possibilita a autorrealização e o desenvolvimento humano. Nessa visão, o trabalho é compreendido não apenas como uma forma de subsistência, mas uma oportunidade para que os indivíduos expressem e desenvolvam competências e habilidades pessoais e profissionais (Berg et al., 2013).
Ambas as ênfases contribuíram para o surgimento de diretrizes e normas trabalhistas internacionais e para a integração dos "problemas do trabalho" aos sistemas internacionais de direitos humanos. É possível afirmar que normas trabalhistas internacionais surgiram antes do estabelecimento de padrões internacionais abrangentes de direitos humanos que, neste caso, remonta ao período de formação da Organização das Nações Unidas (ONU).
Um marcador histórico importante, nessa direção, foi a constituição da Organização Internacional do Trabalho (OIT), em 11 de abril de 1919, como parte do Tratado de Versalhes, que encerrou oficialmente a Primeira Guerra Mundial. A constituição da OIT refletia a visão de que as condições precárias de trabalho podem levar a conflitos sociais e que, portanto, melhorar as condições de trabalho é essencial para garantir a paz e a estabilidade no mundo (Sen, 2000). Em sua origem, a OIT já enfatizava a necessidade de um conjunto de diretrizes orientadoras voltadas ao reconhecimento efetivo do direito de negociação coletiva, à eliminação de todas as formas de trabalho forçado ou obrigatório, à abolição efetiva do trabalho infantil e da discriminação de pessoas em matéria de emprego ou ocupação (ILO, 2019).
A Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), proclamada pela Assembleia Geral da ONU, em Paris, em 10 de dezembro de 1948, reafirmou as diretrizes da OIT, estabelecendo, em seu artigo 23, algumas das principais diretrizes que deveriam nortear as políticas e ações voltadas ao trabalho digno e decente, em todo o mundo: "1) Todos têm direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a um trabalho justo e condições favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego; 2) Todos, sem qualquer discriminação, têm direito a igual remuneração por igual trabalhar; 3) Todo aquele que trabalha tem direito a uma remuneração justa e favorável, a assegurar para si e para a sua família uma existência digna da dignidade humana, complementada, se necessário, por outros meios de proteção social; 4) Todos têm o direito de constituir e filiar-se em sindicatos para a proteção de seus interesses" (United Nations, 1948, art. 23).
A Declaração Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (DIDESC) - tratado internacional aprovado pela assembleia geral da ONU em 16 de dezembro de 1966 - alinhou o direito ao trabalho, à educação, à saúde, à moradia, dentre outros direitos considerados essenciais a uma existência digna e plena em sociedade. O DIDESC faz parte de um conjunto de instrumentos conhecidos como o Pacto Internacional de Direitos Humanos, que também inclui a DUDH e o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (PIDCP). Esses instrumentos, de fato, somente foram ratificados e adotados por uma parte significativa dos países membros da ONU a partir do final da década de 1970. Ao longo das décadas seguintes, revelaram-se os desafios políticos, econômicos e culturais em aperfeiçoar e consolidar legislações e políticas públicas voltadas ao direito ao trabalho como uma condição inerente ao desenvolvimento da sociedade (Van der Linden, 20I9).
Nessa direção, no Brasil, é relevante considerar o papel das Normas Regulamentadoras (NRs) - um conjunto de normas e diretrizes, estabelecidas pelo Governo Federal, com objetivo de regulamentar as condições de trabalho em diversos setores da economia. As primeiras 28 NRs foram implementadas por meio da Portaria n° 3.214 (Brasil, 1978). Atualizadas periodicamente, por meio de comissões tripartites, envolvendo representantes dos trabalhadores, empregadores e governo, as NRs abrangem uma variedade de temas relacionados à segurança, saúde e proteção dos direitos dos trabalhadores, considerando um determinado setor da economia ou peculiaridades de atividades e ambientes de trabalho. Entretanto, a efetiva implementação das NRs nas organizações é um desafio constante, assim como a fiscalização adequada e o processo de conscientização de trabalhadores e empregadores (da iniciativa privada e do Estado) sobre o alcance dos direitos e responsabilidades na promoção de ambientes de trabalho saudáveis e seguros.
Durante a Assembleia Geral da ONU, realizada em setembro de 2015, os quatro pilares da Agenda do Trabalho Decente — criação de empregos, proteção social, direitos no trabalho e diálogo social — tornaram-se elementos integrantes da nova Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável. Novamente, a OIT já se antecipava à discussão do "trabalho decente", na 87ª Reunião da Conferência Internacional do Trabalho (CIT), realizada em Genebra, em junho de 1999. Aplicou esse conceito não somente aos trabalhadores da economia formal, mas também trabalhadores assalariados não regulamentados, autônomos e trabalhadores domésticos (ILO, 1999).
Nessa perspectiva, o conceito de "trabalho decente" salienta a necessidade de condições de trabalho dignas e salubres, que promovam a justa remuneração, a saúde e a segurança no ambiente de trabalho, o desenvolvimento pessoal e profissional, a integração e inclusão social, a participação nas decisões que afetam a vida dos trabalhadores, igualdade de oportunidades e de tratamento para homens e mulheres, o direito à previdência e assistência social (Burchell et al., 2013; Ghai, 2003;). Desde então, a noção de trabalho decente tem sido a peça central da política, diretrizes e ações da OIT. De certa maneira, revigora o objetivo e as diretrizes gerais da instituição, criada há mais de 100 anos, conforme descrito na CIT, em 1999: Garantir trabalho decente para mulheres e homens em todos os lugares, tendo em vista que essa é uma necessidade compartilhada por pessoas, famílias e comunidades em todas as sociedades e em todos os níveis de desenvolvimento (Silva, 2022).
Os avanços tecnológicos experimentados neste século XXI — redes sociais, inteligência artificial, automação e robótica — repercutem nas oportunidades e modalidades de trabalho, em suas diferentes modalidades. As redes sociais se tornaram uma parte essencial na conectividade de bilhões de pessoas em todo o mundo, não somente no plano pessoal, mas também em função das oportunidades de trabalho, renda e ampliação de venda de serviços e produtos. A inteligência artificial (IA) se consolidou como uma das tecnologias mais impactantes do século XXI, cada vez mais presente na pesquisa científica, na geração e análise de informações, e na assistência técnica ao trabalho profissional. A automação e a robótica, por sua vez, têm sido cada vez mais incorporadas ao ambiente de trabalho, seja nos setores da manufatura, logística, agricultura ou da saúde (Kolade & Owoseni, 2022; Smids et al., 2020).
Esses avanços consolidam a busca pela celeridade, eficiência e precisão operacional no trabalho. Mas impactam desfavoravelmente nos empregos de baixa qualificação, na manutenção de postos de trabalho e na segurança dos empregos. Diante desse cenário, mobilizam-se as discussões sobre o presente e o futuro do trabalho, considerando as transformações e inovações cada vez mais intensivas. A necessidade de aperfeiçoar os processos de produção e uso de tecnologias, com base na adoção de políticas e práticas voltadas ao desenvolvimento sustentável, de cuidado com o ambiente, com a saúde e com a inclusão das pessoas, acentua a pressão por mudanças qualitativas nos modelos de governança que prezem por qualidade de vida, igualdade de oportunidades e justiça social (Peck, 20I5).
Por fim, essa interconexão entre o direito ao trabalho e os direitos humanos é crucial para a garantia de uma vida digna e sustentável, dado que trabalhar e obter uma remuneração justa não é apenas uma questão de sobrevivência econômica, mas está intrínsecamente ligada ao acesso a uma série de outros direitos, como a alimentação adequada, o acesso à educação, à saúde, ao lazer (ILO, 2019). Nesse sentido, a discussão sobre o futuro do trabalho pressupõe, cada vez mais, o fortalecimento de um "contrato social", baseado no direito ao trabalho como um direito humano fundamental e sob imperativo do trabalho decente. Um desafio para governos, lideranças políticas, sociais e empresariais e trabalhadores, em geral.