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Revista de Psicologia da UNESP
versão On-line ISSN 1984-9044
Rev. Psicol. UNESP vol.12 no.1 Assis jun. 2013
Artigo
Afeto e conhecimento: analisando algumas transformações no trabalho contemporâneo
Affection and knowledge: analyzing some transformation in contemporary work
Leandro Herkert FazzanoI; Sonia Regina Vargas MansanoII
I,IIUniversidade Estadual de Londrina
RESUMO
O trabalho imaterial destaca-se na contemporaneidade como uma atividade cujo produto final não se caracteriza necessariamente como um bem palpável, tal qual um objeto propriamente dito, mas sim como prestação de serviço, comunicação, entretenimento ou cultura. Para isso, são exigidas dimensões subjetivas que outrora eram praticamente disfuncionais no universo laboral, como a cognição, os afetos e as relações sociais. Todavia, ao valer-se de tais elementos, o trabalhador insere-se em um ciclo de afetação constante, pois a separação entre tempo de trabalho e vida privada encontra-se turva. Ao mesmo tempo, é exigido do trabalhador que não expresse parte de seus afetos durante a jornada de atividades, objetivando, com isso, manter o corpo em uma linearidade afetiva, sempre pronta a acolher os clientes. Os efeitos dessa exigência podem ser encontrados na proliferação de psicopatologias como transtorno do pânico e o estresse, demonstrando, assim, o padecimento do corpo do trabalhador na contemporaneidade.
Palavras-chave: afeto; trabalho imaterial; subjetividade.
ABSTRACT
The immaterial work stands out in the contemporary as an activity whose final product is not necessarily characterized as a very tangible one, but as a service, communication, entertainment or culture. For this purpose, subjective dimensions that were once dysfunctional to the universe labor are required, such as cognition, affect and social relations. However, to avail itself of such elements, the worker enters into a constant cycle of affectation, because the separation between work and private life becomes blurred. At the same time, is required to the worker to not express their emotions during their journey of activities, aiming thereby keeping the body in a affective linearity, always ready to accommodate the customers. The effects of this requirement can be found in the proliferation of psychopathology such as panic disorder and stress, thus demonstrating the plight of the worker's body in contemporary.
Keywords: affection; immaterial labor; subjectivity.
Na contemporaneidade, observam-se mudanças significativas na organização do trabalho. A comunicação, o entretenimento, o conhecimento e até os afetos, que tinham importância reduzida para o contexto laboral no início do capitalismo, ganharam destaque e são, agora, amplamente utilizados na consolidação das relações organizacionais. Nesse contexto, o trabalhador é chamado a participar da produção não somente com sua força física, mas também com criatividade, imaginação, capacidade de resolver problemas, cognição e com sua própria experiência de vida. Os investimentos neoliberais que permeiam este cenário objetivam realizar uma espécie de gestão da vida em sociedade que é bastante disseminada, explorando financeiramente essas dimensões subjetivas.
A presente pesquisa1 ocupou-se em investigar como o conhecimento e os afetos ganharam importância na economia capitalista contemporânea. Para isso, a investigação partiu de uma análise sobre as mudanças mais recentes vividas no âmbito laboral com a expansão do chamado “trabalho imaterial” (HARDT; NEGRI, 2000, p. 301). Em seguida, a noção de afeto foi abordada com vistas a compreender como o trabalhador responde às novas exigências subjetivas que lhe são colocadas nesse novo cenário.
É perceptível que essas mudanças vão além da esfera econômica, transformando também a sociedade e o próprio homem. Segundo Hardt, “os processos para tornar-se humano e a própria natureza do humano foram fundamentalmente transformados na mudança qualitativa trazida pela modernidade” (Hardt, 2003, p. 146). Questionamos, no decorrer deste estudo, como o trabalhador acolhe as novas exigências e quais as repercussões que elas trazem para sua vida pessoal.
Transformações em curso: a disseminação do trabalho imaterial
Historicamente, o sistema econômico capitalista focou-se na produção e acúmulo de bens materiais. Desde o século XVIII, o trabalho braçal realizado no interior das fábricas era, tal qual caracterizado por Marx, marcado pela alienação. Naquele contexto, o trabalhador era visto como alguém que possuía apenas o conhecimento básico necessário para realizar uma parte da produção, geralmente repetitiva, desconhecendo o processo geral e, por vezes, o resultado de sua atividade (Marx, 1983). Do trabalhador, era solicitado que vendesse aos proprietários das máquinas a sua habilidade física, sendo considerado apenas um possuidor de força motriz que se anexava a uma parte mínima da maquinaria fabril, exercendo um tipo de atividade altamente mecânica.
Essa organização social do trabalho, voltada quase exclusivamente para produção material e para exploração física do trabalhador estendeu-se, sem muitas alterações, até o século XX. Com o fim da Segunda Guerra Mundial e os eventos subsequentes (como a guerra fria e a crise do petróleo) emergiu a necessidade de atender às demandas crescentes e diversificadas dos novos mercados consumidores. Aos poucos, o capitalismo expandiu seus limites comerciais, tornou-se globalizado e as fábricas cederam lugar às grandes empresas e corporações multinacionais, extrapolando as fronteiras geográficas dos seus países sedes.
Assim, a organização do trabalho, até então majoritariamente voltada para produção material, com longas jornadas diárias de trabalho, também precisou mudar. Ao trabalhador, foi solicitado que oferecesse não somente sua força física, mas outros elementos da esfera subjetiva, como a criatividade, a simpatia, a comunicação e, não raro, os afetos. Com isso, a finalidade do exercício laborativo, que anteriormente encontrava-se estritamente centrada na produção serializada de bens, voltou-se também para a comunicação, o conhecimento e os contatos sociais.
A essa forma de produção, Negri e Hardt denominam “trabalho imaterial”. Este pode ser caracterizado como um tipo de atividade que “produz um bem imaterial, como serviço, produto cultural, conhecimento ou comunicação” (2000, p. 311). Amplamente disseminada e marcada pelo conhecimento e pelas relações humanas, essa transformação no sistema econômico distingue-se pela expansão de um capitalismo relacional e cognitivo, cujo trabalho intelectual passa a ser primordial para a produção. De acordo com Negri
nos encontramos em uma forma de existência e em um mundo produtivo que se caracterizam pela hegemonia do trabalho intelectual. Fala-se que entramos na idade do capitalismo cognitivo. (...) Fala-se propriamente de uma terceira transição capitalista, depois da saída da manufatura e do desenvolvimento da grande indústria. Nesta época cognitiva, a produção do valor depende sempre mais de uma atividade intelectual criadora que não só se situa além de qualquer valorização ligada à raridade (...). A originalidade do capitalismo cognitivo consiste em captar, em uma atividade social generalizada, os elementos inovadores que produzem valor (Negri, 2003, p. 94).
Vale ressaltar que embora essa transformação seja mais contemporânea, o trabalho imaterial é executado há longo tempo, pois, em maior ou menor grau, qualquer atividade laborativa se efetua mediante a cognição humana. Mesmo uma tarefa mais mecânica, como apertar parafusos em uma linha de montagem, exige certo grau de informação e atenção. O que ocorre é que, nas últimas décadas, o conhecimento e os afetos tornam-se mais disseminados, em larga medida devido a uma rede de contatos sociais que passou a ser fundamental para os processos de produção. Gorz (2005, p. 15) assinala a complexidade de nosso tempo histórico quando diz que “nós atravessamos um período em que coexistem muitos modos de produção. O capitalismo moderno, centrado sobre a valorização de grandes massas de capital fixo material, é cada vez mais rapidamente substituído por um capitalismo pós-moderno centrado na valorização do dito imaterial”. Assim, a organização econômica orientada para fabricação de bens divide espaço hoje com a produção imaterial. Esta última acontece nos meandros da interação e do contato entre pessoas e objetos, sem necessariamente possuir um lócus fixo para sua realização. Nesse sentido, o contato social não é apenas o substrato para sua existência, mas também, sua finalidade.
Voltando-se especificamente para a análise do trabalho imaterial, Negri e Hardt descrevem sua ocorrência em três formas distintas. A sua primeira manifestação se dá na atividade fabril, porém não como produtora de um bem, mas como a prestação de serviço. Trata-se de uma indústria que foi informatizada, cuja produção material encontra-se vinculada à produção imaterial, com a utilização de sistemas operacionais e máquinas computadorizadas, sendo o trabalho humano não mais focado no braçal, mas sim, no conhecimento para operar a maquinaria – por vezes à distância, por trás da tela de um computador. Um exemplo dessa configuração do trabalho imaterial encontra-se na operação de tecnologia de ponta. O trabalho imaterial acontece mediante o conhecimento utilizado para operar equipamentos altamente sofisticados. Ainda realizado nos limites da empresas, esse trabalho não necessita apenas da força bruta do operador, mas também de uma força cognitiva empregada para compreender, desenvolver, aprimorar e aplicar a tecnologia.
Do trabalhador, outrora conhecedor apenas de uma fração do processo de produção, é solicitado agora que ingresse na produção como um todo, ou seja, que conheça cada parte da fabricação do produto, tal como o seu resultado final. Assim, torna-se fundamental que ele expresse suas opiniões e ideias sobre o processo produtivo a fim de que colabore para a melhoria do produto. Isso pode ser claramente percebido no fato de muitas empresas substituírem os termos “empregados” ou “funcionários” por “colaboradores”, uma vez que esses estão inseridos no trabalho como criadores de ideias e soluções.
Pode-se perceber que a primeira manifestação do trabalho imaterial diz respeito ao trabalhador e aos atributos subjetivos dele exigidos, enquanto que a segunda forma de trabalho imaterial, como colocada por Hardt e Negri (2000) se dá sobre o mercado consumidor, mediante as atividades analíticas e simbólicas. Ocorre aqui a separação entre uma manipulação inteligente e criativa de informações por um lado e os trabalhos simbólicos de rotina por outro.
Há um esforço, por parte das grandes corporações, pequenas e médias empresas ou mesmo por profissionais autônomos, para manter uma proximidade com o consumidor, permitindo que este expresse suas opiniões, ou mesmo reclamações, quanto aos produtos ou serviços oferecidos. Um exemplo dessa ocorrência pode ser encontrado nos Serviços de Atendimento ao Cliente, os SACs, que são setores das grandes empresas destinados a receber as reclamações, sugestões e dúvidas dos clientes sobre os produtos e os serviços. Assim, o trabalho realizado caracteriza-se como imaterial, pois acontece na presença de um fluxo de informações sobre o que é ofertado e pela comunicação que é realizada de maneira direta com o mercado consumidor.
São cada vez mais frequentes os estudos e pesquisas não apenas sobre as mercadorias, mas sobre as opiniões e sugestões advindas do mercado consumidor. Ao “ouvir o que o cliente tem a dizer”, as empresas podem não apenas melhorar seus produtos e serviços, mas também, avaliar as necessidades do mercado, criando novos produtos ou, então, novas estratégias para atingir o público consumidor. Situa-se, nessa esfera do trabalho imaterial, a indústria do marketing. Por meio de sua proximidade com os mercados e das constantes avaliações realizadas sobre os mesmo, o marketing encarrega-se de “criar mundos” subjetivos que serão associados às mercadorias ou aos serviços e que servirão para viabilizar uma adesão do usuário (Lazzarato, 2004). Tal atividade encarrega-se de suscitar a necessidade de consumo na população, valendo-se de propagandas e anúncios atrativos.
A última forma de trabalho imaterial analisada pelos autores caracteriza-se pela criação e a manipulação de afetos. Nela, o trabalho imaterial requer, em maior ou menor grau, a interação com outras pessoas. Um bom exemplo dessa atividade pode ser encontrado nos operadores de call center, pois esta função exige que eles apresentem uma disponibilidade afetiva para conversar com os clientes, tolerando, inclusive, atitudes mais agressivas. Assim, esses profissionais acabam tendo de contornar ou restringir o seu mal estar, frustrações e incômodos que podem ser provenientes do contato com a empresa. É dessa modalidade afetiva do trabalho imaterial que nos ocuparemos na segunda parte do presente estudo.
Diante dessa breve caracterização, percebe-se que o trabalho imaterial encontra-se disseminado na economia contemporânea, sendo realizado em diversos segmentos da sociedade. Desde a prestação de serviços à saúde, passando pelo entretenimento e a comunicação, o trabalho imaterial vem tornando-se preponderante entre os fluxos econômicos contemporâneos, conquistando maior representatividade no giro do capital.
Vale ressaltar que embora haja uma diminuição da incidência do trabalho mais mecânico, mais bruto, em função do avanço tecnológico, ele se faz bastante presente na realidade brasileira, porém configurando-se a partir de novos contornos. Seu diferencial localiza-se no fato de que mesmo nessas atividades são solicitadas as habilidades para resolver problemas e propor soluções. Isso acontece mediante interações sociais, simbólicas, dinâmicas e pluralizadas.
Conexões entre afeto, conhecimento e trabalho
Com essas transformações em curso, pode-se dizer que não há mais uma nítida separação entre vida pessoal e trabalho, posto que este último passou a incorporar elementos que eram considerados como próprios da esfera privada. Do trabalhador, que outrora era solicitado que comparecesse no exercício laboral apenas com a sua força física, agora é exigido que as demais áreas de sua existência sejam postas a serviço da produção em um trabalho que não é mais individual, mas sim, social e cooperativo. Nesta nova relação entre trabalho e vida, a separação entre a jornada de trabalho e a vida fora dele encontra-se cada vez mais turva. Embora no Brasil a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) preveja uma jornada semanal de atividade composta por no máximo oito horas diárias de trabalho, contabilizando-se quarenta e quatro horas semanais (BRASIL, 1943), o profissional do imaterial acaba por extrapolar tal jornada à medida que continua conectado aos problemas do trabalho mesmo quando fora dele.
Assim, os afetos vividos no trabalho invadem a privacidade da vida pessoal, não apenas pelo fato de muitos trabalhadores levarem parte do seu trabalho para suas casas, mas também, por uma dificuldade de “desligar-se” dos problemas ali enfrentados. Antes, ao retornar à sua casa ao término de um dia de trabalho, o corpo colocava-se em descanso físico, porém, agora, não apenas é o corpo que cansa. Toda uma dimensão afetiva continua ativada para a produção. Kurz (1999, p. 8) alerta que vem ocorrendo “uma aceleração ainda maior dentro do tempo-espaço capitalista”, uma vez que se pensa e trabalha-se em casa, nos momentos de lazer, durante o translado entre diferentes locais e em inúmeros outros momentos que antes eram desvinculados do universo laboral.
O que se percebe, então, é que o trabalhador tende a colocar sua existência à disposição da produção, sem saber ao certo, ou sequer se interrogar, sobre os efeitos que tal mistura pode acarretar-lhe. Uma vez que a divisão entre tempo de vida e tempo de trabalho não se encontra nítida como antes, tem-se que não apenas a vida foi tomada pelo trabalho, mas o trabalho passou a ser a própria vida. Cabe compreender, então, os efeitos subjetivos que essa apropriação do tempo de vida e da potência afetiva para os encontros pode trazer para o trabalhador na contemporaneidade, uma vez que as formas de controle sobre a existência se multiplicam e se intensificam aceleradamente na esfera organizacional.
Ao profissional do imaterial é solicitado que compareça com sua potência afetiva. Dessa forma, o trabalhador encontra-se em um ciclo de afetação constante, posto que o trabalho imaterial explora precisamente os contatos sociais e afetivos para produzir mais lucro. Assim, exige-se que o trabalhador esteja disponível para experienciar os afetos e as relações sociais com vistas a aumentar a produção.
Mas, o que vem a ser afeto? Recorrendo-se aos estudos de Gilles Deleuze, este conceito pode ser compreendido como o efeito que um corpo exerce sobre outro corpo, modificando-o. Diariamente, encontramo-nos em relação continuada com, por exemplo, os alimentos, outras pessoas, as máquinas, os sons, as imagens, etc. Em cada um desses contatos, o corpo é afetado e sofre variações.
Ao ser afetado tanto em seu contexto de trabalho quanto no tempo destinado ao descanso, pode-se perceber que o trabalhador tende a sofrer um esgotamento do corpo físico. Tal cansaço por vezes advém das composições e decomposições que o encontro com diferentes corpos pode vir a produzir. Nessa direção, Deleuze comenta:
Quando um corpo ‘encontra’ outro corpo, (...) tanto acontece que as duas relações se compõem para formar um todo mais potente, quanto que um decompõe o outro e destrói a coesão de suas partes. Eis o que é prodigioso tanto no corpo como no espírito: esse conjunto de partes vivas que se compõem e decompõem segundo leis complexas. A ordem das causas é então uma ordem de composição e decomposição que afeta infinitamente a natureza (Deleuze, 2002, p. 25).
O trabalho afetivo continuado produz efeitos que podem vir a decompor o corpo, que é sentido como cansaço e fadiga. Um outro aspecto a ser considerado é a exigência bastante recorrente de que o trabalhador aceite uma espécie de “imperativo da felicidade”, tendo de demonstrar-se “feliz”, “satisfeito” e “calmo”, ainda que essas possibilidades estejam distantes da sua realidade laborativa. Vejamos como isso acontece: No capitalismo contemporâneo, que se baseia majoritariamente no consumo, ser bem atendido torna-se quase uma premissa e, sob sua perspectiva, o trabalhador não “deve” demonstrar descontentamento para com público atendido. Isso acontece de maneira recorrente com os trabalhadores que atuam no setor de call center, cuja atividade consiste em auxiliar os usuários, buscando sanar suas dúvidas, resolver seus problemas e ouvir suas reclamações. Em tal trabalho, existe um script a ser seguido pelo atendente, composto por falas padrão que devem ser repetidas, independente do que é solicitado pelo consumidor, as quais são executadas preferencialmente de maneira cordial e educada, não podendo este expressar raiva, frustração ou qualquer outro afeto avaliado como negativo. Para garantir tal procedimento, as ligações são gravadas e existe a possibilidade de que o supervisor as escute, vigiando assim o desempenho do atendente. Ora, é comum que muitos clientes de tal serviço, diante da dificuldade enfrentada, se alterem e acabem por gritar, falar mal, ameaçar e inclusive brigar com os atendentes, os quais “devem”, sob a perspectiva do mercado, permanecer neutros, sem expressar nenhuma reação afetiva de raiva ou cansaço.
Deleuze considera que quando um corpo encontra algo cujo efeito é sentido como alegria, há uma composição; tal como o inverso: quando o efeito de um encontro é sentido como tristeza, pode-se dizer que houve uma decomposição. Em suma, o corpo percorre composições e decomposições a cada novo encontro. Diz Deleuze: “Mas nós, como seres conscientes, recolhemos apenas os efeitos dessas composições e decomposições: sentimos alegria quando um corpo se encontra com o nosso e com ele se compõe; (...) inversamente, sentimos tristeza quando um corpo ou uma idéia ameaçam nossa coerência” (Deleuze, 2002 p. 25).
No exemplo acima analisado, o trabalho imaterial permite, em maior amplitude, o encontro com outros corpos, num movimento de afetação mútua. Todavia, ao prestar um serviço, o trabalhador depara-se com as exigências do bom atendimento – que fomentam a expectativa por alguém sorridente e acolhedor, independentemente do que lhe aconteça na relação. Tomando essa exigência em análise, resta questionar se não estaríamos diante de uma nova tentativa de docilizar o corpo do trabalhador recorrendo, neste momento histórico, a uma via afetiva.
É nesse sentido que a padronização do “bom atendimento” coloca-nos diante de um paradoxo. Por um lado, o trabalho imaterial ganha contornos afetivos à medida que, por meio dele, busca-se a satisfação imediata do cliente consumidor. Entretanto, por outro lado, o corpo do trabalhador é praticamente “ignorado” e forçado a expressar algo que deveras não é sentido naquele momento. É aí que toda uma dimensão prescritiva recai sobre os afetos. O trabalhador inserido em tal contexto procura esforçar-se para permanecer em um continuum afetivo que demonstre satisfação e acolhimento, esboçando um sorriso treinado que nem sempre é sentido como tal. Assim, não se vende apenas o produto, mas um atendimento supostamente acolhedor e cordial que, por vezes, é ofertado de maneira contrariada.
No livro “Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley (1989), há algo similar. Esta obra descreve uma sociedade na qual a presença de sentimentos avaliados como “desagradáveis” eram evitados e, portanto, todos se encontravam supostamente satisfeitos, cada qual desempenhando um papel pré-determinado. Para tanto, existia uma droga, denominada de “soma”, a qual inebriava os sentidos e proporcionava uma sensação de bem estar no seu usuário. Se a contemporaneidade tem tangenciado a literatura, resta-nos perguntar quais “drogas inebriantes” estão sendo utilizadas no contexto do trabalho imaterial para sustentar uma sociabilidade nem sempre possível.
Sabe-se que o salário pago ao trabalhador é necessário para sua sobrevivência em uma sociedade capitalista cujo consumo difunde-se como valor arraigado. Todavia, seria apenas esta remuneração suficiente para manter o trabalhador veiculado a trabalhos afetivos tão desgastantes? Analisando as mudanças subjetivas engendradas pelo capitalismo avançado, Rolnik (1997) assinala a recorrência com que algumas drogas são consumidas em nossos dias com vistas a acalmar os medos gerados pelo contato com mudanças bruscas e inesperadas. Ela faz referência a algumas dessas drogas produzidas pela indústria farmacêutica, quando menciona os
produtos do narcotráfico, proporcionando miragens de onipotência ou de uma velocidade compatível com as exigências do mercado; fórmulas da psiquiatria biológica, nos fazendo crer que essa turbulência não passa de uma disfunção hormonal ou neurológica; e, para incrementar o coquetel, miraculosas vitaminas prometendo uma saúde ilimitada, vacinada contra o stress e a finitude (Rolnik, 1997, p. 21).
Além dessas descrições feitas por Rolnik, consideramos que existem outras duas drogas que são utilizadas especificamente na esfera do trabalho imaterial, a saber: o próprio trabalho e o consumo. O trabalho configura-se como uma “droga” à medida que o trabalhador torna-se “viciado” em seu exercício: são os chamados workaholic. Muito além da expectativa por um reconhecimento social, o trabalhador deseja alcançar posições profissionais melhores, uma vez que sua esfera social, bem como sua vida, encontram-se permeadas pela atividade profissional. Nessa busca por patamares cada vez maiores, ocorre o que Gorz (2005, p. 22) descreve como uma “mobilização total”, por meio da qual a vida passa a ser reduzida ao trabalho.
No outro extremo da relação capitalista contemporânea encontramos o consumo como outra “droga” inebriante. Pode-se observar que ter e consumir tornaram-se valores quase que morais na atualidade. O marketing, como uma das áreas do trabalho imaterial, perpetua e difunde sistematicamente essa ideia. Com as propagandas, anúncios e tantas outras estratégias utilizadas por essa nova indústria, a ideia de possuir um bem, consumindo junto com ele formas de vida, encontra-se disseminada na sociedade. Porém, para ser um consumidor, é necessário que um valor monetário significativo seja despendido para os gastos. Diante de tal cenário, busca-se desenfreadamente acumular mais dinheiro para consumir, ingressando-se, por exemplo, em duplas jornadas de trabalho. Dessa forma, o consumo também pode ser considerado como um “soma” da atualidade, difundindo a ideia de que trabalhando excessivamente, um ganho maior de capital poderá ser destinado a tal atividade, ainda que, dessa maneira, a vida como um todo seja dirigida para o universo laboral.
Se por um lado dimensões subjetivas como a criação, o pensamento e as ideias são explorados no trabalho contemporâneo, por outro não é permitido ao trabalhador experienciar de fato os efeitos dos encontros que envolvem sensações díspares que nem sempre permitem a acolhida esperada para manter um “bom atendimento”. Rolnik alerta:
A obstrução às sensações, como é o caso em nossa atualidade, (...) provoca um divórcio entre as potencias de criação e de resistência, e as separa do objetivo para o qual elas são convocadas: a perseverança da vida. Surdas ao que pede a vida para continuar a se expandir, o exercício destas potências, quando mobilizado, trava seu fluxo, e no limite pode até colocá-la em risco (Rolnik, 2004, p. 4).
Pode-se, então, compreender que as exigências advindas da organização do trabalho contemporâneo, somadas a obrigatoriedade formatada e prescrita do bom atendimento, estariam levando o corpo do trabalhador ao limite de sua saúde. Talvez, a grande incidência de psicopatologias como o estresse, a depressão, a ansiedade e o pânico, sistematizados nos grandes manuais e compêndios da psiquiatria moderna, possam encontrar parte de sua emergência nessa simulação (bastante idealizada) de uma linearidade afetiva, bem como na confusão recorrente dos limites da vida privada e do trabalho, tão marcantes no contexto imaterial.
A síndrome do pânico, por exemplo, é sintomatologicamente caracterizada por ataques súbitos de ansiedade, que são sentidos pelo aumento da frequência cardiorrespiratória, sensação de sufocação, náusea e o medo eminente de perder o controle de si mesmo ou morrer. Para Rolnik,
o que desencadearia esta síndrome é o fato de que (...) o indivíduo vive a destruição recorrente de modos de existência como ameaça de destruição de si mesmo, a tal ponto que parece atingir o próprio organismo. O fulano em pânico imagina que seu coração está prestes a explodir, ou sua respiração prestes a parar, etc. – uma ameaça imaginária produzida pelo medo e desamparo, os quais neste caso atingem um tal grau de intensidade, que instalam a subjetividade num verdadeiro estado de pânico, ultrapassando o limite do tolerável e tornando-se traumáticos (Rolnik, 2004, p. 7).
Vale retomar, como visto acima, que os afetos são produzidos no corpo por ocasião dos encontros. Assim, pode-se entender o pânico como produto de uma série de encontros que desorganizaram o próprio funcionamento biológico, evidenciando a sensação da morte como algo inevitável.
Um ponto em comum que atravessa as psicopatologias geradas no contexto laboral é o fato de que o trabalhador “não poderia”, sob o ponto de vista do mercado, percorrer as variações entre afetos tristes e alegres, uma vez que o “imperativo da felicidade” lhe é praticamente prescrito. Todavia, o corpo não suporta, de maneira continuada, esse imperativo e acaba por se expressar de diferentes maneiras, demonstrando também a tristeza, a raiva, a aflição, a apatia, enfim, agindo como um corpo vivo, afetável e em variação. É nesse sentido que novos dilemas e dores passaram a compor o contexto do trabalho imaterial exigindo uma compreensão das novas forças que aí se manifestam, seja para a potencialização ou submissão do trabalhador.
Na perspectiva teórica adotada no decorrer deste estudo, o corpo do trabalhador implica em variação. Porém, dependendo de como ela ocorre, torna-se comum a utilização de rótulos e julgamentos morais que avaliam esses profissionais como temperamentais, emotivos, impulsivos ou mesmo descontrolados. O que esse discurso faz, de fato, é reiterar que não é permitido ao trabalhador demonstrar qualquer outra afetação que não aquela que garante o bom atendimento tão esperado pelo cliente. Percebe-se, assim, que há toda uma tentativa de manter os afetos em uma linearidade. Entretanto, conforme visto com Deleuze, a vida é variação, e qualquer tentativa de eximir-se disso põem em risco não o lucro do capitalismo, mas sim, o próprio corpo do trabalhador.
Considerações finais
No decorrer deste estudo, foi possível constatar que o trabalho imaterial prevalece na contemporaneidade, independentemente da área em que o profissional atua. Ele é operacionalizado em meio à trama das redes sociais. Assim, não é apenas o trabalhador que põe seu corpo e seus conhecimentos à disposição do mercado, mas o consumidor também se encontra inserido nesse paradigma e comparece de maneira distinta, explicitando suas expectativas.
O “imperativo da felicidade” que se faz presente na exigência do bom atendimento, objetiva fazer com que o trabalhador mantenha-se em uma linearidade afetiva que garanta a satisfação do cliente. Tanto que é comum encontrarmos slogans na publicidade de algumas empresas que dizem: “cliente feliz é cliente bem atendido”. Essa nova tentativa de docilizar o corpo do trabalhador coloca em curso os mais variados dispositivos de controle, os quais ainda precisam ser investigados.
De qualquer maneira, é possível considerar que a contínua vigilância sobre os afetos já interfere de maneira significativa nas relações entre o trabalhador e seus clientes. O que chama a atenção é que, ao menos em um primeiro momento, essa demanda sequer gera protestos. Assim, apesar da apatia silenciosa e por vezes camuflada, que se consolida como um terreno fértil para manifestação da depressão, pânico e estresse, os efeitos dessas exigências são notáveis com o passar do tempo, na produção de corpos desgastados e exauridos, zumbis com alta especialização técnica. Facilmente perceptível entre as relações profissionais, basta um olhar mais atento para detectar o quanto já está disseminado o “sorriso treinado” e supostamente pronto para “melhor atender” que, em situações mais limítrofes, se transmuda em raiva, agressividade e intolerância dirigidas ao público atendido.
Os autores que compareceram neste estudo em diversos momentos de suas obras afirmam as possibilidades de invenção de si no trabalho (Gorz, 2005), bem como o fortalecimento e expansão das relações sociais (Hardt; Negri, 2000) que se ensaiam no contexto do trabalho imaterial. Porém, quando essa produção se encontra capturada e sujeitada unicamente à produção de valores econômicos, quem perde são seus agentes, estando eles na condição de trabalhadores ou de consumidores.
Resta-nos, então, ao final deste estudo, lançar dois questionamentos que, em nosso entendimento, são respondidos a cada vez que o trabalhador resiste ao “imperativo da felicidade” e se posiciona de maneira ativa nos encontros profissionais, co-inventando maneiras de interagir e cooperar: Se as formas de vigilância e controle sobre o corpo do trabalhador foram deslocadas da força física e passaram a agregar também os afetos, por onde ele ensaia suas fugas? Como exercitar a potência de conexão dos encontros sem reduzi-la às prescrições de mercado?
Referências
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Recebido: 29 de juhno de 2010.
Aprovado: 12 de novembro de 2012.
Notas
1 Vinculada ao projeto “Quando o trabalhador recorre à clínica: uma análise sobre o trabalho imaterial afetivo”, foi realizada no Departamento de Psicologia Social e Institucional da Universidade Estadual de Londrina entre os anos de 2010 e 2011, com apoio da bolsa PIBIC/UEL.