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Revista de Psicologia da UNESP

versão On-line ISSN 1984-9044

Rev. Psicol. UNESP vol.14 no.2 Assis jul. 2015

 

Ensaio

 

Problematizando a noção de rede, suas origens e algumas de suas aplicações atuais

 

Inquiring the concept of network, its origins and some of its current uses

 

 

Silvio José BenelliI, Gustavo Guimarães FerriII, Nivaldo Ferreira JuniorIII

I,II,III Faculdade de Ciências e Letras de Assis - UNESP

 

 


RESUMO

O tema da rede social, do trabalho em rede, da rede socioassistencial, do funcionamento em rede é extremamente atual nos discursos oficiais das políticas públicas para a infância e a adolescência e também no âmbito da Assistência Social. De onde vem o termo rede? Qual sua história? Como o termo e a noção de rede estão sendo empregados no que diz respeito ao plano da construção da realidade social, permeando diversas questões: políticas, econômicas, culturais e psíquicas, no âmbito das políticas públicas sociais? Seria possível estabelecer um conceito de rede, para além do mero termo ou noção geral? A intenção desse artigo é discutir alguns pressupostos filosóficos da noção de rede e também problematizar criticamente seu emprego como termo e conceito, tomando-o como uma prática discursiva capaz de criar realidades sociais novas. Pensando nos pressupostos que poderiam lastrear a noção e o conceito de rede, realizamos uma pequena incursão pela área da filosofia.

Palavras-chave: psicologia social; rede social; rede socioassistencial; rizoma; políticas públicas.


ABSTRACT

Ideas such social networking, networking, social assistance network model, are extremely used in official speeches of public policies for children and adolescents and also in Social Work. Where does the term “network come from”? What is his story? How the word and concept of the network are being used and permeating several issues as politic, economics cultural and psychological, especially in the field of social policies? It would be possible to define a concept of “network”, beyond mere general term or concept? The intention of this paper is to discuss some philosophical assumptions of the network idea and also critically discuss his function as a term and concept, taking it as a discursive practice capable of creating new social realities. In order to do it, we conducted a small incursion into the area of philosophy exploring the assumptions that could explain the notion and concept of network.

Keywords: social psychology, social network, social assistance network, rhizome, public policies.


 

 

O uso do termo “rede” na atualidade

Existem inúmeros sistemas de rede na sociedade: rede escolar, rede ferroviária, rodoviária, de água, de esgoto, elétrica, de comunicação radiofônica, televisiva, jornalística, Internet, rede de empresas comerciais, redes políticas, econômicas, biológicas e redes sociais. Todos eles se caracterizam por levar um produto até as pessoas, transportar determinados objetos, comunicar, distribuir, ligar, transmitir, interligar, enfim, promover o contato e a relação. Tais sistemas em rede revelam a fundamental interdependência e a codependência de tudo para com tudo, contrariando a perspectiva imaginária de que somos independentes, autossuficientes e solitários, despregados do mundo, descontextualizados, soltos no espaço. Tudo o que acontece nos afeta, inclusive nos constitui: tudo se relaciona com tudo, tudo afeta tudo, numa radical sofisticação dialética que alguns chamam de rizoma (Deleuze & Guattari, 2009). Exemplo disso é o caos ambiental e social que estamos produzindo com relação ao ecossistema do planeta e da vida social em geral. A rede então constitui uma forma contemporânea de pensar que está se tornando cada vez mais abrangente em diversos discursos. De tal modo,

A compreensão da época em que vivemos apoia-se, cada dia mais, sobre o conceito de rede. A rede atravessa hoje todos os campos do saber – da biologia às ciências sociais, passando pelas ciências exatas – seja como conceito específico, em cada um destes campos, seja como paradigma e imagem do mundo, ou ainda como redes sociotécnicas necessárias à produção do conhecimento (Parente, 2000, p.171).

As redes também encontram seu apoio na observação das estruturas da natureza, que, em geral, se apresentam no formato horizontal. Na biologia se constata, por exemplo, que as bactérias se multiplicam em rede e podem ter um poder destruidor fatal. A teoria organicista não é nova no campo da política, pois a vida social já foi pensada a partir desse modelo por Platão, Aristóteles e também por Tomás de Aquino, dentre outros (Abbagnano, 1994). No texto da bíblia, na primeira carta de São Paulo aos Coríntios, capítulo 12, versículos de 1 a 31 (Bíblia de Jerusalém, 2012), também aparece o exemplo da interdependência dos órgãos do corpo humano para demonstrar a realidade necessária da vida comunitária e social. Desse modo, uma das justificativas teóricas (Capra, 1996, 2002) utilizadas para fundamentar e divulgar a temática da rede tem sido apresentada a partir de exemplos biológicos:

[...] todas as formas de vida – das células mais primitivas às sociedades humanas, suas empresas, Estados Nacionais e a economia global – organizam-se segundo os mesmos padrões e os mesmos princípios básicos: as redes, com unidades e sistemas interconectados. (Capra, 2002, p.12).

Diante da frequência com que o termo rede aparece e é utilizado nos mais diversos campos na atualidade, formulamos algumas questões que tentaremos discutir, embora de modo não exaustivo, nesse artigo. O tema da rede social, do trabalho em rede, da rede socioassistencial, do funcionamento em rede é extremamente atual nos discursos oficiais das políticas públicas para a infância e a adolescência e também no âmbito da Assistência Social. De onde vem o termo rede? Qual sua história? Como o termo e a noção de rede estão sendo empregados no que diz respeito ao plano da construção da realidade social, permeando diversas questões: políticas, econômicas, culturais e psíquicas1, no âmbito das políticas públicas sociais? Seria possível estabelecer um conceito de “rede”, para além do mero termo ou noção geral? A intenção desse artigo é discutir alguns pressupostos filosóficos da noção de rede e também problematizar criticamente seu emprego como termo e conceito, tomando-o como uma prática discursiva capaz de criar realidades sociais novas. Pensando nos pressupostos que poderiam lastrear a noção e o conceito de rede, vamos fazer uma pequena incursão pela área da filosofia.

Rastreamento das origens da noção de rede no campo da filosofia

a) Uma pequena história da noção de rede

Realizando uma análise histórica e filosófica, Pierre Musso (2004) explora a evolução do conceito de rede, discutindo as mudanças que ocorreram desde a gênese da palavra rede até as suas definições mais complexas e metafóricas, que constituem as noções principais veiculadas hoje em dia. Inicialmente, as noções sobre o que seriam as redes eram simples; contudo, tornam-se complexas devido à sua apropriação e usos os mais diversos pelos indivíduos ao longo do tempo, passando a designar um termo que pode caracterizar a dinâmica de relações e de inter-relações. Esta última concepção torna-se útil para mapear as instituições, entidades, atores sociais, além de remeter a um conceito que pretenderia estabelecer mudanças no modo de funcionar da realidade. “Assim, a rede tornou-se o fim e o meio para pensar e realizar a transformação social, ou até mesmo as revoluções de nosso tempo. O imaginário da rede é uma simples ideologia, ou seja, uma maneira de fazer a economia das utopias da transformação social” (Musso, 2004, p.37).

Para um melhor entendimento dessa filosofia da rede em seu sentido histórico, vale a pena nos aprofundarmos na discussão realizada por Musso (2004). A ideia de rede se faz presente na mitologia – pelo imaginário da tecelagem e do labirinto – e na Antiguidade – pela medicina de Hipócrates, que considerava todas as veias do corpo humano ligadas entre si, formando uma rede. Contudo, a palavra rede aparece no século XII, na língua francesa, com o seguinte significado: “a rede designa [...] redes de caça ou pesca e tecidos, uma malhagem têxtil que envolve o corpo” (Musso, 2004, p.18). Até este momento, a noção de rede era relacionada como algo exterior ao corpo; mas aos poucos foi sendo adotada, durante o século XVII, pela medicina, para designar a composição do corpo humano pelos seus vasos sanguíneos e fibras. De tal modo, a interioridade e exterioridade da rede em relação ao corpo vão se confundindo e, somente na passagem do século XVIII ao século XIX, a rede “sai” do corpo, advindo assim como conceito:

A rede não é mais apenas observada sobre ou dentro do corpo humano, ela pode ser construída. [...] De natural, a rede vira artificial. De dada, ela se torna construída. [...] A rede pode ser construída, porque ela se torna objeto pensado em sua relação com o espaço. Ela se exterioriza como artefato técnico sobre o território para encerrar o grande corpo do Estado-Nação ou do planeta. (Musso, 2004, p.18, p.20)

Com essa demanda, é Claude-Henri Saint-Simon (1760-1825, citado por Musso, 2004) que funda o conceito moderno de rede como concessão e realização de uma estrutura artificial de gestão do espaço e do tempo. “A rede sai do corpo e torna-se um artefato superposto a um território e anamorfoseando-o” (Musso, 2004, p.22). Saint-Simon trabalha esse pensamento como uma metaligação social, sendo a rede o seu pivô. Tal plano se dá no organismo que manifesta a unidade da contradição dos “sólidos” e “fluidos” e a superioridade deste último no corpo organizado: “ele toma por objeto o organismo como totalidade concreta” (Musso, 2004, p.23), ou seja, a forma máxima de organização complexa e racional, como uma rede que garante a circulação dos fluidos. Esse corpo (ou rede) organizado tem como oposto outra categoria: o corpo bruto, que deixa os fluidos escorrerem para reter os sólidos. Porém, eles não se contradizem; pelo contrário, são muito próximos na estrutura de rede que compõem.

A rede pode, assim, assumir formas variadas: ao mesmo tempo, sólido-cristal, sistema de circulação dos fluidos e estado intermediário entre sólidos e fluidos. A rede pode ser alternativamente cristal, organismo e ser híbrido. Surpreendente plasticidade dessa figura da rede que pode revestir formas diversas: um estado, seu inverso e a passagem de um ao outro. (Musso, 2004, p.25).

O autor continua com sua explanação, tomando agora este legado deixado por Saint-Simon aos seus seguidores, no caso, Michel Chevalier (1806-1879). Este transforma a rede em objeto-símbolo, capaz de produzir também a mudança social. De acordo com Musso, Chevalier concebe a rede “[...] como uma técnica que faz vínculo e como um operador político-moral que faz sentido” (Musso, 2004, p. 28), e acrescenta:

A rede técnica permite a comunicação, a comunhão e a democratização pela circulação igualitária dos homens. A redução geográfica das distâncias físicas, ou mesmo a intercambialidade dos lugares, graças às vias de comunicação, significa redução das distâncias sociais, isto é, democracia. (Musso, 2004, p. 29).

A rede é mutável, assim como são as relações humanas. E é nesse fluxo que uma rede se constrói como um corpo ou organismo organizado, e quanto mais isso ocorre mais ela se situa sobre o território, tornando-se, além de um conceito, um meio para a ação que se dá na relação dos homens entre si, entre a natureza, entre as instituições, entre o Estado, podendo adquirir duas facetas: a do poder para controlar ou a da luta para emancipar.

b) A concepção dialética

Vamos apresentar uma síntese sobre a concepção dialética com base em Konder (1981) e também a partir do texto “Elementos da Metodologia Dialética” de Pedro Demo (1995, p.85-100). Etimologicamente, a palavra dialética vem do grego dialektiké, tendo o significado de arte do diálogo, do debate, da discussão. Servia para designar, na Antiguidade Clássica, o método de argumentação utilizado por filósofos como Sócrates (469-399 a. C.) e Platão (427-347 a. C.). A característica principal desse método era a demonstração de uma tese a partir da análise crítica das contradições contidas no raciocínio do interlocutor. Para esses filósofos, o choque de idéias, o desvendamento das contradições de um raciocínio, representava um meio mais eficiente na busca incessante da verdade.

Na época moderna, a dialética foi retomada pelo filósofo idealista George Hegel (1770-1831), que a concebia como um processo dinâmico, que se manifestava em todo o universo. A essência da dialética reside na contradição, que produz o movimento do mundo pelo choque das coisas contrárias. O grande problema da dialética de Hegel, segundo Karl Marx (1818-1883), é encarar a contradição, geradora do movimento, como um problema apenas do espírito, da consciência, da “Ideia”. Assim, atribuía-se a uma entidade mística, o espírito, a responsabilidade última pelo desenvolvimento da história humana. Esse “espírito” seria o criador do pensamento, da ideia, que era o principal fator determinante da realidade do mundo. Ao contrário de Hegel, Marx e Engels propuseram o materialismo dialético, afirmando que o pensamento, a consciência, a ideia, nada mais são do que reflexo da realidade material. Não, porém, reflexos passivos, mas reflexos dialéticos, ativos, em que a realidade exterior influencia a consciência e esta, por sua vez, influencia a realidade.

O trabalho é a mola que impulsiona o desenvolvimento humano, visto ser no trabalho que o homem produz a si mesmo. O trabalho é o núcleo, a partir do qual podem ser compreendidas as formas complexas da atividade criadora do ser humano. A alienação do homem no trabalho se origina na divisão social do trabalho, na apropriação privada das fontes de produção e no aparecimento das classes sociais. A contradição é reconhecida pela dialética como princípio básico do movimento pelo qual os seres existem. No contexto do Capitalismo Mundial Integrado (Guattari, 1981), todas as contradições secundárias podem ser vistas como semblantes da contradição primária instaurada na relação Capital-Trabalho.

É possível definir, a partir de Konder (1981, p.8), o conceito de dialética como o “modo de pensarmos as contradições da realidade, o modo de compreendermos a realidade como essencialmente contraditória e em permanente transformação”. A essa definição podemos acrescentar as palavras de Engels: “A dialética considera as coisas e os conceitos no seu encadeamento, nas suas relações recíprocas, no seu movimento, no seu aparecimento, desenvolvimento e decadência”. O que parece interessante é que a segunda lei da dialética, denominada de Lei da interpenetração dos contrários (Demo, 1995), permite concebe a realidade como uma totalidade, como um conjunto de fenômenos complexos e absolutamente ligados, interligados, relacionados, conectados por justaposição e por contiguidade, longe de qualquer perspectiva que tende a dividir a realidade em partes estanques e independentes, fracionando-a e segmentando-a. Trata-se de uma realidade complexa, mutante, interligada e em constante processo de transformação. Essa perspectiva poderia fundamentar o conceito de rede.

c) A microfísica do poder

Silveira (2004, p.2) discute os postulados de Michel Foucault, ao discorrer sobre a ideia de rede. Salienta que “a noção de ‘rede’ como imagem ou paradigma aplicado na produção do conhecimento, na apreensão do mundo e na construção do pensamento e da realidade emerge enquanto fenômeno histórico-cultural recente”. Assim, buscando no pensamento de Foucault a noção de rede, Silveira (2004, p.2) o faz “[...] na medida em que a análise deste conceito, atravessado por uma série de interesses históricos e políticos, pode contribuir para uma melhor compreensão da constituição das subjetividades e das identidades sócio-históricas dos indivíduos”. Para tanto, é necessário explicitar certos conceitos forjados por Foucault.

Foucault distinguiu em suas pesquisas um nível arqueológico e outro nível genealógico (Deleuze, 1988). A arqueologia – análise das formas de problematização –, ocupada com o tema do saber, rejeita a dicotomia ciência/ideologia e recusa-se a classificar os discursos como pertencendo a uma ou outra dessas duas categorias, mas procura analisá-los a partir de sua totalidade sincrônica e de suas transformações diacrônicas, buscando encontrar o solo epistêmico profundo do qual emergem. A genealogia – análise das práticas de objetivação – focaliza o poder sob uma ótica particular, na qual rejeita a noção comum de um poder que se caracterizaria como um exercício sempre e rotineiramente repressivo, sempre subordinado ao Estado. O poder, contrariando essa noção repressiva e estatal, manifesta-se como uma teia ou rede de microrrelações de força com efeitos simultaneamente locais e globais. Trata-se de uma microfísica do poder.

Para o genealogista, a objetividade científica (o saber) e a subjetividade emergem juntas do seio de práticas sociais. São estratégias de dominação, relações de forças que funcionam em acontecimentos particulares e em movimentos históricos. Saber e poder são concebidos por Foucault (1999) como uma estratégia geradora de disposições, manobras, táticas, técnicas, funcionamentos. O poder não é um privilégio que se pode deter, mas uma rede de relações sempre tensas e ativas, particularmente produtivas. Além do mais, “o poder não é um objeto natural, uma coisa; é uma prática social e, como tal, constituída historicamente”. (Foucault, 2010, p. X).

O jogo de forças em uma dada situação histórica particular torna-se possível pelo espaço que as define. Esse espaço é compreendido como o resultado de práticas de longa data e como o campo onde elas se exercem, de onde emergem os sujeitos que apenas aí operam. Assim, o mundo não é um jogo que apenas mascara uma realidade oculta, profunda e mais verdadeira, existente por trás das cenas. A sua profundidade é sua superfície, tal como aparece. Nesse campo, a luta pela dominação não é apenas uma relação dramática entre opressores e oprimidos, dominantes e dominados, mas representa a emergência de um campo estrutural de conflitos. O poder não se localiza em lugares específicos, nem em sujeitos ou instituições. Antes, ele os constitui, atravessa, modela, produz. O poder, em cada momento histórico, se fixa num ritual, impõe obrigações e direitos, elabora procedimentos cuidadosos. A dominação avança por meio dos códigos morais, na lei civil, nos quais se plasmam as regras e as obrigações que surgem desses rituais de poder. Nesse sentido, para o genealogista, a história é constituída pelo jogo dos rituais de poder: não há constantes.

O poder deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, como algo que só funciona em cadeia. Nunca está localizado aqui ou ali, nunca está nas mãos de alguns, nunca é apropriado como uma riqueza ou um bem. O poder funciona e se exerce em rede. Nas suas malhas os indivíduos não só circulam, mas estão sempre em posição de exercer este poder e de sofrer sua ação; nunca são o alvo inerte ou consentido do poder, são sempre centros de transmissão. (Foucault, 2010, p.183)

Partindo dessa articulação da arqueologia do saber com a genealogia do poder por Foucault, podemos pensar em mais uma matriz filosófica para o conceito de rede, tendo em mente que em uma rede os poderes não estão localizados em nenhum ponto específico de sua estrutura; espalha-se entre todos seus atores, e não há um agente que detenha o “comando” das situações ou decisões, mas todos são seus artífices e articuladores. Embora isso seja assim, no campo social costuma predominar a perspectiva imaginária de que o poder está concentrado nas mãos de uns poucos e que os demais não dispõem dele. Na prática, também se pode observar, sem ingenuidade, que há os que se apropriam do poder e o utilizam de modo despótico, a partir de um consentimento tácito dos demais. Na análise feita por Silveira (2004), é possível distinguir três tipos de “redes”, ao longo da obra de Foucault, que promoveriam a constituição do sujeito moderno ocidental e que também podem ser atreladas à constituição das redes socioassistenciais. São redes que não se excluem, mas se complementam, se inter-relacionam (apesar de divergirem em muitos pontos):

Trata-se de três “redes” de investigação da constituição do sujeito moderno ocidental, através das quais Foucault buscou mapear a construção de “verdades” na nossa sociedade (em especial, as “verdades” cientificamente reconhecidas) e o enredamento dos indivíduos submetidos a seus efeitos e embates, seja no que se refere a uma rede composta pela articulação de meios discursivos e não discursivos, produtora de discursos científicos: a ‘rede’ arqueológica; seja no âmbito no qual o sujeito se insere em uma rede de saberes e poderes, tendo seu corpo como foco de seu exercício: a ‘rede’ genealógica; seja no contexto em que a relação do indivíduo perante a rede de valorações histórico-culturais, que provém do seu ambiente exterior, é problematizada no processo de constituição de uma vida bela e justa: a ‘rede’ da estética da existência do indivíduo (Silveira, 2004, p.3, grifos nossos).

É importante esclarecer a peculiaridade de cada um desses tipos. A rede arqueológica consiste na “rede de objetivação do sujeito do discurso” (Silveira, 2004, p.7). O sujeito se subjetiva por meio de múltiplos enunciados ou discursos científicos que, presentes na rede, são os que permitem sua materialização perante a sociedade e que consolidam suas práticas discursivas e não-discursivas. A rede genealógica, por sua vez, já traz a “rede de objetivação do sujeito da microfísica do poder”, na medida em que seriam os confrontos dos saberes/poderes que constituem redes de subjetivação do sujeito moderno” (Silveira, 2004, p.11). Isto significa que cada ator da rede constitui para si uma determinada microfísica do poder – em suas relações, hábitos, sentimentos etc. – que recai sobre seu corpo, influenciado por diversos “[...] investimentos políticos de poder, os quais permitiram a constituição de uma rede dessas forças históricas em constante embate sobre o corpo, enquanto seu foco de acesso e de exercício, no processo de edificação da subjetividade do indivíduo moderno” (Silveira, 2004, p.09) e, logicamente, das diversas redes existentes na atualidade, inclusive as redes de atenção socioassistencial. Por fim, a rede da estética da existência é colocada por Silveira (2004, p.18) como uma “rede de interioridade refletida”, ou seja, como nos situamos diante de nós mesmos perante as redes do mundo exterior – carregada de valores histórico-culturais constituídos pelos seus saberes/poderes que produzem subjetividade – na construção de uma vida ética e justa, constituindo-nos como agentes morais, em relação constante com outros sujeitos. Silveira (2004, p.17-18) ainda explica que:

O vocábulo “rede” emerge como sinalizador de uma complexidade limítrofe, na qual a multiplicidade e o entrelaçamento das forças atuantes passam a ser cada vez mais intensamente consideradas pelo pesquisador, o que gera dois sentidos básicos: primeiramente, reconhecer a complexa relação de forças presentes nas relações sociais da sociedade moderna. E, noutro sentido, sensibilizar o pesquisador sobre o fato de que é necessário ‘se munir de uma rede de análise que torne possível uma analítica das relações de poder’ (Dreyfus, 1995, p.202).

Podemos notar, então, que essas três dimensões analisadas por Foucault em suas obras poderiam também fornecer subsídios conceituais para fundamentar as redes socioassistenciais e os outros tipos de redes, indicando que haveria uma estrutura mais geral para o funcionamento de uma dada rede.

d) A concepção esquizoanalítica: o rizoma

A filosofia de Gilles Deleuze e Félix Guattari, chamada por eles de Esquizoanálise, carrega consigo as marcas de diversas ciências, filosofias e artes, que constituem o seu plano de imanência, povoado por diversos conceitos, multiplicidades, intensidades, vidas, mundos possíveis. E podemos chamar a Esquizoanálise de filosofia, pois Deleuze e Guattari produziram juntos, sozinhos, separados e com outros (pessoas, animais, plantas, cosmos etc.) diversos conceitos que deram certa ordem ao caos, bem como consistência a tal plano de imanência. Trata-se de conceitos revolucionários que trazem à filosofia e à vida os seus agenciamentos coletivos de enunciação, possibilitando o surgimento de outro mundo possível, com os seus devires. Vamos comentar o conceito de rizoma como estando relacionado – ou como um devir, assim diriam os dois autores – com o conceito de rede.

Tomado da botânica e transformado por Deleuze e Guattari (2009), o conceito de “rizoma” também pode ser elencado aos sentidos de rede. O rizoma se contrapõe ao sistema arbóreo, enraizado. Isso significa que o rizoma possui diversas linhas, diversos caminhos, sem um centro. Cada ponto que o compõe é um ponto singular e múltiplo, sem fim e sem começo, somente meio. “Um rizoma não começa e nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-ser, intermezzo. A árvore é filiação, mas o rizoma é aliança, unicamente aliança” (Deleuze & Guattari, 2009, p.37). Mas por que o rizoma está sempre no meio, inter-ser, intermezzo?

É que o meio não é uma média; ao contrário, é o lugar onde as coisas adquirem velocidade. Entre as coisas não designa uma correlação localizável que vai de uma para outra e reciprocamente, mas uma direção perpendicular, um movimento transversal que as carrega uma e outra, riacho sem início nem fim, que rói suas duas margens e adquire velocidade no meio. (Deleuze & Guattari, 2009, p.37).

A relação do rizoma com os sentidos de rede se aproxima ainda mais, à medida que se vai pensando a rede como um grande emaranhado entre os sujeitos, que os liga por linhas invisíveis, mas carregadas de intensidades, de desejos, de devires. Para esses autores,

[...] qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve sê-lo. [...] Cadeias semióticas de toda natureza são aí conectadas a modos de codificação muito diversos, cadeias biológicas, políticas, econômicas, etc., colocando em jogo não somente regimes de signos diferentes, mas também estatutos de estados de coisas. (Deleuze & Guattari, 2009, p.15).

E ainda: “um rizoma não cessaria de conectar cadeias semióticas, organizações de poder, ocorrências que remetem às artes, às ciências, às lutas sociais”. (Deleuze & Guattari, 2009, p.15-16). Este é um princípio fundamental na estruturação de uma rede: há que se ter uma conectividade com todas as instâncias da vida do sujeito, conhecer a sua história e a do coletivo, toda a multiplicidade envolvendo os modos de produção maquínicos. De certa maneira, um modo de fazer funcionar uma rede rizomática “[...] seria expor toda a coisa sobre um tal plano de exterioridade, sobre uma única página, sobre uma mesma paragem: acontecimentos vividos, determinações históricas, conceitos pensados, indivíduos, grupos e formações sociais” (Deleuze & Guattari, 2009, p.17-18). Para que isso ocorra, a rede não pode ser tomada por um significante, por algo que instaure um poder entre os atores envolvidos. Se isso ocorrer, a rede, por sua vez, pode vir a ter uma estrutura arbórea, enraizada, com aspecto totalmente dicotômico, que paralisaria toda a produção que ocorre, toda a multiplicidade presente, indo de encontro a uma unidade que não é suficiente na construção do mundo. Ferreira (2008), pensando o conceito de rizoma como método para se construir redes, acentua justamente esta necessidade de a rede não ter um centro, um quartel-general que regula o fluxo aí presente:

A rede, tal como a pensamos, é a-centrada e sem forma pré-definida, já que ela se configura e se desconfigura a partir de movimentos, de fluxos, conexões e alianças entre os diversos atores. [...] a rede é irregular, mas é ela que trabalha na gênese da regularidade. A rede constitui um campo tensional de forças heterogêneas, conjugando assim a diferença em sua multiplicidade (Ferreira, 2008, p.33).

O rizoma é conexão de multiplicidades, constante fluxo de ligações a-significantes que criam linhas de fuga, movimentos de desterritorialização que quebram as estruturas vigentes, trazendo um outro modo de povoar, reterritorializar o território – físico, mental e relacional. Pensar o conceito de rizoma como método para se construir rede é levar a cabo uma cartografia dos desejos de cada sujeito-ator da rede, em consonância com diversas semióticas que agenciam esses desejos. Como bem mesmo recomenda Ferreira (2008),

A operacionalização da cartografia visa traçar um plano que, ao seguir a fala dos atores, tem como objetivo perceber os movimentos de territorialização e desterritorialização produzidos a partir da multiplicidade de agenciamentos e dispositivos que são ativados na produção de subjetividades. [...] deve-se levar em conta os afetos produzidos no plano de consistência estudado, sempre tendo em vista a regra de prudência com a vida. Ao utilizarmos o rizoma como método para apreender um mundo que se produz como rede, é preciso que estejamos sempre atentos para não cairmos no esquema transcendente da árvore; isto é, o pesquisador não pode ser capturado pelo esquema classificatório e reducionista de hierarquização, já que assim estaremos criando um decalque que será supervalorizado, criando uma estagnação nas formas de agenciamentos e produzindo pré-conceitos e discursos de autoridade. Para tanto, é importante ter sempre em mente os princípios do rizoma que irão sempre orientar a cartografia. Neste processo, não se deve privilegiar nenhuma entrada e nenhuma saída, pois todos os dispositivos são válidos e influem na composição dos territórios. A análise simétrica de todos os efeitos produzidos na rede é necessária para se compor um mapa da mesma. Além disso, devemos ter ciência que o decalque é apenas um momento do mapa que já nasce obsoleto, servindo, assim, não como modelo, mas como a referência que temos daquele momento estudado. A utilidade posterior do decalque é justamente o de ser colocado em cima do mapa, para que possamos avaliar que movimentos de expansão e de contenção foram criados, assim como as árvores e as linhas de fuga. Se não tivermos isto como parâmetro, ao invés de produzirmos rizomas, estaremos produzindo grades que aprisionam as multiplicidades e clausuras capazes de obstruir novos agenciamentos. (Ferreira, 2008, p.38-39, grifos nossos).

Cartografar a rede, e não mapear: o mapa, o decalque, leva à cristalização da rede, dos agenciamentos, erigindo o modelo arbóreo, hierarquizado de relações. A cartografia da rede acompanha os acontecimentos, traz uma multiplicidade, inventa e reinventa, traz uma mudança na economia de desejo que propicia a produção de encontros ativos e transformadores no campo social.

O uso do termo “rede” em algumas das políticas públicas sociais

a) O tema da rede na Política Nacional de Assistência Social (PNAS) e no Sistema Único de Assistência Social (SUAS)

Quando pessoas ou entidades se associam para realizar determinado objetivo, elas precisam se organizar. A estrutura de organização mais usualmente adotada é a piramidal. Outra estrutura de organização vem sendo cada vez mais experimentada e proposta: a estrutura horizontal em rede. Vamos expor brevemente a modalidade de rede como estratégia de implantação de políticas públicas na área da Assistência Social, que se orientariam na direção da construção da cidadania. Analisando os documentos que desenham as diretrizes da PNAS (Brasil, 2004) e da NOB/SUAS (Brasil, 2005, 2011), constata-se uma alta frequência do termo “rede”, com diversas adjetivações: “rede social”, “trabalho em rede”, “rede socioassistencial”, “rede de proteção social básica” etc.

A rede é utilizada como termo para indicar um novo processo de gestão dos programas, projetos e serviços no campo da Assistência Social. Vejamos o que diz o texto da NOB/SUAS:

A rede socioassistencial se organizará a partir dos seguintes parâmetros: a) oferta, de maneira integrada, de serviços, programas, projetos e benefícios de proteção social para cobertura de riscos, vulnerabilidades, danos, vitimizações, agressões ao ciclo de vida e à dignidade humana e à fragilidade das famílias; b) caráter público de co-responsabilidade e complementariedade entre as ações governamentais e não-governamentais de Assistência Social evitando paralelismo, fragmentação e dispersão de recursos; c) hierarquização da rede pela complexidade dos serviços e abrangência territorial de sua capacidade em face da demanda; d) porta de entrada unificada dos serviços para a rede de proteção social básica, por intermédio de unidades de referência e para a rede de proteção social especial por centrais de acolhimento e controle de vagas; e) territorialização da rede de Assistência Social sob os critérios de: oferta capilar de serviços, baseada na lógica da proximidade do cotidiano de vida do cidadão, localização dos serviços para desenvolver seu caráter educativo e preventivo nos territórios com maior incidência de população em vulnerabilidades e riscos sociais; f) caráter contínuo e sistemático, planejado com recursos garantidos em orçamento público, bem como com recursos próprios da rede não-governamental; g) referência unitária em todo o território nacional de nomenclatura, conteúdo, padrão de funcionamento, indicadores de resultados de rede de serviços, estratégias e medidas de prevenção quanto à presença ou ao agravamento e superação de vitimizações, riscos e vulnerabilidades sociais. (Brasil, 2005, p.94-95).

Em todo o corpo de texto da PNAS e da NOB/SUAS, contabiliza-se 114 vezes a ocorrência do termo “rede”. Contudo que se pretende com essa observação é desenvolver uma problematização crítica sobre o sentido conceitual atribuído a esta palavra, pois entendemos que ela estaria assepsiada de seu sentido político e crítico, ressignificada e inserida na semiótica do paradigma capitalístico-hegemônico, sendo destituída de toda a sua potência singular e transformadora tanto dos sujeitos quanto da sociedade.

Gestão e operacionalização da Política Nacional de Assistência Social (PNAS)

A PNAS (BRASIL, 2004) conceitua a “rede socioassistencial” como:

[...] um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade, que ofertam e operam benefícios, serviços, programas e projetos, o que supõe a articulação entre todas estas unidades de provisão de proteção social, sob a hierarquia de básica e especial e ainda por níveis de complexidade (Brasil, 2004, p.95).

Para legitimar a prática em rede, a PNAS traz uma série de conceitos que fundamentam essa forma de atuação: territorialização, descentralização político-administrativa, participação popular (cidadão usuário) no tocante à gestão, monitoramento e avaliação das políticas e financiamento partilhado entre os entes federados. A gestão descentralizada aparece como uma temática importante para o desenvolvimento da PNAS, como forma de resgatar o movimento de participação e mobilização social que predominou no período de elaboração da Constituição Federal de 1988 e também de formulação do Sistema Único de Saúde (SUS), que serviu como modelo para a criação do SUAS (Benelli & Costa-Rosa, 2012a). Pretende-se, com esse movimento, formar espaços democráticos e descentralizados de discussão e gestão das políticas públicas. Em outras palavras, o que se tenta é estimular a prática do controle social pela sociedade civil. Espaços deliberativos criados incluem as Conferências, os Conselhos paritários e as Comissões de Gestão Compartilhada (Comissões Intergestoras Tripartite e Bipartites – CIT e CIBs).

A alta capilaridade institucional descentralizada, alcançada com a implementação de secretarias próprias na grande maioria dos municípios do País (mais de 4.500), e em todos os Estados da Federação e no Distrito Federal, reflete uma expressiva capacidade de construção e assimilação progressiva de procedimentos técnicos e operacionais, homogêneos e simétricos para a prestação dos serviços socioassistenciais, para o financiamento e para a gestão da política de assistência social em seus diferentes níveis governamentais: União, Estados, Distrito Federal e Municípios (Brasil, 2004, p.14).

Como efeito dessa descentralização administrativa, procura-se promover e operacionalizar a organização do trabalho em rede. No momento em que a equipe de gestão pretende implementar a PNAS no território, depara-se com as desigualdades socioterritoriais e com a complexidade que envolve os problemas ali presentes. E assim se faz necessário criar e fortalecer os mecanismos locais, municipais e regionais de implementação e monitoramento da política de Assistência Social. A PNAS entende a constituição de ações como um processo feito em rede.

Faz-se relevante, nesse processo, a constituição da rede de serviços que cabe à Assistência Social prover, com vistas a conferir maior eficiência, eficácia e efetividade em sua atuação específica e na atuação intersetorial, uma vez que somente assim se torna possível estabelecer o que deve ser de iniciativa desta política pública e em que deve se colocar como parceira na execução. Para tanto, propõe-se a regulamentação dos artigos 2º e 3º, da LOAS, para que se identifiquem as ações de responsabilidade direta da assistência social e as em que atua em co-responsabilidade. (Brasil, 2004, p.15).

Como o documento dá muita ênfase na descentralização político-administrativa da Assistência Social, não poderia deixar de lado a importância da esfera municipal na articulação das políticas públicas:

É necessário relacionar as pessoas e seus territórios, no caso os municípios que, do ponto de vista federal, são a menor escala administrativa governamental. O município, por sua vez, poderá ter territorialização intra-urbanas, já na condição de outra totalidade que não é a nação. A unidade sociofamiliar, por sua vez, permite o exame da realidade a partir das necessidades, mas também dos recursos de cada núcleo/domicílio. (Brasil, 2004, p.15).

Essa ênfase nos municípios ajuda no rompimento da lógica piramidal, predominante na administração pública, que mantinha o centro decisório longe do território onde emergiam os problemas sociais. Podemos perceber que a PNAS tem a pretensão de que os profissionais da Assistência Social atuem de forma realmente capilar na realidade social dos sujeitos pobres que necessitam dos serviços da Assistência Social. Pretende estabelecer com eles formas de atuação políticas para melhorias de suas condições de vida.

Outro conceito trabalhado pela PNAS que legitima a atuação em rede é o de Território. O documento traz pouca teorização sobre esse conceito, mas justifica sua utilização por meio das ideias do geógrafo Milton Santos, que interpreta a cidade com significado vivo a partir dos “atores que dele se utilizam” (Santos, 2006, p.43). Essa é outra forma de dizer como a realidade social criada em cada município é complexa e particular, exigindo então ações igualmente complexas e com participação dos sujeitos que vivem em cada território.

Assim, a operacionalização da política de Assistência Social em rede, com base no território, constitui um dos caminhos para superar a fragmentação na prática dessa política. Trabalhar em rede, nessa concepção territorial, significa ir além da simples adesão, pois há necessidade de se romper com velhos paradigmas, em que as práticas se construíram historicamente pautadas na segmentação, na fragmentação e na focalização, e olhar para a realidade, considerando os novos desafios colocados pela dimensão do cotidiano, que se apresenta sob múltiplas formatações, exigindo enfrentamento de forma integrada e articulada. (Brasil, 2004, p.44).

Descentralizando administrativamente e concedendo mais poder decisório aos indivíduos habitantes de um dado “território”, a PNAS precisa ouvir os sujeitos que são alvos de suas ações. Por essa razão, tem como um de seus eixos de gestão a participação popular. É preciso destacar que a Constituição Federal de 1988 deixa clara, no art. 204, a possibilidade de participação da sociedade civil tanto na execução dos programas, por meio das entidades beneficentes e de assistência social, bem como na formulação e no controle das ações em todos os níveis. A complexidade dos problemas sociais brasileiros e a Constituição Federal exigem que o Estado assuma a primazia da responsabilidade em cada esfera de governo na condução das políticas públicas. Por outro lado, a sociedade civil é convidada a participar como parceira, de forma complementar, na oferta de serviços, programas, projetos e benefícios de Assistência Social. Possui ainda o papel de exercer o controle social sobre tais serviços, com espaços garantidos por lei de monitoramento e avaliação.

No caso da Assistência Social, a constituição de rede pressupõe a presença do Estado como referência global para sua consolidação como política pública. Isso supõe que o poder público seja capaz de fazer com que todos os agentes desta política, OGs e, ou, ONGs, transitem do campo da ajuda, filantropia, benemerência, para o da cidadania e dos direitos (Brasil, 2004, p.49).

Quanto ao tema dos conflitos sociais, a PNAS apresenta uma visão ética similar à da Constituição Federal de 1988 e à da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) de 1993, pautada na inclusão dos invisíveis. O texto do documento tem a preocupação de não transformar em casos individuais aqueles que de fato são parte de uma situação social coletiva. Essa concepção ética traz implicações engajadas que reconhecem a interligação entre sujeito, realidade social e processos de exclusão da sociedade capitalista, o que estaria bastante próximo das raízes filosóficas do conceito de rede. Mas, em todo o documento, não há nenhuma citação sobre os teóricos que sistematizaram o conceito de rede para as ciências humanas ou sequer para as arrojadas práticas socais propostas.

O documento chega a outro ponto fundamental quando sistematiza a relação entre a responsabilidade estatal e a seguridade social. A LOAS criou uma nova matriz para a política de Assistência Social, inserindo-a no sistema do bem-estar social brasileiro, concebido como campo da Seguridade Social, configurando o triângulo juntamente com a Saúde e a Previdência Social. Assim, visa garantir ao cidadão o acesso às políticas públicas dessas três áreas. E a PNAS é o documento prescritivo que representa o nível das práticas discursivas da LOAS. Segundo o documento, a Assistência Social agora tem formas institucionalizadas de exercer a Proteção Social de acordo com Di Giovanni (Brasil, 2004, p.10):

Proteção Social são as formas ‘institucionalizadas que as sociedades constituem para proteger parte ou o conjunto de seus membros. Tais sistemas decorrem de certas vicissitudes da vida natural ou social, tais como a velhice, a doença, o infortúnio, as privações. (...) Neste conceito, também, tanto as formas seletivas de distribuição e redistribuição de bens materiais (como a comida e o dinheiro), quanto os bens culturais (como os saberes), permitirão a sobrevivência e a integração, sob várias formas na vida social. Ainda, os princípios reguladores e as normas que, com intuito de proteção, fazem parte da vida das coletividades’. Desse modo, a assistência social configura-se como possibilidade de reconhecimento público da legitimidade das demandas de seus usuários e espaço de ampliação de seu protagonismo.

A proteção social deve garantir as seguintes seguranças: segurança de sobrevivência (de rendimento e de autonomia); de acolhida; de convívio ou vivência familiar. A primeira consiste em garantir que todos tenham uma forma monetária de garantir sua sobrevivência, independentemente de suas limitações para o trabalho ou de desemprego. A segunda opera com a provisão de necessidades humanas que começa com os direitos à alimentação, ao vestuário e ao abrigo, próprios à vida humana em sociedade. Já a segurança familiar supõe a não aceitação de situações de reclusão, de situações de perda das relações sociais primárias. A família aparece como foco para concepção e implementação dos benefícios, serviços, programas e projetos da Assistência Social.

Assim, a PNAS marca seu plano lógico de atuação e inaugura novas responsabilidades do Estado, que agora se vê com a missão de articular novas políticas com outras já existentes para a ampliação da Seguridade Social. Ela traz como avanço uma perspectiva ética de promoção de direitos que enxerga o sujeito como cidadão. Também entende a complexidade da realidade social em que este cidadão está imerso, percebendo que no território existem problemas históricos conjunturais, que exigem espaços de gestão descentralizados, com poder decisório para serem resolvidos. Para isso, traz o conceito de rede como prática inovadora e ética que vai orientar suas atividades. Mas não há um detalhamento de como esse conceito surgiu e de que forma ele pode ajudar a construir uma nova realidade social mais igualitária.

Não podemos afirmar que os programas, serviços e projetos existentes, bem como as organizações e entidades em funcionamento na sociedade, já compõem uma rede social; tampouco podemos responsabilizá-los pelo atendimento da demanda, geralmente sem fazer maiores alterações políticas concretas no paradigma piramidal, vertical, autoritário e burocrático que tende a predominar nas instituições públicas. Portanto, é preciso implementar as inovações discursivas e técnico-administrativas da PNAS e do SUAS na realidade social concreta.

b) A rede como estratégia na política pública para a criança e o adolescente

Quando se lida com alguma população, faz-se necessário levar em conta diversos fatores que estão presentes na vida dos sujeitos. Família, escola, economia, política, trabalho, modos de vida etc., dos âmbitos molares até aos mais moleculares. É de suma importância conhecê-los quando se pretende trabalhar em rede. E ao se aventurar no campo das políticas públicas para as crianças e adolescentes, mesclar a rede com todo o resto se torna uma tarefa importantíssima na garantia dos direitos.

Pensamos que o conceito e uso da rede nas políticas públicas para as crianças e adolescentes é uma estratégia transformadora. Para isso, de acordo com Benelli e Costa-Rosa (2010, p.32), “compor uma rede, portanto, implica compromisso de realização conjunta de ações concretas, transpondo fronteiras geográficas, hierárquicas, sociais e políticas”. Concomitantemente, quando lidamos com as políticas voltadas para crianças e adolescentes, temos que levar em conta o que o Estatuto da Criança e do Adolescente/ECA (Brasil, 1990) preconiza na garantia dos direitos dos sujeitos em questão, ao lidar com um trabalho em rede. É bom salientar que:

O processo de articulação da rede de atenção implica no fortalecimento das diferentes instâncias envolvidas com a área social. Além disso, deve estar norteada por uma avaliação constante da atuação de cada segmento, dando visibilidade às boas práticas e propondo um realinhamento das atuações equivocadas. Neste sentido, a rede pretende enunciar novos significados às práticas desenvolvidas. A rede pressupõe definição de prioridades e planejamento de ações coletivas. (Silva, 2008, p.84).

No texto do ECA, não se propõe especificamente o tema de rede como estamos trabalhando aqui. Contudo, podemos falar de “Políticas de Atendimento”, cuja definição, presente no Artigo 86 e aprofundada nos Artigos 87 e 88, assemelha-se muito com a ideia do trabalho em rede: “Art. 86. A política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente far-se-á através de um conjunto articulado de ações governamentais e não-governamentais, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios”. (Brasil, 1990, p. 27). Embora o ECA tenha sido formulado em 1990, e a temática da rede ainda não estivesse tão presente no sentido em que ela se encontra atualmente, há nessas definições uma proposta de articulação e comunicação entre a sociedade civil organizada, o Estado, o município, os serviços públicos, as famílias etc., na busca pela qualidade na saúde, educação, bem-estar e garantia dos direitos das crianças e adolescentes. As vantagens do trabalho em rede podem ser assim resumidas: favorece o estabelecimento de vínculos positivos pela interação entre indivíduos; oportuniza espaços para reflexão, troca de experiências e busca de soluções para problemas comuns; estimula o exercício da solidariedade e da cidadania; mobiliza pessoas, grupos e instituições para a utilização de recursos existentes na comunidade; estabelece parcerias entre setores governamentais e não-governamentais para a implementação de programas de orientação e prevenção, pertinentes a problemas específicos detectados pelo grupo etc.

Análises e discussão

Olhando para a entidade assistencial e para os conselhos municipais e demais órgãos de gestão pública, para a escola do bairro, para as associações, elas apresentam características piramidais ou de rede? Podemos nos situar em modelos diferentes, com relação ao plano do discurso e ao da prática concreta, criando situações contraditórias. O caminho para detectar essas contradições passa por uma reflexão sobre a prática que desempenhamos, a práxis, na condição de atividade teórico-prática material, transformadora dos seres humanos e do mundo.

A construção de rede como estratégia de implantação de políticas públicas na área da Assistência Social deve começar por essa análise diagnóstica. Construir redes sociais exige mudança de mentalidade, de comportamento e de ação. Há coisas que fazemos que não deverão mais ser feitas e há outras – que não fazemos – que teremos de começar a fazer. O sonho de fazer rede social mantendo tudo como está é impossível e só vai nos trazer frustração. É preciso uma mudança de mentalidade e vontade política de todos e de cada um para construir uma outra cultura institucional, mais democrática e participativa. Aguentar o peso do modelo piramidal é muito custoso do ponto de vista físico, emocional, social, psicológico, psicossocial. Mas nós queremos mudar? Será que não estamos muito acostumados à obediência e à servidão voluntária? Será que realmente queremos assumir a responsabilidade pessoal e coletiva pelo destino de nossa cidade, de nosso bairro, de nossa escola, entidade, das políticas públicas da Assistência Social no âmbito municipal? Se houver essa disposição, então teremos de nos organizar para começar a trabalhar de outra forma. Isso dá trabalho, é desafiador, mas também traz suas recompensas, visto que o prazer de ser, de construir, de fazer, de incidir sobre os rumos da vida, promove o empoderamento, a potência de ser um sujeito social atuante, um agente social capaz de produzir transformação. Na democracia participativa, procurando superar a hegemonia do modelo piramidal, além do direito de votar e ser votado, existem mecanismos que permitem aos cidadãos participar da formulação e controle das ações do poder público, podendo inclusive influenciar na elaboração dos orçamentos. Os conselhos municipais (Benelli & Costa-Rosa, 2012b) são exemplos desses mecanismos: CMDCA, CMAS, CM Idoso, CM Deficiente, CM Educação, CM da Juventude, CM Segurança Pública, CM Cultura, CM Segurança Alimentar etc.

A organização do trabalho e da produção da vida social em redes traz benefícios para os trabalhadores da Assistência Social, das redes sociais e também para seus usuários, mas isso não pode se reduzir a uma estratégia para aproveitar ao máximo a colaboração comunitária, visando, ao mesmo tempo, à redução do financiamento estatal na cobertura dos custos implicados na efetivação dos direitos sociais do cidadão. Trabalhamos com a hipótese de que o sistema social hegemônico parece promover um intenso movimento de recuperação e de assepsia da noção de rede, tal como ele emerge no contexto mais amplo da filosofia: os conceitos de dialética (tudo se relaciona), de poder como rede metafísica (Foucault, 2010) e de rixoma (Deleuze & Guattari, 2009). O que haveria de potencialmente mais arrojado no pensamento filosófico tenderia a ser permanentemente assepsiado da sua virulência política, crítica e das suas possibilidades de transformação da sociedade, para, finalmente, ser transmutado em meros e insípidos instrumentos técnicos de gestão e de administração, nos mais diversos campos da vida social: na produção industrial (toyotismo), na educação (gestão da qualidade), na Assistência Social (rede socioassistencial), no marketing e na publicidade (sinergia), na política pública para a criança e o adolescente (Sistema de Garantia de Direitos) etc.

O termo rede reúne vários significados, tais como interação, conexão, interconexão. Os termos “rede”, “net”, “réseau” já circulam há tempos nas disciplinas de Comunicação, Computação, Administração e da Biologia. Quando pensamos a organização, o estabelecimento como rede (na dimensão da horizontalidade), já estamos fazendo contraposição ao organograma (que é vertical e especializado). A palavra-chave na rede é cooperação, não dominação ou subordinação. A estrutura em rede pode tentar conviver com o sistema piramidal, mas esse modelo tende a inviabilizar a participação da sociedade na gestão política do Estado. Portanto, a rede também pode se apresentar como uma alternativa que aspira a conquistar uma nova hegemonia nos modos de organizar a vida social. A rede utiliza metodologias participativas por meio das quais busca envolver os mais diferentes atores na leitura dos problemas sociais e se contrapõe ao modelo burocrático de gestão adotado pelo Estado capitalista.

Conclusões

No campo da Assistência Social, é possível mapear dois paradigmas contraditórios: um pode ser denominado de modelo da incorporação modernizante e o outro de modelo de transformação social, de acordo com Tassara (2004, p.103). O primeiro busca promover uma inclusão excludente, visa a um processo de adaptação sociocultural, a partir de um parâmetro cristalizado de padrão social e civilizatório, isento de surpresas que não sejam consequência do próprio aperfeiçoamento científico e tecnológico; seus limites seriam os do modelo capitalista hegemônico. Nesse paradigma, de acordo com Benelli e Costa-Rosa (2010), a rede social se reduz a um instrumento de captura dos pobres e desviantes sociais, uma mera estratégia pragmática e operacional para intensificar de modo capilar o cerco aos indivíduos em situação pessoal e social de risco, fazendo-os circular pelas várias agências sociais de assistência, saúde e educação, Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), entidade socioeducativa, unidade básica de saúde, Conselho Tutelar (CT), escola etc).

O segundo modelo – o de transformação social – visa à abertura ao devir, a uma prática social e política que promove de forma crescente as diferenças e os diferentes, objetivando a emancipação popular. Nesse caso, a rede social supõe uma prática democrática radical, baseada na autogestão e na autoanálise, e não uma mera instrumentalização técnica e burocrática de instituições, entidades, programas e serviços, fechada num circuito local que seria “a comunidade local”, a “cidade” ou o “território municipal”. A lógica da rede não se limita a uma questão técnica, burocrática, pragmática e operacional, assepsiada de qualquer traço de força política transformadora. Ela se funda em uma concepção de cidadania integral e na defesa da implementação radical de direitos civis, políticos e sociais para todos (Benelli & Costa-Rosa, 2010). A lógica da rede se opõe à fragmentação e à focalização na administração do problema social, versão contemporânea do “campo das ilegalidades”, descrito por Foucault (1999, p.226-234), recortado atualmente nas figuras da criança e do adolescente delinquentes, da drogadicção, do risco pessoal e social e da criminalidade (França, Rocha, Cruz, Justo & Cardoso Jr., 2004; Pagni, 2010). O “campo das ilegalidades” pode ser administrado e gerenciado por meio da fragmentação e da focalização, recortando figuras sociais como objetos de saber e de intervenção técnica por meio da Assistência Social, da Psicologia e da Pedagogia. Inclusive esses atores sociais considerados problemáticos podem ser objeto de exploração de mais-valia pelo sistema econômico, pois o chamado terceiro setor movimenta volumosos recursos financeiros na atualidade (Benelli & Costa-Rosa, 2010).

A rede se conecta a tudo e a todos numa teia em permanente ampliação e extensão, em fluxos abertos e em vetores multidirecionais para todos os lados, em todos os sentidos, em múltiplos planos, em abertura incomensurável e imprevisível. Ela jamais se limita a qualquer plano intracomunitário, intramunicipal ou intraterritorial, mas interliga tudo a todos, num processo dialético elevado à máxima potência produtiva e disruptiva. A rede costura o impossível e o indizível, o improvável e o invisível, em sua abertura instituinte para o devir inovador e criador, tornando-se estrada para o imponderável do desejo (Benelli & Costa-Rosa, 2010).

A análise das contradições indica o estado dos conflitos que se atualizam e se metabolizam na Assistência Social, como instituição, em relação à Demanda Social de que ela é o efeito. Para analisar o estado do jogo de forças institucionais, é preciso especificar as principais contradições ativas no contexto, distinguir entre contradição principal e contradições secundárias, e compreender os antagonismos decorrentes das diferenças essenciais. Analisando a proporção de forças que possui cada um dos polos dos interesses presentes em determinada conjuntura particular, teremos o índice do estado das contradições. Podemos supor, a partir de nossas investigações, que nas entidades assistenciais que atendem a crianças e a adolescentes, situadas no contexto sócio-histórico capitalista e no campo da Assistência Social, predomina um paradigma que podemos denominar de Filantrópico, atraindo com sua força gravitacional os saberes, as práticas e os discursos nesse campo institucional. Seu oposto dialético seria um paradigma que chamamos de Socioassistencial, configurando-se mais como uma possibilidade lógica e estratégica no campo do que como efetivamente constituído.

 

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Recebido: 12 de novembro de 2012.
Aprovado: 11 de julho de 2013.

 

 

Notas

1 A realidade psíquica ou a subjetividade inclui a consideração dos processos de produção da subjetividade e seus atravessamentos na contemporaneidade, tal como propõe a Psicanálise de Freud e Lacan. Também não se pode deixar de considerar alguns outros importantes planos de compreensão dos processos de subjetivação, conforme propõem as análises de Foucault, Deleuze e Guattari.

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