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Revista do NUFEN
versão On-line ISSN 2175-2591
Rev. NUFEN vol.2 no.2 São Paulo 2010
ARTIGOS
Amazonas do sete mares: a imagem corporal de surfistas brasileiras
Amazon of the seven seas: the bodily image of some brazilian female sufers
Jorge Dorfman KnijnikI; Lívia Oliveira CruzII
I School of Education and Centre for Educational Research, University of Western Sydney
II Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo
RESUMO
O surfe é um esporte praticado em um meio no qual o corpo se revela, e onde existe a presença fortíssima do "mito do corpo perfeito". Surfistas, enquanto praticam o esporte, interagem com o ambiente, se tornando parte dele. O esporte já é considerado um dos mais praticados no país. O objetivo deste estudo foi pesquisar o corpo da mulher surfista no Brasil. Foram utilizados dois instrumentos de análise, o "Teste da Figura Humana", e o desenho da figura humana. Concluiu-se que o corpo é motivo de preocupações para a maioria das atletas. As surfistas que moram no litoral estão mais satisfeitas com o próprio corpo do que as que vivem na capital. A tese fornece evidência de que o modelo de corpo pequeno não representa o desejo das atletas de surfe.
Palavras-chave: Imagem corporal; mulher; surfe.
ABSTRACT
Surf is a type of sport practiced in an environment where the body reveals itself, and where there is a strong presence of the "perfect body" myth. Surfers interact with the environment when they practice the sport, becoming a part of it. The sport is nowadays considered one of the most practiced in Brazil. The goal of this study was to research the Brazilian female surfer's body. Two instruments of analysis were used: the "Human Figure Test" and the image of the human figure. The conclusion is that the bodily image is a source of concern to most of these athletes. Female surfers who live on the coast are more comfortable with their own bodies than the ones who live in the state capital. The thesis provides evidence that the smallbody model does not represent the desire of female surf athletes.
Keywords: Bodily image; female; surf.
INTRODUÇÃO
Hoje o surfe no Brasil é um dos esportes mais praticados. A maioria dos praticantes é jovem, por isso a associação do surfe com um esporte jovem que transmite a imagem de saúde, alegria, diversão e gente bonita. De norte a sul do litoral do país, onde existir alguma onda quebrando, lá haverá alguém surfando. São milhares de pranchas que "passeiam" pelos mares durante o ano todo. E, além desse surfe por prazer, o Brasil vem se consolidando como uma das grandes potências do surfe competitivo, com resultados significativos em competições de diferentes categorias. Nosso país é privilegiado por possuir um extenso litoral, por isso é natural que a cada dia o interesse do brasileiro pelo esporte cresça. Conseqüentemente, a busca de informações sobre o tema também aumenta, já que todos querem entender com mais profundidade sua modalidade preferida. E as mulheres representam uma grande parte do aumento do número de adeptos ao surfe. Segundo matéria publicada na Revista Veja, em edição de 2003 (janeiro de 2003), cenas de garotas carregando pranchas debaixo do braço não são mais consideradas exóticas. Afirmação semelhante foi publicada no Folhateen (12 de abril/2004), do jornal Folha de São Paulo1, cujo tema principal era denominado o "surfe de biquíni", e relatava que as meninas "vão invadir a sua praia – cada vez mais garotas sobem em pranchas e encaram, de pé, as paredes de água no mar", diz o jornal.
Tornou-se rotineiro ver, ler e estudar mulheres que praticam esportes de predominância masculina. Mas o caminho percorrido por elas foi longo e difícil, e até hoje existem preconceitos relacionados à prática de determinadas modalidades esportivas por mulheres. Conforme Lima (2001), até o final do século XIX e início do século XX as mulheres deveriam ser vistas como "moças de família", que não tinham o direito de suar em público, "mostrar o cabelo assanhado e fazer exercícios", pois estes eram atividades consideradas apropriadas aos homens, "sendo parte integrante dos símbolos de sua virilidade, robustez e força" (p.1). O surfe sempre foi dominado por homens, que raramente dividiam o mar com as mulheres. A elas restava o papel de espectadoras, ficavam sentadas na areia esperando os namorados saírem do mar. Enfim, uma tradicional atuação passiva, restrita à admiradoras e torcedoras.
O surfe é praticado em um ambiente externo, onde os corpos estão à mostra o tempo todo, e é nesse local que a idéia de "corpo perfeito" se faz mais presente. Na praia, a exposição dos corpos deixa entrever uma grande preocupação com o corpo das atletas, que talvez ganhe formas "não-condizentes" com valores e expectativas ainda arraigados em relação ao corpo feminino. E a postura corporal ativa, desafiadora que a surfista precisa assumir, questiona a tradicional passividade da mulher (KNIJNIK; HORTON; CRUZ, 2010). A prática do culto ao corpo, entendida como objeto de consumo, se coloca hoje como preocupação generalizada, que atravessa todos os setores, classes sociais e faixas etárias, apoiada em um discurso que ora está mais voltada para a questão da estética, ora mostra preocupação com a saúde (CASTRO, 1998).
Estudar o "corpo esportivo" é ver o corpo dominado pelos interesses do mercado. As imagens do corpo sarado e saudável se apresentam como um sucesso pessoal. A preocupação com o corpo feminino tem sido ainda maior, principalmente em se tratando de suas ações físicas. Vários preconceitos ainda incomodam as mulheres no meio esportivo, apesar da sua presença dentro deste nunca ter sido tão grande como nos dias de hoje. E os estigmas que mais as perturbam são aqueles vinculados às imagens e formas de seus corpos. Em algumas modalidades, mais especificamente, o corpo fica absolutamente à mostra, sendo assim objeto de comentários por vezes pejorativos, que buscam denegrir a condição atlética daquele sujeito. Neste quadro, se insere o surfe, o mais praticado de todos os esportes radicais. A total interação com o mar, o contato com as ondas, a arte de domar a natureza fascinam os surfistas e simpatizantes. Portanto, não é por acaso que o nosso país vem se consolidando como uma das grandes potências do surfe mundial. Mesmo possuindo estas dimensões, o surfe vem sendo pouco estudado, sobretudo em sua dinâmica psicossocial.
As surfistas, atualmente, são protagonistas da criação de novos modos das mulheres estarem no mundo, pois a partir de sua prática corporal questionam os velhos modelos e lançam novos e diferentes padrões de mulher no imaginário popular, especialmente em um ambiente que é extremamente significativo para o Brasil, que são suas praias – que ao mesmo tempo são uma das imagens mais fortes do país no exterior, mas também um ambiente no qual as questões do status corporal, do "mito do corpo perfeito" e dos padrões ideais de beleza se apresentam fortemente. Assim, reveste-se de especial relevância investigar esta prática e verificar como as atletas repassam modelos de vida para o imaginário social e coletivo. Desta forma, o objetivo principal deste estudo é pesquisar a imagem corporal da surfista brasileira.
Para tal, foi traçado um breve histórico sobre a imagem corporal da mulher no esporte, assim como a história do surfe e das surfistas, com foco nas pioneiras da modalidade no Brasil e no mundo. Em seguida aparece a descrição e análise de um estudo realizado com surfistas brasileiras, sobre a questão de sua imagem corporal.
CONSIDERAÇÕES SOBRE A IMAGEM CORPORAL DA MULHER NO ESPORTE
Conforme Goellner (2001), as imagens de feminilidade fazem parte de um contexto sócio-cultural para o qual foram designados funções e papéis diferentes para mulheres e homens, além de distintas representações do que é ser masculino e feminino para as quais foram e são indicadas alternativas diferentes de praticar as atividades esportivas e corporais.
A mulher e o homem desenvolvem, desde muito cedo, um esquema corporal por intermédio da percepção de como seus corpos são estruturados (BECKER, 1999). Pelo reforço dado através da mídia de corpos atraentes, é visto na nossa sociedade uma busca, às vezes obsessiva, de uma aparência física idealizada. Principalmente entre as mulheres que, em busca de uma anatomia ideal, sofrem transtornos como, por exemplo, o de alimentação (NAGEL; JONES, 1992). Segundo Becker (1999), "esse processo tem um impacto negativo sobre a auto-imagem das mulheres" as quais se sentem na obrigação de terem um corpo atraente, magro, em forma, e jovem. O autor ainda afirma que "a imagem corporal negativa pode determinar o aparecimento de baixa auto-estima e depressão" (p.1).
As dimensões como estatura, peso, cintura, busto e quadris, se referem às áreas visadas pelo modelo cultural, conferindo ao corpo feminino o seu grau de beleza. Em muitos casos, a segurança e o status da mulher estão condicionados pelo grau em que ela exerce atração nos homens, independente de seus interesses, habilidades ou outros valores pessoais. Portanto, não estar bem ou bonita para estas mulheres, pode resultar em um grande fracasso, levando a insegurança e a perda da auto-estima (PENNA, 1989). Segundo Penna (1989), a satisfação da mulher com o seu corpo varia conforme o desvio entre aquilo que ela considera modelo ideal feminino e suas reais proporções.
Autores americanos verificaram ser o modelo feminino essencialmente menor do que o masculino. Considerou-se, então, que a mulher deseja ser pequena, pois isso indica maior feminilidade. Porém, a única área do corpo que recebeu expectativa para maior foi o busto (PENNA, 1989). Assim, quanto menor for o corpo, mais satisfeitas consigo mesmas elas tendem a ficar.
No contexto do esporte feminino atual, o "mito do belo" se traduz no "discurso da beleza do corpo feminino". Este molda os corpos e as vidas das atletas, inclusive a sua própria imagem corporal (GUTHRIE; CASTELNUOVO, 1994).
Para o desenvolvimento do autoconceito pessoal, a imagem corporal é fator importantíssimo. É necessário encontrar um modelo que permita que a mulher fuja deste "discurso de beleza", e reforce de maneira positiva a sua imagem corporal e seu autoconceito, os quais poderão refletir na própria performance da atleta (KNIJNIK; SIMÕES, 2000).
Knijnik (2001) constatou contradições na imagem corporal das atletas de alto nível de handebol, que, por um lado manifestaram o desejo de serem altas, ter um corpo forte, musculoso, que lhes assegurasse boas condições de disputa, mas por outro lado, desejavam possuir uma imagem que corresponda ao ideal feminino que nossa sociedade procura. Em determinados momentos da pesquisa as atletas relataram o desejo de possuir músculos pequenos, corpos frágeis. O público, mesmo querendo performances esportivas que exijam mais força e destreza, identificaria as mulheres que as obtêm como "não femininas", forçando essas atletas a realçarem seus aspectos femininos antes, durante e depois da competição, muitas vezes deixando de lado as necessidades esportivas propriamente ditas, desanimando e frustrando as que não querem ou não atingem os padrões de feminilidade exigidos pela mídia e público (KNIJNIK; SIMÕES, 2000).
BREVE HISTÓRIA DO SURFE - E DAS SURFISTAS
Existem diversas denominações para os esportes que são praticados junto à natureza. O surfe, juntamente com outras atividades (escaladas, rafting, vela, vôo livre) pode ser classificado como esporte de aventura, esporte radical, ou esporte extremo.
Marinho (1999), afirma que, (...)
Nos "esportes de aventura" o prazer é mediado pelo risco, pela vertigem, marcando os limites da liberdade e da vida. O envolvimento profundo com a prática dessas atividades pode resultar na conquista do desejado "estar livre" fazendo com que seja assumido um compromisso (criativo) de vida (p.68).
Segundo Kampion e Brown (1998), "surfe é o ato de apanhar uma onda em cima de uma prancha" (p.27). Porém, hoje se pode dizer que o surfe deixou de ser apenas um esporte, e é uma filosofia de vida. Segundo os surfistas, só quem experimenta o prazer de deslizar sobre as ondas sabe descrever o que é o esporte, uma mistura de ser humano e natureza que proporciona sensações indescritíveis.
A verdadeira origem do surfe ainda é incerta. Algumas teorias nos remetem à África ocidental, outras ainda nos levam à costa norte do Peru, onde os nativos, por muitos anos, deslizaram sobre as ondas usando embarcações feitas de fibra de junco. Porém, o surfe parece ter em suas origens uma ligação muito estreita com a própria cultura do povo polinésio, pois foi nesta nação que a modalidade se desenvolveu como um típico comportamento cultural, uma verdadeira instituição transmitida de geração em geração entre os povos polinésios.
Atualmente, graças às descobertas de um dos maiores navegadores e exploradores de todos os tempos, o capitão inglês James Cook, a Polinésia é considerada uma nação. Cook desbravou a Polinésia de leste a oeste e de norte a sul, e se diferenciou dos outros exploradores europeus que o antecederam, pois respeitava e admirava a cultura desse "novo" povo (ÁRIAS, 2003). Foi através de expedições marítimas e de enormes habilidades para tal, que, há mais de 3.5000 anos, o povo polinésio começou a sua história de amor com as ondas, os ventos e as correntes marítimas do imenso oceano Pacífico. Árias (2003) comenta que,
Para nós, amantes do surf, é difícil não cair em devaneio sobre tal período. É provável que esse tenha sido o responsável pela criação de um novo código genético, que centenas de anos mais tarde clamou por sua expressão, conduzindo esse povo novamente para o mar, mas dessa vez não com o intuito de migrar [...] o objetivo agora, ao que tudo indica, era um só: brincar, divertir-se, retornar às origens... assim deve ter nascido o surf! (p.8).
A sociedade polinésia era organizada em um sistema monárquico. Entre os anos de 1790 a 1800, um rei chamado Kamehameha I aprendeu a surfar e foi o maior responsável pela unificação de todas as ilhas havaianas em um só reino. O rei surfava ao longo da costa de Kona, no Havaí, local onde o tenente King, da esquadra de James Cook, presenciou pela primeira vez a prática do surfe (ÁRIAS, 2003). Mais tarde, King escreveu um relato sobre essa experiência, o que se tornou a primeira menção oficial sobre o surfe no Havaí.
O surfe era praticado por todos os polinésios, porém era considerado como o esporte dos reis. Isso porque os reis estavam livres das tarefas diárias do campo, nas vilas e na pesca, portanto, podiam desfrutar inúmeras horas no mar, surfando (ÁRIAS, 2003). Na Polinésia, somente os reis podiam pegar as ondas em pé. Aos súditos restava praticar o surf deitado, uma espécie de bodyboard.
O reconhecimento mundial do esporte veio com o campeão olímpico de natação e pai do surf moderno, o havaiano Duke Paoa Kahanamoku. Ao vencer os jogos de 1912, em Estocolmo, o atleta disse ser um surfista e passou a ser o maior divulgador do esporte no mundo. Com isso o arquipélago e o esporte passaram a ser reconhecidos internacionalmente. Após a vitória nas Olimpíadas, Duke introduziu o esporte nos Estados Unidos e na Austrália com grande sucesso.
Nos anos 1920, algumas mulheres já ‘’montavam’’ em pranchas, mas o surfe permaneceu um esporte predominantemente masculino durante o século XX. Essa exclusão das mulheres na prática do surfe talvez tenha sido, no início, pelo tamanho e peso do equipamento (prancha); mais tarde, "era um hábito cultural, uma espécie de clube masculino" (KAMPION; BROWN, 1998).
Mesmo assim, nos anos 50 as mulheres surfaram em Malibu. Foi em cima de uma prancha potato chip (uma das primeiras pranchas) que, em 1950 Vick Flaxman surfou na crista da onda até à praia e arrancou um enorme aplauso dos homens (KAMPION; BROWN, 1998).
Nos anos 50, 60 e 70, muitas surfistas surgiram e se destacaram no mundo do esporte. Destaque para Lisa Andersen, que se tornou profissional em 1987, e conquistou seu terceiro título mundial em 1996, sendo que no verão anterior, Lisa foi uma das quatro surfistas convidadas a juntarem-se aos 48 homens no World Championship Tour (WCT). Foi aí que obteve respeito considerável dos atletas masculinos, e, a partir de então, a fama de Lisa Andersen estava consolidada (KAMPION; BROWN, 1998).
No Brasil, os relatos sobre o surgimento do surfe ainda são incertos e polêmicos. A principal teoria é que o pioneiro tenha sido o santista Thomas Rittscher, que teria ficado em pé sobre uma prancha entre 1934 e 1936 (CHAVES, 2003).
Segundo a Revista Surfer Magazine do Brasil (1992 apud BRASIL et al., 2001):
Em 1992, o surfe já era considerado como um dos esportes de maior crescimento no Brasil, um dos cinco de maior interesse do cidadão brasileiro e o país adquiria o posto de terceira potência mundial, ficando somente atrás dos Estados Unidos e Austrália (p.67).
E a primeira surfista brasileira, segundo registros históricos, pode ter sido a carioca Fernanda Guerra. Ela começou a praticar o esporte com onze anos, em 1960 (MINC, 2002).
Andréa Lopes é outra pioneira no cenário do surfe nacional: foi a primeira surfista brasileira a participar do circuito mundial, a primeira a vencer uma etapa do WCT (World Championship Tour, circuito de elite do surfe profissional), além de ser também a primeira surfista profissional brasileira a ter seu próprio website na Internet para divulgar o seu trabalho e sua vida. (LOPES, 2003).
Levando em consideração o desenvolvimento do surfe e tendo percebido que, como em outras modalidades, a questão da imagem corporal é extremamente significativa tanto para a mulher que o pratica quanto para a "comunidade praieira" envolvida com a modalidade, apresentamos a seguir estudo referente à imagem corporal de mulheres surfistas. Ressaltamos que todos os sujeitos que participaram da pesquisa leram e assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido, e, os procedimentos aqui utilizados se adequaram às normas éticas de pesquisas com seres humanos, atestado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Presbiteriana Mackenzie sob o processo de número 371/03.
MÉTODO E RESULTADOS
Nesta pesquisa, fizeram parte 34 atletas de surfe, com idade entre 13 e 31 anos. A coleta dos dados foi realizada em 2003, durante eventos como o Circuito Paulista de Surf Universitário (nessa competição participam estudantes matriculados nas universidades do Estado de São Paulo), o Super Surf 2003 (etapa do circuito brasileiro profissional, no qual participam os melhores surfistas do Brasil), o Circuito Municipal Ubatubense 2003 (competição exclusiva para atletas que residem na cidade de Ubatuba) e o Billabong Girl 2003 – Circuito "a onda dos sonhos" (competição que congrega as melhores surfistas do Brasil).
No interior deste estudo foram empregados dois instrumentos de pesquisa, sendo o primeiro o "teste da figura humana" e o segundo o "desenho da figura humana". Sua descrição bem como os resultados das coletas são apresentados a seguir.
1. Teste da figura humana: idealizado por Marsh em 1994, e aqui empregado conforme descrito em estudo de Brandão et al. (1999), este teste é representado por 12 desenhos de figuras humanas (masculinas e femininas), sendo que a figura número 1 é classificada como "desnutrida" (muito magro), e a figura número 12 como obeso tipo III. Ele compara a imagem corporal que a pessoa acredita possuir com aquela que ela gostaria de ter, através das figuras assinaladas pela avaliada. Foram acrescentadas a esse teste, algumas questões de elaboração própria a fim de complementar a proposta da pesquisa.
No total, 34 atletas responderam o questionário, sendo que 29 (85,29%) moravam em cidades litorâneas e apenas 5 (14,7%) moravam na cidade de São Paulo. A tabela 1 mostra a relação entre a satisfação que as atletas possuem com o próprio corpo com a cidade onde vivem, em valor absoluto e percentual.
Das 34 surfistas, 27 (79,41%) fariam alguma mudança no corpo e apenas 7 (20,58%) afirmam que não mudariam nada. A relação entre a cidade onde vivem, satisfação com o próprio corpo, e a opção de mudar algum aspecto neste corpo, aparece na tabela 2 em valor absoluto e percentual.
As principais mudanças que as atletas fariam em seus corpos aparecem na tabela 3.
Podemos observar que somente uma atleta possui o desejo de diminuir o tamanho dos músculos, mesmo que diversas pesquisas descritas por Penna (1989) tenham descrito que no imaginário popular a representação existente é do modelo feminino essencialmente menor do que o masculino. Considerou-se, então, que a mulher deseje ser pequena, pois isso indica maior feminilidade. Porém, a única área do corpo que recebeu expectativa para maior foi o busto.
No teste da figura humana encontram-se 12 desenhos que representam silhuetas com vários tipos de aparência física, o qual o número 1 pode ser classificado como desnutrido, e o número 12 como obeso tipo III. A tabela 4 representa a percepção real (aparência física que a pessoa acredita ter) e a ideal (aparência física que a pessoa gostaria de possuir) das atletas segundo o teste em questão.
PR – Percepção Real
PI – Percepção Ideal
No estudo realizado por Brandão et al. (1999) com maratonistas, foi usado este teste juntamente com a análise de outras variáveis, como índice de massa corporal, porcentagem de gordura e relação abdome/quadril. Concluiu-se que o peso corporal é o parâmetro que mais influencia na auto-imagem.
Como podemos perceber, cada surfista que mora na cidade de São Paulo possui uma imagem corporal real diferente, sendo que o menor número assinalado foi 3, e o maior, 9. É importante ressaltar que quanto maior o número, mais "gorda" é caracterizada a figura, ou seja, 12 é mais gorda que 11, que é mais gorda que 10, ou 1 é mais magra que 2, que é mais magra que 3, e assim sucessivamente. Desse modo, quando o modelo de figura ideal é representado por um número maior que o modelo real, pode-se dizer que os sujeitos gostariam de engordar, quando essa relação for inversa, pode-se afirmar que os sujeito gostariam de emagrecer, e quando os números assinalados forem os mesmos significa que a percepção real é igual a ideal.
A maioria das atletas que vivem na cidade de São Paulo gostaria de ter uma imagem que representa um número menor do que aquela que ela acredita possuir (60%), e 40% assinalaram o mesmo número para as duas imagens. Das que moram em cidades litorâneas, o menor número assinalado foi 1, e o maior, 7, sendo que a figura número 3 foi a mais assinalada, caracterizando a imagem corporal de oito atletas (27,58%). E a figura número 1 representou somente 3,44%, ou seja, uma atleta. Dessas atletas, 20,68% assinalaram uma figura com numeração maior que o desenho que representa a imagem corporal real, 55,17% assinalaram um número menor, e 24,13% assinalaram o mesmo número.
2. Desenho da figura humana: diferente da técnica de avaliação e interpretação do desenho da figura humana proposta por Campos (2000), a qual baseia-se no desenho real (a pessoa desenha como ela acredita ser realmente), o instrumento desta pesquisa solicita o desenho ideal (a pessoa desenha como ela acredita que deva ser o corpo ideal para uma atleta de surfe). Portanto estes desenhos acabaram sendo analisados em conjunto com os demais dados, a fim de se obter apoio, ou mesmo sustentar e constatar possíveis contradições entre os desenhos das atletas e os demais dados colhidos. Os testes foram realizados à tinta, em uma folha de papel fornecida pelos avaliadores, nas quais seis atletas, escolhidas aleatoriamente, desenharam como acreditam que deva ser o corpo ideal para uma surfista.
As atletas desenharam como acreditam que deva ser o corpo ideal para uma surfista, destacando suas opiniões através de legendas no próprio desenho. Elas serão representadas como E1, E2, E3, E4, E5 e E6. A tabela 5 mostra as características de cada desenho, suas respectivas legendas, a percepção real e ideal (teste da figura humana), e a principal mudança (questionário) que as entrevistadas fariam no próprio corpo.
Das 6 atletas, 5 (83,4%) destacaram que os braços devem ser fortes, porém E2 entra em contradição e escreve: "Braços fortes, definidos, porém não muito grandes". As meninas deveriam desenhar como acreditam que deva ser o corpo ideal para uma surfista. Porém, na realidade, elas manifestaram o próprio desejo de corpo ideal. Braços fortes e ombros largos todas possuem, pois o surfe exige muito dos membros superiores. As duas surfistas que não preencheram o quadro de principal mudança (Tabela 5), parecem apresentar o que descrevem na legenda. Por outro lado, se compararmos a legenda com a principal mudança, veremos que existem relações entre eles.
E2 cita ainda outras contradições, como: ombros mais largos (não muito); coxas mais ou menos grossas. Além disso, destaca que a surfista deve ter uma cinturinha e quadris médios. E6 escreve que a surfista deve ser leve. Segundo Penna (1989), as dimensões como estatura, peso, cintura, busto e quadris, se referem às áreas visadas pelo modelo cultural, conferindo ao corpo feminino o seu grau de beleza.
Das 6 atletas, 3 (50%) citaram que os ombros devem ser largos e o abdome forte e/ou definido. Duas (33,33%) fizeram referência às pernas destacando força e definição muscular. Esse fato vai contra a pesquisa de Penna (1989), na qual foi constatada que a satisfação com as proporções corporais seguem, de modo geral, o modelo do corpo pequeno. Assim, quanto menor for o corpo, mais satisfeitas consigo mesmas elas tendem a ficar. E, na pesquisa de Knijnik (2001), as atletas de handebol relatam o desejo de possuir músculos pequenos e corpos frágeis.
CONCLUSÕES
Os dados percentuais mostram que as atletas que moram em cidades litorâneas estão mais satisfeitas com o próprio corpo do que aquelas que vivem na cidade de São Paulo. Podemos explicar esses dados fazendo uma associação com as vestimentas características de cada local. Nas cidades litorâneas é mais comum passar grande parte do dia com "roupas leves", roupas de praia, como biquíni, bermuda, short, saia e camiseta. As pessoas parecem estar mais acostumas a mostrar o corpo. Ver mulheres e homens de roupa de banho faz parte da rotina das pessoas que vivem nessas cidades. Entretanto, a maioria das atletas, mesmo as que se dizem satisfeitas com o próprio corpo, apresentam um desejo de fazer alguma mudança em relação a este. E, logicamente, todas insatisfeitas fariam mudança(s). A região abdominal (barriga) parece ser a parte do corpo que mais preocupa as surfistas, por ter sido apontada pela maioria delas como principal mudança a ser feita no corpo. (29,62%). Isso pode ser explicado pelo fato das atletas passarem grande parte do tempo de biquíni, com a barriga exposta. Somente na hora de entrar no mar para competir elas usam lycras, fornecidas pelos patrocinadores do evento. Porém, essas lycras ficam bastante justas no corpo, impossibilitando "esconder" uma possível "barriguinha".
O segundo aspecto mais apontado como principal mudança foi o desejo de adquirir e/ou definir massa muscular (22,22%). Podemos constatar agora uma preocupação com a performance, adquirir força para melhorar o desempenho. Assumindo essa mesma porcentagem, aparece o desejo de perder peso/gordura. Pode-se dizer que o peso confere grande preocupação para as mulheres nos dias atuais, e, para as surfistas, o "estar leve", além da estética, significa surfar melhor. O fato de algumas atletas possuírem o desejo de fortalecer/engrossar as pernas (14,81%), está relacionado com a própria modalidade. O surfe quase não proporciona trabalho de membros inferiores, por isso, muitas vezes, os corpos das surfistas se apresentam desproporcionais: se por um lado possuem ombros largos e braços fortes, por outro, geralmente, são dotadas de pernas "finas". E é exatamente por isso que uma atleta se manifesta escrevendo que gostaria de diminuir os músculos dos braços.
Através do teste da figura humana podemos concluir que as atletas que moram na cidade de São Paulo se consideram mais "gordas" do que aquelas que vivem no litoral. A maioria das atletas deseja possuir um modelo ideal representado por números menores do que a figura que representa suas reais proporções (55,17%). E, o número de atletas que deseja engordar (20,68%) é menor do que o número de atletas que têm PR=PI (24,13%). Ficou claro que o modelo de corpo pequeno não representa o desejo das atletas de surfe. Elas encaram o fato de ficarem fortes como uma conseqüência e necessidade advinda da própria modalidade. Sabem que o desempenho depende disso. Porém, querem estar fortes e definidas, sem gordura no corpo, estão preocupadas com o desenvolvimento da musculatura de membros inferiores, e tudo isso confere uma preocupação com a aparência física.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Brasil possui uma imensa costa litorânea (cerca de 8 mil quilômetros). Dentro deste cenário, o surfe pode ser reconhecido como um fenômeno sociocultural muito importante na atualidade, com profunda influência na vida cotidiana de inúmeras pessoas.
O surfe, hoje, deixou de ser apenas um esporte, para ser um estilo de vida, exercendo grande influência na moda, na música, no cinema. O praticante do esporte possui um "jeito" próprio e pode facilmente ser identificado em qualquer lugar. Por isso, podemos dizer que pensar sobre o surfe é pensar sobre o Brasil. O esporte está na moda, o estilo influencia griffes populares e luxuosas, além de estar presente em campanhas publicitárias dos mais diversos segmentos, de automóveis a telecomunicações. Até mesmo o cinema "holywoodiano" se encantou com o estilo surfe.
Por ser um esporte barato e fascinante – a única aquisição a ser feita é uma prancha – o mar se torna uma mistura de culturas, classes sociais, valores, raças e crenças. Entretanto, apesar desta aparente igualdade, o projeto de corpo – que parece ser tão necessário nas sociedades contemporâneas - da surfista atual nem sempre se enquadra daquilo que é esperado para a mulher, mesmo na fronteira do século XXI. Dar voz às angústias e à problemática corporal destas atletas é um trabalho importante para que mais meninas possam se identificar com elas, criando um círculo positivo de representação e novas possibilidades para as mulheres se identificarem e ampliarem seus espaços no mundo.
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1 Veja é a revista semanal de maior circulação nacional; já a Folha de São Paulo é o jornal diário de maior circulação nacional
2 A percepção real e idealizada que essas atletas dizem possuir, é representada pelo mesmo número. Porém, estas se expressaram no questionário escrevendo que a aparência física ideal é a mesma da real, porém manifestando o desejo de modificações como: engrossar as pernas, diminuir quadril e perder "pneuzinhos", consecutivamente (S1, S4 e S16)