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Revista do NUFEN
versão On-line ISSN 2175-2591
Rev. NUFEN vol.4 no.1 São Paulo jun. 2012
ARTIGO
Corpos intersex borrando fronteiras do discurso médico
Intersex bodies blurring boundaries of medical discourse
Ricardo Pimentel Méllo; Juliana Vieira Sampaio
Universidade Federal do Ceará
RESUMO
Buscamos analisar de que modo a concepção de corpo normal, pautada no saber médico biologicista, gerencia os corpos nomeados como intersex. Segundo a Sociedade Intersex Norte Americana intersex é um termo utilizado para nomear corpos cuja anatomia não se adequa aos padrões masculino ou feminino. Utilizamos como principal fonte de pesquisa documentos médicos, que foram classificados como acadêmicos e jurídicos. Adotamos a postura de tratar esses materiais documentais como práticas discursivas, pois estes são produtos e produtores de práticas sociais. Observamos nos documentos pesquisados as características que permitem aos médicos classificarem um corpo como feminino ou masculino, quais intervenções realizadas após o diagnóstico de intersexualidade e como esses procedimentos são justificados. Concluímos que no campo da intersexualidade o dispositivo médico se apropria do discurso psicológico a fim de instituir o binarismo de sexo e gênero como único modo possível de existência.
Palavras-chave: intersexualidade; práticas discursivas; dispositivos da sexualidade; teoria queer.
ABSTRACT
We seek to analyze how the concept of normal body, based on medical knowledge biologist, manages the bodies named as intersex. According to the Intersex Society North American intersex is a term used to designate bodies whose anatomy does not suit to male or female patterns. We used as primary source of medical research documents, which were classified as academic and legal. We take the stance of treating these documentary materials as discursive practices, as these are products and producers of social practices. We observed in the documents studied the characteristics that allow doctors classify a body as feminine or masculine, what interventions after diagnosis of intersexuality and how these procedures are justified. We concludes that the field of intersexuality the medical device appropriates the psychological discourse to establish the binarism of sex and gender as the only possible way of existence.
Keywords: intersexuality; discursive practices; device of sexuality; queer theory.
Resumen
Tratamos de examinar cómo el concepto de cuerpo normal, basado en el conocimiento médico biólogo, gestiona los órganos nombrados como intersexuales. De acuerdo con la Sociedad de Intersexuales Norte intersex americano es un término utilizado para designar a los organismos cuya anatomía no se ajusta al estándar macho o hembra. Se utilizó como fuente primaria de los documentos de investigación médica, los cuales fueron clasificados como académico y legal. Adoptamos la postura de tratar a estos materiales documentales como prácticas discursivas, ya que estos son los productos y los productores de las prácticas sociales. Se observa en los documentos estudiados las características que permiten a los médicos clasificar un cuerpo femenino o masculino, lo que las intervenciones después del diagnóstico de la intersexualidad y cómo estos procedimientos están justificados. Llegamos a la conclusión de que en el campo de la intersexualidad dispositivo médico se apropia del discurso psicológico con el fin de establecer el binario de sexo y género como el único modo posible de la existencia.
Palabras clave: intersexualidad; prácticas discursivas; dispositivos de la sexualidad; la teoría queer
1. Saber como jogos de poder
Quando seus membros num abraço forte se uniram, não são dois, mas uma forma dúplex, nem rapaz, nem mulher, e que a nenhum parece. (Metamorfoses de Ovídio).
Antes de iniciarmos a nossa discussão sobre intersexualidade, buscamos a figura de Hermafroditos, pois nos traz um dos primeiros relatos sobre corpos intersex baseada numa estória mitológica (GRIMAL, 1992; FRANCHINI & SEGANFREDO, 2007). Filho dos deuses Hermes e Afrodite, Hermafrodito herdou a beleza da mãe e a força do pai. De acordo com o mito, durante uma viagem, Hermafrodito conheceu a ninfa Sálmacis que reinava sobre as águas da região da Cária. Sálmacis se apaixonou perdidamente pelo jovem e tentou seduzi-lo com os seus encantos, mas não obteve êxito em sua conquista. Um dia, quando Hermafrodito foi se banhar em um lago, Sálmacis o surpreendeu e abraçou o rapaz fortemente pedindo para que os deuses e as águas do lago, das quais ela era rainha, não permitissem que eles se separassem nunca mais. Sálmacis foi atendida, e a partir desse dia, todas as pessoas que mergulhassem neste lago estariam destinadas a abrigar os dois sexos em um só corpo.
São esses corpos muitas vezes considerados corpos "estranhos", "fantásticos" e "sem fronteiras" que o foco da nossa pesquisa se voltará. A referência a corpos completos e perfeitos é um dos discursos que circula sobre a intersexualidade, mas, em diferentes contextos, esses corpos podem causar desconforto e serem considerados corpos "ambíguos" ou ainda como "incompletos".
Segundo a Sociedade Intersex Norte Americana (ISNA, 2010) intersex é um termo utilizado para nomear corpos cuja anatomia não se adéqua aos padrões hegemônicos de sexo masculino ou feminino. Trazemos para dialogar sobre esses corpos, a Teoria Queer: Movimento político e acadêmico questiona a heteronormatividade, que pode ser entendida como o binarismo de gênero e a coerência naturalizada entre sexo, gênero, desejo, sexualidade e práticas sexuais. Dessa forma a Teoria Queer critica os processos de construção identitária, pois entende que esses produzem posições naturalizadas ou fixadoras de sujeitos. A criação de um padrão possível de vida, forma zonas que pretendem ser resistentes a ameaças, perturbações e repúdio. Por outro lado, a desnaturalização de categorias identitárias é um dos processos centrais para a existência de modos de vida mais criativos e libertários.
Esse processo criativo nos impele a também questionar antagonismos como: natural/cultural e real/construído, que acabam sendo fundamentais na constituição e naturalização do dualismo sexo/gênero. Anne Fausto-Sterling (2002) e Judith Butler (2008) analisam que o conceito de natureza deve ser repensado, pois ele não pode ser entendido como uma categoria prédiscursiva. Para estes autores, a natureza é uma categoria pretensamente a-histórica, como se existisse antes mesmo das marcas socioculturais. Por outro lado, não podemos incidir no extremo oposto de entender a natureza apenas como uma superfície de inscrição que espera passivamente assumir o seu significado social. Assim, afirmar que discursos constroem as nossas vidas, não é alegar que neles elas se originam. Não basta um foco linguístico sem análise de suas condições de existências, estratégias e efeitos.
A compreensão da categoria sexo em nossa sociedade está atrelada a uma materialidade pré-discursiva, assim como a natureza. Desse modo, circula uma concepção de que o gênero tem origem social e o sexo tem origem biológica, apesar dos dois conceitos serem construções históricas. O conceito gênero foi utilizado pela primeira vez em 1947 por Anke Ehrhardt e John Money que trabalhavam com crianças já caracterizadas como intersex (FAUSTOSTERLING, 2002; PRECIADO, 2008). O termo gênero, nessa situação, era concebido como o "sexo psicológico". Ehrhardt e Money queriam demonstrar que, independentemente do sexo (anatômico e/ou genético) de nascimento do sujeito, o gênero poderia ser moldado pelos pais, já que este seria construído socialmente.
Durante os movimentos feministas da década de 1970, a categoria gênero foi adotada para criticar a "opressão" sofrida pelas mulheres e impingidas por homens. As chamadas teóricas feministas alegavam que o gênero, como categoria construída socialmente, provocava as diferenças entre homens e mulheres (FAUSTO-STERLING, 2002; PRECIADO, 2008; SCOTT, 1995). Consequentemente, ao falarmos sobre gênero deveríamos no remeter aos termos, masculino e feminino; e o conceito de sexo corresponderia a uma oposição anatômica entre pênis e vagina. As ativistas feministas entendiam que com a mudança na concepção de gênero cultural (masculino/feminino) seria possível uma ressignificação das relações entre homens e mulheres.
Apenas na década de 1980 algumas teóricas do movimento feminista, dentre elas Teresa de Lauretis e Denise Riley, passaram a questionar os conceitos de sexo e gênero, compreendendo que estes nos levam a percepção do sexo, como algo natural e de ordem biológica, ignorando que todas essas categorias, inclusive a natureza, são construídas socialmente. Dentre estas teóricas feministas temos a filósofa Judith Butler, que também é uma das percursoras da Teoria Queer. Ao criticar a separação entre sexo e gênero Butler aponta que o processo de diferenciação sexual não se resume ao aspecto material-físico, mas é um conceito marcado pela construção de práticas discursivas. Desse modo, o sexo/gênero é uma prática discursiva que possibilita o ser humano adquirir inteligibilidade social.
Para Butler (2008), o sexo/gênero é anterior ao próprio aparecimento do humano, pois são essas categorias que permitem o reconhecimento político do sujeito. A autora afirma que no processo de formação do sujeito, este é "convidado" pela sociedade a assumir uma "identidade" que, no caso do sexo, deve estar inserida na matriz heterossexual. Alguns corpos que não se acomodam no padrão "normal" de sexualidade, deixam de gozar do status de sujeito. A norma da heterossexualidade, que também é discursivamente construída, institui as zonas de exclusão, habitada pelos corpos abjetos/não humanos.
O binarismo de sexo e a heterossexualidade são naturalizadas e ganham materialidade em ações do cotidiano como no nascimento do bebê que o médico afirma se é menino ou menina, no uso do banheiro público masculino ou feminino, no documento de identidade etc. Para Butler, o sexo/gênero não é considerado como uma realidade ou atributo da natureza, mas como performance, ou seja, se manifesta em cada momento, em cada gesto, em cada ato, em cada experiência (BENTO, 2007, p. 08). De toda forma, o que podemos concluir é que o gênero produz, compulsoriamente, corpos sexuados, no qual os corpos que atendem algumas normas são inseridos no sistema heteronormativo. Ao mesmo tempo, os que escapam do "masculino/feminino" são apresentados como acidentes, exceções e perversões, o que acaba re-naturalizando a norma reguladora do sexo/gênero (PRECIADO, 2002).
O gênero, alerta Preciado (2008), é uma categoria necessária para o desenvolvimento de algumas técnicas de normalização e transformação do corpo. Esse conceito permite que os corpos sejam transformados por meio de terapias hormonais, cirurgias de transgenitalização e "definição sexual", no caso de pessoas intersexuais. Assim, podemos entender que os critérios utilizados por uma equipe médica para designar o sexo do recém-nascido, é uma espécie de "ficção política", assim como os "critérios psicológicos" que permitem as pessoas se autodenominarem como homem/mulher e heterossexual/homossexual. Para exemplificar que estamos vivendo uma "ficção somática" em nossa sociedade, Preciado (2008) nos indaga de por que a rinoplastia é considerada uma intervenção cirúrgica para fins estéticos no nariz, enquanto a vaginoplastia, construção cirúrgica de uma "vagina", e a faloplastia, construção cirúrgica de um "pênis" são consideradas cirurgias de "redesignação sexual". O discurso entendido como prática, é um meio de ação do poder e, dessa forma, os procedimentos cirúrgicos, quando nomeados de modos diferentes, passam também a serem regulados de formas distintas. Enquanto o primeiro procedimento pode ser realizado de acordo com a escolha do indivíduo, o outro processo é controlado pelo Estado, e apenas com a "permissão" e autorização deste, torna-se possível a intervenção cirúrgica.
A busca compulsória por normalizar a sexualidade é extrapolada no caso da intersexualidade. O saber biomédico por meio de tecnologias fármaco-cirúrgicas corta (por meio de cirurgia) o que supõem existir em "excesso" e coloca (também por meio de cirurgia) o que supõem "faltar", para que esses corpos se encaixem (caibam na caixa) aos padrões "normalizados" de sexo.
Os corpos intersex borram as fronteiras naturalizadas entre o que é ser homem e mulher. Isso provoca fissuras no modelo naturalizado de sexo que oferece apenas duas possibilidades de existência, masculino-pênis ou feminino-vagina. Dessa forma, os corpos intersex não gozam do status de sujeito, são "abjetos" (BUTLER, 1993/2008). As ficções construídas do que se espera de um corpo masculino ou feminino não se adéqua ao que é lido nesses corpos e os condena a certos modos de viver, que nesse caso transita por hospitais, medicamentos, cirurgias, hormônios, mutilações etc. Diferentes dispositivos controlam esses corpos, e o saber médico é um dos principais actantes1 nessa rede. Os efeitos dessas práticas discursivas podem ser analisados por meio de documentos, como é o caso da nossa pesquisa.
2. Documentos como práticas discursivas
Os documentos de domínio público são entendidos nessa pesquisa como práticas discursivas2, pois esse material possibilita a circulação de diversos saberes e práticas que podem reafirmar normas vigentes em nossa sociedade ou mesmo colocá-las em questão. Consideramos esse embate entre normalização e resistência como constituintes do processo de negociação de informações. Os documentos são importantes instrumentos de governo e gerenciamento de corpos e, por isso, são artefatos fundamentais para entendermos os diferentes modos de viver em nossa sociedade.
Esses pressupostos que vimos utilizando no trabalho nos impelem a um posicionamento crítico e ético em pesquisa, no qual estranhamos e questionamos categorias tidas como convenções naturalizadas socialmente, tornando a pesquisa "um convite a examinar essas convenções e entendê-las como regras socialmente construídas e historicamente localizadas" (SPINK, 2004, p. 33). Utilizamos, então, documentos para analisar tanto práticas cristalizadoras e normalizadoras, como também, fissuras e resistências que borram fronteiras de normalidade.
Os documentos ganham destaque em nossa pesquisa à medida que conceitos como sexo e gênero, discutidos na seção anterior, se naturalizam em diferentes enunciados (inclusive nos científicos). Por entender que alguns saberes ganham poder de dominação e de verdade, escolhemos o saber biomédico3 como foco desse estudo, pois em nossa sociedade, esse saber está intimamente ligado não apenas a instituição de um padrão normal de sexo, mas também com a construção de tecnologias que permitem "ajustar" corpos que não se adaptam a tais regras. Assim, compreendemos que os 2 Há uma ampla discussão sobre esse uso de documentos em Méllo (2006). 3 O saber biomédico passou a ser modelo explicativo aos processos de saúde-doença, a partir do séc. XVII que passou a coexistir com outras formas de medicina conhecidas como "popular", "alternativa", etc. Por sua postura universalista a biomedicina é o modelo que se tornou hegemônico (BONET, 1999). discursos produzem saberes e práticas que se tornam acontecimentos.
Entendemos que o sexo é um dos primeiros discursos que marcam o corpo de uma criança. O principal responsável por essa marca é o médico, pois nomeia como menino ou menina "aquilo" que é visto no exame de ultrassonografia, dando legitimidade aquele ser que antes era apenas um "pedaço de carne", sem sexo e gênero. Ao analisarmos os documentos, construídos pelos profissionais que examinam e diagnosticam os corpos antes mesmo do seu nascimento, podemos visibilizar os jogos de poder que determinam a "anormalidade" das pessoas intersex.
Não podemos ser ingênuos ao ponto de acreditar que as teorias médicas, isoladamente, são os produtores de determinada ordem social, mas também não podemos negar a sua importância nesse embate de forças. Apenas ressaltamos que o poder médico toma forma no ato de naturalizar os corpos e instituir modos de viver (MENEGON, 2004). Compreendemos a medicina como uma construção social, que se faz nas categorias e conceitos que lhe constroem, incrementando regimes de verdade e, dessa forma, adentrando no campo de disputas de poder.
Os documentos médicos escolhidos para serem analisados nesse estudo foram: a) artigos de diferentes períodos o mais antigo data de 1968 (KRYNSKI, 1968) e o mais recente de 2005 (SPINOLA-CASTRO, 2005); b) um volume especial sobre intersexualidade da revista médica de circulação nacional, Arquivos Brasileiros de Endocrinologia & Metabologia (ABE&M); c) o Parecer Nº 1726/2006 do Conselho Regional de Medicina do Paraná (CRM-PR); d) a Resolução Nº 1.664/2003 do Conselho Federal de Medicina (CFM). Este último dispositivo jurídico "define as normas técnicas necessárias para o tratamento de pacientes portadores de anomalias de diferenciação sexual." Esses documentos foram classificados em duas categorias4: 1) acadêmicos, e 2) jurídicos. Dentro do grupo de documentos acadêmicos propomos duas subdivisões para análise: a) os textos que se dedicam apenas a explanações sobre os aspectos "biológicos" da intersexualidade; b) textos que incluem em seus escritos discussões os aspectos "psicológicos" desse tema.
Os documentos de origem acadêmica são importantes por divulgarem novos tipos de tecnologias e saberes de determinado campo "científico". Torna-se possível acompanhar a forma como a problemática da intersexualidade é abordada em diferentes períodos e quais as técnicas para diagnóstico e intervenção.
O documento jurídico foi escolhido por ser um regulador de práticas por excelência, pois este material aponta os procedimentos que devem ser realizados e orienta as ações médicas. Utilizar como foco de pesquisa fontes documentais pressupõe "considerar os documentos em sua articulação com: quem os produziu, em que ocasiões, que interesses estavam em jogo, como são lidos, quem os leem, que propósitos e negociações estavam em jogo etc." (MÉLLO& SILVA & LIMA & DI PAOLO, 2007, p. 30).
3. Discurso médico e intersexualidade
O controle sobre os corpos intersex pelo saber médico tem início em meados do século XIX: "A medicina das perversões e os programas de eugenia foram, na tecnologia do sexo, as duas grandes inovações da segunda metade do século XIX" (FOUCAULT, 1988/2009b, p. 129). É nesse contexto que o hermafroditismo (intersexualidade) é patologizado e a medicina começa a questionar em que parte do corpo está o sexo.
A construção de novas tecnológicas na biomedicina marca períodos de mudança nos critérios diagnósticos para a intersexualidade e na "escolha" do sexo verdadeiro das pessoas intersex (MACHADO, 2008; PINO, 2007). O primeiro período, que vai do século XIX até a década de 1950, é nomeado com a "Era das gônadas", pois a presença de testículos ou ovários iria apontar o sexo do sujeito. São adotados os termos, "hermafroditismo verdadeiro" e "pseudohermafroditismo". Essa nomenclatura estava fadada a ser excluída do campo médico, pois, indicava a possibilidade de existir um "hermafrodita verdadeiro". Isso é a presença de dois sexos em um só corpo, o que colocaria em questão as diferenças naturalizadas entre homens e mulheres.
O segundo marco é a "Era cirúrgica", iniciada na década de 1950, no qual o pesquisador John Money é o principal fundador e representante. O surgimento de novas técnicas de anestesia e cirurgia permitiu que intervenções cirúrgicas fossem realizadas nos corpos de bebês intersexuais. Mas não foi apenas uma "evolução" técnica e científica que possibilitou as operações em recém-nascidos. O grande marco dessa época foram os estudos de Money sobre o desenvolvimento do gênero durante a infância. Money afirmava que as crianças nasciam com uma sexualidade neutra e até os 18 meses elas poderiam ter seus comportamentos sexuais modelados. Esse estudioso orientava que as crianças deveriam ser criadas de acordo com as possibilidades de "re-construção" de sua genitália. A divisão entre sexo e gênero emerge nesse contexto, a cirurgia construiria uma genitália masculina ou feminina (pênis ou vagina) e a criança poderia aprender a se comportar de acordo com o gênero correspondente (menino ou menina). Segundo Money, as crianças não deveriam saber o motivo das intervenções cirurgias, pois, isso poderia atrapalhar o seu desenvolvimento sexual "normal".
As pessoas que nos anos anteriores foram submetidas, ainda bebês, aos procedimentos cirúrgicos propostos por Money cresceram, e na década de 1980, começaram a contestar esse tipo de intervenção. Algumas associações foram criadas por pessoas intersex e seus familiares argumentando que as cirurgias "normalizadoras" na verdade construíam corpos mutilados e sem sensibilidade. Os ativistas em vários países lutam para banir as cirurgias "reparadoras" do protocolo médico. Essa seria a "Era do consenso", em que a equipe médica designaria o sexo da criança com ajuda da família do paciente.
As mudanças tecnológicas possibilitaram que não apenas as intervenções nos corpos intersex se transformassem como também a localização do sexo no corpo. O desenvolvimento da biologia molecular permitiu que avaliações genéticas fossem utilizadas a fim de se atingir um "melhor" diagnóstico (Ver: Méllo, 2012). As pesquisas mais recentes defendem que o "responsável" pelo dimorfismo sexual seria o cérebro. Damiani e Damiani e Ribeiro e Setian (2005a) afirmam que o estudo do cérebro será importante para designar o sexo de crianças intersex, pois impedirá inadequações sexuais, como a homossexualidade.
3.1 O que torna um corpo masculino ou feminino?
A Resolução Nº 1.664/2003 do Conselho Federal de Medicina (2003) considera como anomalias advindas da diferenciação sexual as seguintes situações clínicas: genitália ambígua, ambiguidade genital, intersexo, hermafroditismo verdadeiro, pseudo-hermafroditismo (masculino ou feminino), dispensei-a gônada, sexo reverso, entre outras. Para se chegar aos diagnósticos citados a Resolução enumera diversos procedimentos que devem ser obedecidos pela equipe médica. Diversos exames são realizados nos recém-nascidos a fim de identificar o sexo "verdadeiro", tais como: avaliações genéticas, de imagem, clínico-cirúrgica, hormonal e psicossocial.
Sob o olhar "atento" e "treinado" dos médicos, o corpo começa a ser examinado antes mesmo do nascimento. Durante a ultrassonografia o médico já deve identificar e informar qual o sexo do feto. A anatomia dos "órgãos sexuais" é o primeiro local onde recai o olhar médico, que busca atentamente "sinais" que permitam nomear esse corpo como masculino ou feminino. Para isso, é necessário descrever detalhadamente o tamanho do falo, número, calibre, grau de fusão, rugosidade e pigmentação das pregas lábio escrotais. É considerada ambiguidade genital todos os casos que apresentem micropênis e clitoromegalia (Conselho Federal de Medicina, 2003).
O critério para definir se um pênis é "normal" ou um "micropênis" é o seu tamanho, mas o parâmetro que define o tamanho médio de um pênis varia de acordo com a literatura pesquisada. Segundo o Conselho Federal de Medicina (2003) o tamanho mínimo do pênis, em qualquer idade, deve ser superior a 2 cm. Já Damiani e outros (2005b) e Machado (2008) falam em um tamanho a partir de 2,5 cm. Em sua pesquisa Machado (2008) faz referência aos padrões de normalidade que a literatura médica versa em relação ao tamanho máximo do clitóris: 0,9 cm. Observamos que os documentos médicos pesquisados utilizam o termo falo para se referir à genitália do recém-nascido e pênis ou clitóris apenas quando se tem o sexo definido.
O ato de olhar é privilegiado na conduta médica nos casos de intersexualidade. Os médicos que atendem pessoas intersex passam por um "treinamento do olhar" com a finalidade de realizar um diagnóstico preciso, ou seja, decidir se a genitália é ambígua e qual o "verdadeiro sexo".
O uso constante e central de fotografias de pacientes intersex também faz parte do processo de diagnóstico (DORINA, 1980; NARDAR, 1860 citado por PRECIADO, 2008). A centralidade da visão no diagnóstico de intersexualidade também é observada no uso constante de fotografias de pacientes em diversos textos sobre o tema (DORINA, 1980; NARDAR, 1860 citado por PRECIADO, 2008). Essas fotos apresentam os pacientes, com os olhos cobertos por uma tarja preta e as genitálias são fotografas em close, algumas em dois momentos diferentes: no período do diagnóstico e após as intervenções médicas. As imagens dos órgãos internos, também, são analisadas, verificando-se a presença das gônadas (testículos e ovários), útero e o posicionamento da uretra. As fotos dão um "valor de realismo" na "representação" desses corpos, pois a verdade do sexo ganha um caráter de revelação visual, já que, a fotografia expõe uma situação que não poderia ser explicitada de outro modo. São esses critérios somatopolíticos-visuais que permitem que a parte do corpo nomeada como micropênis seja extirpada e "re-desfeita" para dar lugar a uma vagina (PRECIADO, 2008).
Dentre tantos exames, a avaliação hormonal também ganha destaque no diagnóstico. A produção de "hormônios sexuais" (testosterona, estradiol, progesterona, estrogênio, hormônio antimulleriano etc.) e a possibilidade do corpo ser sensível a essas substâncias são fundamentais na designação do sexo. A medicina associa os hormônios à menstruação, ao desenvolvimento da genitália e das características sexuais secundárias (seios, barba, pelos pubianos etc.). Os hormônios teriam a função de "confirmar" se o sexo definido pelos médicos, durante a infância do paciente foi o "correto". A puberdade é entendida pela equipe médica como momento crucial no manejo dos pacientes, pois, a mulher precisa menstruar e não pode apresentar pelos na face; e o homem não pode desenvolver seios ou apresentar testículos pequenos. Vale lembrar que o controle dos hormônios e de outras substâncias por meio do saber médico não ocorre apenas no caso da intersexualidade, mas também, na reposição hormonal durante a menopausa, e no processo de transexualização.
A designação do sexo acontece tanto em um campo macro, com a visualização da genitália, como em um campo micro, a avaliação genética. Esse último método é relativamente recente nos protocolos médicos para o diagnóstico da intersexualidade, e a sua influência é crescente. Segundo o Conselho Federal de Medicina o exame do cariótipo é obrigatório na presença dessa patologia denominada de intersexualidade. Entretanto, a presença dos cromossomos "X" ou "Y" não é determinante para designar o sexo feminino ou masculino. Damiani e outros (2005b) relatam três casos de "homens" com cariótipo "XX"; e o Conselho Regional de Medicina do Paraná por meio do Parecer nº 1726/2006 também descreve o caso de uma "mulher" "XY". Segundo este parecer um caso de Pseudo- Hermafroditismo masculino pode ser assim descrito:
Estas pacientes apesar de serem geneticamente 46, XY, apresentam do ponto de vista hormonal uma total insensibilidade aos hormônios androgênicos desde a vida fetal até a vida adulta. Esta insensibilidade androgênica faz com que a genitália externa destas pacientes seja perfeitamente feminina e não existe qualquer dúvida em se estabelecer o sexo legal, de criação e psicossocial (sic). Tratam-se de "mulheres" totalmente femininas que são criadas como tal e assim devem permanecer. Ao nosso ver (sic) não se faz necessário criarmos dúvidas ou discutirmos os aspectos genéticos à estas pacientes. Devemos orientá-las como portadoras de "amenorreia primária" com conveniente desenvolvimento dos seus caracteres sexuais secundários sendo os mesmos totalmente femininos. (CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA DO PARANÁ, 2006).
Como podemos observar o sexo está em cada parte do corpo e ao mesmo tempo em nenhuma, pois são os conjuntos de marcadores do sexo que permitem a nomeação de um corpo como masculino ou feminino. A orientação da equipe médica em relação ao sexo de criação depende do resultado de inúmeros exames e o que se busca é uma coerência entre anatomia, características secundárias, cariótipo, hormônios e comportamento. Uma coerência entendida como similaridade ao que se considera como "padrão". No caso relatado também é interessante notar que as pacientes não seriam informadas sobre seus aspectos genéticos, para que estes não causassem dúvidas sobre sua sexualidade.
Percebemos em todos os documentos estudados, que o "tradicional" diagnóstico médico, tem uma conotação diferente quando se refere à intersexualidade. Em casos de outras patologias, geralmente a equipe médica, só realiza alguma intervenção quando existe risco a saúde do paciente. No caso da intersexualidade, inúmeros procedimentos são realizados ainda que um corpo intersex não cause danos à saúde, ou que coloque a pessoa assim classificada em risco de morte. O que está em jogo neste tipo de diagnóstico é a busca de uma coerência que sinalize o "sexo verdadeiro", instrumentalizada por meio de exames específicos para ser lido e visto o que está inscrito no corpo.
3.2 Justificativas para intervenção.
Os diferentes documentos pesquisados expõem o quanto é difícil para medicina "tratar" a intersexualidade. O Conselho Federal de Medicina (2003) afirma que o nascimento de um bebê intersex é uma urgência biológica e social:
O nascimento de crianças com sexo indeterminado é uma urgência biológica e social. Biológica, porque muitos transtornos desse tipo são ligados a causas cujos efeitos constituem grave risco de vida. Social, porque o drama vivido pelos familiares e, dependendo do atraso do diagnóstico, também do paciente, gera graves transtornos. (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2003).
A referência ao "social" como maior causador de sofrimento nesses casos, exclui a medicina do lugar de quem primeiro aponta esse corpo como anormal. A médica endocrinologista Spinola-Castro (2005), em um artigo publicado na revista Arquivos Brasileiros de Endocrinologia & Metabologia, fala em urgência mental e social, apesar de criticar as inúmeras cirurgias realizadas logo após o nascimento dessas crianças. Nesse sentido, a autora parece desconsiderar que diagnosticar um corpo como portador de uma patologia, logo após o nascimento, é também uma ação intrusiva.
O diagnóstico precoce, em todos os documentos pesquisados, é motivo de preocupação para a equipe médica. O CFM indica que "pacientes com anomalia de diferenciação sexual devem ter assegurada uma conduta de investigação precoce com vistas a uma definição adequada do gênero e tratamento em tempo hábil" (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2003. Grifo nosso). Percebemos em alguns documentos que se levanta a possibilidade de se adiar a designação do sexo da criança, mas essa ideia é logo descartada (DAMIANI e outros, 2005b). Ativistas intersex, como os integrantes da Intersex Society American (ISNA), advogam que as intervenções médicas devem ser adiadas, até o momento em que a pessoa possa decidir o que fazer (se é que têm algo que deve ser feito) com o seu corpo. Sobre o adiamento das intervenções o Conselho Federal de Medicina orienta:
Um erro na definição sexual pode determinar caracteres sexuais secundários opostos aos do sexo previamente definido. Sempre restará a possibilidade de um indivíduo não acompanhar o sexo que lhe foi definido, por mais rigor que haja nos critérios. Por outro lado, uma definição precoce, mas inadequada, também pode ser desastrosa. Há quem advogue a causa de não-intervenção até que a pessoa possa autodefinir-se sexualmente. Entretanto, não existem a longo prazo estudos sobre as repercussões individuais, sociais, legais, afetivas e até mesmo sexuais de uma pessoa que enquanto não se definiu sexualmente viveu anos sem um sexo estabelecido. (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2003).
A definição do sexo/gênero que encontramos nos documentos médicos se refere à adequação de uma sexualidade heterossexual. A heteronormatividade e a busca pelo "sexo verdadeiro" estão interligados. Os diversos documentos apontam o quanto é temeroso para as equipes médicas a quebra das congruências binárias construídas:
Se dispusermos de métodos que avaliem a característica cerebral de pacientes com anomalias da diferenciação sexual teremos aí um elemento importante para a atribuição do gênero e poderemos, talvez, evitar que mudanças de sexo em idades posteriores ocorram, com grande dose de sofrimento para os pacientes e para seus familiares. (DAMIANI e outros, 2005a, p. 43).
As dúvidas em relação à heterossexualidade dos pacientes, nos casos de intersexualidade, sempre são descritas como um momento de "risco", e é nessa hora que a equipe de saúde mental, constituída por psiquiatras e psicólogos, é requisitada. São esses profissionais quem devem garantir que a escolha por determinado sexo pela equipe médica, é o "sexo verdadeiro". Tais profissionais ainda têm de orientar os familiares das crianças intersex sobre como estas devem ser criadas, pois isso é colocado como parte fundamental para que os procedimentos tenham êxito:
O atendimento dos portadores de anomalias da diferenciação sexual pela equipe de saúde mental visa construir uma relação positiva entre os pais e a equipe médica. Esta intervenção precoce é fundamental para maior fortalecimento emocional e enfrentamento à angústia que a situação provoca. Nesta circunstância, o núcleo social e familiar fica ambivalente e com sentimento de culpa nos primeiros momentos, pois é senso comum que a identidade sexual deve ser construída pelos familiares e sociedade, gerando, assim, forte ansiedade. Os profissionais em Saúde Mental devem considerar o paciente como um ser em desenvolvimento, minimizando as angústias suscitadas no meio social e familiar, ajudando-o a construir sua auto-imagem. (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2003).
Percebemos nesse trecho da Resolução do CFM que o saber médico recorre a se apropria de termos oriundos da área da Psicologia (identidade sexual, autoimagem, etc.) para assegurar as suas intervenções. A concepção de criança como um ser em desenvolvimento, também funciona como justificativa para molda-la. A finalidade do acompanhamento com os profissionais de saúde mental é que futuramente as pessoas diagnosticadas com intersexualidade se "enquadrem" no padrão biomédico, não só de corpo, como também, de sexualidade. Porém, a "equipe de saúde mental", não participa, frequentemente, da decisão sobre a designação do sexo, em casos de diagnósticos precoces. Isso só se modifica quando o diagnóstico de intersexualidade ocorre após a primeira infância, porque aí sim os profissionais da Psicologia são chamados pela equipe médica para auxiliar na identificação (definição) do sexo da criança ou do adolescente. "O paciente que inicia o tratamento na idade adulta deve sofrer (sic) uma avaliação psicológica completa. A identidade psicossexual deve orientar as medidas terapêuticas [...]. O acompanhamento psicológico prolongado dos pacientes e de seus familiares é obrigatório." (DORINA, 1980, p. 43). Essas intervenções devem priorizar um "melhor desenvolvimento psicossexual" dos pacientes.
Pino (2007) aponta que a intersexualidade não é uma doença, no sentido que causa danos a saúde do paciente, mas sim uma condição física que não se insere nos critérios de normalidade corporal que circulam. Nesse sentido o saber médico utiliza o saber psicológico para explicar as cirurgias em recém-nascidos, como indica o trecho abaixo:
O objetivo inicial da cirurgia é permitir que a criança esteja de acordo com o sexo e gênero designados e, também, permitir aos pais um beneficio psicológico. Por questões óbvias, a maioria dos pais não conseguiria suportar essa situação proposta e a urgência para inserir a criança no contexto social é sempre muito grande. [...] Em médio prazo, o objetivo da cirurgia é permitir um crescimento ao menos sem os problemas psicológicos criados pelas diferenças físicas com outras crianças. Em longo prazo, a cirurgia tem como objetivo permitir uma atividade sexual satisfatória. (SPINOLA-CASTRO, 2005, p. 57).
Esse discurso destina os corpos a determinados modos de viver. Ser homem ou mulher informa o que podemos ou não fazer, dizer, viver. Desse modo os "corpos ambíguos" são formados pelo dispositivo da sexualidade, que ao ser pautado no saber médico, institui regimes de verdade, que, retornam legitimando os procedimentos da própria equipe médica. Nenhum dos documentos analisados faculta uma não intervenção. Assim, não existe a possibilidade de se viver um corpo "sem sexo" definido. Por isso as equipes se perguntam incessantemente qual o "sexo verdadeiro" desse corpo?
3.3 Quais as intervenções realizadas nos corpos intersex?
Alex: Já foi alguma vez a sala de cirurgia pra ver como mutilam os corpos?
Alvaro: Ele não mutila corpos, os concerta. Ele faz seios e narizes por dinheiro, mas prefere outras coisas.
Alex: Como o que?
Alvaro: Não sei, deformações. Os caras que nascem com 11 dedos, meu pai tira.
Alex: você disse que ele não mutila, e agora você diz que tira dedos. (Filme: XXY, 2007).
Esse diálogo faz parte do filme XXY (2007) que conta a história de Alex: um jovem intersex cujos pais não permitiram que os médicos realizassem "cirurgias reparadoras" logo após o seu nascimento. Nesse trecho que selecionamos, Alex conversa com Álvaro, filho de um cirurgião plástico que foi visitar sua família. Os dois jovens têm percepções diferentes sobre o trabalho do cirurgião: Alex entende as operações como uma mutilação e Álvaro como concerto ou reparo. Os corpos intersex estão no meio desse campo de disputa, entre o saber médico, que tira pedaços do corpo para "concertá-lo" e os que defendem a não intervenção, como os ativistas intersex e o Movimento Queer. Os procedimentos mais indicados nos textos que pesquisamos são cirurgias "reparadoras" e terapia hormonal (DORINA, 1980; DAMIANI e outros, 2005b). A outra intervenção recomendada é a psicoterapia, mas só quando equipe médica julga ser adequado (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2003).
Percebemos que em todos os documentos analisados há uma prevalência na escolha pelo sexo feminino, no processo de designação sexual dos pacientes intersex (DORINA, 1980; DAMIANI e outros, 2005b). As intervenções para a masculinização do corpo ocorrem geralmente quando o diagnóstico é tardio e a criança nos exames psicológicos indica uma "orientação psicossocial masculina". Quando isso ocorre é indicada a mastectomia (retirada dos seios) e o tratamento com testosterona injetável. O uso de hormônio é indicado para a maioria dos pacientes, geralmente a terapia hormonal é iniciada logo após a determinação do sexo. Os hormônios irão garantir, como mencionado anteriormente, que as características sexuais secundárias sejam "compatíveis" com o sexo escolhido.
Pino (2007) e Machado (2008) confirmam em suas pesquisas a preferência dos médicos pela construção de corpos femininos. O ditado médico, "It's easier to poke a hole than to build a pole." (é mais fácil cavar um buraco do que construir um poste) é usualmente citado em artigos que discorrem sobre intersexualidade. Vejamos mais um texto biomédico:
A preferência quase que sistemática pela criação no sexo feminino baseava-se no conceito de que, do ponto de vista cirúrgico, seria mais fácil construir uma vagina do que um pênis com funcionalidade sexual futura. Pensava-se na identidade feminina como o resultado apenas de uma socialização adequada, o que seria alcançado pela reconstrução cirúrgica do genital externo. (SPINOLACASTRO, 2005, p. 55).
A endocrinologista e psicanalista Dorina (1980) defende que em "crianças com genitália ambígua, a decisão a ser adotada deve pender para a linha feminina, de preferência quando houver anuência da família nesse sentido" (p. 43). Em contraposição a essa postura médica e socióloga Nádia Pino (2007) questiona a escolha usual pelo sexo feminino, apontando que em nossa sociedade seria mais fácil construir corpos passivos, além da preocupação com a homossexualidade feminina ser menos frequente. Os corpos femininos e masculinos são construídos priorizando as características que são esperadas culturalmente em cada gênero: Para o sexo feminino, o primeiro fator considerado é a preservação da capacidade reprodutiva, depois a possibilidade em ter relações sexuais prazerosas e poder ser penetrada por um pênis.
Para o sexo masculino em primeiro lugar preserva-se o tamanho e a possibilidade erétil do pênis, depois a capacidade de sentir prazer, associado à ejaculação e à capacidade de penetrar uma vagina e, finalmente, a reprodução e a possibilidade de urinar em pé. (PINO, p. 04, 2007).
A construção de corpos femininos requer a mutilação da genitália, retirada de parte do clitóris e a construção de uma vagina acompanhada de dilatações vaginais (para ser possível a penetração de um pênis). Muitos ativistas intersex protestam contra esse tipo de tratamento, em que o paciente não é consultado e sofre graves mutilações, perdendo a sensibilidade na genitália. A normalização dos corpos institui quem está autorizado a ter determinadas experiências corporais, quem pode "ser ativo" ou "passivo" em sua relação (como se isso fosse possível!). No caso dos corpos intersex o processo de normatização se torna mais "cruel", pois, esses corpos desde o seu nascimento precisam ser re-(des)-feitos para que sejam adequados aos padrões de homem ou mulher, como se existisse esse homem ou essa mulher normal.
O poder produz saberes e técnicas que possibilitam o controle dos corpos. O poder exercido sobre os corpos foi o que permitiu segundo Foucault (1988/2009b) a construção de saberes sobre a anatomia, fisiologia, sobre o organismo:
O controle da sociedade sobre o indivíduo não se opera simplesmente pela consciência ou pela ideologia, mas começa no corpo, com o corpo. Foi no biológico, no somático, no corporal que, antes de tudo, investiu a sociedade capitalista. O corpo é uma realidade biopolítica. A medicina é uma estratégia biopolítica. (FOUCAULT, p. 80, 1979/2009a).
A medicina como estratégia bio-política dita quais práticas são possíveis e regula a sexualidade da população. Esse saber é um dos poucos autorizados a falar sobre o sexo. Nesse sentido, alguns corpos são interditados ao falar sobre a sexualidade, é o caso dos intersex e seus familiares. A Resolução do Conselho Federal de Medicina (2003) mostra o "novo" posicionamento da equipe médica que deve ficar disponível para falar sobre o caso com os interessados.
Durante toda a fase de investigação o paciente e seus familiares ou responsáveis legais devem receber apoio e informações sobre o problema e suas implicações. No momento da definição final do sexo, os familiares ou responsáveis legais, e eventualmente o paciente, devem estar suficiente e devidamente informados de modo a participar da decisão do tratamento proposto. (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2003).
Fica delimitado nesse trecho quem deve falar sobre a intersexualidade e quem deve ouvir sobre o assunto. A participação de familiares e pacientes durante o tratamento se limita a informação e uma suposta decisão. O CFM (2003) ainda pontua que se o paciente apresentar "condições deve participar ativamente da definição do seu próprio sexo". Questionamos quais seriam as condições que alguém deveria apresentar para poder opinar sobre o seu próprio sexo e corpo, pois percebemos que os documentos médicos analisados, apontaram que as crianças não têm as condições necessárias para decidir sobre o seu corpo, ou seja, a infância permanece sem fala.
O Parecer 1726/2006 do Conselho Regional de Medicinal do Paraná, citado anteriormente, expõe a orientação sobre a conduta médica e as informações dadas ao paciente no caso de intersexualidade. A paciente não sabe o porquê das intervenções (extirpação das "gônadas ou hérnias" e "suplementação hormonal") que serão realizadas em seu corpo futuramente, supostamente, segundo o médico, para não ocorrer nenhum problema relativo à sua sexualidade. No caso da intersexualidade é notório que as pessoas intersex e seus familiares em negociação com o saber médico, não têm o poder de decisão. A médica Spinola-Castro (2005) aponta que as famílias, quando convidadas a falar, raramente se contrapõem as decisões médicas. O saber médico, como detentor de um status de verdade, não é possível ser questionado por leigos no assunto, no caso os familiares e pacientes.
A medicina contribuiu intensamente para instituir um padrão de corpo normal, que estabelece requisitos para considerar um ser como humano. Isso inclui quantidade de dedos, localização dos braços, cromossomos etc. Desta forma, também foi instituído um padrão de corpo masculino e feminino. São medidos e controlados quais hormônios estão presentes no corpo; a quantidade desses hormônios; a presença do pênis e clitóris, o tamanho destes; o crescimento dos seios; o surgimento de pelos, sua quantidade e distribuição pelo corpo. Todas essas características devem estar organizadas para se nomear o corpo como masculino ou feminino e, consequentemente, para ser inteligível a nossa sociedade.
Qual seria a diferença entre um clitóris de 15 cm, caso citado no estudo de Machado (2008), e um pênis com o mesmo tamanho? Saberes institucionalizados acompanhados de tecnologias ditam qual desses dois órgãos é naturalmente constituído para penetrar outro corpo. Nessa mesma lógica, corpos instituídos como masculinos e femininos compartilham os mesmos hormônios, mas apenas alguns estão autorizados a possuir determinada quantidade de hormônio e utilizá-los inclusive sinteticamente. As intervenções médicas tentam transformar esse "corpo abjeto" em um corpo que siga os padrões de normalidade. Mas o corpo não é passivo, ele é fluido e está sempre se transformando e há possibilidades criativas de resistência (MÉLLO, 2012; GALINDO & MÉLLO & VILELA & RONDON, no prelo).
4. Considerações finais
Encontramos nesse caminho, "figuras fantásticas" (remetendo ao Mito narrado no início do texto) que foram condenadas a viver como abjetas, por não terem corpos reconhecidos em padrões de normalidade. Para questionar as normas utilizamos como referência o Movimento Queer (BUTLER, 2002, 1993/2008; PRECIADO 2002, 2008), bem como, autores nacionais que propõem em seus estudos e pesquisa que desnaturalizamos o sexo, o gênero, o social e a própria natureza (MACHADO, 2008; GALINDO & MÉLLO, 2010; LIMA & MÉLLO, 2012; MÉLLO, 2012).
Documentos médicos foram as principais fontes de informações para construção desse caminho, pois, como práticas discursivas, fazem parte da governamentalidade dos corpos. O saber médico foi escolhido como foco, por ser o principal regulador dos corpos intersex e por ter adquirido em nossa sociedade o status e a legitimação de "saber verdadeiro". Desse modo, buscamos através dos documentos médicos, entender como alguns saberes instituem-se como regimes de verdades e determinam modos de viver. A medicina Corpos intersex borrando fronteiras do discurso médico examina, re-des-faz os corpos intersex a fim de que estes sejam normalizados e passíveis a intervenções.
Não buscamos apontar a medicina como vilã e os médicos como carrascos, contudo mostramos como esse tipo de saber contribui para a manutenção de determinados padrões de vida em nossa sociedade, regulando-os. São também efeitos de dispositivos que nós, humanos, criamos e naturalizamos. Mas o modelo biomédico extrapola o campo da medicina articulando-se com outros campos como a Psicologia propondo mecanismos de gerenciamento dos nossos corpos. Desse modo, o saber psicológico circula no discurso médicos e viceversa, para justificar intervenções como nos casos de intersexualidade. A nossa intenção é que questionemos esses saberes e práticas normalizadores e patologizadores, e no caso intersex, que esse "estranho" possa viver borrando as fronteiras e padrões institucionalizados pelo discurso médico.
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Sobre obre os autores:
Ricardo Pimentel Méllo:
Doutor em Psicologia Social (Pontifícia Universidade Católica - PUC/SP).
Professor do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC).
Contato: ricardo_pm@uol.com.br.
Juliana Vieira Sampaio:
Psicóloga e Mestranda no Programa de Pós-Graduação
em Psicologia da Universidade Federal do Ceará.
Contato: julianavsampaio@hotmail.com.
Recebido em: 12/03/2012
Aceito para publicação: 01/11/2012
1. Conceito utilizado por Bruno Latour e um dos pilares da Teoria Ator-Rede. Refere-se a qualquer elemento seja humano ou não que produzem certo efeito em uma rede de relações. Ver: Latour (1994 e 2001).
2. Há uma ampla discussão sobre esse uso de documentos em Méllo (2006).
3. O saber biomédico passou a ser modelo explicativo aos processos de saúde-doença, a partir do séc. XVII que passou a coexistir com outras formas de medicina conhecidas como "popular", "alternativa", etc. Por sua postura universalista a biomedicina é o modelo que se tornou hegemônico (BONET, 1999).
4 Nesse artigo não detalharemos a discursão sobre a classificação desses documentos. Para maiores informações sobre esse tema consultar Sampaio (2010).