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Revista do NUFEN

versão On-line ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.5 no.1 São Paulo  2013

 

ARTIGO

 

 

Depressão: os sentidos do trabalho

 

Depression: the meanings of work

 

 

Virginia Moreira; Regina Heloisa Maciel; Thalita Queiroz de Araújo

Universidade de Fortaleza (UNIFOR)

 

 


RESUMO

Uma pesquisa fenomenológica transcultural sobre a experiência vivida da depressão foi realizada no Chile, Brasil e Estados Unidos, sendo o trabalho uma das temáticas emergentes nos três países. Este artigo descreve um desdobramento daquela pesquisa, estudando especificamente o trabalho em sua relação com a depressão. Com o objetivo de aprofundar esta temática foram re-analisadas aqui, com base no método fenomenológico crítico, as entrevistas de 72 pessoas adultas, de ambos os sexos (n = 30 em Fortaleza, n = 22 em Santiago, e n = 20 em Boston), focalizando o tema emergente trabalho. Os resultados mostram que o desemprego, o excesso de trabalho, a competitividade e a falta de sentido do trabalho são constitutivos da depressão. Para além dos aspectos constituintes específicos presentes nas três culturas estudadas, esta pesquisa mostra como a situação vivida no trabalho pós-moderno, globalizado, contribui para a chamada epidemia de depressão que vivemos nos dias atuais.

Palavras-chave: depressão; trabalho; sofrimento.


ABSTRACT

Abstract A cross-cultural phenomenological research took place in Chile, Brazil and the United States about the lived experience of depression, in which work was one of the emerging themes in the three countries. This article describes a follow up of that research, specifically studying work in its relation with depression. Aiming to develop this issue and based on the critical phenomenological method, the interviews of 72 adults with depression (n = 30 in Fortaleza, n = 22 in Santiago, n = 20 in Boston) were re-analyzed, focusing the emergent theme of work. The results show that unemployment, overwork, competitiveness and lack of meaning of work are part of depression. Beyond constitutive specific aspects in the three studied cultures, this research shows how the lived situation in post-modern globalized work contributes to the so called depression epidemic that we live nowadays

Keywords: depression; work; suffering.


RESUMEN

Una investigación fenomenológica transcultural acerca de la experiencia vivida de la depresión ha sido realizada en Chile, Brasil y Estados Unidos, donde el trabajo ha sido una de las temáticas emergentes en los tres países. Este artículo describe un desdoblamiento de aquella investigación estudiando específicamente el trabajo en su relación con la depresión. Con el objetivo de profundizar esta temática han sido re-analizadas aquí, con base en el método fenomenológico crítico, las entrevistas de 72 personas adultas, de ambos los sexos (n=30 en Fortaleza, n=22 en Santiago, n=20 en Boston), focalizando el tema emergente trabajo. Los resultados muestran que el desempleo, el exceso de trabajo, la competencia y la falta de sentido del trabajo con constitutivos de la depresión. Más allá de los aspectos constituyentes específicos en las tres culturas estudiadas, esta investigación muestra como la situación vivida en el trabajo pós-moderno, globalizado, contribuye para la así llamada epidemia de depresión que vivimos en la actualidad.

Palabras clave: depresión; trabajo; sufrimiento.


 

 

1. Introdução

A depressão tem sido um tema bastante estudado na atualidade em todo mundo, tendo em vista o alarmante aumento de sua incidência: fala-se de uma epidemia de depressão (Berlinck, 2000; Dawson & Tylee, 2001; Ehrenberger, 2000; Kleinman E & Cohen, 2001; Lima, 1999; Moreira, 2002; Moreira & Freire, 2003; Moreira & Callou, 2006; Sam & Moreira, 2012; Schumaker, 2001; Shorter, 2001;). Contudo, se observa uma carência de estudos qualitativos em relação à experiência vivida da depressão e suas consequências para a vida social.

Com o intuito de contribuir para uma melhor compreensão acerca da experiência vivida na depressão foi realizada uma pesquisa fenomenológica transcultural no Brasil, Chile e Estados Unidos, especificamente nas cidades de Fortaleza (Brasil), Santiago (Chile) e Boston (Estados Unidos) (Moreira, 2007). O objetivo era compreender a experiência vivida da depressão em relação a estas culturas especificas. Nos resultados o trabalho apareceu como um dos principais temas emergentes nas falas dos entrevistados nos três países.

Este artigo relata um desdobramento daquela pesquisa. As 72 entrevistas então realizadas (n = 30, em Fortaleza; n = 22, em Santiago; e n = 20, em Boston), foram reanalisadas, visando aprofundar a temática do trabalho na experiência vivida da depressão e buscando identificar os conteúdos que, no dizer dos participantes, revelam as relações entre a depressão e o trabalho.

 

2. O trabalho e suas transformações

O conceito de trabalho é amplo e genérico, implicando a atividade de produção de bens e serviços e o conjunto das condições de exercício na atividade (Braverman, 1987; Cattani, 1996).

O surgimento do trabalho se confunde com o surgimento da própria humanidade, existindo há mais tempo que a própria raça humana e ganhando sua forma organizada primitiva com as práticas de nossos ancestrais (Donkin, 2003).

Castel (1998) faz uma distinção entre trabalho regulado e trabalho forçado. Salienta que os dois conceitos são representativos das duas principais modalidades de organização do trabalho antes da revolução industrial. O trabalho regulado se refere ao "conjunto das regulamentações dos ofícios, ao mesmo tempo os ofícios jurados e os ofícios regidos pelas regulamentações municipais" (p.11), característico da Idade Média. O trabalho forçado (escravidão) corresponde ao uso da coerção, permitindo a acumulação de riquezas ao mercador e a dependência do produtor para com ele, característico da Antiguidade.

Antunes (2005) aponta os vários significados do trabalho no decorrer da história humana, salientando que desde a antiguidade o trabalho possui um duplo sentido: expressão de vida e degradação; criação e infelicidade; atividade vital e escravidão; felicidade social e servidão.

Com o advento da Revolução Industrial, ocorrida no início do século XVIII, o modo de produção se modifica em função de mudanças radicais nas relações sócioeconômicas, privilegiando a liberdade do trabalhador e do consumo (Aquino, 1999). O trabalho adquire, então, um sentido diferente: na venda da força de trabalho ao capital o trabalho torna-se mercadoria (Antunes, 2005; Braverman, 1987). Nas fábricas, o trabalho torna-se atividade imposta, extrínseca e exterior, forçada e compulsória.

O individualismo capitalista e o sentido do trabalho, na atualidade, a chamada reestruturação produtiva, engendram novas mudanças no modo de produção capitalista e, consequentemente, no sentido do trabalho.

As mudanças no sistema econômico acompanham importantes mudanças sociais na direção da competitividade e individualismo exacerbado, gerando assim enorme sofrimento psíquico para todos e, principalmente, para os trabalhadores (Sennett, 2006).

Nessa nova ordem, o indivíduo é submetido a uma realidade massacrante: levado a buscar formas de estar no mundo, cada vez mais efêmeras, acaba por vislumbrar um ideal de realização pessoal que se encontra longe das conquistas internas, primando, desta forma, pelas superficialidades externas que lhes são mais acessíveis e que preenchem este vazio que lhe assola de maneira menos dolorosa.

A valorização do individualismo e do hedonismo cotidiano, no dizer de Cattani (1996), corroem o caráter, no dizer de Sennett (1999, 2006). O ideal de liberdade proposto inicialmente pelo capitalismo, leva à ilusão de que só seremos livres individualmente, refutando os ideais coletivos em favor de um ideal individual. Esses fatores são bastante proeminentes no ambiente de trabalho, palco em que ocorrem desigualdades e disparidades. De um lado se encontram os empregadores que são os detentores do capital e, do outro, encontramse os trabalhadores submetidos a horas de trabalho e cargas de trabalho cada vez mais excessivas, na esteira da chamada precarização do trabalho e, por fim, aqueles que não se adaptam, tornam-se as massas de sub-empregados e desempregados à margem do sistema (Antunes, 2005).

As novas tecnologias e as novas formas de gestão mudam em profundidade os quadros de trabalho, as identidades e as relações profissionais, ampliando as desigualdades. De um lado, definem-se grupos minoritários, com garantias contratuais, estabilidade, planos de carreira, bons salários, etc. De outro, massas crescentes de subempregados, de profissões desqualificadas, desprestigiadas e malremuneradas (Cattani, 1996).

Hoje o trabalho não é mais um espaço onde os indivíduos podem expressar sua criatividade ou potencial, ele se limita, cada vez mais, ao mecanicismo, a tarefas que exigem resultados e lucros imediatos. São fatos como estes que vêm trazendo consequências de ordem psíquica para os indivíduos que atuam nessas configurações.

Sendo o lucro rápido e fácil o principal objetivo das organizações na atualidade, marginalizam-se valores e princípios humanos, os trabalhadores têm que exaurir suas forças, para obterem a maior margem de (Antunes, 2005; Lebauspin & Mineiro, 2002). O que se observa são estas consequências atingindo os vários âmbitos da existência humana. "As pessoas estão emocional, física e espiritualmente exaustas. As exigências diárias do trabalho, da família e de tudo que se encontra entre eles corroem a energia e o entusiasmo dos indivíduos" (Maslach & Leiter, 1999, p.13).

O crescente desgaste provocado pelos ambientes de trabalho cada vez mais exigentes e hostis, que contrasta com os ambientes anteriores, perigosos e exigentes, mas que tendiam a proporcionar certa identidade ao trabalhador faz com que os indivíduos, comecem a padecer de uma espécie de niilismo. Uma das características da reestruturação produtiva é a maneira pela qual se dá a gestão do trabalho. Anteriormente, o controle do trabalho era prioritariamente coercitivo e externo. Nas formas atuais de gestão prevalece o controle sutil: os indivíduos são levados a acreditar que as metas e objetivos impostos são, na verdade, justos e compartilhados (Busnardo, 2003). Os objetivos da empresa são introjetados e o controle de externo passa a ser internalizado pelos sujeitos, em uma espécie de "usurpação" do desejo. Nessas condições, os trabalhadores passam a não mais encontrar razões para exercer suas funções, mostrando-se descrentes e pessimistas. O trabalho, embora ainda central para a identidade, deixa de exercer uma função organizadora e estruturante nos indivíduos, passando a ocupar um lugar de desvalorização do humano, afetando os vínculos sociais que se estabelecem nos locais de trabalho e com familiares e amigos.

Em função disso, nas últimas décadas, tem crescido o número de estudos que procuram investigar a relação entre o trabalho e a ocorrência de distúrbios emocionais e sociais, incluindo os estudos sobre o assédio moral no trabalho (Einarsen, 2005; Maciel, Cavalcante & Matos, 2007) que representam, de forma conspícua, a corrosão das relações de trabalho.

Na medida em que o trabalho se torna mais vazio de significados, faz com que aqueles que nele estão inseridos, sintam-se desamparados, perdidos, frustrados. Ao sentirem que o trabalho que desempenham está desvinculado de sentido, os indivíduos acabam por ficar desprovidos de anseios, de desejos e expectativas em relação ao seu espaço profissional; ficando, então, a mercê dos anseios das organizações.

Cremos que a compreensão do vivido no trabalho produz o sentido e este sentido produz o sujeito. O trabalhador pretende significar a estranheza do mal que lhe acomete. O trabalhador, alienado de seu desejo, sujeito em si mesmo, automático em sua ação, que está subordinada e não referenciada no desejo do outro (Codo & Sampaio, 1995).

Por sua vez, a falta de significado na vida é um dos componentes dos quadros depressivos:

O conceito de viver significativamente parece-me útil para elucidar o significado ideológico da depressão na contemporaneidade. (...) As pessoas trabalham, mas não sabem por que trabalham, vivem, mas não sabem por que ou para que viver, pois atuam na vida de forma automática, seguindo impulsos que, como vimos, frequentemente são impulsos ideológicos que constituirão comportamentos ideologicamente determinados (Moreira, 2002, p.202).

 

3. Saúde Mental e Trabalho

A relação saúde/doença é um processo histórico, cuja dinâmica baseia-se em três dimensões, interdependentes e, às vezes, contraditórias: biológica, psicológica e social.

A dimensão biológica e genética expressa transformações sucessivas ao longo do tempo. O fisiológico e o psicológico são campos de transformações mais imediatas do que o biológico: "O indivíduo está na sociedade e a sociedade está no indivíduo". (Codo & Sampaio, 1995, p. 89).

A saúde mental, conceituada por Pichon-Riviére (1995), enfatiza a relação mútua entre sujeito e doença mental. A saúde mental é o aprendizado da realidade, através da compreensão, enfrentamento e manejo criador/integrador dos conflitos.

Fernandes, Melo, Gusmão, Fernandes e Guimarães (2006) em uma revisão sobre o tema saúde mental e trabalho classificam e descrevem cinco vertentes analíticas utilizadas na compreensão do fenômeno: desgaste, condições gerais de vida e trabalho, estresse, ergonomia e psicopatologia do trabalho. Segundo os autores, cada uma delas fornece aportes importantes sobre a relação em estudo. Dentro da abordagem do desgaste, procura-se verificar quais são as condições de trabalhão passíveis de provocar, dada a sua carga elevada, distúrbios mentais. Dentro dessa linha, encontram-se estudos de cunho mais objetivo que buscam estabelecer relações causais entre aspectos do trabalho e saúde mental. A segunda abordagem tenta uma visão mais holística, fazendo ligações entre as condições laborais e sócioeconômicas dos indivíduos como produtoras de saúde e bem estar. O estudo do estresse é uma vertente parecida com a abordagem do desgaste, com a utilização da variável interveniente estresse como mediadora do processo, isto é, o desgaste ocorre ou não dependendo da apreensão das condições internas e externas pelo indivíduo. Assim também a abordagem ergonômica procura evidenciar as inter-relações entre os vários aspectos das condições e organização do trabalho, centrando sua análise sobre a atividade do trabalhador, para verificar as repercussões dessas sobre a saúde mental. Na psicodinâmica do trabalho, por outro lado, a saúde mental é um processo dinâmico e multifacetado, envolvendo as estruturas organizacionais, a organização do trabalho, as relações intersubjetivas e os trabalhadores enquanto sujeitos do processo. Cabe a eles a integração e resolução do sofrimento envolvido. O aparato psíquico é o lugar privilegiado onde se expressam os efeitos da organização e condições de trabalho (Dejours, 1984).

A preocupação com a relação saúde mental e trabalho é relativamente moderna, na medida em que as transformações no mundo do trabalho levaram ao aparecimento de um número maior de afastamentos e queixas dos trabalhadores relacionados ao cansaço, angústia, apreensão, medo e depressão (Kalman, 2004).

Tennant (2001), a partir da abordagem do estresse, relaciona as condições e organização do trabalho ao aparecimento da depressão. Em uma revisão extensa sobre o assunto concluí que experiências de estresse relacionadas ao trabalho contribuem para a depressão e que fatores ocupacionais "estruturais", que podem ser diferentes, dependendo da ocupação, também podem contribuir para desordens psicológicas.

Queiroz (2003), estudando a fadiga em operadores de teleatendimento, mostra como os indivíduos, que apresentam um menor índice de fadiga, são menos afetados pela introjeção das metas e objetivos da instituição, desenvolvendo estratégias psíquicas eficientes para o enfrentamento de suas condições de trabalho.

Assim também, Busnardo (2003) divide seus entrevistados-trabalhadores em três grupos de indivíduos: os que encarnam as metas da empresa como suas; os que percebem a relação perversa embutida na política gerencial, mas não conseguem ter uma visão mais crítica sobre ela, e os que percebem e combatem a nova ordem. Neste último grupo, encontram-se os trabalhadores com mais de 15 anos de empresa e que, na vivência histórica, estabelecem uma separação mais saudável entre os objetivos coletivos dos trabalhadores e os do capital.

A partir deste cenário atual das condições de trabalho é que foram levantadas algumas hipóteses sobre as causas do adoecimento emocional dos indivíduos de nossa pesquisa original. Não foi por acaso que o trabalho apareceu como tema associado à experiência vivida na depressão no Brasil, no Chile e nos Estados Unidos (Moreira, 2007).

O ambiente de trabalho vem influenciando consideravelmente a vida dos indivíduos, especialmente porque é no trabalho que o indivíduo passa a maior parte de seu tempo e onde estabelece grande parte de seus vínculos sociais. Se o ambiente e os vínculos estabelecidos forem pobres e hostis, pode-se pensar em um adoecimento. O ambiente de trabalho se torna um local propício para o aparecimento de patologias de toda ordem, em especial das psicopatologias, sendo a mais comum delas a depressão.

 

4. Procedimentos Metodológicos

A metodologia da pesquisa que originou este estudo considerou a população de pacientes diagnosticados com depressão, ou com uma história de depressão, no Brasil, Chile e Estados Unidos. A amostra completa daquela pesquisa transcultural consistiu de 72 adultos, 22 no Brasil, 20 no Chile e 20 nos Estados Unidos. Cada sub-amostra foi composta tanto por homens como por mulheres. Os sujeitos colaboradores foram convidados a participar da pesquisa no Núcleo de Atendimento Psicológico (NUSPA), na Universidade de Fortaleza (UNIFOR), e no Centro de Atendimento Psicossocial (CAPS) em Fortaleza; no CAP – Centro de Atención Psicológica, de la Universidad de Santiago de Chile em Santiago; e no Center House, em Boston. As entrevistas foram realizadas por bolsistas de iniciação científica com treinamento no método fenomenológico, em Fortaleza e em Santiago, em pela pesquisadora principal desta pesquisa em Boston. O critério de inclusão era que o sujeito-colaborador tivesse uma história de depressão, fossem nativos e residentes respectivamente no Brasil, Chile e Estados Unidos, adultos entre 25 e 55 anos com educação escolar média, que assinassem uma declaração escrita de que desejavam participar da pesquisa (MOREIRA, 2007; 2009).

A pergunta norteadora da entrevista, usando o modelo fenomenológico de pesquisa, foi: "Que relações você encontra entre seu modo de viver e a sua depressão?". As entrevistas foram transcritas, (respectivamente para português, espanhol e inglês) e duraram em torno de 30 a 60 minutos. A análise da informação foi analisada de acordo com Moreira (2004; 2009), através dos seguintes passos: a) Transcrição da entrevista; b) Divisão do texto original (transcrição literal da entrevista) em seções, de acordo com o seu "tom" (Moreira, 2001); c) Análise descritiva dos significados que emergiram de cada seção; e d) "Saindo dos parênteses." O foco da análise, neste quarto passo, é o retorno à hipótese (em termos fenomenológicos, "colocando entre parênteses" significa que a hipótese será esquecida durante os primeiros passos para que, então, o pesquisador esteja aberto e atento a todos os conteúdos que emergem – o fenômeno – e não somente ao que ele está procurando). As entrevistas foram transcritas em seu idioma de origem e, em seguida, analisadas fenomenologicamente (Moreira, 2007; 2009).

Tal como havia sido feito na pesquisa anterior, foi utilizado o método fenomenológico critico para re-analisar as entrevistas. Foram re-analisadas fenomenologicamente, com base no método fenomenológico crítico (Moreira, 2004, 2009), as entrevistas de 72 pessoas adultas, de ambos os sexos, que tinham o diagnóstico de depressão (n = 30 em Fortaleza, n = 22 em Santiago, e n = 20 em Boston), que constituíram a amostra da pesquisa anterior sobre a depressão no Brasil, no Chile e nos Estados Unidos (Moreira, 2007; 2009). A reanálise teve como foco o tema emergente "trabalho". Este desdobramento, aqui relatado, teve como objetivo aprofundar a compreensão da relação entre trabalho e depressão.

As etapas utilizadas na re-análise destas entrevistas foram: 1) Divisão da entrevista transcrita em movimentos, segundo o tom da mesma buscando suas articulações de sentido; 2) Análise descritiva dos significados emergentes de cada movimento com foco no trabalho, ou seja, foi analisado em que medida o tema trabalho estava presente nos significados emergentes das falas dos sujeitos colaboradores; e 3) "Sair do parênteses", quando focalizamos especificamente a mútua constituição entre trabalho e depressão na experiência relatada pelos entrevistados, articulando com a revisão teórica que havíamos "colocado entre parênteses", sempre lembrando, com Merleau-Ponty (1945) que a redução nunca se completa, ou seja, nunca deixamos totalmente de lado nossos conhecimentos já que somos inerentemente enraizados no mundo, como seres mundanos (Moreira, 2004; 2007; 2009).

 

5. Resultados e Discussão

Das 72 entrevistas re-analisadas, 17 tinham o trabalho como tema associado à depressão (n = 8 em Fortaleza, n = 7 em Santiago, n = 2 em Boston). Encontramos os seguintes sub-temas relacionados ao trabalho:

5.1. Excesso de trabalho e estresse

No Brasil e no Chile os entrevistados se referem em suas falas ao excesso de trabalho e estresse, associados à sua depressão:

Eles eram assim: eles queriam tudo pra ontem, sabe? Não perdoavam um erro seu. Era uma brutalidade, tratavam como se a gente fosse escravo e eu sou muito sensível, sou muito sentida. Aí eu chorava todo dia... Todo dia eu chorava acolá. Como se quisesse mesmo obrigar a gente a pedir as contas pra não pagar a gente o direito que a gente tem. (pausa). Aí, eu fiquei muito nervosa, eu fiquei machucada, aí eu cheguei aqui foi que a moça me deu licença e eu tô de licença até hoje. Aí eu não me recuperei do meu problema.

"Mi trabajo es estresante, es, es loco digo yo, es estresante, es un trabajo, con mucha bulla, mucho teléfono, radio, grito, cliente, respuesta, malos tratos de repente, peleas entre compañeras por un servicio, por otro, es estresante".

O estresse e a angústia podem ser desencadeados por vários fatores desfavoráveis no ambiente de trabalho, desde aspectos físicos como a contaminação do ambiente, máquinas e equipamentos inseguros e inadequados, entre outros, a aspectos organizacionais, entre eles, o excesso de trabalho, a alta demanda e a falta de flexibilidade. Estes últimos têm sido mais fortemente apontados como desencadeadores de transtornos mentais e vêm sendo uma constante na atual configuração dos ambientes de trabalho. (Figueiroa; Schufer; Muiños; Marro & Coria, 2001; Glina, Rocha, Batista & Mendonça, 2001; Maslach E & Leiter, 1999).

Observa-se que o excesso de trabalho não aparece na amostra norte-americana, mas apenas nas realidades brasileira e chilena. O excesso de trabalho tem, possivelmente, uma conotação positiva nas realidades norte-americana e canadense: não é raro encontrar os chamados workaholics, pessoas viciadas em trabalho que tendem a investir todas as suas energias no trabalho, excluindo as outras partes de suas vidas (Kemeny, 2002; Porter, 2001; Robinson, 2000). Para algumas empresas, os workaholics são vistos como funcionários exemplares, devido à sua disposição para o trabalho (Peiper & Jones, 2001).

5.2 Desemprego

Tanto brasileiros, como chilenos e norte-americanos associam a sua depressão à experiência de desemprego:

(A depressão) é problema mesmo de família desempregada, né? Os filho da gente não tem emprego, a gente tem que dá de comer, o salário do marido é pouco, aí a gente fica mais assim, dependendo dos filho, a gente não quer ver ninguém sofrer, principalmente sendo os filhos da gente, né? Aí as crise da gente vem e aumenta mais, a depressão da gente aumenta mais.

"(...) se eu ganhasse na loteria eu ficava bom da depressão na hora!"

En realidad lo que a mi mas me, me preocupa es, es la situación económica no mas, ah eso me lleva todo al, al no en la boca, y porque mis hijos, tengo 3 niños estudiando y en realidad no me exigen, pero piden, entonces yo con el no, no, y también me hace mal eso.

Ah, I feel depressed when I‘m not working, when I don't have the money, you know, I get depressed like that and I feel depressed when I don't have enough food to eat when I don't have the money to supply.

Ainda que esteja presente também na chilena e norte-americana, a questão do desemprego associada à depressão apareceu principalmente na realidade brasileira, onde os entrevistados se referem com bastante frequência a esta situação. Este resultado reflete as economias dos três países e se relaciona, provavelmente, ao maior amparo que os desempregados têm no Chile e Estados Unidos. No Brasil, no entanto, o desemprego vem, em geral, acompanhado de grande insegurança em relação ao próprio futuro e ao da família, sendo frequentemente associado à depressão (Santos, 2007; Santos, 1992; 2000).

5.3. Insatisfação com a função

A insatisfação com o tipo de trabalho é associada à experiência de ter depressão na fala de um entrevistado no Brasil:

É, se eu mudasse de emprego, mudasse de função, ou se eu mudasse de emprego. Eu acho que talvez eu conseguisse melhorar, pelo menos o meu potencial, assim o meu dia-a-dia, o estresse, eu acho que talvez diminuísse um pouco. Talvez eu ficasse um pouco mais feliz, fazendo o que eu realmente gosto. Porque lá no hospital, fugiu totalmente o que eu fazia antes. Aí fui remanejada de setor. Me tiraram da enfermagem para fazer supervisão e é uma coisa que eu acho que não me faz muito bem. Aí depois eu não estou mais na supervisão, fiquei com todas as compras do hospital. É uma coisa que eu não gosto de fazer.

Atualmente, com as novas formas que o trabalho vem adquirindo, os indivíduos encontram-se constantemente diante do conflito de exercerem funções que não lhes proporcionam prazer. O trabalho vem deixando de ser um local de realizações pessoais, para tornar-se um local de frustrações, onde os indivíduos não se reconhecem mais nas tarefas que executam. Dejours (1984) descreve bem essa condição, relacionando-a aos ambientes de trabalho e Sennet (2006) mostra como a cultura do novo capitalismo, altamente individualista e descompromissada, destrutiva em relação aos vínculos afetivos, torna os espaços sociais do trabalho cada vez mais hostis e frios, que exigem dos indivíduos adaptações psicológicas nem sempre saudáveis. As pessoas não exercem uma determinada função por gostarem ou se sentirem motivadas, mas por necessidade. Necessidade essa, por sua vez, proveniente do empregador e não do empregado. As consequências disto é que as pessoas estão se tornando descrentes, mantendo-se distantes e procurando não se envolver emocionalmente (Maslach & Leiter, 1999), o que contribui, segundo os entrevistados, para a depressão.

5.4. Baixo salário

No Chile o baixo salário faz parte do fato de ter depressão:

También el problema económico, eso también influye harto, porque mi marido no es un buscador de vida, él trabajó todo el tiempo, desde yo que lo conozco en una empresa y la empresa, en vez de aumentarle los sueldos se lo han ido rebajando, rebajando, que en estos minutos están en cien mil pesos y el que quiere trabaja y el que no se va, y él lleva 27 años en esa empresa y siempre ha estado ahí, y digo yo que se cambie, que busque otros horizontes, me dice no porque ya estoy viejo, a donde me van a recibir, y siempre ha estado ahí, entonces yo tengo que hacer, maravillas con la plata, con todo, y si no me alcanza.

Neste trecho é apresentado o caso de uma mulher chilena que se angustia com a baixa remuneração do seu marido, a qual ela julga não ser justa, visto que ele trabalha a muitos anos na mesma empresa. A questão salarial é uma constante no mundo atual do trabalho. Os funcionários se sentem doando cada vez mais seu tempo, levando trabalho para casa, trabalhando depois do horário, mas não se vêem recompensados. Isto gera mais sofrimento para os indivíduos, visto que não se sentem reconhecidos pelo seu trabalho, levando ao desgaste físico e emocional.

A questão dos baixos salários é mais freqüente nos países em desenvolvimento e se relaciona com a questão anterior do desemprego, aumentando a angústia e levando à depressão. No Brasil, por exemplo, a relação entre baixos salários e desemprego é evidente, como afirmam Barros, Corseuil e Cury (2000). A situação é perversa uma vez que, mesmo insatisfeito com o trabalho e o salário, os trabalhadores percebem que o afastamento desse trabalho não é possível, pois têm poucas chances de conseguir um outro emprego.

5.5. Competitividade

A questão da competitividade como associada à depressão aparece explicita nas falas norte-americanas: "I remember, I had like hummm (pausa) ‘work depression' (…) Yeah, I had work depression (…) You know, it's hard, it's like if I do no good, you know, what ever I do I do no good".

Neste trecho, um cidadão americano retrata sua depressão como tendo origem no trabalho: uma "work depression" (depressão do trabalho). Ele relata que tenta sempre fazer o melhor, que quer estar no topo, sem nunca chegar lá, e isso o deprime. Neste caso, o reflexo da cultura capitalista norteamericana, eminentemente competitiva, fica evidente (Antunes, 2005; Sennett, 2006).

Este modelo vem sendo incorporado pelos países em desenvolvimento, como o Brasil, em especial nas empresas privadas, onde as estratégias utilizadas para o aumento da produtividade estimulam a competitividade interna. Algumas práticas e políticas das empresas exaltam aqueles que produzem mais, como a eleição do funcionário do mês. Esse funcionário é, em geral, aquele que trabalha muito, produz muito, está sempre sorrindo e ainda consegue ter um bom relacionamento interpessoal com os colegas. Muitas vezes são colocadas fotos desses funcionários em um local onde todos possam ver, para servir de "exemplo" para os demais. Esta prática acaba por gerar nos funcionários, principalmente naqueles que não estão dentro dos padrões exigidos, um sentimento de incapacidade e de insegurança, levando, portanto, a sentimentos depressivos e baixa auto-estima.

A situação foi descrita por Aubert (2001) como "neurose da excelência". A "neurose da excelência" decorre da "luta constante que mantemos para satisfazer os ideais de excelência que caracterizam nossa sociedade e que certas empresas encarnam com particular acuidade". Nesse contexto, o indivíduo adquire a personalidade da empresa em detrimento de si mesmo, seus ideais não são seus, mas de outros, da empresa. Trata-se de uma situação perniciosa, de uma violação da personalidade e usurpação dos objetivos e desejos individuais, que incita os indivíduos a irem além de seus limites e a competirem entre si, violentando sua saúde e bem estar.

 

6. Conclusão

Este estudo corrobora as pesquisas que mostram o sofrimento a que levam as novas configurações em que o trabalho vem se estruturando. Como o fenômeno é mundial, dadas as possibilidades de comunicação e competição, provenientes da chamada globalização, as experiências vividas, em relação ao trabalho ou ao não trabalho, são bastante similares, incluindo suas conseqüências, entre elas, a depressão.

No entanto, dado seu caráter qualitativo, que, vale lembrar, não tem o intuito de generalizações, este estudo contribui para uma compreensão mais acurada da experiência vivida, indicando que, ainda que similares, a experiência vivida se diferencia qualitativamente em alguns pontos nos três países, indicando que a situação, bem como a cultura, são constitutivos da depressão, tanto quanto seus aspectos bioquímicos (Moreira, 2002; Moreira, 2007; Moreira & Freire, 2003). Não se trata de pensar que a cultura influencia a patologia da depressão, mas sim de compreender como cada cultura é constitutiva da experiência de adoecer.

Assim, pode-se observar que o desemprego – o não trabalho – foi colocado apenas no Brasil e no Chile, países em desenvolvimento; este tema não aparece nos Estados Unidos. Uma outra diferença que chama a atenção é o fato do excesso de trabalho, que aparece no Brasil e no Chile, também não estar presente nas falas dos entrevistados nos Estados Unidos como algo que gera sofrimento e contribui para a depressão. Isto possivelmente estaria relacionado a aspectos culturais daquele país, onde o excesso de trabalho seria algo "bem vindo" em uma cultura de hiper-valorização do trabalho. Por outro lado, ainda que a competitividade apareça nas entrelinhas das falas brasileiras e chilenas, nos norteamericanos ela é marcante a tal ponto que leva um dos sujeitos colaboradores a nomear sua experiência de "depressão do trabalho", o que, possivelmente, também estaria relacionado à cultura excessivamente competitiva norte-americana. Para além dos constituintes específicos presentes nas três culturas estudadas, esta pesquisa mostra como situação vivida no trabalho pósmoderno, globalizado, contribui para a chamada epidemia de depressão que vivemos nos dias atuais.1

 

 

Referências

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Nota sobre os autores
Virginia Moreira:
Doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
Pós-Doutora em Antropologia Médica pela Harvard University,

Professora Titular do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade de Fortaleza – UNIFOR.
e-mail: virginiamoreira@unifor.br.

Regina Heloisa Maciel:
Doutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo,
Professora titular do Programa de Pós Graduação em Psicologia da Universidade de Fortaleza – UNIFOR.
e-mail: rhmaciel@fortalnet.com.br.

Thalita Queiroz de Araújo:
Graduada em Psicologia pela Universidade de Fortaleza.
e-mail: thalitaqueiroz@hotmail.com

 

Recebido em: 03/05/2013
Aceito em:24/06/2013

 

 

1 Agradecimentos: A primeira autora agradece à FULBRIGHT, CAPES e UNIFOR pelo financiamento da pesquisa como projeto de Pós-Doutorado no Departamento de Medicina Social de Harvard Medical School (2002-2003), que originou o estudo relatado neste artigo. Agradece ainda à Byron Good (DSMHARVARD), Irene Magaña (USACH-Chile), Karynne Melo (UNIFOR), Mary Gregorio (Center House, Boston) e à equipe do Laboratório de Psicopatologia e Psicoterapia Humanista Fenomenológica Crítica - APHETO por suas preciosas contribuições.