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Revista do NUFEN
versão On-line ISSN 2175-2591
Rev. NUFEN vol.8 no.1 Belém 2016
Artigo
Grupos existenciais para conscientização de homens
Existential groups to raise awareness of men
Grupo existencial para concientización a hombres
Adelma Pimentel
Universidade Federal do Pará
RESUMO
Este artigo apresenta uma intervenção clínica chamada de Grupo Existencial inspirada na fenomenologia gestáltica, obra de cooperação científica entre o Núcleo de Pesquisas Fenomenológicas e o Núcleo Especializado de Atenção ao Homem, ligado a Defensoria Pública do Pará. O grupo foi composto por 10 participantes objetivando oferecer a homens entre 31 e 70 anos um espaço e um tempo privado para a expansão consciente do contato. Foram realizadas 10 sessões com abordagem das contribuições de cada um para o acontecimento violento, entre elas modos do casal realizar escolhas; tomar decisões e atitudes; modo de falar e silenciar, impor a vontade; estigmas e estereótipos sobre identidade, subjetivação e sociabilidade de homens e mulheres. Entre os resultados ocorreram redução dos atrasos, das desconfianças e dos ânimos negativos dos participantes, e reflexões sobre diferenças entre os controles para subjetividade exercidos por homens e mulheres. Concluindo: o grupo existencial ofereceu experiências de autocontato, de conscientização crítica e de escuta sem julgamentos. Os vínculos entre participantes e equipe favoreceram a expressão de emoções íntimas. Para os resultados das vivencias serem consolidados é necessário flollow-up do casal.
Palavras-chave: Grupo; Homens; Gestalt; Violência conjugal.
ABSTRACT
This paper presents a clinical intervention called Existential Group inspired by the gestalt phenomenology, work of scientific cooperation between the Center for Phenomenological Research and the Specialized Center of Attention to man, on the Public Defense of Pará. The group was composed of 10 participants aiming to provide men between 31 and 70 years a space and a private time for the conscious expansion of contact. 10 sessions were made addressing the contributions of each to the violent event, including ways of the couple make choices; make decisions and attitudes; way of speaking and silence, impose the will; stigmas and stereotypes of identity, subjectivity and sociability of men and women. Among the results occurred reduction of delays, of mistrust and of negative mood of the participants, and reflections on differences between the controls for subjectivity made by men and women. In conclusion, the group offered existential self-contact experiences, awareness and critical listening without judgment. The bond between participants and staff favored the expression of intimate emotions. For the results of the experiences, being consolidated is necessary follow-up of the couple.
Keywords: Group; Men; Gestalt; Domestic Violence.
RESUMEN
El seguinte artículo presenta una intervención clínica llamada “Grupo Existencial” inspirada enlafenomenologíagestáltica, trabajo de cooperación científica entre el Núcleo de Pesquisas Fenomenológicas y el Núcleo Especializado de Atenção ao Homem, vinculado a la Defensoria Pública do Pará. El grupo estaba integrado por 10 participantes, conel objetivo de ofrecer a hombres de 31 a 70 años de edad, unespacio y untiempo privado para laexpansión consciente de contacto consigo mismo Se realizaron 10 sesiones, enfocadas enlascontribuciones de cada uno para el evento violento, algunas de estas fueron: los modos de parejas para realizar elecciones, tomar decisiones y actitudes; los modos de hablar y estar en silencio, de imponerlavoluntad y los estigmas y estereotipos sobre laidentidad, subjetividad y sociabilidad; de hombres y mujeres. Entre los resultados, sucedido lareducción de los atrasos, de ladesconfianza y del estado de ánimo negativo de los participantes; también se dieron reflexiones sobre las diferencias entre los controles de la subjetividade, ejercidos por hombres y mujeres. Enconclusión: El “Grupo Existencial”ofrecióexprencias de autocontacto, de concientización crítica y de escuchasinjuzgar. Los vínculos entre los participantes y los integrantes del grupo, favorecierónlaexpresión de las emociones íntimas. Para que los resultados de las vivencias sean consolidados, es necesarioflollow-upe lapareja.
Palabras-clave: Grupo; Hombres; Gestalt; Violencia doméstica.
INTEGRANDO UM CICLO
O artigo apresenta resultados de uma intervenção clínica que denominei Grupos Existenciais de conscientização, inspirada na Psicoterapia breve em grupo com acréscimo de uma temática previamente delimitada: a reflexão sobre o ato de violência entre cônjuges devido a mesma ser fruto de cooperação científica entre o Núcleo de Pesquisas Fenomenológicas (NUFEN) e o Núcleo Especializado de Atenção ao Homem (NEAH), ligado a Defensoria Pública do Pará.
Os participantes no Grupo existencial de conscientização foram acionados por suas companheiras/esposas e sentenciados pela justiça ao cumprimento de pena alternativa sob a égide da Lei nº 11.340/2006, denominada Maria da Penha1. Durante a facilitação grupal observei que o sofrimento humano estava associado a um sentimento de “injustiça” de gênese subjetiva, ou seja, os homens que integravam o grupo não relacionavam a ação violenta contra a companheira a uma conjugação de vetores, por exemplo: frutos da elaboração pessoal de uma apreensão das ideologias sociais sobre o masculino, e da socialização patriarcal que provoca distorções na percepção dos sujeitos sobre o vinculo conjugal. Na dimensão psicológica, minha impressão psicodiagnóstica é que a inclusão ocorreu pela ausência de autocontato e ajustamento social criativo durante os conflitos e desentendimentos conjugais, o que implicou em ações de agressão.
Considero que o grupo pode ser ponto de start para outras reflexões sobre a subjetividade e as formas de sociabilidade dos homens. Optei pelo uso da nomenclatura Grupo existencial de conscientização por ter que lidar com duas limitações institucionais impostas pela contenção de gastos públicos: redução do numero de sessões, e a obrigatoriedade dos homens, em cumprirem a participação no grupo como parte da sentença judicial.
Os princípios que fundamentaram a prática clínica foram: a abordagem da violência conjugal baseada no principio ontológico-existencial do cuidado em três dimensões integradas: o cuidado de si, o cuidado com o outro e o cuidado com o contexto (Ayres, 2004); a inviabilidade de cultivar e manter práticas violentas nas relações conjugais; a inarredável postura de conceber a equidade e a horizontalidade no fluxo e circulação do poder; a importância de criar um contexto de escuta em que os homens possam se auto-observar, identificando pontos de entrave na forma que se posicionam ante a relação conjugal.
O NEAH cumpre ações na interface educação-justiça-saúde; foi constituído, em 2012, como serviço multiprofissional integrado por advogados, psicólogos, assistentes sociais e pedagogos. Sua filosofia é baseada nas diretrizes do Programa de Fomento às Penas e Medidas Alternativas (NEAH, 2013; Lopes, 2012). Para conter a violência conjugal e orientar os homens que a cometem em conjunto com a Rede Especializada ao combate à violência doméstica e familiar promove estudos, realiza prevenção na escola e faz uma associação com instituições não governamentais de direitos.
A rede de atendimento às mulheres inclui o Tribunal de Justiça do Estado através do grupo interinstitucional de trabalho e prevenção à violência doméstica e familiar; juízes titulares da 1ª e 2ª varas de juizado de violência doméstica e familiar; Defensoria Pública, Ministério Público; núcleos de prática jurídica nas universidades; delegacias de polícia. Por sua vez, a rede de saúde é composta por assistentes sociais, psicólogos, médicos clínicos e psiquiatras, enfermeiras, policiais, advogados, pedagogos, entre outros. As portas de entrada são os hospitais públicos e privados; Unidades Municipais de Saúde; casas especializadas; estratégia saúde da família, Fundação Santa Casa de Misericórdia; assistência social nos CRAS e CREAS. Em todos os locais há que ser preenchida a ficha de notificação2 de violência, anexando-a ao prontuário para encaminhamentos. (disponível em http://portalsinan.saude.gov.br/).
No Pará, campo da saúde, a Secretaria Estadual de Saúde instituiu a Coordenadoria de Saúde do Homem, implantando um plano de trabalho regulamentado pela portaria 2.708, de 17 de novembro de 2011. De acordo com o plano, no estado há 2.537.790 homens na área urbana; 1.284.047 na área rural, e 1.964.780 homens de 20 a 59 anos nas áreas urbana e rural. Os dados epidemiológicos distinguem nesta faixa etária que 11.455 homens vivenciam sofrimento psíquico por transtornos mentais e comportamentais. (SESPA, 2011).
Considero que as intervenções no campo da mudança de postura dos homens requerem a integração nas ações de saúde, educação, direitos humanos e justiça social sustentada na Convenção de Belém do Pará (1994) que considera a violência contra a mulher uma questão de saúde pública que atinge todas, independentemente de raça, etnia, nível socioeconômico e idade. Nos espaços de inteligibilidade em que os homens são educados, instruídos e sociabilizados há uma premissa que ocasiona uma constante tensão entre o que sentem, a ideologia sobre masculinidade heterossexual e as expressões singulares, que grande parte do tempo é organizada de modo inautêntico (Buber, 1982).
Medito que, homens que se deixam conduzir de modo inautêntico são subsumidos pelo estereótipo da “natureza humana universal” e da naturalização dos gestos de agressão e violência; e que homens que procuram a expressão autêntica são considerados em movimento, cujas práticas aproximam-se da suspensão da obrigatoriedade em distanciar-se do universo associado às mulheres.
A partir da vigência da Lei Maria da Penha, apenas em cinco Unidades da Federação (UF) foram registradas quedas nas taxas: Rondônia, Espírito Santo, Pernambuco, São Paulo e Rio de Janeiro. Nas 22 UFs restantes, no período de 2006 a 2013, as taxas cresceram com ritmos extremamente variados: de 3,1% em Santa Catarina, até 131,3% em Roraima (Mapa da Violência 2015. Homicídio de mulheres no Brasil, p.18).
Como reflexo do aumento de mortes, homens estáticos qualificam de “amor” a objetivação das mulheres, e as assassinam sustendo sua ação na violência de gênero, e em opiniões inadjetiváveis. As formas que os homens estáticos objetivam as mulheres são: a manjada e descabida frase: se não for minha não será de ninguém, ameaças de bater, de matar, lesão corporal grave, tentativa de homicídio, e a concretização suprema da violência, que é o homicídio.
Homens em movimento reconhecem as conexões da existência intersubjetiva que envolve o eu e o outro, passando a regularem a vida comum pelo conflito, nunca pela violência conjugal. A baliza da episteme da circulação dos homens em movimento favorece o reconhecimento das mulheres como iguais, desfazendo a tese da superioridade/inferioridade presentes no binarismo relacional (Alós, 2011).
O conflito é o modo em que as ideias são postas em debate através da argumentação, da negociação e da compreensão do outro como interlocutor, não como “inimigo” a ser vencido; enquanto que, a violência rompe pela força o espaço do debate e patrocina a crueldade e degrada a humanidade.
No que se refere à psicoterapia, uma clinica do social reúne um conjunto de subsídios para alcançar a compreensão psicológica dos sujeitos em outro modelo: a) organiza deslocamentos do campo epistêmico-clínico para o campo clínico-ético; b) estabelece a solidariedade como princípio ontológico que organiza as interações sociais; c) funda a ação humana ética e solidária que recupera a esperança como sinônimo de democracia e liberdade. (Pimentel, 2003; 2011a; 2011b; 2014; Perls et al., 1997).
Com este trabalho encerro as pesquisas sobre a conjuntura psicológica da violência conjugal. O novo foco de pesquisas e intervenções é a interface entre Psicoterapia e as Filosofias que sustentam o uso da internet e das Tecnologias de Informática e Comunicação. Desejo que os leitores possam exaurir de seu entorno a percepção e/ou a vivência do conflito e da agressão adotando o diálogo como fonte nutridora. Confio na ação humana.
O GRUPO EXISTENCIAL GESTÁLTICO: NOTAS METODOLÓGICAS
Pinheiro, Couto e Silva (2012) observam que “a implantação da Política Nacional de Atenção Integral para saúde do Homem (PNAISH) legitima e amplia o debate acadêmico em torno da relação homens-saúdecuidado e, abre espaço para a reflexão e a proposição, no contexto assistencial das formas de lhes prestar assistência.” (p. 50).
Quanto aos programas e políticas públicas brasileiras para recuperação, reeducação e psicoterapia, a literatura científica abaliza as performances da Campanha do laço Branco, o projeto Siga bem Mulher, o Centro Especial de Orientação à Mulher (CEOM) de São Gonçalo/RJ, o Centro de Apoio a famílias em situação de violência e Casa Abrigo de Santa Catarina. (Lima & Buchele, 2011).
Em uma abordagem gestáltica Gold e Zahn (2014) asseveram que as normas idealizadas, quando cronicamente introjetadas solicitam um trabalho psicoterapêutico de integração e awareness, já que os sujeitos “ao tentar se livrar de pensamentos ou sentimentos muitas vezes só fazem piorar os sintomas, ao adicionar outra camada de “deverias” e autocrítica, e deixar de lado a energia negada e pouco compreendida.” (p. 47).
Aguiar (2009) realizou pesquisa com sete homens que participaram de quinze sessões, em um grupo reflexivo ocorrido em Brasília no Núcleo de atendimento às famílias e aos autores de violência doméstica. O diferencial em seu trabalho foi o acompanhamento pós-intervenção. O Follow-up buscou “conhecer a percepção desses homens sobre os efeitos da intervenção em suas vidas nos níveis pessoal, relacional e na maneira de resolver conflitos domésticos.” (p. 4).
Aguiar (2009, citando O'Brien, 1994) sintetiza as contribuições da psicologia feminista, a psicoterapia em duas fases: a) inserção no setting da relação entre sofrimento psicológico e posição social das mulheres; b) analise das experiências psicológicas masculinas .
As explicações para a conduta violenta dos homens com as mulheres são de base psicopatológica; uso abusivo e crônico de álcool, e apreensão reprodutiva do modelo de sociedade e cultura. Todas as elucidações, a meu ver, são insuficientes para responder sobre a geração da violência conjugal, já que patologizar exime os homens de responsabilidade; o consumo de álcool não tem uma relação direta e causal válida para todos os consumistas, e a sociabilidade é uma atribuição das instituições sociais, em que uma faz contraponto a outro servindo de suporte regulatório dos comportamentos e intencionalidades éticas.
Grupos psicoterapêuticos, reflexivos e socioeducativos colaboram para que os homens rompam com a crença irracional, em um modelo social “mantido pela simplificação a que fica remetida a subjetividade, por meio de uma possível compreensão biológica de sua existência. Assim, tornam-se crédulos de que sua força física, os manteria eternamente senhores do mundo.” (Luz, 2009, p. 17).
O grupo existencial gestáltico de conscientização foi elaborado em três fontes principais de inspiração: a) Naranjo (s.n) considera que os grupos “sistemas auto-regeneradores”. A premissa é baseada na concepção de que ao dedicar-se profunda e abertamente ao processo psicoterápico, os integrantes do grupo atuarão como terapeutas, sem a implicação de tornarem-se psicólogos, mas de ajudar. (disponível em http://claudionaranjo.net/pdf_files/training/ejercicios_terapeuticos_y_de_entr enamiento_spanish.pdf); (http://www.fundacionclaudionaranjo.com.br/acervo-virtual/textos/); b) O conceito de darse cuenta como descrito em René Alcaraz (disponível em: http://gestaltnet.net/documentos/darse-cuenta-y-atenci%C3%B3n-unareflexi% C3%B3n-) e embasado em Perls (1997). Implica atenção, percepção relaxada, atividades sensoriais, motoras, mentais, “en El darsecuenta hay um componente vivencial que nos hace revivir El contacto aqui y ahora.” (p.38); c) o acordo de convivência que vivenciei em uma capacitação em metodologia de trabalho com homens, realizada no NOOS/RJ.
O grupo foi composto por 10 participantes (incluindo co-terapeuta e estagiárias de psicologia). O objetivo geral foi oferecer a homens, entre 31 e 70 anos, um espaço e um tempo privados para si mesmo. O desenho do grupo foi previsto para ocorrer em 16 sessões de três horas, porém teve que ser adequado. Em consequência utilizei uma nomenclatura que permitisse manter o principio do trabalho em grupo de modo psicoterapêutico.
A escuta fenomenológica existencial é dirigida para a compreensão dos significados e intencionalidades, em contraponto ao ouvir funcional apto unicamente a decodificação do código linguístico. A facilitação do grupo existencial no NEAH envolveu escuta fenomenológica somada a autoescuta, a autoavaliação e autointerrogações, por exemplo: Quais os resultados de minha ação para com o outro? A quem me conduzo: a um outro igual a mim, ou a um objeto? O que o outro sente ante meu gesto agressivo?
Os participantes
O trabalho foi autorizado pelo parecer 893.044 de 2014 da CONEP. Na apresentação usei informações contidas nos prontuários e as observações em grupo. Assim, no perfil dos homens que participaram do grupo havia a disseminação da ideologia da sociabilidade do homem tradicional. Esta observação não estabelece de modo alguns nexos causaisentre as experiências da prática de violência doméstica e familiar que, alguns viveram na infância, mas ressalta a importância de os psicoterapeutas gestaltistas conhecerem as histórias de vida dos homens para contextualizar o atendimento clínico.
Para apresentá-los usei pseudônimos inspirados em artistas:
Camões: 55 anos, vendedor de livros, divorciado. Ensino médio completo. Recorrentemente usava a expressão "com certeza' para avaliar as atividades, o sentimento, e as expectativas. Parecia que não conseguia integrar aspectos negativos aos sentimentos, o que se traduzia em seu discurso de ausência de queixas.
Andy Warhol: 31 anos, solteiro, ensino médio completo. Autodenominou-se Pirado, aludiu sentir-se revoltado pelo abandono que vivenciou quando o pai separou-se de sua mãe, também apanhava da irmã mais velha. Criticou seu comportamento de risco ao expor-se ao álcool e a relacionamentos afetivos conjugais que “não tem futuro”.
Pixinguinha: 57 anos, e 40 de casado. Conheceu sua esposa quando tinha 17 anos e ele 16. Marítimo; ensino fundamental completo. Com alcoolismo. Recentemente sofreu um acidente vascular cerebral, entretanto não apresenta sequelas neurológicas e motoras.
Zeca Pagodinho: 31 anos, cursou até o 1º ano do ensino médio e de acordo com seu relato parou de estudar para trabalhar.
Cazuza: 62 anos, é separado de um primeiro casamento. Cursou pós-graduação, é professor aposentado. Tem um filho de oito anos do segundo relacionamento estável de cerca de doze anos. A companheira tem 30 anos. O pai era alcoólatra, explosivo batia na mãe e nele. Sofreu violência psicológica e desde os oito anos foi criado pelos avós, em virtude da mãe ter ido embora e o deixado com o pai.
Artesão: 57 anos, secundário incompleto, militar reformado.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Primeiramente realizamos um acordo de convivência.
Camões foi prestativo, colaborador, parecia feliz o tempo inteiro. Sua inserção ao grupo foi por denuncia de suas irmãs, ao que foi enquadrado na Lei Maria da Penha: discussão com as irmãs que disputavam a cautela dos bens do pai do assistido. O contexto em que Camões foi sentenciado não é o da violência conjugal, mas da intrafamiliar, já que o conflito envolve a violência patrimonial.
Considero esta é uma das falhas do programa de atendimento, isto é, a triagem e a avaliação do caso que implica na aplicação da pena consoante os envolvidos nos litígios. Além disso, no sistema judiciário não há equipes específicas para visita domiciliar de follow-up. Deste modo as parcerias como escolas e unidades de saúde são formas de contribuir para a prevenção da violência de gênero. Quanto às percepções sobre gênero Camões pensa que:
Homens e mulheres deveriam dividir por igual o trabalho domestico; As meninas precisam de mais cuidados do que os meninos; Os comportamentos de homens e mulheres são diferentes por natureza (questão biológica e herança genética); Em briga de marido e mulher ninguém deve meter a colher. o papel do homem na relação é fundamental na relação familiar, é o protetor da família.
Andy Warhol: autodenominou-se Pirado, aludiu sentir-se revoltado pelo abandono que vivenciou quando o pai separou-se de sua mãe, também apanhava da irmã mais velha. Criticou seu comportamento de risco ao expor-se ao álcool e a relacionamentos afetivos conjugais que “não tem futuro”.
Foi denunciado pela namorada por cometer violência física, entretanto reconhece que a responsabilidade é igualmente dos dois. Suas expectativas quanto a inclusão no programa NEAH: ser mais paciente, menos impulsivo. Suas percepções de gênero foram:
Homens e mulheres deveriam dividir por igual o trabalho domestico; Os comportamentos de homens e mulheres são diferentes por natureza (questão biológica e herança genética); Em briga de marido e mulher ninguém deve meter a colher; Meninos não devem brincar de boneca; È importante que os meninos recebam uma educação rígida para que se tornem “homens de verdade”; É principalmente o homem que deve sustentar a família.
Pixinguinha: colocou-se muito calado, observando. Mencionou sentir-se constrangido por estar sentenciado e considera-se um “sujeito bruto”, que desconhecia “coisas de mulher” ao referir-se a Lei Maria da Penha. Foi denunciado pela esposa outras vezes por violência doméstica e familiar. Responde criminalmente por violência psicológica, com destaque para ameaça, já que peguei uma faca e arranhei na grade ameaçando a esposa. Suas percepções de gênero foram:
Homens e mulheres deveriam dividir por igual o trabalho domestico; As meninas precisam de mais cuidados do que os meninos; Os comportamentos de homens e mulheres são diferentes por natureza (questão biológica e herança genética); Em briga de marido e mulher ninguém deve meter a colher; Meninos não devem brincar de boneca; É importante que os meninos recebam uma educação rígida para que se tornem “homens de verdade”; o homem é o chefe da casa.
Zeca Pagodinho: a postura adotada no grupo até a penúltima sessão foi a de “esconder-se” no uso de risos, piadas, distanciamento social dos integrantes do grupo. Desconfiado, permaneceu de olhos abertos durante a atividade de relaxamento. Sobre suas preferências, respondia: “tanto faz, os meus colegas escolhem”. Designou-se “cabeça quente”. Praticou violência física (socos) e psicológica (ameaça) a esposa. Foi preso por seis meses e quatro dias por ser detido em flagrante durante um banzé nosso, brigamos por ciúmes. Ela me recebeu em casa gritando, agressiva, com cabo de vassoura na mão. Eu reagi dando um soco no rosto e empurrando. A vizinha denunciou, fui preso em flagrante. Suas percepções de gênero foram:
Homens e mulheres deveriam dividir por igual o trabalho doméstico; Os comportamentos de homens e mulheres são diferentes por natureza (questão biológica e herança genética); Em briga de marido e mulher ninguém deve meter a colher; Meninos não devem brincar de boneca; o papel do homem na relação é ser autoritário, mandar.
Cazuza: Não reconhece que cometeu a violência que gerou a denuncia; todavia, considera que é de sua responsabilidade me envolver com uma maluca. O pai era alcoólatra, explosivo batia na mãe e nele. Apresentou-se no grupo de modo intenso, muito emotivo. Se lhe fosse permitido usaria o tempo total para comunicar no grupo as sensações de injustiça e revolta. Suas percepções de gênero foram:
Homens e mulheres deveriam dividir por igual o trabalho doméstico; as meninas precisam de mais cuidados do que os meninos; os comportamentos de homens e mulheres são diferentes por natureza (questão biológica e herança genética); em briga de marido e mulher ninguém deve meter a colher; meninos não devem brincar de boneca; è importante que os meninos recebam uma educação rígida para que se tornem “homens de verdade”; o papel do homem na relação é conduzir da melhor forma o lar, sustentar a família e dar muito carinho.
Artesão: ameaçou com arma de fogo a cônjuge; entretanto, os conflitos se acirraram desde que gerou uma filha com outra parceira. Relatou que não tem paciência para escutar as queixas da mulher, e da às costas quando ela começa a lamuriar. Quanto às percepções de gênero compartilhou as ideias que: “Homens e mulheres deveriam dividir por igual o trabalho domestico. o papel do homem na relação é ser meigo, carinhoso, pai exemplar.”
Sínteses das sessões
Nas dez reuniões houve um trabalho de conscientização corporal e presentificação. A facilitação permitiu ao grupo não confirmar a expectativa que os participantes tinham de serem julgados pelo crime cometido, bem como de receber aulas sobre modos adequados de comportamento. Durante as reuniões, os partícipes alternaram-se como figura quando um tema existencial subjetivo tocava a situação particular; e como fundo quando os conteúdos se tornavam intersubjetivos, e cada um apropriava-o a sua experiência, narrando sua emoção e reflexão ante a questão.
Conforme as sessões ocorriam, os atrasos e as desconfianças diminuíram e os ânimos negativos foram abordados, sobretudo no que se refere às contribuições de cada um para o acontecimento violento. Questões sobre modos de o casal realizar escolhas; tomar decisões e atitudes ante uma situação; formas de falar de modo impulsivo, grosseiro, de negar a fala pelo silenciar, ou “dar as costas”, gritar, impor a vontade única; o fluxo da autoridade de cada um; estigmas e estereótipos sobre identidade, subjetivação e sociabilidade de homens e mulheres.
As vivências admitiram reflexões sobre as diferenças entre homens e mulheres nas dimensões da corporeidade e sexualidade, ambas controladas pelos homens. Consoante os laços eram fortalecidos e pude abordar o processo judicial. Solicitei que cada um escrevesse em um papel, ou gravasse, caso sentisse dificuldade em escrever, sobre o evento que havia sido o motivo pelo quais eles estavam ali.
Eles preferiram verbalizar. Ilustro uma narrativa muito comovente: a de Pixinguinha. Ele rememorou que, durante uma tarde no quintal de casa estava com uma faca apontando um lápis, e a esposa a proximidade. Conforme ele, a mesma reclamava e criticava-o, sendo que ele não respondia. Em dado momento disse “risquei a faca na grade e ela saiu correndo e foi pra delegacia.”
Todos o escutamos de modo preocupado, mas sem julgamentos. Perguntei ao grupo: qual significado comum é ligado à faca em nossa cultura? Para que serve uma faca? Camões, Andy, Artesão e Cazuza responderam: serve para cortar, ameaçar, indica perigo e pode matar.
Prossegui a reflexão relatando que sinto medo de facas do tipo “peixeira” aquelas grandes e afiadas. Pedi a Pixinguinha que imitasse o gesto que fez na grade usando sonorização verbal. Devido o desconforto com a situação e pela inexistente experiência com dramatizações, eu encenei pegar uma faca e riscar o ar com um som alto. Minha atitude ajudou-o a pensar na intencionalidade do seu gesto – eu não queria matar, mas assustar. O reconhecimento do significado e da intenção contidos no ato possibilitou a Pixinguinha recontextualizar a situação de violência entre o casal. Assustar foi um ato de poder realizado como tentativa de intimidação da esposa.
CONSIDERAÇÕES FINAIS: FOLLOW-UP UMA EQUIPE E A SOCIEDADE PARA ACOMPANHAR
Temos um conjunto de saberes, ao longo de mais de quarenta anos de estudos feministas e de gêneros, lutas de movimentos sociais, engajamento de homens em campanhas de prevenção a violência conjugal e intrafamiliar, políticas públicas internacionais que colocam a liberdade e os direitos humanos como premissa fundamental, em repúdio irrestrito a qualquer manifestação de violência nas relações interpessoais. Enfim, a acumulação de conhecimentos deveria permitir eliminar as praticas de violência conjugal. Entretanto, isto ainda não ocorre.
Caminhamos entre o avanço de inserção social das mulheres, e o descompasso da sua objetivação por alguns homens, o desconhecimento das diferenças de cor, geração, classe e o assassinato diário de mulheres, uma situação de violência inaceitável em qualquer forma. Não se trata de “cultura”, de “amar”, de “possuir”. Nenhuma mulher é objeto.
Consoante o relatório do Departamento Penitenciário Nacional/ Ministério da Justiça, 2015, o contingente de homens presos por violência domestica é de 3%, ou 2439 mil, pelo artigo 129. Este indicador aponta fortemente que a prisão não é a única via para eliminação da violência conjugal, em virtude de as denúncias e cumprimento de sentenças não retratarem a conjuntura do sofrimento das mulheres em situação de violência conjugal.
Alguns fatores de ordem da cultura, da economia, da política, da sociabilidade e da interpretação subjetiva das masculinidades, da categoria homem, e outros de ordem estrutural do estado como a ineficácia da aplicação das medidas protetivas designadas na Lei Maria da Penha, o descaso e despreparo da polícia civil e militar que revitimizam as mulheres atuam conjuntamente na manutenção das violências domésticas, conjugal ou contra a parceira íntima; falta de articulação entre as varas e defensoria de atenção as mulheres e aos homens, etc.
No grupo existencial de conscientização foi possível abordar alguns destes fatores, e acercar-nos de significados usuais, comumente utilizados pelos participantes para - na forma de jargões - qualificar as agressões violentas. A intervenção clínica, mesmo que inserida no ambiente da justiça, isto é, em que a participação dos homens fora compulsória provocou a criação de novos sentidos e pontos de vista para a percepção da relação conjugal. Seus resultados, somados a intensificação de medidas em educação, saúde, justiça e reformulação das culturas da violência, do estupro, do controle do corpo e da sexualidade das mulheres, e da sua circulação pelas cidades requerem mais ações.
No grupo existencial de conscientização mencionei a importância do dar-se conta, que para Stevens (1977) se dá em três etapas: dar-se conta do mundo externo; dar-se conta do mundo interno, e dar-se conta da fantasia. No que concerne à percepção das situações de violência conjugal, a fantasia não é uma atividade criadora, sobretudo quando a imaginação desloca-se da concretude do relacionamento para a elaboração de hipóteses de traição pela mulher; a recordação evoca situações inacabadas de experiência com outras mulheres, projetando na atual uma carga de ressentimentos; e as antecipações de um futuro solitário podem induzir o assassinato.
Considero indispensável o follow-up no trabalho com homens apenados por violência doméstica. Como prospecções de follow-up, ao encerrar a facilitação do grupo existencial criamos um grupo no whatsapp envolvendo Artesão, Andy Warrol e Cazuza. Quanto a Camões e Artesão, estes se dispuseram a participar na condição de co-facilitadores em novos grupos de homens no NEAH. Atualmente são conduzidos pela equipe3 do NUFEN dois grupos psicoterápicos: um com homens e outro com casais.
O processo terapêutico no grupo existencial foi enriquecedor, contudo existem vários limites institucionais a enfrentar, por exemplo: ausência da comunicação entre os programas e projetos conduzidos nas varas judiciais que atendem mulheres e homens. Unir esforços em prol do objetivo comum de eliminar a violência das relações humanas e tarefa coletiva.
Não há verdades universais que justifiquem controle e submissão de mulheres por homens e vice-versa (em escala menos visível), a consciência crítica de que bater, falar mal, humilhar frontalmente ou pelas redes sociais destitui nossa condição humana. Este texto oferece o relato de uma intervenção clínica sem receitas, com notas metodológicas e fundamentação teórica para replicar.
Referências
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Nota sobre as autoras
Adelma Pimentel: Coordenadora do Programa de Pós-graduação em psicologia da UFPA: Mestrado e Doutorado. Associada III na Universidade Federal do Pará. Email: adelmapi@ufpa.br
Recebido em: 10/07/2016
Aprovado em: 19/09/2016
1 Altera a Lei de Execuções Penais para permitir ao juiz que determine o comparecimento obrigatório do homem a programas de recuperação e reeducação. (Núcleo de atendimento especializado à mulher (NAEM). Disponível em www.defensoria.pa.gov.br)
2 Sistema de informação de agravos de notificação – SINAN – Ministério da Saúde
3 Doutoranda Kamilly Vale facilita casais; Doutorando Caetano Diniz facilita homens. Ambos cursam doutorado em psicologia na UFPA, linha de pesquisa: fenomenologia: teoria e clínica, sob minha orientação.