SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.8 número1O processo de identificação e repetição com os modelos intrafamiliares e socioculturais e o ato criativo na perspectiva de Edith SteinArte gestáltica como potência clínica na abordagem da violência contra idosos índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

artigo

Indicadores

Compartilhar


Revista do NUFEN

versão On-line ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.8 no.1 Belém  2016

 

Artigo

 

Redução de danos e acompanhamento terapêutico: aproximações possíveis

 

Harm reduction and therapeutic accompaniment: possible approaches

 

Reduccion de daños y acompañamiento terapéutico: enfoques posibles

 

Ricardo Wagner Machado da Silveira

Universidade Federal de Uberlândia

 

 


RESUMO

Este trabalho conta a experiência de redutores de danos (RDS) e sua capacitação em uma Escola de Redução de Danos implantada pelo CAPSad da Secretaria de Saúde de Uberlândia/MG em parceria com a Universidade Federal de Uberlândia. A capacitação de rds destinou-se ao cuidado de pessoas que fazem uso problemático de álcool e outras drogas e não acessam a rede de cuidados em saúde disponível. O atendimento é feito no território onde elas vivem e nesses contextos os rds tentam criar estratégias inéditas de oferta de cuidados em saúde. Tais práticas embasadas pela política de Redução de Danos (RD) demonstraram sua eficácia na construção de vínculo com os usuários e na busca, com eles, de um projeto de vida e autocuidado. Além disso, constatamos que as aproximações entre a Redução de Danos e o Acompanhamento Terapêutico nos ajudaram a compreender e potencializar experiências exitosas em Redução de Danos.

Palavras-chave: Redução de Danos; Acompanhamento Terapêutico; Educação Permanente em Saúde.


ABSTRACT

This paper has the experience of damage reducers (RDS) and their training in a school Harm Reduction CAPS adimplemented by the Health Department of Uberlândia / MG in partnership with the Federal University of Uberlândia. The training of rds was de dicated to the care of people who abuse of alcohol and other drugs and do not access the network of health care available. The service is done in the territory where they live and in these contexts the RDS try to create novel strategies for the provision of health care. Such practice –informed by the Harm Reduction policy demonstrated its effective ness in building relationship with users and search with them for a project of life and self-care. Furthermore, we found that the similarities between Harm Reduction and Therapeutic Accompaniment helped us understand and lever age success ful experiences in Harm Reduction.

Keywords: Reduction; Therapeutic Accompaniment; Continuing Education in Health.


RESUMEN

Esta obra cuenta La experiência reductores de daños (RDS) y su formación en una escuela de Reducción de Daños CAPS ad implementado por el Departamento de Salud de Uberlândia / MG em colaboración com la Universidad Federal de Uberlândia. El RDS de formación destinados a La atención de las personas que hacen uso problemático de alcohol y otras drogas y no tiene nacceso a la atención de La salud de reddisponible. El servicio se realiza em el território em el que viven y em estos contextos la RDS tratar de crear estratégias nove dosa sofre cen cuidado de la salud. Tales prácticas informadas por la política de Reducción de Daños (RD) demostraron su eficácia em La construcción de relaciones com los usuarios y buscar conellos para um proyecto de vida y el autocuidado. Además, se encontró que los vínculos entre La Reducción de Daños y Acompañamiento Terapéutico nos ayudaron a entender y mejorar las experiencias exitosas em la reducción de daños.

Palabras-clave: Reducción de Daños; Acompañamiento Terapéutico; Educación Permanente em Salud.


 

 

SOBRE A REDUÇÃO DE DANOS

O presente trabalho versa sobre a experiência de um grupo de agentes redutores de danos (RDS) e sua atuação junto à comunidade e à equipe de trabalhadores de uma Unidade de Atenção Primária à Saúde da Família (UAPSF) de um território da cidade de Uberlândia (MG) ocorrido durante o ano de 2010. Esse relato é fruto de um projeto pioneiro de capacitação de tais profissionais realizado pela Escola de Redução de Danos do SUS implantada pela Secretaria Municipal de Saúde do município, com a coordenação do Centro de Atenção Psicossocial – álcool e outras drogas (CAPSad) e em parceria com um docente do curso de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Este projeto foi financiado pelo Ministério da Saúde através da Coordenação Nacional de Saúde Mental.

Mas afinal o que vem a ser a Redução de Danos? Trata-se de uma política pública e um conjunto de princípios e práticas que objetiva ao uso de drogas por parte do usuário, de forma menos danosa possível para ele e seu entorno social, o que implica na defesa da cidadania de cada um deles, respeitando seus direitos e sua liberdade. Portanto, a Escola de Redução de Danos do SUS constitui-se como processo de capacitação profissional em serviço que procura viabilizar a atenção à saúde de populações marginalizadas ou excluídas e cerceadas de seus direitos sociais (Mesquita & Ribeiro, 1998).

A Redução de Danos difere das propostas de combate às drogas focadas na redução de oferta e de demanda, uma vez que as ações buscam uma atenção em saúde que seja equânime, universal e integral, em que a finalidade não é a abstinência total, e sim o autocuidado e a garantia do direito de acesso a serviços de saúde qualificados, disponíveis e necessários.

Petuco e Medeiros (2010) asseveram que a Redução de Danos se alicerça em três importantes aspectos: a não exigibilidade da abstinência; o direito de participação política das pessoas que usam drogas; o trabalho de campo territorializado e em horários estratégicos. Assim, as atividades dentro dessa proposta se constroem como medidas de saúde pública que têm o objetivo de minimizar os efeitos adversos do uso de drogas através da construção de vínculos e atos de cuidado e autocuidado, respeitando a autonomia e a liberdade de escolha das pessoas.

No Brasil, o trabalho de Redução de Danos teve início na cidade de Santos (SP), em 1989. A ideia inicial era fazer a troca de seringas entre os usuários de drogas injetáveis com o intuito de prevenir a transmissão de HIV (Mesquita, 1991). Nesse primeiro momento, as ações encontravam-se estritamente relacionadas aos programas de Doenças Sexualmente Transmissíveis (DSTs) e de Síndrome de Imunodeficiência Adquirida (AIDS), sendo que, somente a partir de 2003, passaram a integrar efetivamente as políticas do Ministério da Saúde para Atenção Integral a Usuários de Álcool e outras drogas (Passos & Souza, 2011).

Considerando a afirmação de Santos (2010) de que a produção científica sobre a Redução de Danos nos últimos anos tem se caracterizado por seu pragmatismo, com vários relatos de experiência em detrimento de estudos com enfoque mais teórico conceitual; temos como um de nossos objetivos, não somente apresentar relatos de práticas clínicas, mas fazer aproximações e reflexões a respeito da importância de políticas públicas com a educação permanente em saúde destinada a estudantes e profissionais da saúde, acontecendo em cenários de prática e aprendizagem concreta vivida diretamente na rede pública de serviços de saúde e saúde mental para o cuidado a usuários de álcool e outras drogas. O outro aspecto que pretendemos elucidar diz respeito a possíveis aproximações entre os saberes e práticas do Acompanhamento Terapêutico com os saberes e práticas da Redução de Danos.

O Acompanhamento Terapêutico (AT) é uma modalidade de busca ativa e clínica "a céu aberto" difundido como dispositivo de intervenção na/da Reforma Psiquiátrica e Luta Antimanicomial desde seus primórdios. Desta forma, temos a disposição uma produção bibliográfica sobre o AT que pode dialogar de forma profícua com os saberes e práticas de Redução de Danos em busca de uma clínica cada vez mais diversa, complexa e ampliada.

Ao tentar problematizar aspectos éticos e técnicos que permeiam a relação entre pessoas que usam drogas e profissionais dos serviços de saúde responsáveis pelo cuidado em saúde para essas pessoas, esperamos contribuir para que, paulatinamente, os trabalhadores da saúde possam desenvolver atitudes e ações de cuidado pautadas pelos princípios da Redução de Danos.

Nosso objetivo então se justifica na medida em que pretendemos apresentar as ações desenvolvidas dentro do projeto de educação permanente em saúde chamado de Escola de Redutores de Danos do SUS, realizado no período de abril de 2010 a abril de 2011 na rede pública de saúde da cidade de Uberlândia. Tal projeto contou com o financiamento e apoio técnico da Coordenação Nacional de Saúde Mental do Ministério da Saúde, com execução da Coordenação de Saúde Mental da Secretaria Municipal de Saúde de Uberlândia, por meio do CAPSad (Centro de Atenção Psicossocial – álcool e outras drogas) e em parceria com um docente do Instituto de Psicologia da UFU. É importante dizer que o projeto esteve vigente até o ano de 2014.

 

SOBRE A ESCOLA DE REDUÇÃO DE DANOS DO SUS

A Escola de Redução de Danos do SUS consistiu num projeto-piloto de capacitação de agentes redutores de danos (RDS) destinados ao cuidado de pessoas que usam álcool e outras drogas num determinado território da cidade de Uberlândia. A escolha do território se deu em razão de indicadores de maior número de ocorrências policiais e de urgência médicas relacionadas direta ou indiretamente com o uso prejudicial de álcool e outras drogas.

A intenção do projeto consistiu em ampliar/diversificar os recursos terapêuticos na/da saúde pública para o acolhimento de pessoas que fazem uso problemático de álcool e outras drogas, principalmente aqueles que não aderem aos tratamentos disponíveis.

Assim, a Escola de Redução de Danos do SUS teve como pretensão contribuir com a atenção em saúde aos usuários de álcool e outras drogas de forma integrada e em rede com os dispositivos de cuidado em saúde do território onde vivem essas pessoas e, com os outros serviços de referência secundária e terciária de cuidado em saúde, como o CAPSad.

A Escola de Redução de Danos do SUS contou com a importante parceria de uma equipe da Estratégia Saúde da Família, especificamente com uma UAPSF de um bairro do distrito leste da cidade. A definição do local de atuação dos agentes redutores de danos foi realizada mediante a coleta de dados solicitados a vários órgãos (polícia militar e civil, serviços de pronto atendimento, enfermaria de Psiquiatria do Hospital de Clínicas da UFU, Secretaria de Desenvolvimento Social e Secretaria Municipal de Saúde) com o intuito de identificar os bairros da referida região que apresentam maiores índices de vulnerabilidade em relação ao uso problemático de álcool e outras drogas.

As ações a serem desenvolvidas pelos RDS começaram pelas buscas ativas nos domicílios e a "céu aberto" junto à comunidade, propiciando a ampliação e o fortalecimento de redes sociais de cuidado e reinserção social. Uma das atividades sistemáticas da escola eram as rodas de conversa feitas com a equipe de RDS e membros da equipe da UAPSF sobre os temas relacionados com o cuidado em saúde para usuários de drogas, sobre as condições e contexto de trabalho da equipe e sobre os casos de usuários de drogas atendidos pelo serviço. Esta atividade de capacitação em serviço geralmente contava com a presença dos três RDS, as Agentes Comunitárias de Saúde (ACS) da unidade e a psicóloga de referência naquele serviço. Os outros membros da equipe ou não se interessaram ou alegaram não ter tempo para participar.

A metodologia de capacitação se deu por meio de rodas de conversas semanais com discussão de casos clínicos indicados pelos ACS e/ou pela psicóloga e que passaram a ser atendidos pelos RDS, com o compartilhamento das vivências no território de todos os envolvidos e o apoio de textos teóricos que pudessem contribuir com o aprofundamento de aspectos essenciais na construção do cuidado em saúde para as demandas que se apresentavam. A roda de conversa tinha como um de seus objetivos, envolverem os outros profissionais da equipe da UAPSF, mas ao longo do tempo a participação efetiva ficou restrita aos ACS e à psicóloga e este é um dado que aponta para as dificuldades de implantação de processos de educação permanente em saúde, tendo como campo de ensino o cotidiano do serviço de saúde e a problematização das práticas e saberes instituídos (Ceccin & Feuerwerker, 2004).

Outra de nossas metas consistia no esforço em fazer a abertura do campo para que os RDS pudessem acessar a outros usuários de drogas, inacessíveis inclusive para a equipe da UAPSF. Aos poucos, percebemos que alguns dos usuários indicados pelos ACS se tornaram pontes estratégicas para esse acesso e consequente ampliação da rede de vínculos dos RDS com os usuários de álcool e outras drogas do/no território.

Outra atividade fundamental realizada pela Escola de Redução de Danos do SUS eram as supervisões semanais sobre os atendimentos realizados em campo com os coordenadores da Escola, um deles professor do Instituto de Psicologia da UFU e o outro psiquiatra do CAPSad da Secretaria Municipal de Saúde de Uberlândia.

O trabalho se iniciou basicamente com o acompanhamento dos RDS às ACS na circulação pelo bairro e nas visitas realizadas cotidianamente por elas. Essa fase de familiarização com o território foi importante para que os RDS conhecessem o território expôs equipamentos sociais e comunitários, para que fossem apresentados aos moradores e pudessem tomar conhecimento de casos de usuários de álcool e outras drogas que poderiam compor o público-alvo do trabalho a ser desenvolvido.

Conforme o Ministério da Saúde (2001), esse momento inicial consiste na abertura de campo para as frentes de trabalho e pressupõe a conquista da confiança da comunidade, o conhecimento dos seus aspectos culturais, o delineamento dos objetivos e limites do trabalho e a introjeção, pelos RDS, de princípios e práticas que eles pretendem transmitir.

Após essa etapa de aproximação e conhecimento do território, os RDS deram início ao acompanhamento de casos de pessoas com uso prejudicial de álcool e outras drogas indicados pelas ACS e identificados pelos próprios RDS no decorrer do tempo e com a participação da comunidade.

A seguir, apresentaremos algumas cenas de casos que ilustram a atuação dos rds e ao longo do desenvolvimento do projeto, bem como as vizinhanças e ressonâncias que percebemos existir entre o trabalho dos RDS e o do AT, profissional que também atua na saúde mental no acolhimento de pessoas em sofrimento psíquico intenso e que costumam não aderir aos serviços de saúde mental disponíveis. Tal como nos casos atendidos pelos RDS, também os ATs realizam a busca ativa e a delicada construção de vínculos com pessoas que não demandam e não tem acesso a cuidados em saúde.

 

O ACOMPANHAMENTO TERAPÊUTICO ENQUANTO DISPOSITIVO DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL EM SAÚDE MENTAL

As práticas de intervenção terapêutica em saúde mental se modificaram ao longo da história, especialmente após a reforma psiquiátrica, que retira a ênfase da doença e procura se ocupar com o sujeito que está envolto por outras questões para além da sua problemática de saúde: família, trabalho, lazer e educação, por exemplo.

A origem clínica do AT foi influenciada pelos movimentos políticos das reformas psiquiátricas na busca pelo fim dos manicômios na Europa Ocidental nos anos 60, que motivou mudanças nas abordagens com pacientes psicóticos também na América do Sul na década de 1970, especificamente, na Argentina, que incluiu a prática do AT, no atendimento de pacientes e familiares, por uma equipe multiprofissional que passou a contemplar o acompanhante terapêutico (Mauer & Resnizky, 1987). Tendo em vista o modo psicossocial de atenção em saúde mental que emergiu após a Reforma, o AT vêm se consolidando como um dispositivo de atenção psicossocial nessa área, que ganha destaque por sua definição estar centrada "como uma prática cujo espaço clínico está nas ruas" (Bezerra & Dimenstein, 2009; Palombini, 2009). O AT, tratase, assim:

(...) de um tipo de atendimento clínico que se caracteriza pela prática de saídas pela cidade, ou estar ao lado da pessoa em dificuldades psicossociais com a intenção de se montar um guia terapêutico que possa articulá-la novamente na circulação social, por meio de ações sustentadas numa relação de vizinhança do acompanhante com o sujeito e suas limitações, dentro do seu contexto histórico (Pitiá & Furegato, 2009, p. 73)

Nesse cenário, abre-se espaço para novas formas de atendimento para pacientes da saúde mental que contemplam o sujeito em sofrimento psíquico em relação ao seu contexto social, ou seja, a subjetividade, a saúde mental e a sociedade não são dissociáveis no campo da atenção psicossocial.

O AT constitui-se como uma nova estratégia de composição da rede de assistência em saúde mental e, apesar de ter se destacado, inicialmente, como prática terapêutica de casos de psicose, o profissional acompanhante terapêutico também se consolida na assistência de diversos transtornos (Acioli & Amarante, 2013). Assegurando-se nesta certeza de expansão do AT como dispositivo de atenção psicossocial para vários transtornos é que trazemos o relato sobre a utilização do AT como uma ferramenta de abordagem na perspectiva da Redução de Danos no acompanhamento de usuários de álcool e outras drogas.

 

DA REDUÇÃO DE DANOS AO ACOMPANHAMENTO TERAPÊUTICO: EM BUSCA DA CIDADANIA E DO CUIDADO

Durante o projeto foram acompanhadas 10 pessoas por meio de visitas sistemáticas com periodicidade semanal e, dependendo da demanda de cada caso, as visitas poderiam ser mais frequentes. Os atendimentos tinham como diretrizes de manejo e atuação aquelas já desenvolvidas pelas experiências exitosas de RDS (busca ativa no território, abordagens domiciliares, trabalhos de campo, entre outras) publicadas ou não, das quais passamos a ter conhecimento, e junto a elas agregamos outros saberes e práticas produzidas pelo Acompanhamento Terapêutico que também realiza ações de cuidado em saúde mental para além dos muros das instituições. Os principais pontos de consonância entre a experiência de RDS e as práticas de AT compreendem, no presente trabalho, a circulação pelas ruas do território e o atendimento dos usuários fora do ambiente institucional das unidades de saúde, bem como a promoção da saúde do usuário com o enfoque na sua inclusão social e não no ideal de cura ou abstinência.

A política de Redução de Danos e algumas de suas interfaces com a Estratégia Saúde da Família no que diz respeito à atenção integral aos usuários de drogas, é preciso prudência quando se fala em busca ativa e atuação "corpo a corpo" com os usuários e atendidos. Temos que uma das características que marcam a Estratégia da Saúde da Família é:

Atuar no território, realizando cadastramento domiciliar, diagnóstico situacional, ações dirigidas aos problemas de saúde de maneira pactuada com a comunidade onde atua, buscando o cuidado dos indivíduos e das famílias ao longo do tempo, mantendo sempre postura proativa frente aos problemas de saúde-doença da população (Brasil, 2006, p. 36).

Assim quando é abordado a questão da busca ativa sempre é levada em consideração a ideia de que o cuidado e a postura proativa devem abarcar o respeito às escolhas e à autonomia dos usuários do SUS.

No tocante ao Acompanhamento Terapêutico, Mauer e Resnizki (1987, p. 37) apontam que o papel do AT surgiu "como uma necessidade clínica em relação a pacientes com os quais as abordagens terapêuticas clássicas fracassam". As autoras discorrem sobre as funções do AT com pacientes psicóticos, mas que podem ser estendidas aos usuários de álcool e outras drogas: conter o usuário, dando suporte nos momentos de ansiedade e angustia; oferecer-se como modelo de identificação em algumas situações da vida cotidiana; disponibilizar-se nas circunstâncias em que o usuário não é capaz de agir por si mesmo; servir como facilitador das relações do usuário com sua família. Outros autores vão destacar a amplitude do trabalho do AT ao afirmar que:

Trata-se de uma clínica que acontece no cotidiano, nos mais variados espaço e contextos. Entre as suas características mais marcantes estão o resgate e a promoção da circulação do paciente pela cidade, construindo ou simplesmente explorando as redes sociais preexistentes. Predominantemente o Acompanhamento Terapêutico tem sido um recurso utilizado no tratamento de pacientes diagnosticados como psicóticos, sendo, entretanto, cada vez mais indicado para pacientes com outros diagnósticos. (Carvalho, 2003, pg. 23).

Nesta experiência da Escola de Redutores de Danos do SUS constatamos o quanto o AT se constitui como importante intercessor para o rd nas suas ações de cuidado em saúde para usuários, familiares e comunidade, potencializando a clínica, a política de Redução de Danos e a reforma psiquiátrica. Alguns autores como Lobosque (2003) dizem que é preciso repensar as formas de cuidar da subjetividade humana, pautando-se pela vertente do incluir e acolher o que nos remete à questão da cidadania.

A rede enunciativa que define a RD e, por consequência, o trabalho do redutor, se apoia na promoção do exercício da cidadania do usuário, o que significa o reconhecimento, em primeiro lugar, da condição de cidadão portador de direitos, antes da condição de usuário de drogas na sociedade. Não se impõe a abstinência, mas se afirma a importância de se avaliarem os riscos que são, sem dúvida, reais (Nardi & Rigoni, 2005, p. 277).

Para tanto, as visitas realizadas tinham como foco principal a busca por promoção de saúde do usuário, independentemente de ele estar ou não em abstinência. Em diversas situações os RDS realizaram abordagens em que as pessoas estavam sob o efeito de álcool e outras drogas, o que não impossibilitou uma aproximação empática com elas.

Quando se diz sobre a busca de promoção de saúde dessas pessoas, a referência é uma forma de intervenção mais ampla em que os sujeitos possam tomar conhecimento e ter acesso aos serviços de saúde para o cuidado de si. Na Linha Guia da Saúde Mental do Ministério da Saúde reconhece-se que:

O abuso de álcool e de outras drogas, por sua gravidade e abrangência, não admite soluções apenas no campo da Saúde, mas deve envolver uma abordagem amplamente intersetorial, que trate dos problemas da violência urbana, das injustiças sociais, das graves desigualdades de acesso à educação, ao trabalho, ao lazer e à cultura (Brasil, 2006, p. 193).

A atuação em campo dos rds necessita de fluidez para a abertura de canais de comunicação entre as pessoas atendidas, de forma que o trabalho ganhe maior visibilidade comunitária e as ações possam ser estendidas a um número maior de pessoas. Os relatos seguintes ilustram algumas cenas e situações que, a nosso ver, mostram a potência da atuação dos RDS e as aproximações com o at que possibilitaram o cuidado com as pessoas atendidas balizada pelas noções de cidadania e inclusão social. Foram utilizados nomes fictícios para preservar a identidade dos sujeitos.

 

DA ABORDAGEM FAMILIAR À REDE DE USUÁRIOS DE DROGAS: CRIANDO CANAIS DE COMUNICAÇÃO

Em uma das visitas a um usuário atendido pelos RDS (vale dizer que sempre que possível os RDS atendiam em dupla) a partir da indicação de uma ACS, a irmã do usuário, Nádia, de 30 anos, encontrava-se presente e interrogava os rds sobre o trabalho realizado por eles. Após a explicação sobre a proposta de atuação no que tange à Redução de Danos, ela se sentiu confortável em dizer que era usuária de crack e álcool. Nádia pediu ajuda com veemência e disse estar muito "embalada", mostrando-se disposta a qualquer tipo de intervenção. Foi feita uma explanação do trabalho realizado pelo CAPSad, sobre a hospitalidade, o funcionamento da rotina, sobre os outros dispositivos de cuidado da rede de serviços de saúde e as possibilidades de cuidado disponíveis. Nádia mostrou-se interessada pelo atendimento, de tal modo que os RDS marcaram um dia para acompanhá-la numa visita ao CAPSad; contudo, na data combinada, ela não cumpriu o acordo.

Em outra ocasião, os RDS ficaram sabendo do local onde Nádia morava com o namorado e resolveram visitá-la. Nesse dia encontraram Nádia que os recebeu e na conversa relatou aos rds sobre sua vida, dizendo que faz uso de crack há quase um ano, que já se prostituiu e tem dois filhos, os quais moram com o pai no estado de Goiás. Disse também, com muito sofrimento, que não vê as crianças a muito tempo, falou de sua saudade dos filhos e do pai deles, e foi assim que o encontro se deu e um vínculo foi se construindo.

Cabe relatar também que esta conversa com Nádia aconteceu no período da tarde, num momento em que ela acabara de acordar - depois de ter passado a noite toda usando drogas – ela comumente trocava o dia pela noite. Aliás, como diz Domiciano Siqueira em entrevista a Lancetti (2008) vale notar o quanto é incompatível o horário de funcionamento dos serviços de saúde com o período em que os usuários de álcool e outras drogas procuram, ou poderiam procurar o atendimento. Diz ele:

O posto de saúde está ali perto, mas não serve para eles e, muitas vezes, não é só por causa de preconceito dos técnicos de saúde, que atendem bem ou atendem mal pessoas com AIDS ou pessoas que usam drogas; é porque o próprio sistema de horário de funcionamento não combina com o horário em que eles buscam o atendimento (Lancetti, 2008, p. 56).

Passou mais algum tempo e em incursão pelas ruas do bairro, um dos rds se encontrou novamente com Nádia e seu namorado em outra situação. Ela se apresentou nervosa e chorando muito, o parceiro dela então explicou que estavam voltando da casa de um traficante, pois Nádia havia penhorado a bicicleta que ganhou de presente. Naquele momento, ela pediu ajuda dizendo querer ir ao CAPSad. O RD se dispôs a acompanhá-la imediatamente, mas ela pediu para antes ir à casa de uma amiga para pegar algumas roupas e disse que voltaria em alguns minutos. O rd aguardou o casal por algum tempo e com muita dúvida, decidiu procurar Nádia e foi então à casa da tal amiga, também filha de um traficante do bairro, o qual o RD conheceu por intermédio de Nádia em uma ocasião anterior.

O tempo todo, a intenção era "... produzir territórios existenciais ao instaurar ilhas de solidariedade onde apenas havia criminalização (...) conferindo direção a um projeto clínico-político no território." (Lemke & Silva, 2013, p. 16).

Num primeiro momento, as pessoas que estavam no local se assustaram com a chegada do RD, ele então se apresentou como profissional de saúde, exibindo o crachá de identificação. Em seguida, Nádia e sua amiga tranquilizaram a todos e por fim o RD acabou realizando uma abordagem grupal, distribuindo panfletos sobre doenças sexualmente transmissíveis e preservativos.

A cena em questão nos faz refletir sobre vários aspectos: mostrou-nos a capacidade de inserção e de produção de ações de cuidado em saúde pontuais e promotoras de vínculos mais ou menos significativos, tendo como protagonista um agente de saúde realizando seu trabalho, um RD e seu compromisso com o acolhimento do sofrimento da usuária numa situação crítica. Apresentou-nos o quão é oportuna a realização de uma abordagem pela via da saúde, apesar dos riscos a que se expôs o RD. Por outro lado trata-se de uma ação que fora calculada, pois o RD já era conhecido por muitos no bairro como "o rapaz das camisinhas", já conhecia Nádia e sua amiga, sabia onde morava a amiga e que sobre sua família. Conte (2003) nos fala da pertinência de intervenções breves nessa clínica, que sejam breves enquanto durem, que possam produzir marcas, que sejam implicadas e que respeitem o território e o tempo subjetivo. Quanto a Nádia, ela retornou à casa do namorado acompanhada pelo RD, fez uso de droga adquirida com a amiga, ao mesmo tempo em que o RD providenciava uma ambulância para levá-la ao CAPSad. Nádia tomou um banho e se mostrou disposta a um diálogo, dizendo que há duas semanas tinha sofrido um princípio de overdose e teria ficado internada por três dias na Unidade de Atendimento Integrado (UAI) – serviço regionalizado, de nível secundário de pronto atendimento em saúde do município.

Com a chegada da ambulância, Nádia, acompanhada do pai e do namorado, foi ao CAPSad junto com o RD. No serviço, ela foi atendida pela equipe de enfermagem e pelo terapeuta de plantão, foi se tranquilizando e então, em comum acordo, um projeto terapêutico inicial foi construído para ela que, com o apoio da família, se comprometeu com o que foi acordado. Nádia não pôde ficar em hospitalidade como era de seu desejo, pois não havia vaga e ela estava fazendo tratamento para pneumonia, sendo orientada a seguir as orientações médica se passar a frequentar o CAPSad para a rotina de atividades proposta em seu projeto terapêutico. Depois desse episódio, os RDS não conseguiram entrar em contato com Nádia e as notícias que tiveram de seu pai é que novamente ela estava desaparecida, provavelmente em uso abusivo de drogas.

No presente relato sobre as abordagens com Nádia é possível perceber a aproximação entre o trabalho dos RDS com o Acompanhamento Terapêutico, primeiro no que se refere ao acolhimento de Nádia mesmo estando sobre o efeito de drogas e; segundo ao se promover o acesso ao CAPSad colocando-se "ao lado" de Nádia, fazendo companhia, apoiando e estimulando o cuidado consigo mesma. Tais características dos procedimentos realizados com Nádia possuem ressonância tanto no campo da Redução Danos quanto no Acompanhamento Terapêutico que, de certa forma, juntos rompem com os modelos tradicionais anteriores à Reforma Psiquiátrica.

Este também é um caso em que o sistema familiar foi acompanhado pelos RDS, ampliou-se as possibilidades de cuidado e autocuidado no grupo. Os cuidados que antes eram voltados apenas a uma pessoa da família – lembremos que o acompanhamento a Nádia começou a partir da visita a seu irmão, que era o usuário indicado pela equipe da UAPSF – passam a ser dirigidos a outros membros da família com uso problemático de drogas como era o caso de Nádia.

Novamente citamos Domiciano Siqueira que em entrevista a Lancetti (2008) dirá que não são encaminhados técnicos para o campo, mas amigos, e todas as pessoas os recebem de maneira amigável. Os atendimentos com Nádia mostram os encontros e desencontros possíveis nessa clínica, as tentativas frustradas e algumas das dificuldades que os RDS vivenciam no trabalho em campo apontam para o quanto é importante ter criatividade, flexibilidade e capacidade de acolhimento, acreditando na força dos encontros que propiciam solidariedade e corresponsabilidade pelo cuidado em saúde.

Outros canais de comunicação se criaram com a atuação dos RDS em campo e certamente estão ligados à familiaridade com as pessoas e à visibilidade obtida pelo trabalho, com o passar do tempo, dentro da comunidade. A presença diária dos RDS pelas ruas dos bairros com seus crachás e a realização das visitas domiciliares reafirma a importância do trabalho em campo e territorializado. (Petuco & Medeiros, 2010).

 

DA RUA À FESTA

Outra cena significativa ocorreu quando uma mulher, que chamaremos de Marta, de 30 anos, no meio da tarde, abordou na rua um dos RDS que carregava uma garrafa de água. Querendo fazer graça, brincando, a mulher pede pinga para ele, o qual mostra a garrafa. Surge, então, a oportunidade de abordá-la para explicar sobre o trabalho de Redução de Danos. Ela mostrou-se interessada em saber mais sobre o assunto e seguiu dizendo que é dependente química de múltiplas drogas. Contou que estava indo a uma festa na casa de um amigo e convidou o rd para acompanhá-la. Chegando à festa no meio da tarde, o RD reconheceu o dono da casa, amigo de uma das pessoas já atendidas por eles e lembrou que se tratava de um usuário crônico de álcool.

Depois de ser apresentado a todos e se ambientar, o RD teve a oportunidade de continuar conversando com Marta. Ela contou que morava sozinha e que já tinha utilizado drogas injetáveis quando morava em outra cidade há mais ou menos 10 anos. Seguiu mostrando seus braços com muitas marcas de picadas de agulhas, porém já cicatrizadas. Disse que, ao começar a fazer uso do crack, abandonou as drogas injetáveis. Ela então diz que estava com vontade de fumar uma pedra. Continuou falando sobre sua vida, infância, seus filhos e sua mãe. Contou, em meio a lágrimas, que se prostitui para conseguir dinheiro para usar pedra e que a mãe sofre com o uso de drogas dela. Marta se despediu para ir à casa de uma amiga e o RD pegou seu endereço para ir visitá-la posteriormente.

Ainda na festa, o RD distribuiu preservativos e panfletos com informações sobre DSTs, passando a conversar com outra pessoa, João Luiz. Este também é usuário de álcool e apresentava sérios problemas de pele na cabeça e no rosto, relatou que não sabia o que tem na pele e já passou vários produtos (álcool, gasolina, querosene, etc.) na tentativa de curar os ferimentos. O RD fez uma primeira orientação e combinou com João Luiz que ele será visitado pela ACS, falou da necessidade de atendimento médico para esse caso. Após sair da festa, o RD passou na UAPSF e informou os dados do caso para a ACS, além do endereço do usuário para que pudesse ser feita uma visita. Nesse caso e muitas vezes o RD funciona como ponte entre o usuário e o serviço de saúde, tanto que, posteriormente, a ACS localizou João Luiz, marcou uma consulta para ele com o médico que o encaminhou para um dermatologista.

Voltando à festa, o RD abordou duas moças, uma delas fazendo uso de maconha tentou se esconder do RD, mas o profissional reagiu tentando deixá-la à vontade para que a conversa pudesse ter seguimento, mas logo elas deram um jeito de despistá-lo.

A postura do RD na festa foi a de buscar a empatia no grupo e a integralidade na atenção em saúde, respeitando cada usuário abordado, posicionando-se politicamente como agente de saúde compromissado com a defesa do direito do cidadão de acesso a serviços de saúde que possam atender às suas necessidades prementes.

O princípio fundamental que orienta as ações de tais medidas está embasado no respeito à liberdade de escolha e ao direito à saúde do indivíduo, por ser uma estratégia que busca integrar medidas de promoção, proteção, tratamento e reinserção social dos usuários de drogas, que por vezes, não conseguem ou não querem abster-se da drogadição, mas que podem ter reduzidos os riscos de infecção por diversas doenças, como DST/HIV, hepatites virais e tuberculose, dentre outras. (Landi Filho et al., 2009, p. 300).

Entendemos que a cena da festa produz importante abertura de campo, potencializa os canais de comunicação possíveis entre os envolvidos, amplia as ações dos RDS e o número de pessoas acolhidas, muitas vezes, de forma surpreendente por sua eficácia e agilidade.

E mais uma vez ressoam as práticas clínicas de AT e RD, pois para ambos a postura ética e acolhedora que se deve ter "(...) requer um vasto lastro de aceitação humana, uma capacidade de abrigar manifestações e sentimentos extremados de desespero, de irrealidade, de violência, de crueldade." (Camargo, 1991, p. 55). Esta autora está se referindo ao trabalho do acompanhante terapêutico e temos a clara convicção, conforme foi elucidado no caso acima, que a referência vale também para o redutor de danos, já que ambos cuidam de pessoas que requerem uma grande habilidade para prover o cuidado sem censurá-las ou abordá-las com teor moralista.

 

REDUÇÃO DE DANOS: VÍNCULO E RESPEITO

Tomamos conhecimento da usuária Severina por indicação de uma ACS que nos apresentou o caso dizendo que em todas as visitas que haviam sido feitas a mulher se encontrava alcoolizada. Os RDS realizaram a primeira visita na companhia da ACS, e com a autorização da usuária, passaram a visitá-la sistematicamente. Severina tem 46 anos, é casada com Wilson e tem um filho adotado chamado Marcos – ela e o marido trabalham como catadores de material para reciclagem. Em quase todos os encontros, estava sob o efeito de álcool, e sua condição clínica visivelmente estava afetada pela bebida (comorbidades como úlceras e edemas), além de desleixo com a higiene pessoal. Somado a isso, as condições sanitárias na casa e na vida de Severina (água não filtrada, esgoto a céu aberto, casa pequena e superlotada de material reciclável, suja e em mau estado de conservação, condições precárias de trabalho) tornavam a situação ainda mais grave.

Com exceção dos poucos dias em que Severina estava sozinha em casa enquanto o companheiro trabalhava, os demais atendimentos aconteceram sempre em família na presença da mulher, do esposo e do filho adotivo. Pelo fato de Wilson também fazer uso de bebida alcoólica, nos encontros eram abordados temas de relacionamento familiar, estratégias de redução da quantidade de bebida para ambos, cuidado para com o filho referente à sua frequência na escola, higiene da casa e orientações sobre utilização do filtro de água.

Diante deste quadro os RDS tomaram a iniciativa e conseguiram a doação do dono de um mercado do bairro de uma vela para filtro de água que estava jogado no quintal da casa da usuária em meio aos reciclados e não era utilizado. O filtro foi limpo pela usuária, colocou-se a vela e mesmo assim, a família não adquiriu o hábito de tomar água filtrada e, quando questionada sobre tal fato, Severina respondia dizendo que foi criada por seus pais tomando água de torneira e não teve nenhum problema de saúde por isso.

No tocante ao uso de álcool, vale destacar a iniciativa que os RDS tomaram de propor a Severina e seu marido que misturassem um pouco de água na garrafa de pinga e, para nossa surpresa, esta ideia foi adotada por algum tempo por eles, chegamos a achar que se tornaria um hábito dos dois, mas isso acabou não acontecendo.

No tocante à condição clínica de Severina, mesmo com a insistência dos RDS e da ACS, ela não comparecia às consultas agendadas. Por se tratar de um caso em que a usuária fazia o consumo contínuo de bebidas alcoólicas e demonstrava resistência à adesão aos serviços de saúde e ao autocuidado, as intervenções dos RDS se centravam na orientação sobre a importância de hidratação ao longo do dia, de as refeições serem feitas diariamente e acerca das estratégias de redução da quantidade de consumo de bebida. Severina respondia efetivamente dizendo que ela e sua família gostavam bastante das visitas feitas pelos RDS; ela se sentia como se fosse cuidada por eles, sentia-se valorizada. O que concluímos é que a presença dos RDS, a atenção e escuta oferecida por eles e sua preocupação com a saúde da família era o que estava funcionando mais efetivamente que qualquer outra intervenção.

O caso de Severina e sua família, acima descrito, ilustram o que para muitos pode ser compreendido como um limite da intervenção pela via da Redução de Danos, na medida em que a melhoria da higiene ou o consumo de água filtrada não foram alcançados. Do nosso ponto de vista, um dos princípios fundamentais da redução de danos que é o respeito às escolhas dos usuários e familiares foram levados a cabo e, além disso, efeitos terapêuticos importantes foram alcançados na medida em que se fortaleceu o vínculo, os laços afetivos e a solidariedade. A exemplo disso nos dizia Severina: "Eu gosto quando vocês vêm me visitar."

Um dos principais instrumentos do trabalho dos redutores é o princípio ético de não tecer julgamentos de valor sobre a vida das pessoas, estabelecendo vínculos solidários nos quais os usuários podem encontrar condições de decidir sobre as ações a serem desenvolvidas em relação à sua saúde... (Lemke & Silva, 2013, p.16).

No trabalho terapêutico feito pelos RDS, de novo vemos ressonâncias com o trabalho desenvolvido também pelo AT, pois como bem afirmam Porto e Sereno (1991), o AT tenta estabelecer uma relação de cumplicidade e parceria, servindo como referência, ponto de apoio, partilha, conexão e produção de redes solidárias de acolhimento para o paciente e sua família. Portanto, é preciso que o rd esteja atento a qualquer forma de tutela que possa vir a exercer na relação terapêutica que estabelece, para assim conseguir sustentar uma postura libertária na/da clínica, com vistas à autonomia e cidadania dos usuários de álcool e outras drogas.

Vale também destacar que a participação e implicação do RD em supervisões da prática clínica cotidiana constitui-se como um dispositivo fundamental ao longo de sua formação na Escola de Redutores de Danos do SUS. Nesse compromisso do rd de acompanhar o usuário e acreditar na possibilidade de experimentação de novos modos de pensar, estar no mundo e se cuidar, o RD não precisa se restringir a exercer a função de ponte entre o usuário e o mundo, podendo ser tão somente testemunha destes encontros e desencontros singulares que ele vai tecendo com o seu entorno social. E nesse trabalho de acompanhar e procurar reduzir danos, esperamos que chegue o momento em que possamos nos perguntar sobre a necessidade ou não de nossa presença no cotidiano do usuário e sua família, sabendo que quando isso acontecer, estaremos mais próximos do fim do trabalho.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Redução de Danos ainda implica numa série de dificuldades teóricas e pragmáticas, uma vez que consiste em uma política e um conjunto de práticas em processo de implantação e consolidação na rede, muitas vezes distorcida pelos preconceitos que incidem na temática do uso de drogas e do cuidado em saúde às pessoas que fazem uso de drogas. No entanto, juntamente com o Acompanhamento Terapêutico, a Redução de Danos ocupa um lugar importante no âmbito da Reforma Psiquiátrica Brasileira e das políticas de atenção primária em saúde, pois surge com forma de enfrentamento das dificuldades de acesso ao cuidado em saúde de qualidade, considerando a singularidade de cada caso e garantindo os direitos fundamentais do cidadão.

Assim, escrevemos sobre essa clínica que precisa ser inventada a cada caso, a cada acontecimento vivido no cotidiano, e através dos recortes de casos contados aqui, pretendemos mostrar a criação de várias e singulares formas de cuidado em saúde que possam inspirar outras experiências de prática clínica artesanal e a céu aberto. Reconhecemos que ainda é preciso lapidar conceitos, rever procedimentos, mas desejamos que o presente trabalho possa, ainda sim, encorajar novos estudos e ações na área.

 

Referências

Acioli Neto, M. L., & Amarante, P. D. C. (2013). O acompanhamento terapêutico como estratégia de cuidado na atenção psicossocial. Psicologia: Ciência e Profissão, 33(4), 964-975.         [ Links ]

Bezerra, C. G., & Dimenstein, M. (2009). Acompanhamento terapêutico na proposta de altaassistida implementada em hospital psiquiátrico: relato de uma experiência. Psicologia Clínica, 21(1), 15-32.         [ Links ]

Brasil, Ministério da Saúde. (2001). Coordenação Nacional de DST e AIDS. Manual de Redução de Danos. Brasília.         [ Links ]

Brasil, Ministério da Saúde. (2006). Política Nacional de Atenção Básica. Portaria n.º 648/2006. Recuperado em 26 de janeiro de 2014, de http://dtr2001.saude.gov.br/sas/PORTARIAS/Port2006/GM/GM-648.htm.         [ Links ]

Camargo, E. M. C. O. (1991). Acompanhante Terapêutico e a Clínica. In Equipe de acompanhantes terapêuticos do hospital-dia a casa. (Org.) A Rua como Espaço Clínico – acompanhamento terapêutico. São Paulo: Escuta.

Carvalho, S. S. (2003). Acompanhamento terapêutico: que clínica é essa. São Paulo: Annablume.         [ Links ]

Ceccin, R. B. & Feuerwerker, L. C. M. (2004). O quadrilátero da formação para a área da saúde: ensino, gestão, atenção e controle social. Physis [online], 14(1), 41- 65. Recuperado em 10 de dezembro de 2013, de doi 10.1590/S0103- 73312004000100004.         [ Links ]

Conte, M. (2003). A clínica psicanalítica com toxicômanos: o "corte" & "costura" no enquadre institucional. Santa Cruz do Sul: EDUNISC.         [ Links ]

Lancetti, A. (2008). Clínica Peripatética.         [ Links ] São Paulo: Hucitec.

Landi Filho, D., Araújo, O. D. S., Cavalcante, R. O., Mendes, S. S. & Miranda Junior, U. J. P. (2009). Redução de Danos e Saúde da Família: conhecimento de profissionais de saúde em três regionais do DF/Brasil. Comunicação em Ciências Saúde, 20(4), 299-306.         [ Links ]

Lemke, R. A. & Silva, R. A. N. (2013). Itinerários da construção de uma lógica territorial do cuidado. Psicologia e Sociedade, 25(spe 2), 9-20.         [ Links ]

Lobosque, A. M. (2003). Clínica em Movimento: por uma sociedade sem manicômios. Rio de Janeiro: Garamond.         [ Links ]

Mauer, S. K. & Resnisky, S. (1987). Acompanhantes Terapêuticos e Pacientes Psicóticos: manual introdutório a uma estratégia clínica. Campinas: Papirus.         [ Links ]

Mesquita, F. & Ribeiro, M. M. (1998). As Estratégias de Redução de Danos junto a Usuários de Drogas Injetáveis (a troca de seringas): aspectos médicos legais. In São Paulo, Secretaria Estadual de Saúde. Atualidades em DST/AIDS: redução de danos. São Paulo: Secretaria Estadual da Saúde, p. 61-75.         [ Links ]

Mesquita, F. (1991). AIDS e Drogas Injetáveis. In Lancetti, A. (Org.) Saúde Loucura 3. (p. 46-53). São Paulo: Hucitec.         [ Links ]

Minas Gerais, Secretaria Estadual de Saúde. Atenção em Saúde Mental. Secretaria de Saúde de Minas Gerais: Belo Horizonte, 2006.         [ Links ]

Nardi, H. C. & Rigoni, R. Q. (2005). Marginalidade ou Cidadania? a rede discursiva que configura o trabalho dos redutores de danos. Psicologia em Estudo, 10(2), 273-282.         [ Links ]

Palombini, A. L. (2009). Utópicas cidades de nossas andanças: flânerie e amizade no acompanhamento terapêutico. Fractal Revista de Psicologia, 21(2), 295-317.         [ Links ]

Passos, E. H. & Souza, T. P. (2011). Redução de Danos e Saúde Pública: construções alternativas à política global "Guerra às drogas". Psicologia e Sociedade, 23(1), 154- 162.         [ Links ]

Petuco, D. R. S. & Medeiros, R. G. (2010). Saúde Mental, Álcool e outras Drogas. Contribuição à IV Conferência Nacional de Saúde Mental – Intersetorial. Recuperado em 3 de fevereiro de 2013, de http://www.redehumanizasus.net/9808-saude-mentalalcool- e-outras-drogas-contribuicao-a-iv-conferencia-nacional-de-saude-mentalintersetorial.

Pitiá, A. C. A. & Furegato, A. R. F. (2009). O Acompanhamento Terapêutico (AT): dispositivo de atenção psicossocial em saúde mental. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, 13(30), 67-77.         [ Links ]

Porto, M. & Sereno, D. (1991). Sobre Acompanhamento Terapêutico. In: Equipe de acompanhantes terapêuticos do hospital-dia a casa (Org.). A Rua como Espaço Clínico. (p. 23-31). São Paulo: Escuta.         [ Links ]

Santos, V. E., Soares, C. B. & Campos, C. M. S. (2010). Redução de Danos: análise das concepções que orientam as práticas no Brasil. Physis, 20(3), 995-1014.         [ Links ]

 

 

Nota sobre as autoras

Ricardo Wagner Machado da Silveira: Docente de ensino superior da Universidade Federal de Uberlândia - Instituto de Psicologia nos cursos de graduação e pós-graduação. E-mail: ricardo.wagner.silve@terra.com.br

 

Recebido em: 05/07/2016
Aprovado em: 22/10/2016.

 

 

1Essa definição de Ales Bello se refere à consciência na perspectiva de Edmund Husserl e seus discípulos, sendo um deles Edith Stein.
2 [...] que la corriente es una sola, porque brota de un único yo.
3 Gracias a su origen anímico, toda acción de la vonluntad – e igualmente toda acción impulsiva que proceda de las profundidades del "yo" – lleva el sello de la peculliaridad personal y lo imprime también en la obra creada por ella. La vida personal que se expresa por un movimiento de la mano, se manifiesta em todo lo que la mano produce: en los trazos de la escritura, em las huellas que dejan el pincel o el martillo (de manera análoga, los productos del pensamiento, además de su contenido objetivo, contienen vestigios de la espontaneidad interior a la que deben su existencia). El mundo entero en el que un individuo actúa, lleva la impronta de su personalidad: de sus rasgos típicos y de su peculiaridad personal.
4[...] la formación desde fuera tiene que contar con la formación desde dentro, si no hay adestramento y no formación, o deformación.

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons