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Revista do NUFEN
versão On-line ISSN 2175-2591
Rev. NUFEN vol.12 no.2 Belém maio/ago. 2020
https://doi.org/10.26823/RevistadoNUFEN.vol12.nº02artigo64
Artigo
DOI: 10.26823/RevistadoNUFEN.vol12.nº02artigo64
Para além do câncer de mama: estudo centrado nas mulheres em tratamento quimioterápico
Beyond Breast Cancer: Study Centered At Women In Chemotherapeutic Treatment
Más Del Cáncer De Mama : Estudio Centrado En Las Mujeres En Tratamiento Quimioterápico
Leihge Roselle Rondon Pereira; Ana Rafaela Pecora Calhao
Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT)
RESUMO
Este artigo busca apresentar as significações afetivas e emocionais vivenciadas por mulheres acometidas pelo câncer de mama, a partir de suas experiências durante o início do tratamento quimioterápico. Para alcançar as significações das participantes, fundamentamos o estudo na perspectiva teórico-vivencial da Abordagem Centrada na Pessoa, propondo como metodologia de coleta de dados entrevistas experienciais, e uma análise compreensiva dos dados, consubstanciada pela utilização do software IRAMUTEQ. As participantes apontam para a importância dos sistemas de apoio diante das mudanças físicas e ambientais ocorridas durante o tratamento; o registro das mudanças provocadas estão para além das marcas físicas, pois as interações com as pessoas e o olhar dessas, influenciam a forma como as mulheres se percebem, e percebem o outro, que ora se presta como fonte de apoio, outras vezes como fomentador de estigmas e inseguranças. Os resultados reafirmam a importância das relações de ajuda que promovam saúde durante o tratamento.
Palavras-chave: Psicologia Humanista; Metodologia; Câncer de Mama.
ABSTRACT
This article searches to present the affective and emotional meanings experienced by women affected by breast cancer, from their experiences during the beginning of chemotherapy treatment. To reach he meanings of the participants, we base the study on the theoretical-experiential perspective of the Person-Centered Approach, proposing as methodology of data collection experiential interviews, and a comprehensive analysis of the data, substantiated by the use of IRAMUTEQ software. The participants point to the importance of support systems in face of the physical and environmental changes that occurred during treatment; the record of the changes provoked are beyond the physical marks, since the interactions with the people and the look of these, influence the way women perceive themselves, and perceive the other, that sometimes lends itself as a source of support, other times as a promoter stigma and insecurities. The results reaffirm the importance of aid relationships that promote health during treatment
Keywords: Humanistic Psychology; Methodology; Breast cancer.
RESUMEN
vivenciadas por mujeres acometidas por el cáncer de mama, a partir de sus experiencias durante el inicio del tratamiento quimioterápico. Para alcanzar las significaciones de las participantes, fundamentamos el estudio en la perspectiva teórico-vivencial del Enfoque Centrado en la Persona, proponiendo como metodología de recolección de datos entrevistas experienciales, y un análisis comprensivo de los datos, consubstanciada por la utilización del software IRAMUTEQ. Las participantes apuntan a la importancia de los sistemas de apoyo ante los cambios físicos y ambientales ocurridos durante el tratamiento; el registro de los cambios provocados están más allá de las marcas físicas, pues las interacciones con las personas y la mirada de éstas, influencian la forma en que las mujeres se perciben, y perciben al otro, que ahora se presta como fuente de apoyo, otras veces como fomentador de estigmas e inseguridades. Los resultados reafirman la importancia de las relaciones de ayuda que promuevan la salud durante el tratamiento.
Palabras-clave: Psicología Humanista; Metodología; Cáncer de mama.
INTRODUÇÃO
O câncer de mama faz parte de um conjunto de doenças crônico-degenerativas que não apresentam uma causa específica, mas são influenciadas por aspectos multifatoriais de ordem biopsicossocial, causando mudanças nas estruturas do crescimento celular, que resultam no surgimento dos tumores malignos, chamados de neoplasias (Caponero, 2015). Apesar dos avanços biotecnológicos nas formas de cuidado e no tratamento, o câncer de mama ainda corresponde ao segundo1 tipo de câncer mais frequente na população feminina brasileira, sendo que foi estimado 59.700 novos casos de câncer de mama para o ano de 2018 no Brasil (Inca, 2017).
Trata-se de uma doença que apresenta relevância epidemiológica, e também se consolida em um tema que permeia o imaginário social e provoca grande impacto social. Como afirma Sant’Anna (1997), a história do câncer está repleta de imagens de vergonha, é uma doença que tem equivalência a uma sentença sociocultural de morte, na qual se torna comum ao enfermo se responsabilizar pelo adoecimento e aceitar o seu castigo.
Ainda que ocorram sensações de impotência e culpa, comuns aos pacientes oncológicos, consideramos que o câncer de mama já não se encontra tão desconhecido como no início de sua história. Hoje torna-se possível descobrir a sua histologia e propor tratamentos, assim, as mulheres que vivenciam esse diagnóstico e escolhem tratar a doença, também acabam passando por diferentes condutas clínicas, com afetações emocionais que repercutem em suas vidas. As pacientes oncológicas são submetidas a diferentes protocolos de tratamento, que geram reações emocionais (Gimenes, 1997; Bloom, 2002; Frost et al., 2000), como os protocolos das cirurgias mamárias, que por resultarem na extirpação das mamas, provocam alterações no âmbito da autoestima. Conforme aponta Wanderley (1994), as mulheres que realizam cirurgias mamárias "sentem-se envergonhadas, mutiladas e sexualmente repulsivas" (p. 95).
Outro protocolo oncológico é a quimioterapia, o qual as participantes desse estudo vivenciaram, e que produz alterações orgânicas como os efeitos colaterais das neuropatias, isto é, a disfunção dos nervos periféricos com possíveis alterações motoras, sensitivas ou autonômicas; a infertilidade, decorrente da toxicidade do tratamento; e a menopausa precoce, influenciada pelos moduladores hormonais (Barros, 2008; Yustos et al., 2017), são mudanças no corpo que fomentam afetações emocionais.
As reações emocionais vivenciadas pelas mulheres com neoplasia mamária têm caráter significativo, já que interferem no tratamento, na reabilitação e na qualidade de vida. O diagnóstico e o tratamento dessa doença, somado aos estereótipos já construídos, gera angústias, que ocasionam em afetações emocionais e mudanças significativas na vida das pacientes, como também nos seus relacionamentos (Bergamasco & Angelo, 2001; Sant’anna, 1997).
Visto isso, a atuação dos psicólogos, assim como a atuação dos médicos, enfermeiros e de outros profissionais que desempenham a função de cuidador das mulheres que foram acometidas pelo câncer de mama, torna-se importante para o suporte das reações emocionais das pacientes, dos familiares e das equipes de cuidado oncológico.
No universo do cuidado oncológico, a Psicologia, principalmente a área da Psicologia da Saúde, e a sua subárea, a Psico-Oncologia, contribuem para a compreensão dos fatores biopsicossociais que envolvem o câncer, desde o seu surgimento, até cada fase do processo de cuidado, como o tratamento, a reabilitação ou o fim de vida. A relação da Psicologia com a Oncologia não se limitou ao campo psicoterápico, houve o aprofundamento para o campo clínico, alcançando o objetivo de estudar a forma como o sujeito vive e experimenta o seu estado de saúde ou de doença, e assimilando as relações que as pessoas estabelecem consigo, com as outras pessoas e com o mundo (Almeida & Malagris, 2011).
Mesmo que essas áreas tenham iniciado os seus trabalhos no campo oncológico como respostas para as demandas de cuidado terapêutico das emoções dos pacientes, elas ampliaram seu campo de atuação e pesquisa, e buscam analisar as causas dos cânceres, verificar os efeitos psíquicos nos sintomas, alcançar compreensões sobre a qualidade de vida e bem-estar dos pacientes oncológicos, como também desenvolver trabalhos sobre as representações sociais dos cânceres.
Adentramos no campo da Psico-Oncologia e nesse estudo buscamos as repercussões psicológicas durante o início do tratamento quimioterápico, que foram apresentadas pelas significações pessoais das participantes desse estudo. Para isso, adotamos como fundamentação teórica e metodológica a Abordagem Centrada na Pessoa – ACP, que foi proposta por Carl Rogers, um psicólogo norte-americano (1902-1987) de notável contribuição para a Psicologia, sobretudo para a Psicologia Humanista.
A partir dos pressupostos desenvolvidos na ACP, entendemos por significações pessoais aquilo que sentimos e vivenciamos em uma determinada experiência, e que se relaciona com o nosso presente imediato. O processo experiencial, então, é fomentado por tudo aquilo que se passa no organismo, sendo acessado pela memória, no qual as experiências passadas podem afetar a experiência imediata (Kinget, in Rogers & Kinget, 1977a).
Também, considera-se nesse estudo o postulado básico e central na construção teórica de Rogers, a noção da Tendência Atualizante, em que "todo o organismo é movido por uma tendência inerente a desenvolver todas as suas potencialidades e a desenvolve-las de maneira a favorecer a sua conservação e enriquecimento" (Rogers, in Rogers; Kinget, 1977a, P. 159). Para o autor, mesmo que os ambientes fossem desfavoráveis, a tendência atualizante não deixaria de atuar, poderia ser frustrada ou desvirtuada, mas não destruída sem que se destrua também o organismo (Rogers, 1983). Conforme a proposição básica da tendência atualizante, o autor afirma, que sob certas condições, como a criação de um clima facilitador por parte do terapeuta, existirá na pessoa uma capacidade para uma reestruturação e uma reorganização de self, tendo como consequência diferentes comportamentos que refletem nas interações sociais (Rogers, In Wood, 1994).
Partindo dessa preposição básica, de que todo o organismo, aqui entendido como uma totalidade biopsicológica em interação social e ambiental, movido pela tendência atualizante, sempre buscará as melhores saídas diante de cada enfrentamento, então, procuramos com esse estudo, compreender as significações pessoais, com acento afetivo e emocional, que foram vivenciadas pelas mulheres enquanto estavam iniciando o uso de quimioterapia para o tratamento do câncer de mama.
MÉTODO
O estudo seguiu os preceitos éticos previstos na Resolução nº 466, de dezembro de 2012, do Conselho Nacional de Saúde (Brasil, 2012) e na Resolução nº 510, de abril de 2016, do Conselho Nacional de Saúde (Brasil, 2016), foi aprovado pelo CEPHumanidades da Universidade Federal de Mato Grosso, com o Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE) n° 82016617.3.0000.5690. Os dados desse estudo foram coletados durante o primeiro semestre de 2018, por meio das entrevistas experienciais2, que foram gravadas e realizadas individualmente com 10 mulheres que estavam no início do tratamento quimioterápico, em uma clínica especializada em oncologia na cidade de Cuiabá – MT.
Os locais para a coleta dos dados se restringiram a dois espaços: um consultório e a sala de quimioterapia. As entrevistas experienciais eram realizadas antes do início das sessões de quimioterapia, essa opção considerou a maior disposição física das participantes que correspondia ao período próximo à aplicação da medicação subsequente.
As participantes vivenciavam o primeiro tratamento oncológico e possuíam idades entre 35 e 53 anos (M = 45 anos). Definimos essa faixa etária por considerarmos os fatores de risco para o desenvolvimento do câncer de mama em que esse tipo de câncer é relativamente raro em idade inferior a 35 anos (Inca, 2018).
Com fundamentação teórica nos pressupostos da ACP, propomos como método de pesquisa as entrevistas experiênciais3, que auxiliam na construção de um clima que facilitou o acesso as significações pessoais com ênfase nos aspectos afetivos e emocionais, como também na consciência da experiência pelas participantes. Refere-se a uma metodologia para coleta dos dados de pesquisa que visa acentuar os aspectos afetivos e emocionais de uma entrevista, em detrimento aos intelectuais, com as características de serem entrevistas abertas, não diretivas, e em profundidade. Com esse método, não se utilizou de questões introdutórias e cada participante foi convidada para uma entrevista em formato de encontros.
Procuramos nas entrevistas experienciais transpor as atitudes de consideração positiva incondicional, compreensão empática e congruência, essenciais na criação de um clima facilitador durante o processo de terapia, para as condições de pesquisa, apontamos nossa intenção, frente ao uso dessas atitudes facilitadoras propostas por Rogers (1992, 2014), para compor um jeito de ser pesquisador.
Dessa forma, as atitudes que um entrevistador precisa adotar durante o uso da entrevista experiencial, assim, são as mesmas consideradas em uma relação terapêutica, já que é também uma relação, no qual a pessoa necessita se sentir mais livre para acessar os seus sentimentos e pensamentos presentes na experiência imediata (Rogers in Rogers; Kinget, 1977a). As atitudes facilitadoras, consideradas por Rogers nas relações de ajuda psicológica, foram utilizadas no processo das entrevistas experiências sem a necessidade de se recorrer a outros procedimentos metodológicos para a coleta dos dados. Entendemos que os relatos compartilhados pelas entrevistadas, foi em termos das significações pessoais.
Atribuímos o termo entrevistas experienciais por se tratar de um processo de pesquisa, apesar de realizarmos a transposição das atitudes facilitadoras comuns aos atendimentos psicológicos, consideramos, que a pesquisa por ser iniciada com a assinatura da participante no Termo do Consentimento Livre Esclarecido (TCLE)4, já se descaracteriza de um processo de terapia, pois durante o convite para a participação da entrevista, com a apresentação do TCLE, a pessoa já é informada sobre o tema e os objetivos do estudo. Algo que não acontece nos atendimentos psicológicos, em razão de que não definimos objetivos, apenas, propomos um espaço de experiência relacional.
A facilitação das entrevistas seguiu, assim, os pressupostos da ACP, e as premissas sobre os processos experiências, facilitamos aquilo que fizesse sentido para as participantes na experiência imediata. Utilizando da mesma premissa, também não interferimos na liberdade e autonomia da pessoa, que escolhe os conteúdos que desejava compartilhar, a fim de não limitar a comunicação das significações pessoais.
Realizamos a transcrição das entrevistas experienciais com os conteúdos que as participantes elegerem como significativo e que escolheram abordar, e compomos um corpus textual que foi processado pelo software IRAMUTEQ, um software gratuito, criado em 2009 por Pierre Ratinaud (Salviati, 2017). Trata-se de software específico para análise textual, e que foi utilizado com o objetivo de avaliar o conteúdo verbal presente nas entrevistas das participantes, oferecendo caminhos para serem percorridos durante nossa análise compreensiva.
Os resultados oferecidos pela análise lexical do IRAMUTEQ são qualiquantitativos; quantitativos, por apresentar o método estatístico inferencial do Qui-Quadrado (x2); qualitativos, ao considerar as palavras e o contexto em que são utilizados (Camargo & Justos, 2015). O processamento das entrevistas pelo software IRAMUTEQ apresentou como resultado as Classificação Hierárquica Descendente (CHD), que conforme explica Camargo (2005) é um método de processamento dos dados que visa obter classes de palavras/temáticas, com segmentos do texto que apresentam vocábulos com semelhanças, e apontam diferenças entre os vocábulos a partir da construção das diferentes classes.
Para realizar esse aprofundamento, e enquanto cuidado metodológico, buscamos a avaliação de concordância de juízes sobre a nossa compreensão das classes. Em nosso estudo os juízes são psicólogos qualificados com o título acadêmico de Mestre, e que fundamentam suas práticas profissionais pela Abordagem Centrada na Pessoa, possuindo dessa forma conhecimentos necessários para realizar a avaliação solicitada. Essa avaliação foi inspirada no exercício proposto por Carl Rogers no segundo volume do livro Psicoterapia e Relações Humanas (Rogers & Kinget, 1977b), compôs uma atividade que nos proporcionou cuidado e sofisticação metodológica durante a análise compreensiva.
Nessa atividade pedimos aos juízes que avaliassem as respostas compreensivas que fizemos dos trechos presentes em uma tabela que encaminhamos, verificando também se as respostas apresentavam um caráter interpretativo da dinâmica do sujeito, referente aos conteúdos que elas não expressavam no trecho, ou se possuíam um carácter explicativo, no qual a resposta se limitaria a uma descrição do que foi relatado pela participante no trecho. Ao avaliar os trechos os juízes escreveram a palavra sim para os trechos que concordaram com a compreensão que foi escrita, e a palavra não para os trechos que não concordaram com a compreensão escrita. Pedimos aos juízes que para os trechos avaliados como não fossem apresentadas sugestões de compreensão do trecho.
Segundo Rogers (Rogers & Kinget, 1977b) se o terapeuta estivesse inspirado pelas atitudes facilitadoras, suas respostas tenderiam naturalmente a apresentar uma característica compreensiva. O uso desses recursos na pesquisa, possibilitou alcançar a análise compreensiva. Nessa análise nós consideramos os elementos que estão para além da leitura e compreensão dos trechos das entrevistas, são incluídos elementos como: a) o contexto experiencial dos relatos, que é vivenciado pelo pesquisador enquanto participante do encontro em entrevista; b) as contribuições das pesquisas anteriores sobre o tema, e c) as perspectivas teóricas da ACP. Desta maneira, a análise compreensiva também perpassa pela leitura e compreensão subjetiva do pesquisador.
RESULTADOS E DISCUSSÕES
O corpus processado pelo IRAMUTEQ ofereceu a Classificação Hierárquica Descendente (CDH), em que foram analisados 1.123 segmentos de textos, e teve como aproveitamento do material discursivo 84,77% do total. Obtivemos como resultado quatro classes, sendo elas:
Os conteúdos mais significativos pelos dados estatísticos de qui-quadrado, revelam a força de associação entre as palavras e as classes, e são apresentados na sequência.
A Classe 1, nomeada de Sistemas de apoio, possui 30,2% dos segmentos de texto aproveitados. As palavras consideradas mais significativas e que constituem essa classe foram: casa, querer, mãe e trabalho5 (Figura 1). O conteúdo da classe 01 aborda o que as participantes têm a dizer sobre os seus espaços de apoio, após a descoberta do diagnóstico e com o início do tratamento quimioterápico. Os sistemas de apoio são entendidos como os espaços físicos, institucionais, materiais ou as relações com laços de afeto, que podem fomentar sensações de consideração e confiança, são sistemas que influenciam as percepções das pessoas que nele interagem. O depoimento a seguir demonstra esse conteúdo:
Eu vou na casa da minha filha e na casa da minha mãe são duas quadras, uma quadra e meia. E às vezes eu coloco o chapéu. E chegando lá eu tiro o chapéu e falo nossa, eu esqueci de colocar o lenço. Aí minha mãe fala não, deixa. Aí eu deixo, acabo ficando sem o lenço e me esqueço às vezes. Então, assim, na casa da minha mãe, eu fico até sem lenço. Me sinto bem, me sinto assim, que ninguém vai rir de mim, a pessoa não vai olhar meio torto para mim. É, ambiente de família, né. (Part. 01).
Nesse depoimento a participante apresenta a casa da filha e da mãe como um local de apoio, um refúgio. Fala sobre a segurança e da boa sensação que é sentida com os familiares frente a ausência de julgamento quanto a queda de seu cabelo. Estudos sobre o apoio social vem demonstrando que ele auxilia na redução dos efeitos negativos provenientes do adoecimento, e repercute na saúde física e mental diminuindo o estresse dos pacientes (Nurullah, 2012). Os sistemas de apoio contribuem para a saúde psicoemocional, proporcionando não somente o auxílio nas atividades e na adaptação, mas sendo espaços que possibilitam uma reestruturação da imagem de si, e do reconhecimento da realidade atual.
Para Rogers (Rogers & Kinget, 1977b), a partir da sua teoria das relações interpessoais, uma relação de ajuda eficaz estará apoiada em atitudes que se primam por uma relação afetiva, por um cuidado, por um respeito, por uma atenção, que, quando estabelecidas, favorecem com que a pessoa tenha acesso aos seus recursos para a resolução de seus problemas.
A Classes 04, Tratamento do Câncer de Mama, é responsável por 31,5% dos segmentos de texto. As principais palavras relacionadas a essa classe foram: quimioterapia, sentir, fraqueza e passar6 (Figura 1). O contexto dessa Classe apresentou, de modo geral, discursos sobre os efeitos colaterais em que o tratamento se consolida, que correspondem às condições clínicas vivenciadas com o diagnóstico de câncer de mama, conforme o depoimento de uma participante.
Sentir no corpo aquela sensação de medicamento tão forte que você chega a beber água, vai ao banheiro e não consegue urinar, reação que te debilita sabe. Porque é instantâneo o efeito colateral, no dia seguinte eu acordei com uma sensação horrível. Depois da cirurgia de mama, o diagnóstico é muito triste, passar pela cirurgia tem o inconveniente que você fica sensível, mas a quimioterapia é diferente. Saber que a quimioterapia vai me trazer os benefícios da eliminação do câncer de mama do meu organismo me tranquiliza. Lógico, mas ao mesmo tempo, essa sensação dá um descontrole. (Part. 02).
A vivência da quimioterapia, como dos seus efeitos colaterais, concretiza o diagnóstico do câncer de mama. Contudo, é notado que para a participante do depoimento, a realização da quimioterapia causa a sensação de estar sendo curada. Estudos apontam que nas mulheres com menos de 50 anos, e que o diagnóstico é feito no início, a quimioterapia pode aumentar em 10% a sobrevida e em estimativa de dez anos, e para mulheres entre 50 a 69 anos pode aumentar em 3% a sobrevida em dez anos (Duric & Stockler, 2001). O significado atribuído pelas participantes à quimioterapia é o recurso para matar as células cancerosas.
Observamos, a partir das características presentes nas demais classes que compõe o dendograma, afetações pelas relações interpessoais (classe 02) e afetações pelo tratamento do câncer de mama (classe 03), que estas tiveram uma maior implicação pessoal das participantes com acento afetivo e emocionais, e demostram ter os conteúdos mais relevantes. As compreensões realizadas sobre os sentidos dessas classes passaram por juízes para avaliar se as respostas compreensivas que fizemos dos trechos das entrevistas experienciais pertencentes a essas classes apresentavam um caráter interpretativo da dinâmica do sujeito, ou se possuíam um caráter explicativo do trecho.
Assim, na classe 02, chamada de Afetações pelas Relações Interpessoais, temos 25,9% dos segmentos de texto. As palavras mais relevantes na Classe 02 foram: pessoa, olhar, doença, incomodar e falar7 (Figura 1).. Nessa classe é apresentado percepções sobre as afetações emocionais vivenciadas devido as relações interpessoais.
Quando as mulheres acometidas pelo câncer de mama recorrem a palavra pessoa, estão apresentando duas significações bem distintas. A primeira se refere as pessoas que são significadas como aquelas que causam alívio, fazem parte desse grupo a equipe e as pessoas próximas, "as enfermeiras são ótimas, o médico, ele me explicou tudo, como que é, como que sabe, o tratamento e as enfermeiras também, me ajudando, sabe. Então, isso traz muita tranquilidade para o paciente, o paciente fica mais calmo" (Part. 03).
As participantes falam sobre as pessoas da equipe e apontam a forma de acolhimento e comunicações prestados por ela, e o quanto essa relação fez com que se sentisse mais tranquila. Recorrendo ao contexto do relato e a experiência da própria pesquisadora durante a entrevista experiencial, a participante apresentava suas considerações sobre a experiência vivida, de apoio por parte da equipe, que foi diferente do que as pessoas afirmavam que viveria. Refere-se ao pressuposto de que em um espaço de saúde os profissionais costumam ser técnicos e objetivos, mas em sua experiência e nas relações estabelecidas com a equipe de saúde que a assistia, as relações com a equipe se colocaram como promotora de saúde.
Na literatura internacional sobre o tema referente a comunicação da equipe de saúde com os pacientes existe o tópico da comunicação centrada no paciente (Thorne, Oliffe & Stajduhar, 2013). A comunicação centrada no paciente é descrita por Walczak et al. (2013) como aquela que envolve uma relação entre equipe-paciente que seja caracterizada por confiança, respeito, compreensão mútua, que proporcionarão bem-estar e fomentar saúde ao paciente. Rogers (1983), ao falar sobre as experiências em comunicação, pontua que quando ouvimos efetivamente uma pessoa, e as suas significações da experiência, ouvimos não somente as palavras, mas a pessoa mesma. Ao perceber que as suas significações pessoais e preocupações, tão íntimas, foram acolhidas, a participante se sentiu aliviada e aberta a processos de mudança.
Já a segunda significação diz sobre as pessoas desconhecidas, mas pertencentes ao contexto social, essas pessoas são associadas ao sentimento de incômodo, principalmente pela percepção de que estas reconhecem o câncer de mama nas participantes, "caiu muito sobrancelha, os cílios caíram, e eu fiquei assim diferente e às vezes as pessoas olham, notam, eu tiro os óculos e notam. Às vezes eu passo um lápis, mas sem o lápis, quando as pessoas olham, percebem" (Part. 04).
Expressa-se o sentimento de incômodo com a percepção da doença pelas pessoas externas. Durante a entrevista experiencial a participante abordava que a percepção da doença por ela, como pelas pessoas de forma geral, fomentava a sensação de diferença. Para não se sentir diferente ela buscava artifícios, como o uso de maquiagem, disfarçando aquilo que tonava visível seu adoecimento. É muito comum que as pacientes, incluindo mulheres que vivenciam o câncer de mama, procurem esconder os seus adoecimentos. Ao considerar os sentidos atribuídos pelas participantes desse estudo, a sensação que procuram evitar é o olhar social que detecta a diferença, e com essa detecção torna-se mais claro para as pacientes a presença do adoecimento em seu processo de vida.
A palavra olhar apresentou os sentidos do olhar de piedade, "ir no mercado sem que as pessoas saibam que eu tenho câncer de mama e que eu posso morrer, eu não quero que as pessoas saibam. Sem ter que lidar com os olhares de piedade e a opinião dos outros" (Part. 03). E o olhar acompanhado dos estereótipos da doença, "então tem gente que olha para você e pergunta se é você mesma. Então ela está viva ainda. Dessa maneira. É assim, aí, sei lá, eu acho que é uma cultura mesmo bem ultrapassada" (Part. 01).
Nesses trechos podemos observar o desejo de esconder o adoecimento das pessoas. As participantes, a partir de seus próprios olhares, identificam as mudanças corpóreas ocorridas durante o tratamento. As mudanças já se tornam muito difíceis para as pacientes, contudo, outras pessoas também identificam essas mudanças e muitas vezes associam com a ideia de morte, apresentando um olhar de piedade e estereotipado.
A ideia de morte iminente continua associada ao câncer e permanece na sociedade como tabu, sendo que todos os conteúdos dessa temática são interditados pelas pessoas, a fim de que a felicidade seja preservada (Nascimento & Roazzi, 2008). Philippe Ariès, grande historiador sobre a concepção da morte na modernidade, aponta que existe uma significação moderna de que a morte deve ser combatida de todas as formas, sendo também considerada como fracasso e a sua iminência é composta pelo sentimento de vergonha (Ariès, 2003). Os estereótipos associados ao câncer, como a morte e a fragilização do corpo estão presentes em algumas interações sociais, podendo influenciar as formas como as pacientes pensam sobre si, e sobre a sua vida durante o tratamento (Camargo, Justos & Alves, 2011).
Rogers, chamou de "avaliação organísmica" o processo em que a pessoa guia a sua ação a partir de como experimenta e significa o mundo no aqui e agora, atribuindo ao que é sentido como agradável um valor positivo e ao que é desagradável uma valorização negativa. Parte desta experienciação se desdobra em uma "noção de eu", que também guiará as ações da pessoa. Assim o conceito de self se refere a percepção de si e da realidade pela própria pessoa (Rogers, in Rogers & Kinget, 1977a). As interações sociais com expressões estereotipadas sobre o câncer de mama, influenciam na construção de um self ideal para as participantes, que é composto por características que gostariam de ter, como a saúde e os cabelos. Ao significar a diferença do seu self real para o ideal, as pacientes vivenciam desconfortos e insatisfações, dificultando a aceitação de si e de suas experiências imediatas.
Com a palavra doença, as participantes dizem sobre os sintomas, sobre o enfrentamento da doença, que é atravessado pela aceitação da doença, "mas, graças a Deus, assim, no começo eu fiquei muito mal, não queria aceitar a doença, depois eu não queria aceitar que iria ter que tirar a mama toda" (Part. 04).
A vivência da doença ocorre de maneira mais expressiva com o surgimento dos sintomas ou com as marcas que ficam no corpo. Ao analisar o contexto das entrevistas experienciais se torna evidente a descrença das participantes sobre o seu próprio adoecimento, aspecto próximo ao estágio de negação apontado por Kübler-Ross (1994), no qual o paciente busca provar de todas as formas que houve um engano frente ao diagnóstico apresentado pelo médico. Evitar o reconhecimento da doença, da realidade que se vive, faz com que haja o ilusório conforto de que o evento terrível e assustador não existe.
No estágio denominado por Kübler-Ross (1994) como aceitação, as pacientes reconhecem sua dificuldade em aceitar a experiência do adoecimento como parte da sua realidade, falam sobre se sentir "mal", um desespero ao reconhecer as condições de seu processo como realmente é, tendo dificuldades em enfrentar essa nova situação em vida.
Rogers (2014) ao apontar as contribuições das relações de ajuda, aborda que a dinâmica de mudança dos clientes é facilitada pela composição de um clima, com a presença das atitudes de consideração positiva incondicional, congruência e compreensão empática por parte do terapeuta. Para o autor, com a criação desse clima facilitador o cliente poderá ouvir com maior atenção seus sentimentos internos, compondo maior aceitação de si e caminhando para um maior estado de congruência. Nesse sentido "descobre que é possível abandonar a fachada atrás da qual se escondia, que é possível pôr de lado os comportamentos de defesa e ser de uma maneira mais aberta ao que realmente é" (Rogers, 2014, p. 74).
Com a palavra incomodar, as participantes se referem as insatisfações durante os procedimentos, seja pela queda dos cabelos, pelo olhar das pessoas ou por precisarem de ajuda. Essa palavra evidência que nessa classe, o sentimento de incômodo é uma das afetações mais persistente, principalmente, com aquilo que significam nas relações interpessoais, "e já incomoda né, a pessoa está ali na sua casa, lavando louça, fazendo alguma coisa" (Part. 06).
Utilizando sobre a palavra falar, as participantes abordam alguns processos, como o de falar da causa do câncer:
Quando eu fui falar com a minha mãe que eu estava com câncer de mama ela pegou e falou assim para mim que eu tenho que saber perdoar as pessoas que essa doença que tem você é porque você tem um coração ruim, todo mundo quando eu falava que estava com câncer de mama me dava um apoio, minha mãe fez foi julgamento, agora não sai lá de casa, todo dia me leva uma coisa, dizendo ah, eu descobri uma coisa boa para você, como se quisesse compensar o que fez, sabe? (Part. 05)
Nesse trecho o estigma do câncer se fez presente com a comunicação da mãe da participante ao falar que a causa do câncer se devia pela filha ter um coração ruim. A partir desse relato a participante conseguiu acessar o sentimento de ter sido julgada.
Outro processo encontrado é o do falar que provoca alívio:
Aí sei que nós marcamos e aí a gente conversou, assunto de quarto e assim, eu percebi que a medida que você fala, essa coisa vai assim sabe, é assim, é como se tornasse um peso menor, essa foi a sensação que eu tive, eu falei com elas, lógico, me deu muita força, eu falo gente vem oração de tanta gente, eu acho que isso vai fortalecer muito (Part. 08).
A atividade de desabafar possui uma grande importância, podendo, então, a paciente ao conseguir falar ter o apoio das outras pessoas. Rogers (2014) diz sobre nossa capacidade em vivenciar as experiências. Notamos que as participantes ao conseguir falar sobre os diferentes processos que vivenciam, acabam desconstruindo estereótipos que estavam associados ao seu tratamento e que traziam um peso emocional, permitindo que vivenciassem a experiência de uma forma diferente.
Na Classe 03, nomeada de Afetações pelo Tratamento do Câncer de Mama, temos 12,3% dos segmentos de textos analisados. As palavras consideradas como principais da Classe 03 são: mudança, processo, encarar, cabelo e vencer8 (Figura 1). Nessa classe as mulheres se referem ao que sentem enquanto afetação a partir da experiência do tratamento.
Ao dizer sobre as mudanças, falam daquelas sentidas na vida após o início do tratamento:
Com certeza tudo isso que eu estou passando vai vir com uma mudança essencial para a minha sobrevivência daqui para frente, porque eu não quero viver como vivia de novo. Na minha cabeça a maneira que eu vivia me trouxe o câncer de mama, e eu tenho muito pouco tempo para reorganizar minhas ideias, meu estilo de vida, as minhas opções, as minhas atitudes, para que eu possa evitar recidiva (Part. 02).
Percebemos nesse depoimento a relação do surgimento do câncer com o estilo de vida mantido, a participante ao significar essa relação apresentou a necessidade de mudar. O diagnóstico do câncer de mama se compõe como um evento atravessador, gerando uma descontinuidade na vida das mulheres, acometidas por ele, e nas suas interações sociais. Com a percepção de finitude da vida que o diagnóstico provoca, enquanto possibilidade da morte, se não tratado, promove uma ruptura biográfica nas significações da paciente sobre si. Considerando a adaptação de pessoas que vivenciam doenças crônicas, perspectiva proposta pelo sociólogo Bury (1991), essa ruptura biográfica, promove mudanças na condução dos comportamentos das pacientes, até nas formas escolhidas para uma reconstrução de um novo estilo de vida. Tornando-se uma emergência de ações adotadas, diante dos problemas que enfrentam.
Os resultados relativos a palavra processo apontam a compreensão das participantes de que no tratamento do câncer de mama a mulher passa por diferentes fases, que provocam afetações em suas relações sociais, familiares e com ela mesma, "é um processo e a gente tem que ir vencendo" (Part. 07).
Com a palavra encarar, compartilham sobre o encarar as dificuldades e mudanças físicas ocorridas devido ao tratamento, "então assim e a gente tem que encarar o que vier, falo aqui do cabelo, do corpo, tudo, mas não posso mudar isso, são coisas que vão acontecendo e tem que aceitar" (Part. 09).
Encarar as dificuldades e mudanças vivenciadas, acaba por se tornar oportunidades de crescimento. A literatura sobre o câncer nomeia de Crescimento Pós-Traumático (CTP), o movimento das pessoas que experimentam uma vivência traumática com o diagnóstico de adoecimento por câncer, e apresentam inclinações para mudanças de crescimento pessoal (Castro Et al., 2018). Tedeschi e Calhoun (2004) descrevem o conceito de CTP como uma mudança positiva, que ocorrerá como resultado da experiência durante crises de vida, que são consideradas altamente desafiadoras. Essas mudanças se manifestam de várias maneiras, incluindo, uma apreciação crescente pela vida em geral, presença de relações interpessoais mais significativas, um aumento no senso de potencialidade, mudanças nas prioridades e uma vida existencial e espiritual mais rica. Segundo Rogers (2014) as pessoas possuem, fundamentalmente, uma orientação positiva, uma tendência ao crescimento pessoal, mesmo àquelas que vivenciam perturbações pessoais.
A palavra cabelo apresentou correspondência com a noção de queda capilar. Segundo Reis (2015), a queda do cabelo é um evento que apavora as mulheres. A autora afirma que para as mulheres a queda do cabelo é a confirmação de que estão doentes, isso retrata a importância dada ao cabelo pelo gênero feminino, "se acontecer de cair o cabelo, não tem nada que eu possa fazer, mas eu estou gostando de que até hoje o cabelo não caiu, então eu tenho minha privacidade" (Part. 10). Não ter ocorrido a queda capilar oferece sensação de alívio e protege sua privacidade.
Durante o período das coletas dos dados foi disponibilizado na clínica especializada em oncologia, onde o estudo foi realizado, uma máquina para resfriamento do couro cabeludo, que denominamos como Touca, cuja temperatura varia entre 9˚C e 17˚C, com o propósito de diminuir a circulação sanguínea no folículo piloso e, assim, impedir a passagem de medicação no local, diminuindo a queda capilar durante o tratamento quimioterápico (Reis, 2015).
Para fazer uso dessa máquina alguns procedimentos eram adotados, primeiro as participantes precisavam usar um aparelho para proteção auricular com a finalidade de abafar o ruído da máquina, segundo era necessário que as pacientes iniciassem o resfriamento capilar cerca de trinta minutos antes da administração da medicação quimioterápica e após trinta minutos do encerramento da quimioterapia, permanecendo mais uma hora no espaço de tratamento do que o previsto no protocolo inicial; e como terceiro procedimento, a cada trinta minutos seus cabelos seriam umedecidos para contribuir com o processo do resfriamento.
Devido a essas circunstancias alguns pacientes entenderam os procedimentos para a utilização da Touca como muito invasivos, outras, associavam tal dispositivo como desejável e contribuinte para lidar com incômodos presentes na vivência da queda capilar, mesmo que tais procedimentos não garantisse a efetividade do impedimento da queda.
Mas, diante da possibilidade do impedimento da alopecia, duas significações emergiram: (1) favorecimento da "invisibilidade" da doença, evitando o olhar estigmatizado das pessoas; (2) favorecimento do estigma, em que a mensagem significada é: devo esconder o câncer de mim e da sociedade.
O cabelo faz parte da imagem psíquica que a mulher tem de si mesma e da sua feminilidade. O evento da queda dos cabelos é acompanhado, geralmente, de vivências extremamente dolorosas relacionadas a uma sensação de perda da própria imagem, como Parkes (1998) evidencia, a perda de parte do corpo altera a relação que a paciente estabelece com seu corpo e sua mente. O autor destaca a vivência da transição psicossocial na reação do luto, que é caracterizada pela sensação de deslocamento dos aspectos idealizados para aquilo que agora é percebido como real, um descolamento que ocorre tanto na percepção social, quanto na percepção do self. O indivíduo que vivenciou perdas e se encontra enlutado transitará da negação da perda para uma aceitação, nesse momento são adotados novos modelos internos, "na verdade, eu acho que eu até aceitei muito bem. Mas, assim, eu acho que pra mim foi mais uma libertação. Começou a cair o cabelo, a embolar, tudo o que podia piorar, e eu não queria manter o cabelo" (Part. 09).
Quando recorriam a palavra vencer, falavam sobre vencer a morte e o câncer, que são respectivamente exemplificados a seguir:
Porque isso é um pouco difícil para gente. A gente recebeu um diagnóstico, a gente pensa que vai morrer. Porque só vem assim. A gente pensa que vai morrer, mas não é nada disso. A gente tem que ter essa força, essa fé para gente vencer a doença. Então através da fé, através da força. E do carinho do amor da família é muito importante (Part. 06).
É que nem é o agora que estão começando a aparecer, eu estou feliz, autoestima, vamos aí, venha mais, porque elas estavam sumindo mesmo, não vinha nada, estava tipo aqui sem nenhum sinalzinho, agora eu já estou melhor. A gente vai vencer, vai chegar lá (Part. 04).
Correspondendo ao sentido de vencer a morte, que é abordado no primeiro trecho, a participante fala sobre a dificuldade sentida em receber o diagnóstico de câncer de mama, sendo que as primeiras significações vivenciadas são a correspondência da doença com a perspectiva de morte, finitude da vida. Assim, o vencer a morte é manter as esperanças e o enfrentamento da doença, e compreender que o diagnóstico de câncer não precisa ser entendido como diagnóstico de morte.
Já com o segundo trecho, temos o sentido de vencer o câncer, a diferença entre os sentidos, é que ao vivenciar o tratamento as pacientes vão reconhecendo mudanças no experienciar os sintomas, verificando diminuições dos tumores, adaptação do organismo aos medicamentos quimioterápicos e notando remissão dos sintomas do câncer. Essas percepções são significadas pelas participantes como uma experiência de vencer o câncer, já que a constatação da diminuição ou ausência dos sintomas fomenta confiança de que o tratamento está tendo sucesso.
As participantes utilizam das diferentes formas de enfrentamento para lidar com os seus problemas de saúde, que são de acordo com aquilo que acreditam que seja eficaz, no caso, dos sentidos sobre a palavra vencer existe uma relação entre a afetação pelo tratamento do câncer, percepção das participantes e a sensação de enfrentamento da doença (Castro et al., 2016).
Tornou-se evidente, com este estudo, que as significações pessoais das mulheres com câncer de mama são muito mais complexas, dado que as significações pessoais pertencentes ao campo experiencial estão em um fluxo de constantes mudanças. Nesse sentido, aquilo que sentimos e vivenciamos em uma determinada experiência, em nossas significações pessoais, está relacionado com o nosso presente imediato (Rogers; Kinget, 1977a). Contudo, os resultados alcançados nos convidaram a duas considerações: a primeira se refere aos alcances do processo da pesquisa e a segunda está relacionada a uma proposta de cuidado em saúde.
CONSIDERAÇÕES
Propomos um estudo que buscasse compreender as significações pessoais com acento afetivo e emocional, justamente os aspectos que procuramos diante de algumas situações esconder ou minimizar. Para isso escolhemos estar com mulheres acometidas pelo câncer de mama, da cidade de Cuiabá-MT, que estavam iniciando o tratamento quimioterápico. Consideramos que retratar as significações pessoais dessas mulheres representou novas possibilidades de apreensão e compreensão, incluindo os sentimentos e as percepções vinculados as experiências vividas.
Para essa apreensão utilizamos com proposta metodológica as entrevistas experienciais, que fomentou um clima facilitador para a tomada de consciência de si e das experiências pelas participantes. Conseguimos compreender em profundidade a complexidade das significações pessoais dessas mulheres que estavam na condição do tratamento do câncer de mama. Usando o software IRAMUTEQ como instrumento para o processamento dos dados, nós separamos as entrevistas experienciais em temas de destaque, que correspondem as quatro classes de palavras – Sistemas de Apoio, Tratamento do Câncer de Mama, Afetações pelas Relações Interpessoais e Afetações pelo tratamento de Câncer de Mama.
A análise dessas classes de palavras demonstrou que as afetações emocionais presentes nas falas das participantes apresentam maior destaque quando provocadas pelas relações interpessoais ou pelo tratamento do câncer de mama. Nos resultados encontramos as dimensões referentes aos relacionamentos estabelecidos com as pessoas durante o tratamento quimioterápico; a significação das participantes sobre olhar de piedade, que faz emergir os estereótipos do câncer de mama; as dificuldades sentidas pelas participantes com o processo de significar a doença como parte de suas experiências imediatas; o incômodo com as mudanças físicas e sociais ocorridas na vida das participantes devido ao tratamento oncológico; e, o reconhecimento de que o ato de falar sobre suas experiências alivia o peso das significações que haviam sido construídas e que eram sentidas sobre a experiência de vivenciar o câncer de mama.
Com os resultados alcançados percebemos que houve significativo alcances do caráter metodológico da pesquisa. Notamos que ao utilizarmos das entrevistas experienciais e da análise compreensiva no processo da pesquisa, tivemos alcances significativos aos objetivos do nosso estudo. Os encontros com as participantes na forma das entrevistas experienciais provocaram impactos, que são percebidos pela contribuição do clima facilitador para o alcance dos sentimentos e das afetações, como também, auxiliaram as participantes na escuta de si. Essa proposta metodológica acabou configurando-se em uma ação, já que a presença das atitudes facilitadoras é considerada o necessário e o suficiente para facilitar mudanças nas pessoas, como já demonstrado por Rogers (1983, 1992, 2014).
Ao analisar as entrevistas experienciais utilizando-se de uma sofisticação metodológica, por meio dos juízes e do software IRAMUTEQ, tivemos a possibilidade de validar a compreensão sobre o que as participantes compartilhavam, afastando-nos das análises explicativas e intelectualizadas, tendo um acesso maior a experiência imediata.
Também, percebemos a necessidade de semear um novo olhar, que corresponda a uma proposta de cuidado em saúde. Consiste na desconstrução dos preconceitos que são significados e sentidos pelas pessoas que vivenciam o câncer, mais especificadamente o câncer de mama. Sugerimos o olhar da proximidade, "aquilo que é mais pessoal é o que há de mais geral" (ROGERS, 2014, p. 30).
Pensando nesse fator social e ao identificar com a pesquisa as proximidades entre as significações das participantes, o estudo torna-se capaz de contribuir para a realização de práticas de cuidado em saúde, com um acento afetivo e emocional, ao propor para instituições de tratamento do câncer, programas de apoio psicológico às mulheres nessa situação de acometimento em saúde, como os grupos de encontro fundamentados na ACP, que se tornam facilitadores do crescimento humano, e não se restringem às prerrogativas de cunho biológico e tecnicista.
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Nota sobre os autores
Leihge Roselle Rondon Pereira. Psicóloga. Mestre em Psicologia (UFMT), Especialista em Psicologia Hospitalar (Conselho Federal de Psicologia), Especialista em Psicologia da Saúde (PRIMSCAV), Aperfeiçoamento Clínico na Abordagem Centrada na Pessoa (UFMT), ocupa o cargo de Psicóloga na Universidade Federal de Mato Grosso. Email: leihgeroselle@gmail.com.
Ana Rafaela Pecora Calhao. Psicóloga. Doutora em Psicologia Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Mestre em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso. Professora do Departamento de Psicologia (Graduação) e no Mestrado em Psicologia da Universidade Federal de Mato Grosso (PPGPSI). Coordenadora e Supervisora do Aperfeiçoamento em Psicologia Clínica da UFMT. Email: arpecora@terra.com.br.
Recebido em: 24/04/2019
Aprovado em: 20/02/2020
1 O primeiro tipo de câncer mais frequente na população feminina brasileira é o câncer de pele não-melanoma.
2 Definimos como início do tratamento quimioterápico até a terceira sessão de quimioterapia, que corresponderia até dois meses de tratamento medicamentoso. Em nosso estudo realizamos as entrevistas durante a segunda ou terceira sessão da medicação, excluímos a primeira sessão por considerar uma experiência que poderia apresentar característica invasiva, assim a primeira sessão foi destinada para o acolhimento emocional das pacientes e no final da sessão foi realizado o convite para as entrevistas experienciais.
3 Tal proposta vem sendo desenvolvida desde 2013 por Ana Rafaela Pecora Calhao, uma das autoras do artigo, em colaboração com residentes de psicologia, em trabalhos de pesquisa do Hospital Universitário Júlio Muller, vinculado a Universidade Federal de Mato Grosso, que consiste na execução de pesquisas na área da saúde. Embora desenvolvida desde 2013, a proposta se consolidou com a pesquisa de dissertação "Mulheres com câncer de mama: estudo centrado na pessoa para compreensão das percepções com acento afetivo e emocional", que origina o presente artigo, tendo Ana Rafaela Pecora Calhao como orientadora.
4 As participantes foram comunicadas sobre a condição voluntária na contribuição do estudo, sobre a natureza da pesquisa e os objetivos, sobre os riscos e os benefícios, sobre as indenizações que poderiam ser feitas. As participantes desse estudo assinaram o TCLE.
5 Omitimos algumas palavras pertencentes a classe 01, que apresentaram frequência e khi2 elevado, como a palavra lá, que apresentou função de advérbio de lugar, e as palavras irmão e avó que apresentavam sentido próximo a palavra mãe, A palavra mãe foi selecionada por apresentar khi2 maior que as duas palavras sucessoras na lista de palavras da Classe 01.
6 As palavras exame, tomar e medicação, pertencentes a Classe 04, quando foram analisadas no contexto das entrevistas experienciais apresentavam proximidade com a palavra quimioterapia, que foi preservada como palavra significativa da Classe 04. A palavra já foi suprimida por apresentar função de advérbio, e a palavra Doutor teve, em grande parte dos relatos, a função de interjeição.
7 As palavras, também pertencentes a Classe 02 (Figura 01), como assim, questão e então exerceram no contexto dessa classe a função de advérbio, a palavra coisa referia-se a uma interjeição, a palavra gente apresentou o mesmo sentido da palavra pessoa, que foi escolhida para ser representativa da classe, e a palavra olho expressava sentido próximo ao verbo olhar, que já havia sido selecionada como relevante na Classe 02
8 As palavras oração, cair, justo e propósito, apresentaram o sentido próximo ao verbo encarar, possuindo também uma significação de enfrentamento, por esse motivo selecionamos a palavra encarar como a terceira palavra mais relevante da Classe 03. A palavra assim apresentou a função de advérbio sendo então retirado da seleção das palavras mais relevantes, e as palavras deixar, melhor e dizer também apresentaram no contexto das entrevistas experienciais aproximações com os sentidos presentes no verbo vencer, que também foi escolhido como uma palavra relevante da classe.