Introdução
Os valores criativos, vivenciais e atitudinais são caminhos descritos por Viktor Frankl para o encontro com sentidos, direcionando a pessoa para fazer escolhas em sua vida cotidiana. Ao desenvolver a Logoterapia, Frankl (2019) apresenta a multidimensionalidade da pessoa humana enquanto um ser biológico, psicológico e espiritual. A dimensão espiritual abrange a consciência da pessoa, sendo esta, um aspecto essencialmente humano. A busca pelo sentido é a força propulsora do ser humano, pois a pessoa só é capaz de realizar-se à medida que cumpre um sentido (Frankl, 2015). A sensação de realização pessoal e de bem-estar interior é compreendida por Frankl como uma consequência do sentido realizado e não como uma meta a ser alcançada. Assim, quando a pessoa tem consciência de seus valores, consegue ter clareza dos motivos que a levam à ação, obtendo, pelo fazer, o sentimento de felicidade e de realização pessoal. No entanto, a ausência do sentido se configura como vazio existencial (Frankl, 2021).
Para Frankl (2020a) o sentido da vida pode ser encontrado por meio da realização de valores, sejam criativos, vivenciais ou atitudinais. Os valores criativos se manifestam por meio de atividades voltadas à contribuição aos outros, como o trabalho, o esporte e as criações artísticas. Os valores vivenciais acontecem no ato de receber, seja o afeto, o amor ou a contemplação da natureza. Já os valores atitudinais correspondem à atitude responsável tomada pela pessoa frente ao sofrimento inevitável (dor, culpa e morte). O sofrimento, na perspectiva da Logoterapia, é uma condição que não tira o sentido da vida de uma pessoa, mas pode proporcionar um novo sentido, revelando sua força interior.
Nessa direção, a partir dos conceitos de Frankl, a vida não perde o sentido sob quaisquer circunstâncias e, mesmo diante de situações graves, como nos casos de pessoas que sofreram lesão medular, a busca e o encontro com o sentido da vida é possível. A lesão medular exige uma reorganização para lidar com demandas e limites impostos pela nova condição. Além das sequelas físicas permanentes, a lesão traz impactos psíquicos e sociais, exigindo revisão de objetivos e prioridades na vida. A ruptura brusca e a necessidade de mudanças na forma de desempenhar grande parte de suas ocupações rotineiras, desde atividades básicas como higiene pessoal, alimentação, trabalho e participação social, associadas a sentimentos de frustração, tristeza, isolamento, ansiedade e depressão, podem interferir no senso de independência, de identidade, de autoeficácia, de autoestima, de valor pessoal e de percepção sobre o sentido da própria vida (Castro et al., 2020; Goraczko et al., 2021; Meira Neto, 2021).
Embora se observem avanços na área da saúde, de forma a considerar questões relacionadas à dimensão espiritual, para além das dimensões físicas e cognitivas, essa realidade ainda se mostra incipiente. Estudos apontam essa dimensão como um fator importante no processo de saúde e no enfrentamento de crises da vida, interferindo de maneira positiva tanto na saúde física quanto na saúde mental (Thiengo et al., 2019). Apesar de reconhecer a importância dessa dimensão nos processos de avaliação e intervenção, profissionais demonstram dificuldade em lidar com o tema na prática, tendo em vista que não foram preparados para além da dimensão biopsicossocial (Araújo et al., 2014). Neste contexto, a Logoterapia traz contribuições importantes, orientando caminhos para o encontro com o sentido em pessoas com lesão medular, cuja situação traumática exige uma tomada de atitude responsável diante da vida (Chun & Lee, 2022; Goraczko et al., 2021).
Diante do exposto, o objetivo deste estudo consiste em identificar o sentido da vida e sua relação com a realização de valores criativos, vivenciais e atitudinais à luz da Logoterapia em pessoas com lesão medular.
Metodologia
Trata-se de um recorte da pesquisa intitulada “Motivação para superação e busca de sentido de vida em pessoas com lesão medular e impacto da pandemia de Covid-19”, aprovada em 17/12/22 pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Ceilândia (CEP/FCE), sob o número CAAE: 51975721.0.0000.8093.
Foi realizado um estudo descritivo, transversal, de cunho qualitativo. Participaram deste estudo pessoas com lesão medular, em qualquer nível de lesão, de ambos os sexos, com idade igual ou superior a 18 anos. A busca pela amostra foi realizada por meio das redes sociais (Instagram e Facebook), além de grupos e associações de apoio às pessoas com lesão medular. Foi utilizada a técnica de amostragem conhecida como snowball samplimg (Bola de Neve), na qual a amostra não probabilística é formada por participantes iniciais de um estudo, que indicam novos participantes, que por sua vez, indicam novos participantes e assim sucessivamente (WHA, 1994 citado por Baldin & Munhoz, 2011). O uso desta técnica se justificou por se tratar de uma população em situação de vulnerabilidade no contexto da pandemia do Covid-19.
A pesquisa se deu de forma on-line pela Plataforma Teams eseguiu todas as exigências éticas em pesquisa com seres humanos. Os participantes foram esclarecidos quanto aos objetivos e procedimentos do estudo e concordaram com o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, o Termo de Autorização de Uso de Imagem e Som de Voz e autorização para o uso dos dados para a pesquisa. O aceite para a participação e a concordância com os termos foram gravados.
Foram aplicados o questionário sociodemográfico e o questionário de prioridades na vida e orientação de valores, ambos construídos pelas pesquisadoras, além do questionário de sentido de vida (QSV). O questionário sociodemográfico coletou informações sobre sexo, idade, escolaridade, estado civil, religião, frequência de prática espiritual, nível e tempo de lesão. O questionário de prioridades na vida e orientação de valores contém variáveis relacionadas à atenção prioritária a situações do cotidiano e relacionadas aos valores de criação, de experiência e de atitude. O questionário de sentido da vida (Steger et al., 2006) contém 10 itens, avaliados em escala de 7 pontos, variando de 1 (totalmente falso) a 7 (totalmente verdadeiro), em que a soma dos itens confere pontuação para busca ou presença de sentido da vida.
Os dados coletados foram organizados no programa Microsoft Excel para análise de resultados. Os participantes foram numerados de P1 a P12, conforme sua ordem de participação. A análise de dados foi baseada em Bardin (2011). Inicialmente, realizou-se pré-análise, exploração e organização do material para formar o corpus do trabalho.
Resultados
Doze pessoas com lesão medular participaram do estudo, sendo seis homens (50%) e seis (50%) mulheres na faixa etária entre 24 e 58 anos. Com relação ao estado civil, na época da entrevista cinco eram solteiros (41,7%), dois casados (16,6%), dois viúvos (16,6%) e três divorciados (25%). Nove (75%) tinham filhos. Sobre os aspectos de moradia, dois (16,6%) moravam sozinhos e dez (83,4%) com algum familiar.
Quanto à classificação da lesão, seis (50%) possuem tetraplegia e seis (50%) paraplegia. O tempo de lesão foi de um a dois anos em um (8,3%); três a cinco anos em dois (16,6%); cinco a dez anos em dois (16,6%); e mais de dez anos em sete participantes (58,3%). A capacidade funcional relatada foi totalmente independente por três (25%), parcialmente independente por oito (66,7%) e totalmente dependente por um participante (8,3%). Sobre a situação de renda, sete (58%) eram aposentados, um (8,3%) pensionista, três (25%) relataram receber benefícios do Estado e um (8,3%) estava inserido no mercado de trabalho.
Com relação à espiritualidade e religiosidade, seis (50%) relataram se identificar com alguma religião e sete (58,3%) relataram praticar atividades espirituais em sua rotina. A Tabela 1 apresenta as informações dos participantes:
Tabela 1 Informações dos participantes
Dados | Frequência | Porcentagem (%) |
---|---|---|
Sexo | ||
Masculino | 6 | 50 |
Feminino | 6 | 50 |
Idade | ||
20 a 30 anos | 4 | 33,3 |
40 a 50 anos | 5 | 41,7 |
Acima de 50 anos | 3 | 25 |
Residência | ||
Mora sozinho | 2 | 16,6 |
Mora com familiar | 10 | 83,4 |
Vida Familiar | ||
Solteiro | 5 | 41,7 |
Casado | 2 | 16,6 |
Viúvo | 2 | 16,6 |
Divorciado | 3 | 25 |
Filhos | 9 | 75 |
Capacidade Funcional | ||
Totalmente independente | 3 | 25 |
Parcialmente independente | 8 | 66,7 |
Totalmente dependente | 1 | 8,3 |
Situação Financeira | ||
Aposentado | 7 | 58,3 |
Pensionista | 1 | 8,3 |
Beneficiário | 3 | 25 |
Autônomo | 1 | 8,3 |
Religião/Espiritualidade | ||
Possuem religião | 6 | 50 |
Praticam atividades espirituais | 7 | 58,3 |
Fonte: elaboração própria.
A percepção dos participantes sobre os valores criativos, vivenciais e atitudinais, conforme classificação da Logoterapia, estão apresentados na Tabela 2. Com relação aos valores criativos, três participantes (25%) relataram realizar criações intelectuais; 11 (91,6%) criações artísticas e sete (58,3%) algum trabalho. Valores vivenciais foram relacionados com a contemplação da natureza em oito participantes (66,6%), com a contemplação da arte em seis (50%), com o amor e o cuidado a outra pessoa em todos (100%) e com a relação com Deus em um (8,3%). Em relação aos valores atitudinais, todos os participantes relataram mudança de atitude diante do seu sofrimento após a lesão. As principais razões relatadas foram: preservar o sofrimento e sobrecarga de um familiar, por cinco participantes (41,7%), aprendizado após a lesão, relacionado à resiliência e aceitação dos limites do corpo, por cinco (41,7%) e a partir do ganho de autonomia em suas atividades de vida diária por dois (16,6%).
Tabela 2 Percepção de valores
Valores | Frequência | Porcentagem (%) |
---|---|---|
Criativos | ||
Criações intelectuais | 3 | 25 |
Criações artísticas | 11 | 91,6 |
Trabalho | 7 | 58,3 |
Vivenciais | ||
Contemplação da natureza | 8 | 66,6 |
Contemplação da arte | 6 | 50 |
Amor a alguém | 12 | 100 |
Cuidado com outras pessoas | 12 | 100 |
Relação com Deus | 1 | 8,3 |
Atitudinais | ||
Preservar um familiar | 5 | 41,7 |
Resiliência e aceitação | 5 | 41,7 |
Ganho de autonomia | 2 | 16,6 |
Fonte: elaboração própria.
Com relação às prioridades na vida, oito participantes (66,6%) relataram o cuidado com o próprio corpo e com a própria saúde, conforme trechos da entrevista, descritos abaixo:
Então, eu acho assim, que o cuidado com o corpo, ter a saúde leva você a fazer outras coisas que vai te tornar mais satisfatório, entendeu? Então eu acho que, assim, o cuidado com o corpo, a garantia da saúde, isso que leva a ter um sentido, entendeu? Se você tem um sentido de vida, não cuida do corpo, não tem saúde, você tá meio que se desgastando (P2).
Porque eu penso assim, eu tando bem, eu me sentindo bem de saúde, de tudo, eu posso ajudar a expressar, ou sei lá, a fazer mais. Eu me sentindo bem, eu acho que eu ajudo mais os que estão próximos de mim, eu vejo nesse sentido (P3).
A lesão medular traz uma preocupação, não esteticamente, mas é uma preocupação pra você não ter deformidades, pra você não ter lesões de pele, a chamada escara(P1).
Por causa da minha lesão, então eu me preocupo por ter um corpo saudável, não adquirir escaras e os movimentos também do corpo, pra mim não ficar dependendo das pessoas e por ter uma saúde mental boa, porque eu não quero depender das pessoas. (P10)
Ainda, com relação às prioridades dos participantes, a busca por reconhecimento profissional e retorno financeiro foi relatada por um (8,3%) e se colocar à serviço na família, no trabalho ou na sociedade por três (25%).
Em relação aos resultados do QSV, 11 participantes (91,7 %) demonstraram ter encontrado o sentido da vida e um (8,3%) demonstrou estar em busca desse sentido. Este participante (P9) demonstrou falta de motivação, sensação de angústia e isolamento social e relatou se sentir deprimido. Quando questionado sobre as atitudes diante do sofrimento inevitável, P9 expressou: “Só agora que eu começo a pensar em socializar, conviver com outras pessoas, ser útil, porque no começo é bem difícil [...], ainda não consigo falar sobre o meu sofrimento”.
Discussão
Em relação aos objetivos desta pesquisa, percebeu-se que a busca pelo sentido não impediu a realização de valores. Embora estivesse em busca de sentido, P9 demonstrou realizar valores de criação, de experiência e de atitude. Relatou momentos e vivências de amor com sua filha (valor de experiência e de atitude) e em atividades esportivas (valor de criação). A tristeza, a angústia e a falta de motivação podem ter sido a causa de P9 não ter consciência dessas ações como valores. Dessa forma, a presente pesquisa possibilitou a reflexão de todos os participantes, em especial de P9, com relação aos valores já realizados, trazendo uma nova percepção sobre sua história de vida.
A busca pelo sentido é caracterizada por sua ausência e esta pode ter relação com o vazio existencial. O vazio existencial é compreendido como uma condição que varia entre a sensação de tédio, angústia, falta de motivação, culpabilização de terceiros por seu sofrimento, ausência de expectativas para o futuro, sintomas de ansiedade, depressão e até tentativas de autoextermínio (Miguez, 2015; Frankl, 2020b). O sofrimento impede a realização de valores, sendo necessário que a pessoa transcenda esse sofrimento para uma tomada de atitude responsável, orientada por um sentido (Frankl, 2021).
O segundo achado dessa pesquisa se refere às prioridades de vida entre os participantes. Embora oito tenham relatado o cuidado com o corpo como prioridade, os relatos não apresentaram relação com movimentos autocentrados em busca de autovalorização e satisfação pessoal, mas como um meio de possibilitar a realização de valores.
Pessoas com lesão medular são propensas a desenvolverem lesões por pressão, devido à falta de sensibilidade na pele, falta de mobilidade e inadequação postural (Prado et al., 2021) que, se não cuidadas, agravam o estado de saúde, impactando negativamente nos relacionamentos sociais, nos círculos de amizades, no trabalho e alterando a rotina da pessoa (Almeida et al., 2013; Sousa et al., 2021). Nesta pesquisa, o cuidar do corpo foi compreendido como um meio para a realização de valores e não um fim em si mesmo, em busca de um benefício próprio, prazer, diversão e autossatisfação.
Frankl (2016) afirma que o movimento autocentrado de busca excessiva pelo cuidado com o próprio corpo não é natural ao ser humano e, por isso, o critica. Para defender sua teoria do caráter patológico desse movimento, o autor faz analogia com a catarata, doença que leva a pessoa a perceber o próprio olho: “Quando é que o olho é capaz de enxergar-se, se prescindirmos do espelho? Somente quando está afetado de catarata.
[…] Sempre que puder olhar para si mesmo, será porque está com a capacidade visual prejudicada” (p. 25).
Nessa direção, a Logoterapia busca o olhar para fora da pessoa, ou seja, a capacidade de autotranscenderse para a realização de valores e para o encontro com o sentido (Frankl, 2015; 2020b).
Considerações finais
O objetivo deste estudo, identificar o sentido da vida e sua relação com a realização de valores à luz da Logoterapia em pessoas com lesão medular, foi respondido. Foi verificado que o vazio existencial não impediu a realização de valores. Além disso, foi observado que o cuidado com o corpo não se configurou como um movimento autocentrado.
A classificação de valores descrita por Frankl se apresenta como um norte para a reflexão e para o encontro com o sentido. Porém, em muitos momentos, nessa classificação, os tipos de valores se sobrepõem. A ação de cuidar de alguém pode ser, ao mesmo tempo, um valor vivencial, criativo e de atitude, por exemplo. A Logoterapia não prescreve valores, porém, clarifica a consciência em relação ao reconhecimento dos valores já realizados e orienta para a realização de novos, por meio de ações livres e responsáveis.
A partir deste estudo, sugere-se que as práticas de cuidado integral em saúde junto às pessoas com lesão medular integrem conhecimentos relacionados à Logoterapia, de forma a possibilitar uma visão ampliada da pessoa, contemplando todas as dimensões humanas. Para estudos e práticas futuras, relacionadas à saúde de pessoas com lesão medular, sugerimos contemplar a multidimensionalidade da pessoa humana, bem como a inclusão de variáveis relacionadas ao vazio existencial, sentido da vida e realização de valores.