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Trivium - Estudos Interdisciplinares
versão On-line ISSN 2176-4891
Trivium vol.10 no.1 Rio de Janeiro jan./jun. 2018
https://doi.org/10.18379/2176-4891.2018v1p.11
ARTIGOS TEMÁTICOS
O fundamentalismo religioso e suas vicissitudes éticas e políticas
Religious fundamentalism and its ethical and political vicissitudes
El fundamentalismo religioso y sus vicisitudes éticas y políticas
Rosana de Souza CoelhoI; Marco Antônio Coutinho JorgeII
IDoutoranda no Programa de Pós-Graduação em Psicanálise - Clínica e Pesquisa/Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Endereço: São Francisco Xavier, 524 - Sala 1006 A - Maracanã, Rio de Janeiro - RJ, 20550-900. E-mail: psi.rosana@gmai.com
IIProfessor Associado do Instituto de Psicologia da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Endereço: São Francisco Xavier, 524 - Sala 1006 A - Maracanã, Rio de Janeiro - RJ, 20550-900. E-mail: macjorge@corpofreudiano.com.br
RESUMO
O artigo tematiza o recrudescimento do fundamentalismo religioso na contemporaneidade utilizando a metapsicologia e a teoria dos discursos de Lacan. Dialoga com autores de outras áreas do conhecimento para corroborar o inegável elo entre religião e política. Investiga o papel crucial da crença na manutenção do poder religioso e propõe uma homologia estrutural entre o discurso do mestre e o discurso religioso. Aponta, por fim, as fontes de mal estar decorrentes do laço social estabelecido pelo discurso fundamentalista ao destilar uma ética que propaga o medo do outro e institui a política da aniquilação da diferença em nome da paz eterna.
Palavras-chaves: FUNDAMENTALISMO RELIGIOSO; PSICANÁLISE; POLÍTICA; ÉTICA; PODER.
ABSTRACT
The article thematizes the upsurge of religious fundamentalism in contemporary times using the metapsychology and the Lacan's theory of the discourses. Dialogue with authors of the others areas to corroborate the undeniable link between religion and politics. It investigates the crucial role of belief in the maintenance of religious power and proposes a structural homology between the master's discourse and religious discourse. Finally, it points to the sources of malaise stemming from the social bond established by religious discourse by distilling an ethic that propagates the fear of the other and institutes the politic of annihilation of difference in the name of eternal peace.
Keywords: RELIGIOUS FUNDAMENTALISM; PSYCHOANALYSIS; POLITIC; ETHIC; POWER.
RESUMEN
El artículo tematiza el recrudecimiento del fundamentalismo religioso en la contemporaneidad utilizando la metapsicología y la teoría de los discursos de Lacan. Dialoga con autores de otras áreas para corroborar el innegable vínculo entre religión y política. Investiga lo papel crucial de la creencia en el mantenimiento del poder religioso y propone una homología estructural entre el discurso del maestro y el discurso religioso. Por último, apunta las fuentes de malestar derivadas del lazo social establecido por el discurso religioso al destilar una ética que propaga el miedo al otro e instituye la política de la aniquilación de la diferencia en nombre de la paz eterna.
Palabras-clave: FUNDAMENTALISMO RELIGIOSO; PSICOANALISIS; POLÍTICA~ ÉTICA; PODER.
Fundamentalismos: religião e política
A palavra da psicanálise, neste momento em que testemunhamos o recrudescimento de formas religiosas de gestão política, é deveras importante. A temática da religião jamais deixou de estar contemplada nos trabalhos de Sigmund Freud e de Jacques Lacan (Jorge, 2017). Cada um, a seu modo, não se furtou a apontar seus efeitos éticos e sua incidência na cultura e no campo do sujeito. Na pena freudiana, vimos que a religião é a demanda de proteção endereçada ao pai. Lacan acompanhou Freud, mas também nos ensinou que a religião, sendo um saber, veicula um discurso que busca o aparelhamento político do gozo no laço social. Partir dessas considerações nos permite trazer contribuições importantes para os efeitos éticos e políticos do fundamentalismo religioso no laço social contemporâneo. Como testemunha intelectual da modernidade, Freud explorou a tensão entre a Weltanschauung religiosa e a científica (Freud, 1933-1932/1986). Partidário declarado da segunda relegou a primeira a uma ilusão, sem, com isso, desprezar o fato dela ser um poderoso antídoto contra o sofrimento psíquico, por prover os homens de respostas que aplacam as incertezas de sua existência (Freud, 1932-1933/1986, p. 97). Ainda que profundamente abalada pelas invectivas da modernidade, Freud supôs que a religião não se dobraria facilmente diante da ciência, sua maior adversária (Freud, 1933-1932/1986). Mais de quarenta anos depois dessas considerações de Freud, Lacan vaticinou que a religião triunfaria, e não apenas sobre a psicanálise, mas também sobre a ciência (Lacan, 1974/2005). Com um olhar atento, podemos ler o "triunfo da religião", apontado por Lacan na década de 1970, como o prenúncio do recrudescimento, no cenário sociopolítico contemporâneo, de formas de gestão política onde o discurso religioso comparece de forma iniludível, em sua marcante característica de produção de sentidos diante da angústia que a ciência não consegue, de todo, suturar (Lacan, 1974/2005). As palavras de Lacan e de Freud soam ainda mais pertinentes em diálogo com autores da História e da Sociologia que se debruçam sobre o fundamentalismo religioso.
A historiadora das religiões Karen Armstrong (2001) constata que um dos fatos mais alarmantes do século XX foi o surgimento de uma devoção militante popularmente conhecida como fundamentalismo e demonstra que, no final da década de 1970, os fundamentalistas começaram a rebelar-se contra a hegemonia do secularismo e empreender esforços para tirar a religião da posição subalterna que ela ocupou com a modernidade. Sua hipótese de base é que o fundamentalismo pode ser compreendido como uma reação à cultura científica e secular que nasceu no Ocidente e que se arraigou no resto do mundo, destituindo as verdades religiosas. Para a autora, as estratégias de ataque utilizadas pelos fundamentalistas aos preceitos secularistas e liberais revelam o temor da aniquilação e a tentativa de preservar sua identidade por meio do resgate de certas doutrinas e práticas do passado. O sociólogo Manuel Castells (1999) assume a mesma direção de análise e argumenta que os movimentos fundamentalistas objetivam o resguardo da identidade religiosa abalada com o enfraquecimento das formas tradicionais de socialização. Ao forjarem uma identidade de resistência (Castells, 1999), constroem trincheiras de sobrevivência com base em princípios diferentes ou opostos àqueles que permeiam as instituições da sociedade em que estão inseridos. Ao nos determos na pesquisa desses autores concordamos com eles: o fundamentalismo religioso, ainda que possa se apresentar como uma reação às configurações sociopolíticas da modernidade é, paradoxalmente, uma experiência moderna, pois no embate sociopolítico entre a razão secularista e a fé religiosa houve uma "incorporação", uma assimilação dos ideais sociopolíticos da modernidade aos preceitos religiosos (Castells, 1999; Armstrong, 2001). Ou seja, ao lado da "criação de uma contracultura" há a imposição das doutrinas e práticas religiosas do passado, reinterpretadas pelos fundamentalistas sob a influência de lideranças religiosas que assumiram o secularismo, e atualizadas pela adesão aos cânones da ciência e do capitalismo modernos: o racionalismo, o pragmatismo, a ideia de progresso tecnológico como garantidor da felicidade e bem estar de todos, etc. (Castells, 1999; Armstrong, 2001). Logo, os fundamentalistas não parecem desacreditar nem desprezar deliberadamente os processos modernos de socialização, as benesses da ciência e os lucros do capitalismo, mas pretender que estes processos só obtenham legitimidade se estabelecidos à luz de suas doutrinas, endossados por seus dogmas religiosos, ou seja, os fundamentalismos expressam uma posição política que busca recuperar a hegemonia do poder religioso abalado pelo poder da ciência e do capitalismo. Partir dessa hipótese tem o objetivo de apontar que as considerações dos autores, embora valiosas para a compreensão fenomenológica dos movimentos fundamentalistas restam insuficientes. Na pena de Foucault vimos que as relações sociais não acontecem no vácuo, mas são configuradas pelos "jogos de poder" que estruturam a práxis política. Com ele também aprendemos que o poder não é algo que se tem, mas algo que se exerce a partir de posições estratégicas, algo que tem uma operatividade para além das relações de dominação instituídas legalmente. Podemos concebê-lo como "jogos estratégicos entre liberdades", modo foucaultiano de dizer que não há o poder, mas poderes que se atualizam como "jogos estratégicos que fazem com que uns tentem determinar a conduta de outros, ao que os outros tentam responder não deixando sua conduta ser determinada, ou determinando, em troca, a conduta dos outros" (Foucault, 1984, p. 285). Concordando com Foucault avançamos na compreensão de que o poder não porta somente uma face negativa, aquela que reprime, cerceia e pune; porta também uma face positiva, produtiva: o poder produz saber. Ou seja, os efeitos do poder vão além dos efeitos da interdição que ele enseja e resultam dos discursos com os quais os sujeitos experimentam suas relações sociais e políticas (Foucault, 1984). Fazendo intervir a dimensão discursiva no litígio entre religião, ciência e capitalismo, compreendemos que se trata de uma tensão entrecampos discursivos que produz importantes efeitos na dimensão ética e política. Concedamos, então, a devida atenção às palavras de Freud: a religião não se curvará facilmente diante de seus oponentes. Talvez, fará mais que isso. Pois, se outrora foi a única detentora do espaço de poder, e hoje precise insurgir-se nas eventuais brechas deixadas pelo discurso da ciência e do capitalismo para disputar espaço com eles, parece também ter encontrado, por um lado, um reforço à legitimidade de sua dogmática na falha desses saberes e, por outro, um incremento de seu potencial alienante ao incorporar alguns preceitos da lógica moderna própria a esses discursos.
Crer no Mestre para obedecê-lo
No ensaio O futuro de uma ilusão, Freud (1927/1974) concebe as ideias religiosas como um cabedal de conhecimentos e ensinamentos, mas sublinha que, diferentemente de outros conhecimentos, as ideias religiosas "resistem" a que se lhes ponham a prova. Por não se submeterem ao "teste de realidade", as ideias religiosas caem na categoria da ilusão e nos deixam ver seu nó estreito com o desejo: "O que é característico das ilusões, diz Freud mais adiante, é o fato de derivarem de desejos humanos" (Freud, 1927/1974, p. 44). Nesse texto, Freud equipara ilusão e crença, a fim de fundamentar a hipótese de que a crença religiosa tem um estatuto de ilusão e que esta deriva do desejo de desfrutar da proteção, da benevolência e do amor de Deus como representação do pai protetor e benevolente da infância. Seu suporte psíquico é o desamparo original do infans que persiste na vida adulta. Lendo Freud com Lacan podemos afirmar que o desejo de um pai protetor é correlato ao desejo de encontrar um saber que possibilite ao sujeito fazer frente ao desamparo, à ilusão - para usar o termo freudiano - de que existe ao menos um que detém este saber. E como nos mostrou Lacan, o saber, sob esse status, é tomado como verdade (Lacan, 1968-1969/2008). No escrito A ciência e a verdade, Lacan argumenta que a utilização da verdade como causa pelo sujeito religioso é tomada em uma operação onde a função da revelação se traduz como uma denegação da verdade como causa, ou seja, ela, a revelação,
denega o que dá ao sujeito fundamento para se tomar como parte interessada ... Digamos que o religioso entrega a Deus a incumbência da causa, mas nisso corta seu próprio acesso à verdade. ... Sua demanda é submetida ao desejo suposto de um Deus que, por conseguinte, é preciso seduzir. O jogo do amor entra por aí. (Lacan, 1966/1998, p. 887).
Retenhamos este ponto: atribuir a Deus a causa de seu desejo é o mesmo que alienar o desejo na palavra inscrita no Texto Sagrado. Algemada ao desejo do Outro religioso, a demanda do sujeito deve estar sempre submetida ao desejo de Deus, "aos seus desígnios", dirá a Lei. Obediência e amor encontram aqui o enlace perfeito. Mas tudo isso não seria possível, isto é, realizável em termos da dinâmica psíquica do sujeito, se não houvesse aí operando a função da crença como o principal pilar da fé religiosa, pois é preciso crer para obedecer. Quanto mais cremos, mais obedecemos. Sobre a crença, sublinhemos, ela não é prerrogativa do sujeito religioso. Lacan vai situar no Outro a função da crença, o que ele bem expressa no aforismo "Deus é inconsciente" (Lacan, 1964/1988, p.60). A crença - em Deus ou numa causa qualquer - é um fato de estrutura. Todos, sujeitos falantes que somos, em alguma medida, sucumbimos à crença. Modo lacaniano de dizer que, como falasser, crer na palavra do Outro é o jeito humano de lhe dar consistência, pois o campo do Outro não é consistente, visto que ele demanda (Lacan, 1968-1969/2008, p. 82). Contudo, o lugar do Outro é desde onde "depende a possibilidade do sujeito, é o lugar no qual ele se formula" (Lacan, 1968-1969/2008, p. 58). Lacan assinala que essa dependência do sujeito em só poder se formular desde o lugar do Outro é correlata a uma pergunta original enunciada nos seguintes termos: Deus existe?, pergunta que tem apoio em uma estrutura fundamental que concerne ao saber, e que se sustenta na função da crença (Lacan, 1969-1970/1992, p. 68). Em se tratando da religião, um saber suposto ao Outro da religião, o que possibilita ao sujeito religioso elevar a existência de Deus a uma questão de fato, o que significa dizer, em termos lacanianos, a uma questão de discurso (Lacan, 1968-1969/2008, p. 117). Seguindo tais aportes de Lacan, nas análises que faremos sobre a religião iremos tomá-la como um discurso e pensá-la no bojo da teoria da discursividade lacaniana, considerando que os discursos fazem laço social entre o sujeito e o outro (Jorge, 2002) e são modos de aparelhamento político do gozo (Lacan 1969-1970/1992). Lacan não cunhou um matema específico para o discurso religioso. No entanto, uma vez que tal discurso faz laço social utilizando-se do saber religioso, pensamos ser possível propor uma aproximação do discurso religioso com o discurso do Mestre(1). Lacan identificou o discurso do Mestre ao discurso do inconsciente, o discurso que funda o sujeito e revela a função alienadora do significante ao qual todos estamos assujeitados, o que ele evidencia ao grafar $ no lugar da verdade: a verdade de qualquer mestre é sua "essência" de sujeito. No lugar do agente, Lacan coloca S1 indicando que o discurso do Mestre tem o poder fundador do significante mestre, aquele que determina a castração, forjando o sujeito com seu poder de marca fundadora. Como Lacan já havia assinalado em Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano, "o dito primeiro decreta, legifera, sentencia, é oráculo, confere ao outro real sua obscura autoridade" (Lacan, 1960/1998, p. 822). No O Seminário, livro 20 - Mais, ainda, ele novamente destaca o poder fundador do Mestre quando diz que a dimensão do ser resulta do discurso do Mestre, daquele que, "proferindo o significante, espera pelo que é um de seus efeitos de liame que não deve ser negligenciado, que se atém ao fato de que o significante comanda. O significante é, de saída, imperativo" (Lacan, 1972/2008, p. 37). Por isso, o Discurso do Mestre é considerado por Lacan como a matriz do sujeito em sua relação de alienação/separação ao objeto, inscrição presente na fórmula da fantasia ($ <> a). Com este aporte, Lacan "aplica" ao liame social sua tese maior sobre o inconsciente, O inconsciente é o discurso do Outro, nos deixando ver que com ele abordamos a "realidade compartilhada", suportada pela fantasia. No momento em que empunhamos a palavra, ancorados pelo saber do Outro (S2), e movidos pelo significante do poder (S1), não escapamos da verdade ($) que este discurso revela: somos marcados pelo não saber que nos constitui, sujeitos divididos entre desejo e gozo. O que retorna sob o efeito do recalque e se "presentifica" nas formações do inconsciente - sintoma, sonhos, lapsos, atos falhos, chistes - "denuncia" que há uma falta objetal no campo do Outro , o que o discurso do Mestre mostra com o comparecimento do objeto a no lugar da produção. Ao vazio deixado por essa falta em sua fundação, o sujeito responde com a fantasia da existência do Outro como garante da Lei sustentada na ordem simbólica, como suposta garantia de uma palavra que pudesse tudo dizer sobre os enigmas do desejo e do gozo. Compreendendo a religião como um discurso propomos uma homologia estrutural entre o discurso religioso e o Discurso do Mestre, considerando que em ambos há a coagulação do sentido, a redução da pluralidade de sentido própria à língua como artifício privilegiado pelas técnicas de poder. Nas palavras de M. A. Coutinho Jorge, "a visada de reduzir a pluralidade de sentido própria à língua é uma manobra própria ao poder, característica de todo discurso dogmático como o discurso médico, o jurídico e o publicitário" (Jorge, 1988, p. 51). Acrescentemos a esta série o discurso religioso, uma vez que nele há uma "colagem" do sujeito ao saber e sua positivação com significantes pré-definidos e determinados. Significantes amalgamados em Um, guiados pelo poder do Um. Nesse laço, o outro fica sendo o objeto do saber do Mestre (S2 no campo do outro)(2). Conformando-se a um discurso de mestria, dado as categorias lógicas com que trabalha, categorias ancoradas nas noções de universal e de todo, o discurso religioso algema o sujeit o ao registro do imaginário. Faz supor que a diferença, logo, o que põe em jogo a castração, poderia vir a ser apagada: eis a denegação da verdade como causa a que se refere Lacan. Paradoxalmente, vê-se que, amiúde, essa diferença retorna como algo que ameaça o Eu levando o sujeito ora a refugiar-se no "narcisismo das pequenas diferenças" (Freud 1929-1930/1976) ora a por em ato o desejo de eliminar o outro - ato de exclusão próprio ao funcionamento pelo regime do imaginário: ou um ou outro.
O sujeito e o mal-estar na política
Em uma troca de missivas com Einstein, Freud (1922-1923/1976) demonstrou descrença na possibilidade de que o ser humano pudesse prescindir da face destrutiva que todo desejo comporta. Ele tinha bem claro que as conquistas em nome de Eros guardam algo de impossível, pois não prescindem das investidas de Tânatos na luta por espaço e por domínio. Com sua perspicácia clínica e teórica, Freud nos ensinou que esta luta habita as entranhas do sujeito, ela o constitui e o anima, mas também o assombra, e o leva a erguer trincheiras contra aquilo que é percebido como uma ameaça vinda "do lado de fora". Freud foi muito feliz ao cunhar a expressão "narcisismo das pequenas diferenças" (Freud, 1929-1930/1976) para nomear o incessante litígio entre os eus e os outros. Ele nos mostrou que é inescapável ao homem, este ser de paixões, a tendência a repartir a humanidade entre aqueles que ele ama e aqueles que ele odeia. Mirando a ambivalência originária nas relações do Eu com o outro, Freud concluiu que a união que sedimenta um coletivo só tem lugar com o direcionamento da agressividade, enraizada em cada membro do grupo, para o grupo rival (Freud, 1929-1930/1976, p. 136). No célebre O mal estar na cultura (1929-1930/1976), Freud retoma a dimensão econômica do psiquismo e mostra que a cultura tenta tornar inócua a agressividade originária do humano, fazendo com que ela seja internalizada. Dessa internalização resulta o Superego como instância que legisla a vida psíquica e procede à sua regulação com a "realidade externa", estabelecendo exigências ideais e erigindo parâmetros punitivos. Isto porque não há, como Freud nos ensinou de forma brilhante, uma capacidade natural do homem para distinguir entre o bem e o mal. É a cultura que estabelece as balizas entre estas duas esferas, que faz a regulação delas, uma regulação sempre falha, bem o sabemos, uma vez que o "mal" pode ser tão ou mais prazeroso que o "bem" mais cobiçado. O que faz, então, com que o sujeito se curve diante das injunções culturais que, no mais das vezes, tanto o oprime? Freud credita ao desamparo originário a submissão, e mesmo a subserviência aos parâmetros erigidos pela cultura. Em uma belíssima passagem do Projeto para uma psicologia científica, ele diz: "O desamparo inicial do ser humano é a fonte primordial de todos os motivos morais" (Freud, 1950-1895/1990, p. 431, grifo do autor). Ou seja, a vivência de desamparo inaugura uma relação de dependência a um objeto semelhante, ao outro ser humano, e entendemos que Freud situa, com este dito, o embrião teórico da ética da psicanálise, uma vez que ele desvela a relação de dependência existencial implicada na radical assimetria de poder entre o Eu e o outro como objeto capaz de satisfazer ou de frustrar a demanda pulsional. Dito em chave lacaniana, a imprescindível presença do Outro para que haja sujeito inaugura um tempo onde o desejo do sujeito como desejo do Outro e atrelado à sua demanda, encontrará, doravante no laço social, abrigo ou desamparo nos significantes que estruturam o discurso do Outro. Em nível da política, podemos dizer que são esses significantes que estruturam as premissas éticas e que ordenam os modos de exercício do poder com os quais os discursos tratam questões pertinentes ao gozo e ao desejo. Nesse mesmo texto, Freud se debruça sobre o mandamento de Amar ao próximo como a ti mesmo, ao qual declarou sua total aversão, emitindo sobre a ética que o sustenta um parecer não só cético, mas de estonteante sinceridade: "aqueles que aderem à ética de amar ao próximo como a si mesmos só obtém a satisfação narcísica de se pensarem como melhores que os outros" (Freud, 1929-1930/1976, p. 130). Pois a religião, tal como entendida pelo discurso da psicanálise, não somente é experimentada pelo sujeito como um "antídoto" contra a angústia que o assalta diante das "intempéries" do si mesmo e dos impulsos agressivos que ele pode dirigir ao outro, mas se constitui em um poderoso recurso político para viabilizar mecanismos de segregação aos que não comungam dos mesmos ideais. Assim, sustentamos a hipótese de que o sujeito religioso não busca recuperar sua identidade perdida com a modernidade, posto que se move e se mobiliza por algo que ao mesmo tempo o constitui e o situa como sujeito: sua relação com o saber do Outro como discurso, mas, não esqueçamos, "ao preço" de sua alienação a esse saber e toda sorte de efeitos decorrentes desse processo. Desde nosso discurso, não há indivíduo uno e suportado por uma identidade, mas sujeito como efeito dos processos de identificação, sujeito que "recolhe" dos Outros que com ele compartilham a cena social traços privilegiados pelo seu desejo. Ajustando nosso foco, perguntamos: qual sujeito emerge do discurso religioso em seu viés fundamentalista? Que contornos ganha o laço ético e político que ele estabelece com o O(o)utro que com ele compartilha a cena pública?
"Destruirás o próximo como a ti mesmo"
Antes de tocarmos nas questões acima, cabe uma breve digressão sobre o termo fundamentalista. Por conta de seu apego férreo ao texto da Lei, pelo seu modo por demais intenso de aderência aos preceitos religiosos, o fundamentalista costuma ser assimilado, em termos semânticos, ao fanático, palavra latina cuja etimologia é fanaticus, que deriva de fanum, templo, donde fanaticus significa o "guardião do templo"(3). Inicialmente, fanaticus nomeava os porteiros ou vigilantes noturnos que cuidavam com grande zelo do templo, passando gradativamente a ser reservado para os adeptos exclusivos de um templo, santuário ou divindade(4). Assim, em linhas gerais, o termo fanático adjetiva todo aquele que se considera inspirado por uma divindade ou uma causa, que tem zelo excessivo por ela, que adere cegamente a uma doutrina ou a um partido.
Retomemos, trazendo novamente os aportes psicanalíticos sobre a função da crença na estrutura do sujeito. Ninguém "escapa" à crença, dissemos anteriormente, posto que ela éum fato de estrutura. Vimos também que sua função concerne ao saber do Outro tomado como verdade, à ilusão intensamente acalentada de um Outro não castrado e de cuja palavra vem o apaziguamento da vivência de desamparo. Mas, até aí, não vislumbramos uma diferença significativa entre o crente, digamos, não fundamentalista, e o crente que se autodenomina fundamentalista. Ambos creem e, para aqueles que creem, a religião é um saber irrefutável. O que, então, em termos da dinâmica psíquica, diferenciaria o crente fundamentalista do crente não fundamentalista? Podemos aventar a hipótese de que a crença, no fundamentalista, se ancora em um núcleo duro que resiste, terminantemente, à simbolização, à dialetização do sentido. Há, aqui, um empuxo à leitura literal do Texto Sagrado que solapa a dialética do significante e fixa o sujeito ao polo imaginário da experiência. Jorge (2016) observa que o fundamentalismo nos deixa testemunhar a ausência do simbólico em seu pleno funcionamento. Em termos discursivos, ele apresenta uma "asfixia" da duplicidade do sentido própria à linguagem. Nessa leitura literal, o simbólico não comparece em sua reversibilidade. O fundamentalista fica aderido a uma única versão - isto é, ao plano do significado pertinente ao registro do imaginário - e com ela tenta fazer frente à irreversibilidade do real que emerge, sem cessar, na relação com o Outro e com o outro(5).
Com sua compreensão sagaz, Amós Oz profere uma palestra na manhã seguinte aos atentados ocorridos em Paris, em novembro de 2015(6). Sobre o que poderiam vir a ser antídotos ao fanatismo e ao fundamentalismo, ele sugere a curiosidade juntamente com o humor (OZ, 2016, p. 13). Podemos interpretar suas palavras conjecturando que se os fanáticos são raramente curiosos, eles o são sobre o outro. Sua falta de curiosidade reflete sua aversão ao diálogo como modo de comunicação que pode por em jogo a diferença de sentido que emerge com a cadeia significante, e precipita o "risco" de devolver-lhe os ecos das fissuras de sua fala, desvelando o impossível de tudo dizer. Surpreender-se com o sem sentido, o lapso ou o desdizer que nos liberta da obrigação de ser-dizer sempre o mesmo, lhe é extremamente ameaçador. Pouco interessado no que o outro tem a dizer, jamais expia para além dos muros de seu discurso, jamais demonstra curiosidade pelo discurso do outro que frequenta a paróquia vizinha, e tão pouco acha graça em suas "estrangeirices". As palavras de Oz nos endereçam, também, a Freud e ao seu texto sobre o humor. Nele, Freud diz estar convencido de ter demonstrado que "a produção do prazer humorístico surge de uma economia de gasto em relação ao sentimento" (Freud, 1927/1974, p. 189). Tendo em vista que o humor visa afastar, com uma pilhéria, afetos penosos como o horror, o susto e até mesmo o desespero, o humorista, ao lançar mão de uma atitude zombeteira em relação à situação vivenciada ou a si mesmo, caracteriza a atitude humorística como a "operação econômica" por meio da qual o ego escoa um excesso de catexia que seria experimentado como desprazer, encontrando, assim, a experiência de prazer. E por que a suposição de que o fundamentalista não tem senso de humor? Porque o humor requer permitir-se o prazer com a vacilação do sentido própria à língua, vacilação que presentifica o sujeito do inconsciente, o Outro em mim, o estrangeiro ao Eu. Seguindo as pistas de Freud, podemos dizer que, no encontro com a vacilação de sentido presente no ato humorístico, o Eu acolhe esse estrangeiro com bom humor! Contudo, se o sentido veiculado pelo discurso do Outro não autoriza a possibilidade de vacilação, também não é possível por em questão traços da própria imagem, condição para que o Eu se desprenda das "algemas narcísicas" nas quais a imagem delineada pelo Eu ideal está presa. A vacilação de sentido é o que poderia abrir furos na significação espessa que emana da palavra do Outro Absoluto, reconhecer-lhe a devida inconsistência. Se o Outro é inconsistente, é porque sua palavra não é capaz de dar um nome definitivo ao objeto do desejo, condição para que o sujeito possa desejar. Desafortunadamente, o desejo do sujeito religioso torna-se apenas uma mímese do desejo de Deus, um desejo moldado ao Bem que o Senhor lhe deseja: o de ser "o instrumento de vossa paz"(7). Aqui, a aliança entre o teológico e o político é a fonte única de onde jorra a censura e a prescrição do objeto de amor (Legendre, 1983). Não é difícil perceber que temos veiculada uma ética que destila efeitos políticos problemáticos, pois, se o Outro funda o sujeito, o Eu não existe sem o outro que compartilha a cena social e política, ainda que este seja, imaginariamente, um "outro eu".
Revisitemos o texto A negativa (1925/1976), onde Freud traça a gênese do Eu tendo por "termômetro" o princípio de prazer. Neste texto ele nos mostra que o complexo mecanismo de constituição egóica se dá em sucessivas projeções e introjeções com base nas representações decantadas da sua relação com os objetos (Freud, 1925/1976). Lacan vai situar a gênese do Eu como da ordem do imaginário e resultante dos processos identificatórios. No texto O estádio do espelho como formador da função do eu (Lacan, 1949/1998), ele forja um "modelo identificatório" que permanecerá por toda a vida do sujeito, momento em que a percepção da imagem do corpo fragmentado o impele a antecipar uma imagem ideal que o captura e o aliena no brilho da completude (Lacan, 1949/1998, p. 100). Mas Lacan também menciona um segundo tempo neste processo, em que a experiência constitutiva do Eu pela via imaginária dá ensejo à matriz simbólica do sujeito. Isto porque, ao olhar-se no espelho, o infans busca a confirmação do que vê no olhar do Outro, olhar que lhe ratifica (ou não) o júbilo no encontro com a imagem. O Outro aí comparece e convoca o sujeito a nomear(-se), a representar(-se) com base nos significantes que estão em seu campo. A ambiguidade de sentido e, portanto, a incapacidade de tudo significar própria à linguagem, anunciada em meio à experiência do espelho, traz consigo sucessivas vivências de perdas que marcam o sujeito como sujeito dividido, como aquele que pensa onde não é, e é onde não (se) pensa. A alteridade radical, o Outro, marcará presença perene na sua relação com os outros especulares, aqueles com os quais o sujeito se lançará em parcerias amáveis ou em litígios de morte. Em nenhuma dessas modalidades de encontro ele poderá dispensar a mediação do desejo do Outro, tomado como seu desejo, como marco fundador de sua história de sujeito. É assim que a vivência especular, comportando a tríade eu-outro-Outro será a matriz subjetiva com a qual o sujeito experimentará os sabores amargos ou doces das suas relações objetais: desde o testemunho do gozo do irmão ao seio da mãe à contenda edípica pela exclusividade do primeiro objeto sexual. Momentos de vida onde o falasser obtém as balizas desejantes com as quais irá percorrer trajetórias em âmbitos mais vastos, na imensidão das relações sociais e políticas, que reeditarão, sem cessar, as vivências de amor e ódio, de compaixão e ciúme, de vida e morte. São as vicissitudes desse momento, com a culminância da apreensão do desejo como desejo do Outro, os móbeis da vida social. São as experiências inauguradas pelo estádio do espelho, marcadas pela intrusão do outro, e pela condição do sujeito de só poder se situar como sujeito na dialética da demanda e do desejo do Outro, os alicerces da vida cultural e política.
Lacan também traz uma contribuição importante para o campo da política quando aponta o lugar da agressividade na constituição do Eu, mostrando que ela transpira do sentido dos sintomas e tem um lugar originário na identificação imaginária que funda o Eu em sua redoma narcísica. Evocando suas elaborações sobre o estádio do espelho, Lacan sublinha que a identificação imaginária confere um colorido erótico e passional ao Eu, cuja intensidade tonal varia conforme a relação de alienação ao desejo do Outro, o que coloca entraves ao desejo de compartilhamento de algo em comum com o outro. Daí também surgem os rochedos que podem lançar ao naufrágio o discurso que almeja e propala a paz eterna entre os homens, pois a formação do Eu e sua relação com os objetos eleitos como fonte de prazer e gozo guardam essa irredutível ambivalência estrutural, uma espécie de "concorrência agressiva, e é dela que nasce a tríade do outro, do eu e do objeto" (Lacan, 1948/1998, p.116). Ora, esse modo de concorrência é o substrato do que vemos tomar lugar nos jogos de poder e nos embates políticos. Algo que o discurso que se quer de mestria visa adestrar, por meios tão paradoxais quanto risíveis: algumas vezes conformando os sujeitos aos significantes mestres que confeririam o poder de alçar o Eu a soberano senhor de seus desígnios, reforçando com isso a onipotência imaginária do Eu e sua pulsão de domínio do outro; e em outras tantas vezes tomando-a como objeto de contenção e de punição, inscrevendo-a na ordem da Lei para catalogar e categorizar os sujeitos infratores em limites que, de tão estreitos, só fazem relançar uma vontade de transgressão que Lacan nos ensinou a circunscrever como pertencente ao campo do gozo. Logo, como não vermos em tais intenções discursivas o gozo do poder, cujos móbeis o discurso fundamentalista e seu apego mórbido à economia do dever esposam? Como efeito desse discurso não vemos outro sujeito senão aquele que a pena de Kant (2002) desenhou: sujeito apegado à pura forma da Lei e obediente aos "imperativos categóricos" que ecoam na voz do Outro fundamental.
Uma questão de cunho clínico ecoa aqui: se supomos esse sujeito como ancorado em uma dinâmica psíquica onde o Eu prepondera e rechaça qualquer vacilação de sentido própria à linguagem, não poderíamos ver como efeito uma posição subjetiva perpassada pelo que Lacan qualificou de "suspensão dialética do eu", presente nos crimes de autopunição e característica do funcionamento paranóide? (Lacan, 1950/1998). Seria precipitado afirmar que todos os fundamentalistas são paranoicos, portanto, prescindimos dessa afirmação. Nossa conjectura sobre um funcionamento paranóide como efeito do sujeito enlaçado ao discurso fundamentalista se orienta pelo que postula Lacan a respeito da origem do Eu, do "modo paranoico" como se inaugura para o eu o conhecimento dos objetos de seu mundo e do "si mesmo" (Lacan, 1949/1998). Assim, se não cabe identificar uma possível estrutura clínica do sujeito atravessado pelo discurso fundamentalista, investigar a hipótese de que há um empuxo ao funcionamento paranóide nos sujeitos enlaçados a discursos dogmáticos, em sua sede insaciável de prescrever o que seria o Soberano Bem, nos parece de suma importância em termos políticos. Observemos que as diferentes tradições filosóficas que especularam sobre questões políticas - platônica, aristotélica, estoica, epicurista -, guardam um postulado comum: há um vínculo necessário entre Bem supremo e bem estar, vínculo suposto como inscrito na Natureza, e, portanto, no psiquismo (Julien, 1996). Logo, haveria no ser humano uma inclinação natural para o Bem supremo e, através dela, se alcançaria tanto a felicidade individual como a felicidade comunal. A crença, aqui, é a da possibilidade do encontro de um mesmo objeto de satisfação tanto em nível singular quanto em nível coletivo, encontro decorrente do estabelecimento de uma "ética de universais" (Lacan, 1959-1960/2008, p. 94).
Rompendo com essa tradição, a psicanálise mostrou que o objeto do desejo é desde sempre "perdido", uma vez que há uma impossibilidade estrutural de nomear definitivamente esse objeto, de encontrá-lo na realidade. Ao sobrepor a "realidade objetiva" à realidade psíquica, Freud nos ensinou que o objeto, o Outro, é tanto fonte de satisfação quanto de frustração. Ele é sempre o estranho do qual o sujeito, estando à mercê de seu desejo e de seu poder, não tem garantida a resposta que dele virá a qualquer demanda que lhe seja endereçada, embora o sujeito nela insista. Sobre tal insistência, reflexo do movimento pulsional, Freud avançou brilhantemente ao iluminar os efeitos da pulsão de morte na vida política. Ele nos deu as bases conceituais deste "além do nome" ao aquiescer às evidências clínicas de que há uma impossibilidade - Lacan dirá: de ordem lógica - experimentada pelo sujeito para identificar o que seria seu bem, e para evitar terminantemente o que poderia vir a ser o seu mal. Assim, ele nos mostrou que algo insiste para além da homeostase buscada pelo psiquismo e, mais importante, há nesta insistência uma espécie de prazer.
Ora, foi isso que Lacan, retornando a Freud e recolocando a linguagem no centro do mundo humano nomeou de gozo, nos mostrando que ele escapa ao sentido. Ele "mora" no real que esburaca o simbólico e não se deixa capturar pelo imaginário. Ao tematizar a insistência pulsional e suas vicissitudes políticas (Freud, 1919/1976; 1920/1976) Freud atestou definitivamente a irredutibilidade da pulsão de morte, tanto em seus efeitos na dinâmica psíquica, quanto em seus reveses na vida social e política. Tocando na pulsão de morte podemos desdobrar questões sobre a dimensão da experiência que Lacan denominou de real, como aquilo que escapa ao simbólico e que o imaginário tenta capturar, circunscrever, sistematizar. Lacan situou o real no coração da ética da psicanálise e nos mostrou que ele é o que referencia o ato do sujeito na sua relação com o outro (Lacan, 1959-1960/2008), com o próximo e seu gozo êxtimo (Lacan, 1959-1960/2008). Acompanhemos Julien (1996) em sua proposta de que o próximo comporta duas faces:
A primeira, como um outro, feito a nossa imagem e semelhança, de modo que compreendo esse elemento tal como suponho que ele me compreende. Essa primeira face é meu semelhante, meu outro. A segunda face é aquela que está além do semelhante... é o próximo propriamente dito, o Outro inominável, fora do significado, estranho e estrangeiro a mim mesmo, imprevisível... De acordo com esta segunda face, o Outro me aparece sob o signo do capricho, do arbítrio, do sem crença nem moral que me possa dar alguma garantia (Julien, 1996, p. 43, grifo do autor).
Nesta direção, podemos dizer que, se percebo o outro como meu semelhante, o princípio de prazer-desprazer aí opera e me "informa" que o bem do outro e o meu bem se equivalem. Pois, "é próprio do bem partilhar-se entre os semelhantes: quem se assemelha reúne-se segundo o mesmo bem. O outro quer meu bem à imagem do meu, e vice-versa" (Julien, 1996, p. 43). Pensamos aqui no próximo quando ele aparece na "pele" do outro que corrobora minha imagem no espelho: ele faz parte da mesma paróquia, comunga do mesmo credo e pauta seu desejo pela mesma cartilha que a minha. Em suma, goza como eu gozo. Mas há outra face do próximo, há uma dimensão real, o real da Coisa, o Outro, de cuja ação e, principalmente, a intenção, o sentido me escapa: o que quer o Outro de mim? Por sua opacidade, essa faceta do próximo evoca no sujeito a impossibilidade de desvendar o enigma do gozo do Outro, impossibilidade que o sujeito "confunde" com impotência, na medida em que ela o coloca diante do imponderável de seu próprio gozo, ou, como bem apontou Lacan, o coloca frente a frente com a evidência de que "o próximo é a iminência intolerável do gozo" (Lacan, 1968-1969/2008, p. 136), seja o gozo do sujeito ou o gozo do Outro. E então,
não é mais possível discernir com clareza em que medida o gozo do Outro (genitivo subjetivo), ao me concernir, pode implicar, como consequência, o que é totalmente diferente de meu bem, isto é, meu mal. E, inversamente, meu gozo do Outro (genitivo objetivo) em seu corpo pode comportar o mal de meu próximo... (Julien, 1996, p. 43, grifo do autor).
É justamente aqui, no encontro com a impossibilidade de domar a força pulsional, que o narcisismo costuma sentir-se ferido e, por vezes, numa intensidade que lhe é insuportável. Ou, melhor dito, que o Eu só suporta se puder projetar algo dela no "exterior". Então o outro pode vir a ser o depositário privilegiado de sua agressão. Pois, como dirigi-la ao Outro, na figura do Deus onipotente, se ao fazê-lo, o sujeito reencontra o Eu ferido? Deus como senhor do Saber Absoluto só existe para sustentar a face onipotente do Eu. Só existe ancorado numa aposta de que, se Ele existe, o Eu está seguro, em garantia. Donde se conclui que se o poder do Outro rateia, se sua palavra falha, a existência do Eu é posta em xeque. A angústia que daí surge pode ser de tal monta que leve o Eu a canalizá-la violentamente para o outro, reduzi-lo a sua face de Outro-inimigo. Capturado na miragem especular, só resta ao Eu desconhecer a radical existência do Outro em sua constituição, e o outro é "recusado" enquanto objeto "necessário" para alguma canalização de gozo que lhe justifique a existência. Tal recusa encerra o outro numa relação de rivalidade odiosa, como objeto ameaçador e portador de um gozo mortífero cujo reflexo é o próprio gozo do sujeito em sua opacidade. O quantum de angústia que isso suscita costuma ser diretamente proporcional aos atos que pretendem extirpá-la: eles podem ser atos sutis, dissimulados na rede simbólica e justificados com base no "funcionamento da máquina", como por exemplo, quando a segregação religiosa seleciona aqueles que podem e que não podem ocupar espaços de poder em nossas instituições cada vez menos laicas. Mas podem ser também "atos definitivos", sem volta, como no fundamentalismo religioso de cunho islâmico e sua funesta prática do homem-bomba(8). Seja como for, a ética que propaga o medo do outro institui a política da aniquilação da diferença em nome da paz eterna.
Notas:
(1) Em francês: maître, mestre, senhor. Recordemos seu matema:
(2) Segundo a segmentação da fórmula base dos quatro discursos em dois campos, do sujeito e do outro, proposta por M. A. Coutinho Jorge (Jorge, 2002).
(3) In: www.http://origemdapalavra.com.br/site/pergunta/fa-idolo-fanatico/. Acesso em 05/02/2017.
(4) In: www.http://etimologias.dechile.net/?fana.tico. Acesso em 05/02/2017.
(5) Para a elaboração deste parágrafo, assumimos os apontamentos que Jorge (2106) faz ao aproximar o registro do Simbólico ao que é da ordem da reversibilidade própria à linguagem; o do Imaginário como dizendo respeito à versão e o do Real como da ordem do irreversível.
(6) In: www.https://pt.wikipedia.org/wiki/Ataques_de_novembro_de_2015_em_Paris. Acesso em 15/10/2016.
(7) Conforme a "Oração de São Francisco". In: ttps://www.letras.mus.br/irala/743045/ Acesso em 28/02/2017.
(8) Dada a sua proeminência em termos políticos, visível nos frequentes atos terroristas quem vem assolando a Europa, a prática religiosa do homem-bomba será objeto de análise em um artigo posterior.
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Recebido em: 06/06/2017
Aprovado em: 18/11/2017