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Revista Psicologia e Saúde

versão On-line ISSN 2177-093X

Rev. Psicol. Saúde vol.5 no.1 Campo Grande jun. 2013

 

Editorial

 

 

A humanidade deve a Emmanuel Kant (1724 - 1804), eminente filósofo alemão, o descobrimento da Imaginação Transcendental, que entre outras coisas, seria também a suposta faculdade de sonhar desperto e criar utopias. Sabemos que sobram objeções de que não podemos viver de utopias, mas só de realidade. No entanto, parece ser que, mesmo vivendo de realidade não é possível viver sem utopias. Aristóteles (384 a.C. -322 a.C.), filósofo grego de quem os alemães sonham descender, sempre gostou de ver o ponteiro da balança repousando sobre o meio termo, um equilíbrio, talvez utópico pelas suas formulações, mas ocultamente presente toda vez que se apresenta algum tipo de desconfiança em relação aos extremismos. Viver de realidade e com utopia: esta formulação parece ter este caráter mediano aristotélico e, como tal, poderia estar ao alcance de alguns poucos despertos que ainda sonham em sonhar.

Que sentido tem iniciar este número da Revista Psicologia e Saúde com esta captatio benevolentiae em relação à utopia? Certamente o número da revista não é sobre utopia, mas talvez seja sobre uma utopia, tudo dependerá do grau de benevolência (bene volere), bem querer do leitor. O cuidado de todos por todos aparece como expressão utópica e elevada de alguns dos temas aqui desenvolvidos: utopia (oú-tópos) como não-lugar e, por conseguinte, como desinstalação, até mesmo como desterritorialização e construção assintótica de uma saída de si em direção da própria diferença e da diferença do outro: diferença como simulacro, como diferença da diferença. Mas também como eutopia (eú-tópos) como lugar-bom, como espaço onto-estético da ordem da felicidade, que juntamente com o prazer e a dor são temas que, no mundo aristotélico, pertenciam aos saberes (sophía) políticos, à sabedoria dos filósofos da polis, à filosofia política.

Falar em cuidado (sorgen) de cuidadores chega a soar como uma tautologia, mas na verdade esta preocupação (fürsorgen), é uma ocupação-pré, e como tal já é cuidado. Este cuidado, seja na forma de ocupação ou de preocupação, não é outra coisa mais que um cuidado político: uma política cuidadosa e um cuidado politizado e, com isso, um desafio para os arranjos de cuidado, tanto nas políticas públicas de saúde como nas práticas psicológicas. Cuidar é inventar, inventar-se e participar da invenção de/com outros, por isso, o cuidado é intersubjetivo e, com tal, é também processo de subjetivação em todas as direções possíveis em cada caso.

A subjetivação não é um processo de isenção, ao contrário, é um processo de afetação de remarcadas inscrições, que muito embora sejam feitas em uma superfície, de superficiais nada tem, o mistério e a não-indiferença da pele é a garantia dessa profundidade, dessa fundação. Mesmo que a tinta das inscrições tenha a cor de água, como sugere Zygmunt Bauman, a superfície como fundo da ação (fundação/grund) permanece na sua condição de rocha barroca em cuja resistência os inscritores dobram as suas pontas, sinal de que a superfície permanece iliquefeita, ainda depois de receber inscrições com as águas mornas da pós-modernidade.

Os cortes profundos e as dobras acidentadas da subjetivação podem ser colocadas sempre em questão. A Psicologia como disciplina da interrogação põe em questão e des-em-plica o que está im-plicado para ver e fazer-ver, por um lado, suas condições de possibilidade e de impossibilidade e, por outro, suas im-plica-ções.

Esta aventura do saber/suspeita pode acontecer em relação a todas as nossas construções.

Neste caso, uma construção que pode ir desde nossa compreensão do fenômeno saúde, passando pelo sistema de saúde e por nossas muitas práticas, sejam psicológicas ou de outra índole, no interior do campo ampliado epistemológico/prático da psicologia, saúde e sociedade, bem como pelos artigos disponíveis neste número para sua leitura e apreciação crítica.

 

Márcio Luis Costa
Editor