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Revista Psicologia e Saúde

versão On-line ISSN 2177-093X

Rev. Psicol. Saúde vol.13 no.1 Campo Grande jan./mar. 2021

https://doi.org/10.20435/pssa.v13i1.1029 

ARTIGOS

 

Bem-estar na adolescência: papel da cidade e da comunidade

 

Adolescence well-being: role of the city and community

 

Bienestar en la adolescencia: papel de la ciudad y de la comunidad

 

 

Elisa Sousa Hanke; Sheila Gonçalves Câmara

Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA)

Endereço de contato

 

 


RESUMO

Introdução: O bem-estar na adolescência é um tema de saúde que engloba contexto físico e social.
Objetivo: Avaliar a contribuição da inserção social na cidade, percepção de qualidade do bairro e senso de comunidade para o bem-estar de adolescentes escolares.
Métodos: Estudo com 119 escolares de oitavo ano de Porto Alegre, Brasil, avaliados mediante inquérito de dados sociodemográficos, inserção social à cidade, senso de comunidade, percepção de qualidade do bairro e bem-estar pessoal. Foi realizada análise de regressão linear múltipla. Resultados: Identificou-se contribuição significativa de todos os construtos avaliados para o bem-estar.
Discussão: A elevada variância explicada pelos modelos obtidos demonstra a importância do ambiente, tanto em termos de recursos quanto de relações sociocomunitárias, para o bem-estar de escolares.
Conclusões: O investimento na qualidade dos contextos urbanos deve ser uma meta social e política.

Palavras-chave: adolescente, saúde da população urbana, participação social, seguridade social


ABSTRACT

Introduction: Adolescence well-being is a health issue that encompasses both physical and social context.
Objective: To evaluate the contribution of social insertion in the city, perception of neighborhood quality and sense of community for the well-being of school adolescents.
Methods: The study was carried out with 119 eighth grade students from Porto Alegre, Brazil, who were evaluated through a socio-demographic data inquiry, social inclusion to the city, sense of community, neighborhood quality perception and personal well-being. Multiple linear regression analysis was performed. Results: We identified a significant contribution of all evaluated constructs for well-being.
Discussion: The high variance explained by the models obtained demonstrates the importance of the environment, both in terms of resources and socio-community relations, for the well-being of schoolchildren.
Conclusions: Investing in the quality of urban contexts should be a social and political goal.

Keywords: adolescent, urban health, social participation, social welfare


RESUMEN

Introducción: El bienestar en la adolescencia es un tema de salud que engloba contexto físico y social.
Objetivo: Evaluar la contribución de la inserción social en la ciudad, percepción de calidad del barrio y sentido de comunidad para el bienestar de adolescentes escolares.
Métodos: Estudio con 119 escolares de octavo año de Porto Alegre, Brasil, evaluados mediante encuesta de datos sociodemográficos, inserción social en la ciudad, sentido de comunidad, percepción de calidad del barrio y bienestar personal. Se realizó un análisis de regresión lineal múltiple. Resultados: Se identificó una contribución significativa de todos los constructos evaluados para el bienestar.
Discusión: La elevada varianza explicada por los modelos obtenidos demuestra la importancia del ambiente, tanto en términos de recursos como de relaciones sociocomunitarias, para el bienestar de escolares.
Conclusiones: La inversión en la calidad de los contextos urbanos debe ser una meta social y política.

Palabras clave: adolescente, salud urbana, participación social, bienestar social


 

 

Introdução

A Organização Mundial de Saúde define adolescência como o período compreendido entre 10 e 19 anos de idade (World Health Organization [WHO], 2014). Contemporaneamente, compreende-se a adolescência como um conjunto de transformações biopsicossociais que se processam entre a infância e a idade adulta e resultam na transformação do psiquismo do adolescente e na definição de sua identidade e de seu papel na sociedade (Senna & Dessen, 2012).

De acordo com Bronfenbrenner (2011), as pessoas em desenvolvimento devem ser consideradas em uma interação dinâmica com os múltiplos contextos nos quais estão inseridas, os quais podem afetar diretamente seu bem-estar biopsicossocial. Os contextos em que convivem lhes possibilitam uma ampliação na sua rede de relações e desenvolvimento de habilidades (Rowe, Zimmer-Gembeck, & Hood, 2016; Ungar & Hadfield, 2019; Wickrama & Noh, 2010).

O bem-estar pessoal pode ser mensurado a partir de avaliações objetivas e subjetivas, sendo uma interligação de aspectos internos e externos em relação a outras pessoas e à realidade (Casas, 2010). Sarriera e Bedin (2017) propõem uma abordagem multidimensional de bem-estar na infância e adolescência. Trata-se de um modelo que engloba bem-estar psicológico, subjetivo, psicossocial e sociocomunitário. Essa última dimensão é composta por direitos humanos, satisfação com o meio ambiente e pertencimento à comunidade. Isso implica, além de aspectos individuais e familiares, a socialização dentro e fora de casa, o que está relacionado às condições de vida (Buchmann & Steinhoff, 2017).

O conceito de comunidade refere-se à reunião de seres e grupos humanos em um espaço comum, no qual necessidades são supridas. O que mais representa a vida na comunidade é o lugar ocupado por seus membros no modo de produzir da sociedade, primordial para atender a essas necessidades e para a construção dos sistemas de valores, das expectativas, dos tipos de relações e interações e dos comportamentos cotidianos (Sarriera, Moura, Ximenes, & Rodrigues (2016). Entre adolescentes, os escores no sentido de comunidade são mais elevados nas dimensões "oportunidades de influência" e "sentido de pertença"; e inferiores para "apoio" e "conexão emocional" na comunidade (Chiessi, Cicognani, & Sonn, 2010). Isto sugere que, no sentido da construção de pertença, as circunstâncias para os adolescentes exercerem influência sobre a sua comunidade constituem um fator crítico.

Uma mesma cidade pode representar diferentes realidades para os adolescentes. Isso se deve a diferenças de acesso social e de características de cada comunidade. Nesse sentido, a etapa da adolescência não pode ser desvinculada da cultura e das condições socioeconômicas, uma vez que tais aspectos influenciam a forma de experienciar a vida. Os estratos sociais aos quais pertencem os adolescentes propiciam condições específicas de inserção social (Salles, Paula e Silva, Revilla, & Fernandez, (2014). Esse cenário possibilita e determina atividades e interesses distintos. Estudo de Sebenelo, Kleba e Keitel (2016) identificou que, em sua maioria, os interesses dos jovens não estavam relacionados à exposição a situações de risco. Os jovens demonstram constantemente a vontade de conviver com amigos. O sentido desta atividade é protetor e facilitador do desenvolvimento, uma vez que promove integração social e relacionamento grupal (Glick & Rose, 2011), incidindo no bem-estar.

O presente estudo teve por base a abordagem ecológico-contextual, de Kelly (Kelly & Hess, 1986), e a bioecológica, de Bronfenbrenner (2011). Essas compreendem pessoa e contexto como interdependentes em uma unidade dinâmica e multifacetada, em termos de influências recíprocas, especialmente considerando o desenvolvimento humano (Bronfenbrenner, 1996). Nesse sentido, foi avaliada a inserção social na cidade, a percepção de qualidade do bairro de residência e o senso de comunidade entre adolescentes escolares e sua contribuição para o bem-estar dessa população. A hipótese principal do estudo foi de que as relações com a cidade, a qualidade percebida do bairro e o senso de comunidade representam variáveis importantes na explicação do bem-estar nessa etapa do ciclo vital.

 

Método

Contexto do estudo

Porto Alegre é a capital do estado do Rio Grande do Sul, Brasil, e, de acordo com o censo do IBGE de 2010, tem 1.409.351 habitantes. Na faixa da adolescência, o censo identificou 100.860 pessoas com idade entre 10 e 14 anos, e 103.412 com idade entre 15 e 19 anos (IBGE, 2010).

População e amostra

Foi realizado um estudo observacional e analítico, com corte transversal, entre adolescentes escolares de oitavo ano, com idade entre 12 e 19 anos, de escolas da rede pública estadual do município de Porto Alegre, RS, a qual corresponde a 25% das instituições de ensino. Foram sorteadas duas escolas de cada distrito educacional da cidade, havendo retorno de seis escolas, de cinco distritos. Em cada escola, foi sorteada uma turma de oitavo ano.

A amostra foi definida de acordo com as recomendações de Field (2009) para a realização de análise de regressão linear múltipla, a qual considera necessário 50 participantes mais oito vezes o número de preditores. Nesse sentido, estabeleceu-se uma amostra de 114 participantes, o que corresponde a, aproximadamente, 10% da população total de alunos matriculados no oitavo ano da rede pública estadual (n = 12.064) em 2016, de acordo com os dados disponibilizados pela Secretaria de Educação e Cultura do Rio Grande do Sul (SEC/RS).

Participaram do estudo 123 adolescentes escolares de ambos os sexos. Quatro participantes foram identificados como outliers na análise de dados, ficando a amostra composta por 119 participantes. Desses, 58,8% eram do sexo masculino. A idade variou de 12 a 17 anos (M = 14,15; DP = 1,03) e 50,9% se autodeclararam como brancos. Quanto ao nível de ensino dos pais, 30,8% dos pais e 33,6% das mães tinham ensino médio completo; 28,8% dos pais e 21,2% das mães não tinham estudos ou ensino fundamental incompleto; 22,1% dos pais e 24,8% das mães tinham ensino fundamental completo ou ensino médio incompleto; e 18,3% dos pais e 20,4% das mães tinham ensino superior completo. Em termos da classificação econômica, 44% pertenciam à classe B, 40,5% à classe C e 15,5% à classe A.

Instrumentos

1. Inquérito de dados sociodemográficos. Avalia as variáveis sexo, idade, raça/cor autorreferida, escolaridade dos pais, tempo de residência na cidade e no bairro.

2. Critério de Classificação Econômica Brasil (CCEB). O questionário é composto por 12 questões, que avaliam a posse de itens, contar com empregados domésticos, o grau de instrução do responsável financeiro pela família e serviços públicos (água encanada e rua pavimentada). A divisão de mercado é definida em classes econômicas: A, B1, B2, C1, C2 e D-E (Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa [ABEP], 2015).

3. Dimensão de bem-estar positivo da Escala Eudemon de Bem-Estar Pessoal (EBP). Desenvolvida por Fierro e Rando (2007) e adaptada para o Brasil por Strelhow, Masiero, Santos, Sarriera e Teixeira (2015), consta de 21 itens divididos em dois fatores: bem-estar positivo (oito itens) e ausência de bem-estar (13 itens). Estes são respondidos em escala de 11 pontos, variando de "não, de forma alguma" a "sim, completamente". Os coeficientes de consistência interna encontrados na amostra brasileira foram de 0,77 para a escala total, 0,88 para o fator 1 e 0,79 para o fator 2. No presente estudo, foi utilizada apenas a dimensão de bem-estar positivo, a qual alcançou um coeficiente alfa de 0,74.

4. Migração de bairro e/ou cidade. Consta de cinco questões, desenvolvidas para o presente estudo, referentes a: mudança de cidade ou bairro (se teve situação de mudança), onde morava antes, avaliação da mudança em uma escala de 0 - muito ruim - a 10 - muito boa - e avaliação subjetiva de quanto o jovem gosta do bairro e da cidade onde reside. As duas últimas questões são avaliadas em uma escala de resposta que varia de 0 - nem um pouco - a 10 - muitíssimo.

5. Locomoção casa-escola. Corresponde a duas questões, desenvolvidas para o estudo, que avaliam a exposição dos adolescentes ao contexto urbano/bairro: meio de transporte (a pé, de transporte público, de transporte particular ou bicicleta/skate) e tempo de locomoção de casa até a escola.

6. Sense of Community Index (SCI). Desenvolvido por Chavis, Hogge, McMillan e Wandersman (1986) e adaptado para o Brasil por Sarriera et al. (2015). Tem nove itens distribuídos em duas dimensões: vínculo positivo com a comunidade (cinco itens) e relações com os vizinhos da comunidade (quatro itens). As repostas são em escala de cinco pontos, variando de "discordo muito" a "concordo muito". Os coeficientes de consistência interna encontrados pelos autores foram de 0,73 para a primeira dimensão, 0,58 para a segunda dimensão e 0,78 para a escala total. No presente estudo, os coeficientes alfas encontrados foram de 0,74, 0,61 e 0,71, respectivamente.

7. Escala de Inserção Social na Cidade para Adolescentes (ISCA). Consta de 16 itens distribuídos em três dimensões: Acesso (sete itens, α = 0,73, Ex. Item: Nessa cidade é fácil encontrar informações sobre as coisas que interessam aos jovens), Cordialidade (três itens, α = 0,53, Ex. Item: É difícil fazer amizade com as pessoas nessa cidade) e Insegurança (seis itens, α = 0,80, Ex. item: Tenho medo de ser assaltado/a ao andar pelas ruas na minha cidade). O alfa total da escala foi de 0,70. As respostas são em escala tipo Likert de cinco pontos, variando de "discordo totalmente" a "concordo totalmente". Para a análise de dados, foram calculadas as médias da escala geral, bem como de cada uma das três dimensões.

8. Escala de Percepção de Qualidade do Bairro para Adolescentes (PQBA). Está composta por 18 itens distribuídos em três dimensões: possibilidades de esporte e lazer (quatro itens, α = 0,83, Ex. item: Existem áreas nas quais se pode fazer esportes ao ar livre no bairro), locomoção (quatro itens, α = 0,63, Ex. item: Existe suficiente opção de transporte público no bairro) e segurança (dez itens, α = 0,67, Ex. Item: Alguns amigos e parentes não me visitam em minha casa por não se sentirem seguros). O alfa total da escala foi de 0,63. As respostas são em escala tipo Likert de cinco pontos, variando de discordo totalmente a concordo totalmente. Para a análise de dados, foram calculadas as médias da escala geral, bem como de cada uma das três dimensões.

A ISCA e a PQBA foram desenvolvidas pelos pesquisadores a partir da literatura e outros instrumentos que avaliam a qualidade da relação dos indivíduos com o bairro onde vivem e a percepção de segurança (Bonaiuto, Fornara, & Bonnes, 2003; Bonnes, Bonaiuto, Aiello, Perugini, & Ercolani, 1997; Martinez, Black, & Starr, 2001), seguindo os padrões metodológicos recomendados pela Comissão Internacional de Testes (International Test Commission [ITC], 2016). Assim, ambas as escalas foram submetidas a uma avaliação interjuízes, bem como avaliação semântica e estudo-piloto entre adolescentes escolares.

Procedimentos de Coleta dos Dados

Foi solicitada aprovação da SEC/RS e a anuência das escolas sorteadas, mediante apresentação do projeto de pesquisa. Foi agendada a coleta de dados em cada escola e, no dia anterior, os pesquisadores divulgaram a pesquisa nas turmas e entregaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) para os alunos. A coleta de dados foi realizada pelos pesquisadores, de forma grupal, em salas de aula. O tempo médio de aplicação foi de 30 minutos. Foram realizados três retornos semanais, agendados também para captar os alunos faltantes no dia das coletas anteriores ou aqueles que não haviam trazido o TCLE devidamente assinado por seus responsáveis.

Procedimentos de Análise de Dados

O banco de dados foi digitado e analisado por meio do SPSS 21.0 (Statistical Package for the Social Sciences). Primeiramente, foram realizadas análises descritivas de caráter exploratório a fim de avaliar a distribuição dos itens, os casos omissos ou os possíveis erros de digitação. Os dados referentes à amostra, em termos de relacionamento com comunidade, bairro e cidade de residência, foram também analisados mediante análise descritiva.

Foram conduzidas análises bivariadas (Correlação de Pearson) entre o desfecho (bem-estar) e os fatores em estudo (ISCA, ISCA-Acesso, ISCA-Cordialidade, ISCA-Insegurança, PQBA, PQBA-Esporte e Lazer, PQBA-Locomoção e PQBA-Segurança, SCI, SCI-Vínculo Positivo com a Comunidade e SCI-Relações com os Vizinhos da Comunidade).

Para identificar os preditores de bem-estar, foi utilizada análise multivariada (análise de regressão linear múltipla [ARLM]), método Stepwise. Participaram das análises as variáveis que apresentaram um nível de significância < 0,20 na análise de correlação. A magnitude do efeito (effectsize) foi avaliada pelos coeficientes de regressão padronizados e calculados para cada modelo final, de acordo com Field (2009). O tratamento dos dados obedeceu a um nível de confiança de 95%, com um nível de significância de 5% (valor de p < 0,05).

Os pressupostos para a análise de regressão linear foram testados, tendo sido identificados valores aceitáveis de acordo com Field (2009). Foi verificada ausência de multicolinearidade, pois todos os valores das correlações ficaram abaixo de 0,740, os valores de Variance Inflation Factor (VIF) situaram-se abaixo de quatro (variação de 1,036 a 1,077) e os valores de tolerância foram inferiores a um (variação de 0,929 a 0,966). A análise do coeficiente de Durbin-Watson identificou valores próximos a dois (variação de 2,035 a 2,037), desse modo, indicando a independência da distribuição e a não correlação dos resíduos. A distância de Cook foi de 0,009 em ambos os modelos, inferior a um, indicando não existir preditores atípicos e um adequado ajuste dos modelos.

Aspectos Éticos

O projeto segue a Resolução 466/2012, do Conselho Nacional de Saúde (Brasil, 2012), e foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UFCSPA (parecer: 2.134.850). A participação dos adolescentes ocorreu mediante assinatura do TCLE pelos responsáveis e do Termo de Assentimento pelos adolescentes.

 

Resultados

Análise Descritiva

Em termos da vivência na cidade e no bairro, 82,8% dos escolares sempre moraram em Porto Alegre; e 60,9%, no mesmo bairro. Entre os que vivenciaram mudança, 58,5% mudaram de bairro; 36,6%, de cidade; e 4,9%, de estado. Quanto à avaliação da mudança, 73,3% consideraram positiva; 24,4%, neutra; e 2,2%, negativa. No que se refere ao quanto os adolescentes gostam do bairro e da cidade onde vivem, em uma escala que variava de zero (0 - nem um pouco) a dez (10 - muitíssimo), a média de gostar do bairro foi de 8,25 (DP = 1,75), e da cidade, de 7,47 (DP = 2,02).

Quanto à locomoção até a escola, 52,6% vão a pé; 23,3%, de transporte público; 22,4%, de transporte particular; e 1,7%, de bicicleta/skate. O tempo dispendido no percurso foi de até 10 minutos para 41,1% dos adolescentes, de 10 a 15 minutos para 31,3%, de 15 a 30 minutos para 16,9% e de mais de 30 minutos para 12,6%.

A Tabela 1 apresenta os resultados da análise descritiva da amostra em cada um dos instrumentos utilizados (Escala Eudemon de Bem-Estar Pessoal - bem-estar positivo, Escala de Inserção Social à Cidade para Adolescentes, Escala de Percepção de Qualidade do Bairro para Adolescentes e Sense of Community Index).

De acordo com o ponto médio das escalas utilizadas, verifica-se que os índices superiores foram em bem-estar positivo (m = 7,26; DP = 1,49), inserção social na cidade-acesso (m = 3,79; DP = 0,66), senso de comunidade-relações positivas com a comunidade (m = 3,76; DP = 0,60), percepção de qualidade do bairro-segurança (m = 3,55; DP = 0,75) e senso de comunidade geral (m = 3,53; DP = 0,38).

Análise Bivariada

Foram analisadas as correlações entre bem-estar pessoal e ISCA, PQBA, SCI, ISCA-Acesso, ISCA-Cordialidade, ISCA-Insegurança, PQBA-Esporte e Lazer, PQBA-Locomoção, PQBA-Segurança, SC-Vínculo Positivo com a Comunidade e SC-Relações com os Vizinhos da Comunidade. O bem-estar está significativamente relacionado às médias gerais da ISCA (r = 0,302, p < 0,01), da PQBA (r = 0,355, p < 0,01) e do SCI (r = 0,341, p < 0,01). Quanto às dimensões das escalas, relacionou-se significativamente a ISCA-Acesso (r = 0,357, p < 0,01) e ISCA-Cordialidade (r = -0,133, p < 0,05); PQBA-Esporte e Lazer (r = 0,282, p < 0,01), PQBA-Locomoção (r = 0,186, p < 0,05) e PQBA-Segurança (r = 0,247, p < 0,01); e SC-Relações com os Vizinhos da Comunidade (r = 0,399, p < 0,01).

Análise Multivariada

Foram conduzidas duas análises de regressão linear múltipla, pelo método stepwise. Na primeira, foi avaliado um modelo geral de predição de inserção social à cidade, qualidade percebida do bairro e senso de comunidade sobre bem-estar. Na segunda, o modelo testado foi referente à capacidade preditiva das dimensões componentes de inserção social à cidade, qualidade percebida do bairro e senso de comunidade sobre bem-estar.

Ambas as análises tiveram como desfecho a dimensão de bem-estar. Na primeira, foram estabelecidas como variáveis independentes as médias gerais da ISCA, da PQBA e do SCI. Na segunda, as dimensões das escalas em estudo foram avaliadas em termos de seu poder preditivo sobre bem-estar. Foram consideradas as dimensões de Acesso e Cordialidade, da ISCA; de Esporte e Lazer, Locomoção e Segurança, da PQBA; e Vínculo Positivo com a Comunidade, do SCI (Tabela 2).

O primeiro modelo, composto pelas variáveis qualidade percebida do bairro de residência, vínculo positivo com a comunidade e inserção social à cidade, explicou 22,7% do bem-estar, com um valor de F Model significativo para a equação de regressão (F(3,115) = 11,274, p < 0,001). Em termos da importância relativa "estandartizada" das variáveis no modelo, verifica-se maior peso da variável senso de comunidade (ß = 0,241), seguida de percepção e qualidade do bairro (ß = 0,234) e inserção social à cidade (ß = 0,205) (Pardo Merino & Ruiz Díaz, 2002). Os resultados indicam que, quanto mais positivo o senso de comunidade e a percepção de qualidade do bairro, bem como maior inserção social à cidade, maior é o bem-estar.

O modelo referente às dimensões da ISCA, da PQBA e do SCI enquanto preditoras de bem-estar alcançou uma variância explicada de 26,1% e um valor de F Model significativo (F(3,115) = 13,551, p < 0,001). O modelo final ficou composto pelas variáveis SCI-Vínculo Positivo com a Comunidade, ISCA-Acesso e PQBA-Segurança. Quanto à importância relativa "estandartizada" das variáveis no modelo, SCI-Vínculo Positivo com a Comunidade apresentou o maior peso (ß = 0,316), seguido de ISCA-Acesso (ß = 0,267) e PQBA-Segurança (ß = 0,162) (Pardo Merino & Ruiz Díaz, 2002). Verifica-se que, quanto mais positivo o vínculo com a comunidade, maior o acesso à cidade e maior a percepção de segurança no bairro de residência, maior é o bem-estar.

No que se refere à magnitude do efeito de ambos os modelos, a variação foi de R2 = 0,227 a R2 = 0,261. Esses dados permitem considerar que ambos os modelos apresentaram magnitude média, de acordo com os parâmetros recomendados por Field (2009).

 

Discussão

O presente estudo tem como um de seus pressupostos a indissociabilidade entre pessoa e ambiente, os quais consistem em uma unidade de funcionamento (Kelly & Hess, 1986). A abordagem adotada permite contemplar os contextos ambientais concretos, como a cidade e o bairro de residência (Bronfenbrenner, 2011). O desenvolvimento saudável do adolescente não se situa apenas na garantia de sobrevivência ou na atenção a problemas orgânicos. Ele está ligado, também, a condições físicas e a aspectos psicológicos e socioambientais, que possibilitam que adolescentes tenham o manejo das transformações esperadas para esta fase do ciclo vital e dos desafios vividos pelo contexto social e histórico em que estão inseridos (Senna & Dessen, 2015).

Para a compreensão da vivência dos adolescentes na cidade e em seu bairro, verificou-se que 39,1% dos participantes tinham experienciado mudança de residência, seja de bairro, seja de cidade e/ou estado, e 73,3% destes consideram este evento como positivo. O evento de mudança de endereço costuma ter um impacto importante na adolescência. A qualidade do ambiente físico e social em que crescem as crianças e os adolescentes afeta diretamente seu desenvolvimento, aprendizagem, competência social e comportamento (Assis, Avanci, & Oliveira, 2009).

Outro aspecto importante no período da adolescência refere-se aos contextos de circulação dos ambientes na cidade. Há uma tendência de que o ambiente do bairro seja o local de maior inserção, dado que a concepção de comunidade é fortemente atrelada à escola e aos amigos. No presente estudo, identificou-se que a escola é próxima da residência na maior parte dos casos, em função do tempo dispendido no percurso. Assim, mais da metade dos adolescentes vai à escola a pé. Nessas comunidades, há relações favorecidas pela familiaridade, por fatores de pertencimento, pelo contato espacial e por herança cultural. Nesse contexto de vizinhança, destaca-se a dimensão afetiva, com a geração de sentimentos de coesão e segurança e de apego ao lugar (Farias & Pinheiro, 2013).

A partir da consideração do papel do lugar, como referência afetiva, cognitiva e identitária (Stedman, 2002), buscou-se identificar a contribuição da inserção social na cidade, da percepção de qualidade do bairro de residência e do senso de comunidade para o bem-estar dos adolescentes escolares. Para tanto, foram avaliados dois modelos preditivos de bem-estar.

O primeiro modelo identificado demonstrou a contribuição dos três construtos avaliados, sendo que o senso de comunidade se apresentou como o aspecto primordial para o bem-estar, seguido da percepção de qualidade do bairro e inserção social na cidade. O bairro é, de fato, o contexto mais próximo e de circulação prioritária dos adolescentes. No bairro é que se estabelecem as relações sociais, especialmente as amizades, as quais são essenciais à satisfação com o contexto imediato. Farias & Pinheiro (2013) chamaram "bairros vivos" as relações de socialização, intimidade, cooperação, utilização de espaços nas proximidades e instituições locais, bem como símbolos locais.

Em uma análise, mais pormenorizada, acerca das dimensões das escalas de percepção de qualidade do bairro, de senso de comunidade e de inserção social na cidade, o modelo obtido alcançou maior capacidade explicativa que o primeiro. Esse foi composto por três variáveis. O vínculo com a comunidade apresentou maior contribuição, seguido de inserção social na cidade - acesso e percepção de qualidade no bairro - e segurança. Observa-se que o enfoque na dimensão comunitária no bem-estar está relacionado à satisfação positiva nos relacionamentos entre as pessoas em suas vizinhanças, bem como o uso autônomo do ambiente físico das comunidades pelas crianças e pelos adolescentes (Sarriera et al., 2016).

Nesse contexto, a cidade é o cenário no qual se apresentam possibilidades de acesso a experiências mais amplas de inserção social, da mesma forma como se configuram restrições sociais para os adolescentes (Leite & & Silva de Melo, 2017). A vivência urbana é composta por diversos aspectos, desde os estruturais até os relacionais. Lefebvre (2011) refere que diferentemente do habitat, o habitar, atributo original da vida urbana, significa apropriar-se do espaço físico e do ambiente social para determinar trocas de reconhecimentos, de vivências e estilos de vida - dando a esse espaço um sentido.

A rede social das cidades contemporâneas representa uma estrutura complexa que incide na saúde e no bem-estar de crianças e adolescentes em termos de seus estilos de vida e da maneira como se posicionam socialmente (Meireles, Xavier, Cortes, Moulin, & Caiaffa, 2013). Assim, o acesso dos adolescentes a atividades no contexto urbano precisa ser considerado em termos de seu potencial de contribuição para identidades pessoais e pode contribuir para a implementação de cidades mais saudáveis e receptivas para seus habitantes, independentemente da classificação temporal de seu processo de desenvolvimento (Patrão, 2009).

O país e a cidade representam estruturas mais amplas, já o bairro de residência e a comunidade de convívio configuram-se como elementos mais concretos para a população adolescente. De fato, o sentimento de pertença e identidade quanto ao bairro de residência contribui para a satisfação e qualidade de vida de adolescentes (Elvas & Moniz, 2010).

Nesse sentido, ressalta-se a importância do sentimento de segurança no bairro como um preditor de bem-estar. São importantes as restrições sociais impostas no cotidiano de crianças e adolescentes em função das altas taxas de criminalidade presentes na rotina dessa população (Rondon Filho & Souza, 2013).

Os dados deste estudo demonstram que a cidade, o bairro e o senso de comunidade contribuem para o bem-estar na adolescência. Além disso, indicam que a participação social dos adolescentes pode contribuir para um presente mais saudável, visto que o bem-estar se relaciona com o sentido de pertença deles (Amaro, 2007).

Assim, a elaboração de políticas públicas efetivas voltadas ao amplo espectro do desenvolvimento socioterritorial das cidades faria com que a abordagem da saúde urbana se desse de modo transversal e multidimensional (Figueiredo et al., 2017). Isso requer contemplar economia, emprego, educação, habitação, transporte, cultura, família, lazer e acesso à saúde, a caminho da equidade (Caiaffa & Friche, 2012).

Como força do estudo, destaca-se a pesquisa e o desenvolvimento de escalas direcionadas a adolescentes, sobre aspectos de qualidade do bairro e inserção social na cidade. Como limitações, faz-se importante ressaltar a restrição da amostra, uma vez que, dos oito distritos educacionais do município, foi obtida anuência de escolas de apenas cinco. Outra limitação refere-se ao fato de ser uma amostra não probabilística, que não permite a generalização dos resultados. Quanto ao uso de escalas desenvolvidas para o próprio estudo, o que representa uma força, é possível também considerar como uma limitação, dado que tais escalas não estão devidamente validadas para a população brasileira.

O estudo contribui para o entendimento da contribuição de variáveis ambientais (senso de comunidade, percepção de qualidade do bairro e inserção social na cidade) ao bem-estar de adolescentes escolares do sul do Brasil. Os resultados têm potencial para indicar a necessidade de políticas de maior atenção aos adolescentes, indo além da saúde física e contemplando aspectos psicossociais referentes a seu bem-estar (adolescência segura e com boa relação com a comunidade e a cidade).

 

Referências

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Recebido em: 13/06/2019
Última revisão: 02/09/2019
Aceito em: 23/09/2019

 

 

Eliza Souza Hanke: Mestre em Psicologia e Saúde. Psicóloga. Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA).
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Orcid: http://orcid.org/0000-0002-5154-9912
Sheila Gonçalves Câmara: Doutora em Psicologia. Professora do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia e Saúde da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA).
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Orcid: http://orcid.org/0000-0001-6761-7644

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