Introdução
Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) surgiram no Brasil ao final da década de 1980 e foram regulamentados pelas Portarias MS 224/1992 e MS 336/2002, configurando-se como serviço de portas de entrada para os cuidados em saúde mental no contexto da Reforma Psiquiátrica, caracterizados como equipamentos abertos e comunitários, responsáveis por acolher as pessoas em sofrimento mental e proporcionar um cuidado que preze pela autonomia e reinserção social desses sujeitos (Amarante, 2008, 2015; Ministério da Saúde, 2002). Os CAPS surgiram como parte das respostas aos problemas denunciados pela imprensa e pelo Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental, entre o final dos anos 1970 e início dos 1980, com relação a maus-tratos e às condições asilares existentes nos hospitais psiquiátricos à época. Inspirados por movimentos internacionais que discutiam propostas de intervenção e tratamento não asilares para as pessoas em sofrimento psíquico, alguns grupos começaram a se organizar para propor um novo modelo brasileiro de atenção para essa parcela da população, o qual viria a ser o centro de atenção psicossocial (Amarante, 2008).
Durante muitas décadas, o manicômio foi a única possibilidade de tratamento disponível para as pessoas que apresentavam sofrimento psíquico. A partir de sua criação, os centros de atenção psicossocial ainda são uma alternativa - recente - cujas propostas ainda estão em processo de construção. Os CAPS têm um papel fundamental nesse processo de desinstitucionalização da atenção, já que propõem substituir o tratamento baseado no isolamento por uma forma de cuidar que permita ao sujeito fazer parte da sociedade, valorizando a convivência familiar e comunitária (Dimenstein & Bezerra, 2009).
No atual contexto da Rede de Atenção Psicossocial (Portarias MS 3.088/2011 e 3.588/2017), os CAPS podem funcionar a partir de diferentes modalidades, considerando-se critérios como abrangência populacional do município-sede, tipo de público, composição das equipes e tipos de atendimento prestado. Cabe aos CAPS oferecer atendimentos nas modalidades individual e grupal, oficinas terapêuticas, atendimento familiar, visitas domiciliares, além de atividades comunitárias enfocando a integração do usuário na comunidade e sua inserção familiar e social. Tais portarias também preveem a possibilidade de CAPS voltados para públicos específicos, como os CAPS i (que atendem crianças e adolescentes) e os CAPS AD (voltados às pessoas com problemas decorrentes do uso prejudicial de substâncias), além do CAPS tipo III (com funcionamento 24 horas e leitos para manejo de quadros mais graves, tanto de transtornos mentais quanto intercorrências devido ao abuso de substância) e do CAPS AD IV, que surgiu recentemente como um novo componente da rede, por meio da Portaria MS 3588/2017.
A inserção dos CAPS na Rede de Atenção Psicossocial destaca a necessidade de que o cuidado seja realizado em uma rede ampla, incluindo a atenção primária, os serviços de urgência, os equipamentos residenciais e os leitos em hospital geral, de forma que a pessoa em sofrimento psíquico tenha um atendimento total de suas necessidades de saúde (Ministério da Saúde, 2017). Garantir que o usuário transite pela rede de serviços é uma forma de assegurar que os princípios da Reforma Psiquiátrica se consolidem. A Portaria MS 3588/2017 abre a possibilidade de instalação de CAPS AD IV “junto a cenas de uso em municípios com mais de 500.000 habitantes e capitais de Estado”, além de introduzir na RAPS o Hospital Psiquiátrico Especializado. Há, portanto, um descolamento da ênfase da RAPS como garantia de cuidado no contexto comunitário e territorial, com a reintrodução de um serviço manicomial como o hospital especializado.
Nos últimos anos, muitas pesquisas têm sido realizadas sobre os CAPS enquanto modelo de cuidado. Encontramos na literatura uma gama razoável de artigos que buscam compreender a formação e composição dos profissionais que atuam em CAPS (Cunha & Galera, 2016), o modo de trabalho na atenção psicossocial (Milhomem & Oliveira, 2007), a percepção de profissionais sobre o cuidado ofertado nesses serviços (Ballarin et al., 2011; Pegoraro & Nunes, 2017) e a avaliação de familiares (Bielemann et al., 2009; Covelo & Badaró-Moreira, 2015; Rodovalho & Pegoraro, 2020; Mota & Pegoraro, 2018) sobre os CAPS. Menor atenção tem sido dada, portanto, à forma como os usuários percebem o serviço e avaliam o cuidado recebido. Considerando a importância de se incluir a ótica dos usuários para os quais o serviço é organizado, a existência de projeto terapêutico singular (Rodovalho & Pegoraro, 2016) para cada usuário, como orientador do cuidado coconstruído entre equipe-usuários-familiares, e a Lei 10.216/2001, que destaca a importância de que o cuidado seja feito preferencialmente em serviços de base comunitária e territorial como os CAPS, este artigo se propõe a traçar um panorama de como os usuários dos serviços de atenção psicossocial percebem ou avaliam o atendimento recebido.
Aspectos Metodológicos
O presente estudo foi desenvolvido como uma revisão integrativa da literatura, método que, segundo Mendes et al. (2008), reúne ou sintetiza os achados de pesquisas sobre um determinado tema, com a finalidade de contribuir para a ampliação dos conhecimentos sobre ele. Primeiramente, partiu-se de uma questão orientadora: “O que pensam os usuários dos serviços de atenção psicossocial a respeito do atendimento recebido?”.
Para a busca dos artigos que serviriam de apoio para esta revisão, selecionaram-se duas bases de dados: Scientific Electronic Library Online - Brasil (SciELO - Brasil) e Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS). O SciELO foi escolhido por ter, em sua coleção, periódicos de vários campos do saber, e a LILACS, por permitir a localização de produções da área de saúde. Foram utilizadas as seguintes palavras-chave, que são terminologias do campo da Reforma Psiquiátrica, combinadas entre si: “usuários”; “saúde mental”; “centros de atenção psicossocial”; “avaliação”; além de palavras-chave extraídas dos Descritores em Ciências da Saúde (DeCs), a saber: “avaliação de serviços de saúde”; “serviços de saúde mental” e “satisfação do paciente”. Os critérios de inclusão utilizados foram: tratar-se de artigos teóricos, relatos de experiências ou relatos de pesquisa que estivessem disponíveis na íntegra nas bases de dados consultadas. Os critérios de exclusão foram: publicações referentes a livros, capítulos de livros, teses, dissertações, resenhas, cartas ou editoriais. Não houve delimitação sobre o ano de publicação dos artigos.
Após o cruzamento das combinações de palavras-chave, chegou-se a um resultado de 49 publicações na base do SciELO. Foi feita a leitura dos resumos e, após considerar os critérios de exclusão e as repetições, chegou-se a um número de 9 artigos. Na base da LILACS, foram encontradas 77 referências que, após a exclusão por repetição e por não adequação aos critérios de inclusão, resultaram em 9 artigos selecionados. Procedeu-se então à leitura integral dos 18 artigos resultantes da busca nas duas bases de dados. Após a leitura minuciosa, constatou-se que alguns artigos não respondiam à pergunta orientadora, motivo pelo qual se aplicaram os seguintes critérios para selecionar os que seriam analisados: tratar-se de publicações que dissertassem sobre serviços de atenção psicossocial brasileiros e publicações que tratassem diretamente da opinião dos usuários a respeito dos serviços. Foram excluídos artigos em que não fosse possível identificar com clareza a opinião do usuário (artigos em que o serviço é avaliado por diferentes grupos de interesse, mas em que não se distingue a opinião de cada grupo, por exemplo). Artigos nos quais a avaliação dos serviços foi feita não apenas por usuários, mas também por familiares ou profissionais que atuavam nos CAPS, foram considerados válidos para compor esta revisão quando foi possível identificar com precisão a opinião dos usuários. A partir disso, o corpus de análise ficou constituído por 12 referências (Tabela 1).
Por fim, estabeleceram-se seis dimensões de análise para extração das informações após leitura repetida do material: (1) tipo de estudo; (2) metodologia; (3) objetivo principal; (4) participantes; (5) instrumentos e (6) principais achados. Essas dimensões serão apresentadas condensadamente na forma de (A) Caracterização dos estudos (dimensões 1 até 5) e (B) Eixos temáticos, identificados a partir de dimensão 6 com inspiração na análise de conteúdo (Bardin, 1977), resultando em: Eixo 1 - CAPS local de tratamento e Eixo 2 - Pontos que necessitam de melhora.
Resultados
(A) Caracterização dos estudos
Todos os artigos recuperados eram estudos empíricos, isto é, aqueles em que os dados foram coletados em campo para fins de pesquisa, sendo oito artigos desenvolvidos com abordagem qualitativa e quatro com metodologias quantitativas. Metade dos artigos foi publicada de 2009 a 2012, e os outros seis artigos entre 2014 e 2019 (Tabela 1), o que aponta que o tema se mantém de interesse de pesquisadores.
Sobre os participantes, é interessante notar que, das quatro pesquisas que foram conduzidas com múltiplos grupos de interesse, três se utilizaram de instrumentos quantitativos (Silva et al., 2018; Mello & Furegato, 2008; Bosque et al., 2017). Apenas Schneider et al. (2009) optaram por usar da técnica de entrevistas e observação, apesar de terem entrevistado outros grupos além dos usuários. Dentre as pesquisas que foram conduzidas unicamente tendo os usuários dos serviços como sujeitos, houve maior variedade de instrumentos utilizados, tais como: entrevistas (Brêda et al., 2011; Nasi & Schneider, 2011; Guedes et al., 2014); grupos focais (Moreira & Onocko-Campos, 2017; Surjus & Onocko-Campos, 2011); círculo hermenêutico dialético (Oliveira et al., 2012); instrumento desenvolvido pelos autores da pesquisa (Bessa et al., 2019); escala SATIS-BR (Barbosa et al., 2015).
Houve, portanto, predomínio de entrevistas individuais e grupais como estratégias de produção de informação (Tabela 2). O uso desse tipo de instrumento dialoga com o propósito dos artigos recuperados, voltados para traçar um panorama sobre como os usuários percebiam as ações ofertadas nos CAPS, estrutura física, relação com a equipe, críticas ao serviço, comparação com serviços frequentados anteriormente (hospitais, manicômios), dentre outros. Três dos doze textos mencionaram explicitamente que tinham como objetivo avaliar a satisfação dos usuários em relação ao CAPS (Silva et al., 2018; Bosque et al., 2017; Barbosa et al., 2015), enquanto nos outros artigos esse objetivo não foi mencionado diretamente, mas ficou evidente, na leitura do corpo dos textos, que a temática foi contemplada.
Outra informação extraída dos artigos recuperados foi quanto ao tipo de CAPS (I, II, III ou IV), uma vez que isso pode impactar a forma como eles avaliavam e percebiam o tratamento, destacando-se a inexistência de especificidades sobre o tipo de CAPS, as pesquisas em CAPS II e AD (Tabela 2). Em relação aos dados sociodemográficos dos participantes das pesquisas, encontramos três subgrupos: (1) pesquisas que não trouxeram estes dados (Oliveira et al., 2012; Guedes et al., 2014; Schneider et al., 2009); (2) pesquisas que trouxeram um número limitado de dados, como a de Moreira & Onocko-Campos (2017), na qual consta apenas a idade dos participantes, ou como a de Brêda et al. (2011), em que coletaram sexo dos participantes e tempo de tratamento, porém não incluíram esses dados no artigo; (3) pesquisas com detalhamento de informações, como a de Silva et al. (2018), que apresentaram gênero, idade, ocupação, estado civil e escolaridade (Tabela 2).
Autor (ano) | Abordagem | Instrumentos / Técnicas |
---|---|---|
1 Brêda et al. (2011) | Qualitativa | Roteiro de entrevista |
2 Guedes et al. (2014) | Qualitativa | Roteiro semiestruturado |
3 Mello e Furregato (2011) | Qualitativa | Instrumento de Contextualização do Sujeito (ICS) e Inventário Multifásico de Identidade Social (IMIS) |
4 Moreira e Onocko-Campos (2017) | Qualitativa | Roteiros para grupos focais |
5 Nasi e Schneider (2011) | Qualitativa | Entrevista fenomenológica |
6 Oliveira, Andrade e Goya (2012) | Qualitativa | Círculo Hermenêutico Dialético |
7 Schneider et al. (2009) | Qualitativa | Roteiro de entrevista e observação participante |
8 Surjus e Onocko-Campos (2011) | Qualitativo | Roteiros para grupos focais |
9 Silva, Lima e Ruas (2018) | Quantitativo | Escala SATIS-BR |
10 Barbosa et al. (2015) | Quantitativo | Escala SATIS-BR |
11 Bosque et al. (2017) | Quantitativo | Escala SATIS-BR |
12 Bessa et al. (2019) | Quantitativo | Instrumento desenvolvido pelos autores, a partir de quatro domínios: autonomia, relacionamento, volição e crises |
Artigo | Informações sobre participantes | Tipo de CAPS |
---|---|---|
1 | 39 usuários | CAPS tipo I e II |
2 | 11 usuários | CAPS II |
3 | 11 usuários (ambos os sexos, 30-49 anos, ensino fundamental incompleto, residindo com família, cinco trabalhando informalmente), 11 familiares e 12 profissionais do CAPS | CAPS (não especifica o tipo) |
4 | 12 participantes entre 30 e 66 anos | Estudo conduzido em mais de um CAPS (sem especificar quantos e o tipo) |
5 | 13 usuários (9 mulheres e homens entre 25 e 56 anos, oito solteiros) | CAPS (não especifica o tipo) |
6 | 12 usuários | 10 CAPS |
7 | 39 participantes (13 usuários, 13 familiares e 13 trabalhadores do serviço) | CAPS II |
8 | 9 participantes (6 homens e 3 mulheres) | CAPS adulto |
9 | 467 usuários (65% homens, 67% solteiros, 65% de 25 a 59 anos e 34 anos em média , metade com ensino fundamental, 34% com ocupações de nível fundamental ou profissionalizante) | 11 CAPS (dois CAPS II, quatro CAPS III, dois CAPSi, um CAPS AD e dois CAPS AD III). |
10 | 25 usuários (8% homens, 48% solteiros, 49% com ensino fundamental incompleto, média de idade de 43 anos, com mínima de 26 e máxima de 69 anos, 76% com renda própria [76%] e renda familiar de até dois salários mínimos [56%]) | CAPS AD |
11 | 32 trabalhadores, 60 usuários (83% homens; 38% de 31 a 40 anos, 43% solteiros, 65% de raça/cor autodeclarada parda, 31% com ensino fundamental incompleto), 28 familiares | Dois CAPS AD |
12 | 32 usuários entrevistados (56% eram homens, 40% de 34 a 43 anos, 87% casados, 50% com ensino fundamental incompleto, 65% moradores da zona urbana) | CAPS I |
(B) Eixos Temáticos
Eixo 1: CAPS como Local de Tratamento
A percepção de que o CAPS é um local acolhedor, no qual o usuário sente-se respeitado e acolhido em sua subjetividade, perpassa muitos dos estudos. Foram comuns falas em que os usuários apontaram o CAPS como uma “segunda casa” (Oliveira et al., 2012; Moreira & Onocko-Campos, 2017; Mello & Furegato, 2008). Nos estudos que utilizaram de escalas para medir o grau de satisfação com o serviço, todos os CAPS foram avaliados como satisfatórios ou muito satisfatórios (Silva et al., 2018; Mello & Furegato, 2008; Barbosa et al., 2015; Bosque et al., 2017; Bessa et al., 2019). Nos demais estudos, por meio de recortes de falas dos usuários e da análise feita pelos autores, é nítida a boa avaliação geral por parte dos pacientes. É importante observar que um dos estudos aponta o fato de que os usuários possam ter atribuído escores altos na escala de satisfação global com o serviço seja devido à baixa escolaridade ou por terem baixas expectativas em relação ao serviço (Silva et al., 2008).
Um dos aspectos mais bem avaliados em todas as pesquisas foi o relacionamento com os profissionais do serviço. A confiança estabelecida com a equipe e o respeito com que eram tratados foram apontados por muitos usuários (Nasi & Schneider, 2011). A relação interpessoal entre o usuário e a equipe foi vista como facilitadora do tratamento (Brêda et al., 2011). Nos estudos em que foi utilizada a escala SATIS-BR, por exemplo, a relação com a equipe foi o quesito com um dos escores mais altos na avaliação. Em Oliveira et al. (2012), as falas dos usuários apontam que a afetividade construída com a equipe, de alguma forma, compensa o distanciamento e a rejeição de algumas famílias.
Outro aspecto que merece destaque é a valorização, por parte dos usuários, das atividades oferecidas. Os grupos, oficinas terapêuticas, visitas domiciliares, dentre outros, aparecem na fala dos usuários como peças fundamentais na sua retomada de vida e reinserção social. Alguns citam especificamente as oficinas geradoras de renda como parte importante de sua retomada de autonomia (Guedes et al., 2014). As atividades grupais foram apontadas como satisfatórias, como no artigo de Nasi e Schneider (2011).
O CAPS enquanto modalidade de tratamento que auxilia no manejo das crises e diminuição das internações também aparece nos artigos analisados (Nasi & Schneider, 2011; Brêda et al., 2011). Os usuários que passaram por internações conseguem traçar uma comparação em que o modelo assistencial do CAPS é visto como melhor e mais humanizado (Guedes et al., 2014).
Eixo 2: Os Pontos que Necessitam de Melhora
Nos estudos que utilizaram escalas de avaliação do serviço, a menor pontuação referiu-se à estrutura física e ao conforto do serviço, como mostram Silva et al. (2018), Barbosa et al. (2015) e Bosque et al. (2017). Nos demais artigos, também foi recorrente nas falas dos usuários a queixa de que as condições físicas dos CAPS precisam de melhorias. Em Mello e Furegato (2008), por exemplo, os usuários apontaram a necessidade de mais salas para atendimento e de mais banheiros.
Aliada a isso, aparece também a insatisfação com o investimento público nesses serviços. Na opinião dos usuários, havia falta de investimento e de verbas nos serviços de saúde mental (Mello & Furegato, 2008). Em Guedes et al. (2014), os usuários perceberam uma sobrecarga da equipe e queixavam-se sobre tal sobrecarga implicar “burocracia” para conseguir agendar suas consultas. No estudo de Brêda et al. (2011), os usuários queixaram-se de falta material para a realização das oficinas e relataram prejuízo no vínculo entre eles e os profissionais que os atendiam, devido a questões políticas, já que, segundo eles, por não haver concursos na área, havia uma alta rotatividade dos membros da equipe.
Um aspecto muito relevante que algumas pesquisas trouxeram é o de que, embora a relação com a equipe seja um dos pontos mais bem avaliados pelos usuários, há algumas ressalvas. Isto reside no fato de que a diferença entre cuidar e tutelar o usuário se torna, por vezes, muito sutil. Isso aparece na pesquisa de Oliveira et al. (2012), na qual há trechos de entrevistas com os usuários que demonstram sentimento de estar sendo tutelado por meio do poder exercido pelos profissionais. Este mesmo estudo também aponta que, muitas vezes, o usuário não se sente protagonista de seu cuidado, pois a equipe faz escolhas por ele. Algo similar aparece na pesquisa de Moreira e Onocko-Campos (2017), na qual os usuários do CAPS trouxeram a insatisfação por não ter suas falas validadas pelos profissionais, já que, muitas vezes, o que eles traziam em suas narrativas era interpretado pela equipe como sintoma de sua doença.
Também aparece nas pesquisas a questão do distanciamento entre CAPS e a rede, seja pela dificuldade de que o usuário do CAPS acesse os outros pontos da rede, seja pela visão equivocada de que, uma vez que o sujeito seja usuário de um serviço de saúde mental, ele deveria permanecer sendo cuidado e segregado no espaço intramuros desse serviço. Na pesquisa de Oliveira et al. (2012), a fala dos usuários refletiu uma preferência por ser atendido no CAPS, já que, ao tentarem ocupar outros espaços, tanto na rede de saúde quanto na comunidade, ainda havia certa resistência e preconceito. Moreira e Onocko-Campos (2017) também abordaram esta problemática ao relatarem em sua pesquisa a dificuldade apontada pelos usuários do CAPS em acessar atendimento na rede para suas outras demandas de saúde, demonstrando a pouca interlocução do CAPS com a atenção básica.
Em relação à comparação entre os CAPS e o antigo modelo manicomial, há algumas considerações importantes a serem feitas. Embora os usuários que tenham experimentado os dois modelos apontem que consideram o serviço dos CAPS melhor e mais humanizado, algumas falas se mostraram preocupantes no sentido de que demonstravam que práticas “antigas” poderiam não estar de todo extintas. Em Surjus e Onocko-Campos (2011), embora os pacientes elogiassem a forma como a medicação era dispensada no CAPS, isto é, de forma individualizada e em contraponto às grandes quantidades oferecidas nos serviços ambulatoriais, eles também relataram que, nos serviços que dispunham de leitos para hospitalidade noturna (CAPS tipo III), era comum o sumiço de pertences, a falta de privacidade durante o acolhimento noturno e a oferta do que eles chamam de “cigarros da casa”, o que os lembra bastante do que ocorria nos manicômios. Silva et al. (2018), cuja pesquisa foi conduzida em vários CAPS de diferentes modalidades, também apontaram um nível de insatisfação maior justamente nos usuários do CAPS III, o que, para as autoras, pode ser um reflexo de que a privação de liberdade, ainda que por curto período de tempo, é vista de forma negativa pelos usuários.
Discussão
Parte das pesquisas analisadas neste artigo não apresentaram informações sociodemográficas sobre os usuários, nem tempo de vínculo com o CAPS. Essa lacuna nos estudos não permite discussões importantes sobre o perfil do usuário, o tempo de permanência aos cuidados do CAPS e a existência de vínculos de trabalho. A existência dessas informações contribuiriam para a discussão sobre o fenômeno dos usuários cronificados em CAPS (Pande & Amarante, 2011) e sobre o papel desse serviço na reinserção social e no fortalecimento de vínculos com o território.
Das doze referências utilizadas para compor o corpus de análise deste artigo, oito foram estudos qualitativos. Conforme Denzin e Lincoln (1994), citados por Turato (2005): “Os pesquisadores qualitativistas estudam as coisas em seu setting natural, tentando dar sentido ou interpretar fenômenos nos termos das significações que as pessoas trazem para estes” (p. 509). Apreende-se que o uso de métodos qualitativos favorece que a ótica dos usuários dos CAPS seja realmente evidenciada, principalmente em um contexto em que poucos estudos tenham como foco a opinião deles. Assim, foi possível notar que os pontos mais valorizados pelos usuários dos CAPS, independentemente da modalidade, foram o relacionamento com a equipe, as atividades oferecidas, a possibilidade de não ter de se distanciar da família para ser tratado e a diminuição de internações e crises.
Em relação aos instrumentos, houve preferência pelas entrevistas, o que é condizente com a metodologia qualitativa, já que estas são instrumentos tipicamente qualitativos, e, por meio delas, o entrevistado tem liberdade para se expressar, possibilitando ao pesquisador uma análise ampla dos significados contidos no fenômeno estudado, conforme Turato (2005). Cabe ressaltar que as pesquisas que se utilizaram de outros instrumentos também trouxeram dados relevantes e que certamente contribuíram para a proposta deste estudo.
A dimensão de análise referente aos participantes do estudo possibilita ampliar a discussão em torno da pergunta orientadora que deu origem a este artigo. Encontramos pesquisas realizadas nos diversos tipos de dispositivos da rede de saúde mental, contemplando usuários que frequentavam CAPS instalados em municípios de menor porte (CAPS I e II), usuários de CAPS voltados ao atendimento das pessoas com problemas decorrentes do uso prejudicial de substâncias (CAPS AD, CAPS AD II e CAPS AD III) e CAPS em que ocorre a oferta de leitos para hospitalidade noturna com prazo determinado (CAPS III e CAPS AD III). Essa diversidade é importante, já que o tipo de serviço a que o usuário está vinculado tem impacto na sua avaliação sobre ele.
As opiniões dos usuários em relação aos pontos positivos do serviço foram bastante similares nos diferentes tipos de CAPS, havendo uma avaliação positiva do acolhimento oferecido pelas equipes, do CAPS enquanto local de resgate de autonomia e autoestima e das atividades ofertadas. Esses pontos positivos foram apontados tanto nos estudos qualitativos como nos quantitativos. Os pontos negativos, no tocante à estrutura física e falta de investimento público, também aparecem nos diversos tipos de CAPS estudados. Nas pesquisas de caráter qualitativo, foi possível explorar em mais profundidade quais os aspectos negativos que geram maior insatisfação, por meio dos recortes de falas dos usuários.
Em relação aos objetivos e os principais achados, pode-se notar que houve consistência entre o que as pesquisas sugeriram como objetivo e o que os dados coletados mostraram. Cabe notar que algumas pesquisas detalharam mais os seus achados principais a fim de correlacioná-los com os objetivos, mas isso parece estar ligado à metodologia de análise dos dados escolhida pelos autores.
Diante dos dados compilados por esses diferentes artigos, cabe trazer à tona uma discussão que tem ganhado espaço entre os pesquisadores da área da saúde mental, que diz respeito à tensão do CAPS enquanto novo modelo de cuidado, o qual, embora tente seguir a proposta das legislações de ser um serviço que preze pela autonomia e reinserção social de seus usuários, ainda se caracteriza, por vezes, pela reprodução de práticas antigas. Estudos como o de Costa et al. (2014) fazem um alerta sobre o fenômeno da cronificação dentro dos centros de atenção psicossocial, destacando o que eles nomeiam de “usuários profissionais” para identificar aqueles sujeitos que mantêm uma relação de dependência com o CAPS, não se inserindo de fato em outros serviços da rede e nunca recebendo alta. Nos artigos contemplados nesta revisão, isso aparece nas falas dos usuários que consideram o CAPS como uma casa (Oliveira et al., 2012; Moreira & Onocko-Campos, 2017; Mello & Furegato, 2008) e que sentem que, para eles, é mais positivo estar inserido no CAPS, por se sentirem rejeitados em outros pontos da rede (Oliveira et al., 2012; Moreira & Onocko-Campos, 2017).
Esta preocupação com a cronificação dos usuários de CAPS correlaciona-se diretamente com as dificuldades que são apontadas por alguns estudos na consolidação de uma rede de cuidados. Para exemplificar este ponto, podemos citar Treichel et al. (2019), que se debruçaram sobre a produção nacional dos últimos dez anos referente à implementação do apoio matricial nas redes de saúde e identificaram que ainda há pouco investimento na formação e capacitação dos profissionais da rede, resistência de muitos profissionais ao cuidado com o usuário com transtornos mentais, excesso de demanda que acaba por privilegiar uma forma de atendimento mais centrada na medicalização, falta de clareza entre os profissionais da rede em relação ao papel que devem exercer e falta de um espaço consolidado para discussão e avaliação conjunta dos casos, dentre outros.
Outro ponto que deve ser observado com rigor nos estudos que se dedicam a analisar a relação do CAPS com seus usuários diz respeito ao conceito de ambiência na saúde, que, segundo o Ministério da Saúde (2006), “refere-se ao tratamento dado ao espaço físico entendido como espaço social, profissional e de relações interpessoais que deve proporcionar atenção acolhedora, resolutiva e humana”. Muitos dos artigos que compuseram esta revisão trazem como dado a insatisfação dos usuários com o espaço físico do CAPS, tendo sido o item com a avaliação mais baixa na opinião deles. Willrich et al. (2013) destacam a importância de uma estrutura arquitetônica que possibilite uma interação acolhedora entre equipe e usuários como um dos componentes que possibilitam a criação e manutenção do vínculo terapêutico.
Por outro lado, um aspecto positivo que foi apontado pelos participantes dos estudos aqui apreciados foi a construção de uma relação percebida como satisfatória com a equipe do CAPS. Esse aspecto é importante porque, ao estabelecerem os CAPS como dispositivos de cuidado para pessoas em sofrimento psíquico, as portarias que citamos ao longo desta revisão enfatizam o caráter humanizado e atento às necessidades individuais de cada usuário que esses serviços devem ter, e isso é em grande parte alcançado com uma relação paciente-profissional pautada na escuta e criação de vínculos. Coelho e Jorge (2009) destacam que as trocas de saberes entre usuários e trabalhadores de saúde permitem encontrar soluções conjuntas para o problema, facilitando a responsabilização do sujeito pelas ações que envolvem sua saúde, e, em longo prazo, funcionam como formas de se prevenir doenças, promover e recuperar bem-estar e humanizar o atendimento. O vínculo pode ser um fator determinante na adesão ao tratamento, uma vez que a confiança depositada pelo usuário no profissional faz com que ele compreenda melhor a significância do tratamento, siga corretamente as recomendações da equipe e se torne mais confiante em direção ao autocuidado (Schimith & Lima, 2004).
Considerações Finais
Esta revisão integrativa permitiu traçar o panorama sobre a percepção de usuários sobre os Centros de Atenção Psicossociais a partir dos artigos publicados nas duas bases de busca escolhidas. O resultado dessa análise aponta primeiramente para uma necessidade de mais estudos dedicados à avaliação dos serviços de saúde mental, em especial os CAPS, e, segundo, para que a voz do usuário seja de fato ouvida. Parte das referências sugeriu que ainda há resquícios das antigas práticas, principalmente na relação que se estabelece entre o novo modelo (CAPS) na figura de seus profissionais e as pessoas que estão sob os cuidados destes. Estudos que coloquem o foco na opinião destas pessoas podem garantir que a Reforma tenha seus princípios respeitados e continue avançando em busca de práticas de cuidado éticas e que de fato proporcionem a inclusão dos usuários.
O vínculo construído na relação de cuidado entre usuários e equipe funciona, é promotor de avaliações positivas sobre os serviços e permite refletir sobre os contratos de trabalhos de equipes quando geridos por organizações sociais ou similares diante da maior rotatividade de pessoal em comparação com profissionais concursados. Esse não foi um tema investigado aqui, mas certamente é uma frente de pesquisa na qual se deva investir. A menor presença de CAPS III dentre os contextos investigados sugere futuras pesquisas que possam ouvir os usuários sobre o papel do CAPS no manejo de crises e a hospitalidade noturna. As queixas sobre a estrutura física também apontam possibilidades de pesquisa sobre a condição dos imóveis em que funcionam os CAPS (próprios ou alugados), bem como sua adequação às normativas propostas pelo Ministério da Saúde sobre seu espaço físico.
Como lacuna desta pesquisa, destacamos o uso de apenas duas bases de busca e a não inclusão de teses e dissertações.