Introdução
A Doença Inflamatória Intestinal (DII) é caracterizada por uma inflamação intestinal crônica, de caráter autoimune, progressivo e recorrente, que envolve essencialmente duas enfermidades, a Doença de Crohn (DC) e a Retocolite Ulcerativa (RCU) (Friedman & Blumberg, 2017). Aproximadamente 25% dos casos de DII são diagnosticados na infância ou adolescência (Sdepanian et al., 2019), e as taxas de incidência e prevalência aumentaram nas últimas décadas, especialmente em países em desenvolvimento (Quaresma et al., 2019; Sdepanian et al., 2019).
Existem poucos estudos epidemiológicos brasileiros, possivelmente porque não há um sistema integrado de notificação diagnóstica das DII, já que a doença não é de notificação compulsória no país. Entretanto, estas pesquisas têm apontado crescimento na incidência e prevalência das DII no Brasil, em especial da RCU, com maior número de casos na região sudeste (Brito et al., 2022; Brito et al., 2020; Gasparini et al., 2018; Martins et al., 2018). Em São Paulo, um estudo observacional, descritivo e transversal, incluindo 22.638 participantes, destacou uma prevalência das DII de 52,6 e incidência de 13,30 (Gasparini et al., 2018). Outra pesquisa sobre as DII no estado do Espírito Santo, com 1.048 participantes de todas as idades, constatou prevalência de 38,2 e incidência de 7,7. Nessa investigação, a amostra pediátrica foi de 4,5% do total de participantes e teve como faixa etária mais acometida as pessoas de 15 a 19 anos de idade (Martins et al., 2018). Os maiores índices de prevalência e de frequência de hospitalização têm sido observados na população feminina (Brito et al., 2020; Gasparini et al., 2018), enquanto o índice de mortalidade se mostra mais acentuado para o sexo masculino (Brito et al., 2020; Silva et al., 2022). A duração média de hospitalização no país corresponde a 7,1 dias, sendo que a Região Nordeste apresenta o maior número de dias, cerca de 8,7. Também é importante frisar que um desses estudos constatou um número significativo de óbitos em menores de 1 ano (Brito et al., 2020).
Apesar da semelhança clínica, a RCU surge por meio de sintomas intestinais mais discretos, o que pode dificultar o diagnóstico, e a DC tende a apresentar evolução mais grave, com mais complicações intestinais, hospitalizações e intervenções cirúrgicas (Friedman & Blumberg, 2017). De qualquer modo, em pacientes pediátricos, as DII tendem a se apresentar de forma mais extensa e mais agressiva do que na fase adulta, e quanto mais precoce a idade de início, maior a morbidade (Fuller, 2019; Sdepanian et al., 2019).
Os sintomas clínicos mais frequentes incluem diarreia crônica, dor abdominal, urgência fecal, tenesmo (sensação de constante necessidade de defecar, ainda que o reto esteja vazio) e sangramento retal, sendo que a intensidade desses sintomas está diretamente relacionada à extensão da doença (Friedman & Blumberg, 2017). Os tratamentos são farmacológicos, nutricionais e cirúrgicos. Eles visam à remissão da doença e frequentemente acarretam distúrbios como o retardo do crescimento e da puberdade (Fuller, 2019; Sdepanian et al., 2019). Ademais, algumas medicações utilizadas causam uma série de efeitos colaterais, como náuseas, diminuição do apetite, vômitos, erupções na pele e cefaleia (Friedman & Blumberg, 2017), o que pode dificultar a adesão ao tratamento. Portanto, essa condição crônica representa um importante fator de risco para o desenvolvimento, visto que pode desencadear prejuízos no estado emocional, na vida escolar e nas interações sociais.
Os pacientes pediátricos apresentam elevado risco de transtornos mentais, cerca de cinco vezes maior do que os adultos, e os transtornos mais prevalentes são a depressão e a ansiedade, com maior incidência no sexo feminino (Thavamani et al., 2019). Os preditores da saúde mental nessa população incluem o nível de gravidade da doença (Chouliaras et al., 2017; van denBrink et al., 2018) e o uso de corticoides, bem como as percepções negativas em relação às consequências da doença (Brooks et al., 2019). Esses pacientes sofrem tanto por não se sentirem saudáveis quanto pelas repercussões da doença, como as restrições alimentares, os sintomas de diarreia e o medo de usar banheiros públicos (Silva et al., 2020). Além disso, uma recente revisão sistemática com foco na DC pediátrica destacou o amplo impacto da dor abdominal no sofrimento emocional do paciente, independentemente das alterações na sua condição clínica (Touma et al., 2021). Assim, pacientes que experimentam dor durante a remissão da doença podem apresentar os mesmos níveis de sofrimento emocional que pacientes com a doença ativa que também experimentam dor (Varni et al., 2018).
Os achados sobre os efeitos da duração da doença ainda não são consensuais. Enquanto em algumas investigações a maior duração previu sintomas depressivos graves (Touma et al., 2021),em outras, foi a duração mais curta da doença que previu sintomas de ansiedade e depressão (van denBrink et al., 2018), o que pode sugerir que os pacientes tendem a apresentar uma melhor adaptação ao sofrimento decorrente da doença ao longo do tempo. De qualquer modo, a DII ativa e suas complicações prejudicam o estado emocional, e isso subsequentemente afeta o curso da doença. Os sintomas de ansiedade e depressão foram identificados como fatores que prejudicam os resultados do tratamento, estando associados a doenças mais graves (van denBrink et al., 2018), maior chance de hospitalização prolongada, uso de nutrição parenteral total (Patel et al., 2019) e maior agravamento de dor abdominal (Touma et al., 2021) e de sintomas extraintestinais (Chouliaras et al., 2017).
Outros prejuízos comuns aos pacientes pediátricos com DII envolvem a vida escolar (Barnes et al., 2020; Silva et al., 2020). Comparadas aos pares saudáveis, crianças e adolescentes com DII apresentam notas mais baixas e maiores taxas de absenteísmo escolar (Barnes et al., 2020; Eloi et al., 2019; Touma et al., 2021). As justificativas mais comuns para a ausência escolar incluem as consultas hospitalares, a preocupação de se sentir mal na escola e a dificuldade de acesso ao banheiro (Barnes et al., 2020; Eloi et al., 2019). Já as dificuldades no desempenho acadêmico podem ser explicadas por variáveis como a maior gravidade da doença, idade mais jovem no diagnóstico e tratamentos com efeitos colaterais mais fortes (Lum et al., 2017), bem como a experiência de sofrimento emocional (Touma et al., 2021). Esses problemas não variam em função do sexo das crianças, duração ou localização da doença (Eloi et al., 2019), mas podem ser ainda mais graves em sociedades economicamente vulneráveis (Touma et al., 2021). Ademais, o absenteísmo escolar também pode repercutir em importantes prejuízos nas interações sociais.
Crianças e adolescentes que se ausentam da escola por motivo de doença tendem a apresentar dificuldades nas interações com pares no retorno às aulas (Lum et al., 2017). Fatores como a maior atividade da doença e o medo de usar banheiros públicos também são descritos enquanto agravantes dos prejuízos nas interações sociais (Chouliaras et al., 2017; Silva et al., 2020).Essas dificuldades decorrem da escassez de oportunidades para interagir com pares e, nesse contexto, desenvolver habilidades específicas dessa fase do desenvolvimento (Bijou, 1995). Além disso, os sintomas podem ser embaraçosos, causando -constrangimentos e sentimentos de vergonha (Trindade et al., 2020). Por exemplo, os efeitos adversos das medicações, a baixa estatura e o atraso no desenvolvimento podem acarretar alterações da autoimagem corporal e produzir uma autopercepção negativa em crianças e adolescentes (Kum & Bang, 2021). Diante desses aspectos, é comum que esses pacientes apresentem menos comportamentos pró-sociais e se mantenham mais isolados (Gamwell et al., 2018; Trindade et al., 2020).
De modo geral, crianças e adolescentes com doenças crônicas têm relações sociais mais pobres se comparados aos pares sem doenças crônicas. Esses pacientes frequentemente relatam preocupações sobre serem diferentes dos colegas e referem terem sido provocados ou intimidados sobre sua imagem corporal, limitações físicas e desempenho acadêmico (Lum et al., 2017). Uma revisão de literatura evidenciou que crianças com DII têm menos amigos e participam de menos atividades planejadas do que crianças saudáveis (Reed-Knight et al., 2017). Em outro estudo, um dos principais desafios relatados pelos participantes foi a frustração pela necessidade de priorizar sua saúde, o que às vezes significava perder eventos sociais e, consequentemente, distanciar-se dos amigos (Easterlin et al., 2020).
Em síntese, a literatura revela que os sintomas de DII constituem um importante fator de risco para o desenvolvimento socioemocional e a qualidade de vida de seus portadores. Todavia, os achados sobre os impactos dos sintomas da DII em pacientes pediátricos ainda não são consistentes, uma vez que prevalecem estudos sobre as características clínicas da doença em detrimento das consequências subjetivas dos sintomas e do tratamento. Outro aspecto relevante é que a maioria dos estudos foi realizada em países desenvolvidos e, portanto, não considera as caraterísticas específicas de países em desenvolvimento como o Brasil. Assim, este estudo tem o objetivo de descrever as repercussões dos sintomas das DII nas emoções, na vida escolar e nas interações sociais de pacientes pediátricos.
Método
Delineamento
Este estudo é um levantamento descritivo e exploratório das repercussões dos sintomas das DII em diferentes esferas da vida de crianças e adolescentes atendidos em um hospital público no Nordeste do Brasil. Este delineamento é frequentemente recomendado para estudos que abordam temas pouco explorados, como é o caso deste na literatura nacional. O levantamento permite a caracterização do problema investigado e, assim, fundamenta posteriores investigações (Sturgis, 2010).
Participantes
Participaram deste estudo 20 cuidadores de crianças e adolescentes diagnosticados com alguma doença inflamatória intestinal. Destes cuidadores, com idades entre 26 e 54 anos, 18 (90%) eram do sexo feminino e 10 (50%) tinham escolaridade de ensino médio, completo ou incompleto. As crianças e os adolescentes tinham entre cinco e 17 anos de idade e já haviam recebido diagnóstico de DII, em média, há mais de três anos. A amostra foi selecionada por acessibilidade em um ambulatório de um hospital público universitário de Salvador, Bahia, Brasil. Como critérios de inclusão, os pacientes deveriam ter diagnóstico de DII confirmado há pelo menos três meses (intervalo necessário para o início da manifestação dos sintomas e a confirmação do diagnóstico) e residir com o cuidador que respondeu ao questionário.
A Tabela 1 apresenta informações detalhadas sobre o perfil sociodemográfico dos cuidadores participantes e também os dados sociodemográficos e as condições clínicas de saúde dos pacientes. Os pacientes tinham diagnóstico de RCU 15 (75%) ou DC 5 (25%).Três pacientes (15%) haviam sido submetidos a procedimentos cirúrgicos e nove (45%) a restrições alimentares. Além da DII, duas crianças também apresentavam diagnóstico de intolerância à lactose, uma criança tinha anemia falciforme e uma criança tinha hepatite autoimune. Sobre a apresentação de sintomas desde o diagnóstico, os pais relataram a ocorrência de diarreia (n=20; 100%), diarreia com sangue (n=18; 90%), urgência fecal e dor abdominal (n=19; 95%), perda de peso (n=16; 80%), falta de apetite (n=12; 60%) e constipação (n=6; 30%). Ademais, cerca de 30% dos pacientes vivenciaram experiências recorrentes de hospitalização. Alguns pais também referiram a observação de sintomas extraintestinais, como problemas dermatológicos (n=4; 20%), dores articulares (n=4; 20%), febre (n=2; 10%), vômitos (n=2; 10%) e distensão abdominal (n=1; 5%). Todavia, no período da coleta de dados, todos os pacientes apresentavam condição clínica estável e apenas nove crianças experienciavam sintomas leves ou moderados no momento da coleta de dados.
Variáveis | N | % | Mínima | Máxima | Média (DP) | |
---|---|---|---|---|---|---|
Cuidador | ||||||
Sexo | Feminino | 18 | 90 | |||
Masculino | 2 | 10 | ||||
Idade (anos) | 26 | 54 | 39,35 (7,22) | |||
Estado civil | Casado(a) | 50 | 50 | |||
União Consensual Solteiro(a) | 3 7 |
15 35 |
||||
Escolaridade | Fundamental | 7 | 35 | |||
Médio | 10 | 50 | ||||
Superior | 3 | 15 | ||||
Atividade remunerada | Sim | 12 | 60 | |||
Não | 8 | 40 | ||||
Renda familiar (reais) | 600 | 7.000 | 1.451 (4,43) | |||
Outros filhos | Sim | 13 | 65 | |||
Não | 7 | 35 | ||||
Paciente | ||||||
Idade (anos) | 6 | 17 | 10,5 (4,04) | |||
Escolaridade (anos) | 0 | 12 | 4,90 (4,03) | |||
Diagnóstico | Retocolite ulcerativa | 15 | 75 | |||
Doença de Crohn | 5 | 25 | ||||
Tempo de diagnóstico (anos) | 1 | 10 | 3,8(2,52) | |||
Hospitalização | Sim | 16 | 80 | |||
Não | 4 | 20 | ||||
Procedimento cirúrgico | Sim | 3 | 15 | |||
Não | 17 | 85 | ||||
Tratamento medicamentoso | Sim | 20 | 100 | |||
Não | 0 | 0 | ||||
Tratamento alimentar | Sim | 9 | 45 | |||
Não | 11 | 55 | ||||
Estado atual da doença | Sem sintomas | 11 | 55 | |||
Leves | 4 | 20 | ||||
Moderados | 5 | 25 |
Procedimentos para coleta de dados
Após aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP-CONEP/Brasil - número do processo: 3.749.618), a coleta de dados foi realizada no Serviço de Gastroenterologia e Hepatologia Pediátrica do Ambulatório Magalhães Neto. Todos os cuidadores que estiveram presentes para consulta médica ambulatorial durante coleta de dados foram convidados a participar deste estudo. Em uma sala reservada, os cuidadores que consentiram sua participação responderam aos instrumentos de pesquisa que foram aplicados em forma de entrevista. O pesquisador leu cada pergunta ou item dos instrumentos e registrou a resposta do participante. Ao final do estudo, os participantes ou crianças que apresentaram demandas para atendimento psicológico foram encaminhados para serviços públicos na cidade em que residem.
Instrumentos
Ficha de Dados Sociodemográficos e Clínicos.Foi utilizada para a coleta de informações como escolaridade, moradia e renda da família, bem como sobre aspectos clínicos do diagnóstico da criança, como tipo de diagnóstico e tratamento da doença.
Questionário sobre as Repercussões dos Sintomas das Doenças Inflamatórias Intestinais na Qualidade de Vida de Pacientes Pediátricos. Esta medida foi desenvolvida especificamente para este estudo, com base na literatura sobre a sintomatologia da doença e no Inflammatory Bowel Disease Questionnaire (IBDQ) (Mitchell et al., 1988). O questionário possui três blocos de questões e cada um deles aborda um dos três sintomas mais comuns da doença: dor abdominal, diarreia e urgência fecal. Para cada um dos sintomas, investigaram-se as respectivas repercussões sobre três esferas da vida de crianças e adolescentes, as emoções, a vida escolar e as interações sociais da criança, com perguntas sobre a frequência com que o paciente se mostrava afetado ou prejudicado por tais sintomas da doença. Para responder às perguntas do questionário, o participante escolheu uma das três seguintes alternativas: quase nunca; às vezes; quase sempre.
Análise dos dados
Foram analisadas médias e desvios-padrão, frequências absolutas e frequências relativas das respostas ao questionário. Inicialmente, comparou-se a repercussão média dos três sintomas avaliados (diarreia, dor abdominal e urgência fecal) sobre a vida das crianças e dos adolescentes, desconsiderando as três esferas (emocional, escolar e social). O teste -qui-quadrado ou teste de aderência foi utilizado para verificar diferenças significativas entre os três sintomas. Valores de alpha iguais ou inferiores a 0,05 foram utilizados como parâmetro para aceitar a hipótese de teste. Na segunda etapa da análise, comparou-se a repercussão dos três sintomas conjuntamente nas três esferas da vida sob consideração. O teste qui-quadrado ou teste de aderência foi utilizado para verificar diferenças significativas entre as três esferas da vida. Valores de alpha iguais ou inferiores a 0,05 foram utilizados como parâmetro para aceitar a hipótese de teste. Por fim, foram examinadas as frequências absolutas e relativas de cuidadores que relataram impacto frequente dos três sintomas em cada um dos itens avaliados nas três esferas da vida analisadas.
Resultados
Na primeira etapa da análise, foram consideradas as repercussões dos três tipos de sintomas, independentemente da esfera da vida (emoções, escola e interações sociais). Para isso, foram calculadas as médias das frequências totais em cada sintoma. A Tabela 2 mostra que os três tipos de sintomas mais proeminentes em DII afetam a vida das crianças de maneira similar, visto que os valores médios para dor abdominal, diarreia e urgência fecal foram bastante semelhantes e o teste qui-quadrado não revelou diferença significativa entre os três tipos de sintoma. Nesse sentido, não é possível afirmar a preponderância de um dos três sintomas no que diz respeito ao impacto geral na vida da criança.
Sintoma | Repercussão Mínima | Repercussão Máxima | Média (DP) |
---|---|---|---|
Dor abdominal | 0 | 23 | 10,6 (6,71) |
Diarreia | 1 | 24 | 11,3 (6,65) |
Urgência fecal | 0 | 24 | 11,3 (7,73) |
A Tabela 3 apresenta a média e o desvio-padrão dos três sintomas, analisados conjuntamente, sobre cada uma das três esferas da vida examinadas. As médias das repercussões dos sintomas nas interações sociais e na vida escolar das crianças foram bastante semelhantes, e a média da repercussão dos sintomas nas emoções da criança foi levemente superior às anteriores, igual a 12,8 (DP=6,96).
Esfera | Repercussão Mínima | Repercussão Máxima | Média (DP) |
---|---|---|---|
Emoção | 2 | 24 | 12,8 (6,69) |
Vida escolar | 1 | 24 | 10,3 (6,95) |
Interação social | 1 | 24 | 10,0 (7,61) |
O teste qui-quadrado de uma variável ou teste de aderência avaliou a significância da diferença na repercussão dos sintomas entre as três esferas da vida (emoção, escola e interação social). Os resultados mostraram que os participantes relataram impacto significativamente maior dos sintomas sobre as emoções das crianças, em comparação com as interações entre pares e a vida escolar (X2 = 6,14; df= 2; p= 0,04).
Na segunda etapa das análises, os três blocos de sintomas foram analisados separadamente. A Tabela 4 apresenta as frequências e os percentuais de participantes que relataram impacto frequente (resposta “quase sempre”) de dor abdominal, diarreia e urgência fecal, em cada um dos itens avaliados nas três esferas da vida (emoção, vida escolar e interação social).
Esferas da vida | Dor abdominal | Diarreia | Urgência fecal | |||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
N | % | N | % | N | % | |||
Emoção | ||||||||
Tristeza | 9 | 45 | 9 | 45 | 9 | 45 | ||
Vergonha | 4 | 20 | 8 | 40 | 5 | 25 | ||
Preocupação/medo | 10 | 50 | 7 | 35 | 10 | 50 | ||
Raiva/irritação | 8 | 40 | 8 | 40 | 7 | 35 | ||
Vida escolar | ||||||||
Não ir à escola | 7 | 35 | 8 | 40 | 10 | 50 | ||
Interferência no desempenho | 5 | 25 | 4 | 20 | 6 | 30 | ||
Pedir para não ir à escola | 4 | 20 | 4 | 20 | 6 | 30 | ||
Voltar mais cedo da escola | 3 | 15 | 3 | 15 | 4 | 20 | ||
Interação social | ||||||||
Fazer amizades | 5 | 25 | 5 | 25 | 6 | 30 | ||
Dormir fora de casa | 5 | 25 | 5 | 25 | 7 | 35 | ||
Desmarcar compromisso | 5 | 25 | 7 | 35 | 7 | 35 | ||
Atividades recreativas | 10 | 50 | 8 | 40 | 8 | 40 |
Sobre as repercussões emocionais dos sintomas, os relatos indicaram que, na presença de dor abdominal, as crianças frequentemente apresentavam preocupação/medo, tristeza e raiva/irritação. Na presença de diarreia, foram mais frequentes as emoções de tristeza, vergonha e raiva/irritação. E, em sintomas de urgência fecal, os relatos indicaram maior frequência de preocupação/medo e tristeza. Na esfera da vida escolar, o prejuízo mais frequentemente relatado, em todos os três sintomas avaliados, foi a criança não ir à escola. No âmbito das interações sociais, a rotina de se envolver em atividades recreativas com pares foi destacada como a mais frequentemente prejudicada em cada um dos três sintomas investigados.
Discussão
O objetivo do presente estudo foi descrever as repercussões dos sintomas das DII nas emoções, na vida escolar e nas interações sociais de pacientes pediátricos. Os resultados indicam que, de forma geral, os sintomas de dor abdominal, diarreia e urgência fecal -apresentaram mesmo impacto na vida dos pacientes e que, juntos, esses sintomas repercutiram em prejuízos maiores na esfera emocional, quando comparada às esferas escolar ou social. Esse achado corrobora a literatura que sugere que os sintomas gastrointestinais são os principais determinantes das alterações psicossociais em pacientes com DII, mesmo em fase de remissão da doença (Mancina et al., 2020; Touma et al., 2021; Varni et al., 2018).
Os sintomas investigados correspondem às principais manifestações clínicas das DII (Sdepanian et al., 2019) e estão consistentemente relacionados à piora da qualidade de vida (Kum & Bang, 2021; Silva et al., 2020). Na literatura internacional (Touma et al., 2021; Trindade et al., 2020), quando avaliados separadamente, cada um desses sintomas parece afetar de forma mais específica diferentes esferas da vida dos pacientes. Por exemplo, a dor abdominal tem sido destacada como um importante indicador de vulnerabilidade aos sintomas de depressão e ansiedade (Mancina et al., 2020; Touma et al., 2021). Por sua vez, a urgência fecal estaria associada aos sentimentos de vergonha, que frequentemente repercutem em prejuízos significativos às interações sociais (Trindade et al., 2020), e a diarreia seria o sintoma de maior comprometimento nos domínios físicos (Silva et al., 2020). Essa tendência não foi confirmada com os achados deste estudo, visto que cada um desses sintomas representou impactos semelhantes na vida dos pacientes.
Por outro lado, a esfera emocional foi a mais significativamente afetada pelos sintomas das DII, quando avaliados conjuntamente. Esses achados sugerem que os prejuízos nas emoções têm uma relação direta com a vivência dos sintomas gastrointestinais. No entanto, também é importante considerar possíveis relações entre o sofrimento emocional e outras variáveis específicas da doença e do processo de adoecimento, que, de forma semelhante, podem explicar o maior impacto no domínio emocional. Por exemplo, boa parte da amostra do presente estudo apresentava sintomas extraintestinais, e cerca de 30% vivenciaram experiências recorrentes de hospitalizações. Os sintomas extraintestinais têm sido consistentemente relacionados ao pior funcionamento emocional e social (Chouliaras et al., 2017) e, da mesma forma que as hospitalizações recorrentes, podem indicar maior gravidade da doença e estar associados ao maior sofrimento mental (Kum & Bang, 2021; van denBrink et al., 2018).
A repercussão dos sintomas sobre as emoções dos pacientes pediátricos também é relevante pelo impacto que os problemas emocionais podem ter sobre o agravamento da doença. Pacientes que necessitam de readmissão hospitalar tendem a ser mais propensos ao diagnóstico de ansiedade e depressão (Barnes et al., 2020). Isso pode ocorrer porque as manifestações subjetivas intensificam as manifestações orgânicas, resultando em maior necessidade de assistência médica e psicológica. Por outro lado, também existem evidências de que o aumento do tempo de internação está diretamente relacionado aos sintomas de depressão em pacientes pediátricos hospitalizados (Patel et al., 2019).
Os relatos sobre os impactos dos sintomas nas diferentes emoções sugerem maior frequência de preocupação/medo, tristeza e raiva/irritabilidade. É possível que fantasias ou mesmo informações sobre o que pode vir a acontecer com a piora do adoecimento reverberem em estados de preocupação e temor. Também é previsível que a inconstância do estado de saúde suscite incertezas. Em vista disso, as crianças podem se abster de fazer planos, acentuando os sentimentos de insegurança e a percepção de perda de controle da vida e do próprio corpo (Easterlin et al., 2020). Esse estado de “desordem corporal” pode gerar certa desorganização subjetiva, especialmente se a criança ou o adolescente não dispõe de tempo e espaço com o objetivo de falar e receber ajuda para elaborar os eventos que está experimentando (Gelech et al., 2021). Então, o paciente vivencia uma defasagem entre o curso dos sintomas e das emoções e o processo de elaboração psíquica a esse respeito.
Embora a vergonha seja uma emoção comum nessa população (Trindade et al., 2020), os achados do presente estudo revelam que este foi o sentimento menos relatado pelos cuidadores. Como as crianças deste estudo tinham em média 10 anos de idade, é possível que este dado decorra da fase de desenvolvimento desses pacientes, uma vez que os sentimentos de pudor são mais presumíveis em adolescentes (Costa et al., 2020). Em todo o caso, cabe ressaltar que as emoções avaliadas neste estudo representam um problema apenas nas situações em que restringem ou interferem nas experiências cotidianas, de modo a prejudicar o bem-estar subjetivo. Ao longo do tempo, os pacientes e familiares podem desenvolver níveis de adaptação suficientes para que, mesmo diante dos sintomas e de emoções indesejadas, como a tristeza e a preocupação, encontrem sentido e prazer em suas atividades cotidianas (Easterlin et al., 2020).
A análise das repercussões dos sintomas nos diferentes aspectos da vida escolar revelou que o absenteísmo foi o prejuízo mais frequentemente relatado, especialmente quando os pacientes apresentavam urgência fecal ou diarreia. Este achado corrobora a literatura que sugere altas taxas de absenteísmo escolar entre pacientes pediátricos com DII (Barnes et al., 2020; Carreon et al., 2018; Eloi et al., 2019). Além da ocorrência dos sintomas, os dados do presente estudo também sugerem que a menor frequência acadêmica dessa população pode estar relacionada às características sociopolíticas do país. Cerca de 70% das famílias participantes residiam no interior ou na faixa litorânea do estado da Bahia e tinham como única opção o acompanhamento médico na capital, o que requer um deslocamento prolongado até o ambulatório. Tais características parecem aumentar as taxas de absenteísmo e dificultar os processos de cuidado, causando também problemas na adesão ao tratamento.
A escola é um ambiente indispensável ao desenvolvimento infantil, pois possibilita amplas oportunidades de exposição a estímulos que favorecem a maturação cognitiva e a aquisição de habilidades sociais (Bijou, 1995). O apoio de professores e de outros profissionais da escola tem sido fortemente associado com melhores experiências e resultados escolares entre alunos com doenças crônicas (Lum et al., 2017). Logo, as instituições acadêmicas e, principalmente, os professores desempenham um papel fundamental na atenuação dos prejuízos causados pelo adoecimento (Barnes et al., 2020; Lum et al., 2017).
Nesse sentido, a melhora nas taxas de frequência escolar de crianças e adolescentes com DII pode ser alcançada por meio de planos educacionais individualizados que levem em consideração as especificidades da doença (Carreon et al., 2018; Lum et al., 2017). Tais planos podem incluir, por exemplo, a garantia de acesso livre e irrestrito ao banheiro (Barnes et al., 2020), de auxílio de um profissional capacitado e a administração de aulas remotas especificamente planejadas para as ocasiões em que os pacientes se ausentarem em função do tratamento médico. Adicionalmente, a família também é uma importante fonte de apoio que pode ajudar a mitigar os efeitos adversos do adoecimento na vida escolar do paciente. Além de auxiliar a criança na promoção do autocuidado, pode intervir de maneira a construir junto à criança alternativas viáveis ao absenteísmo escolar, estimulando estratégias de enfrentamento mais assertivas para lidar com os sintomas, inclusive para participar de atividades recreativas (Easterlin et al., 2020).
Sobre as diferentes situações que envolvem a interação social, os relatos maternos indicam que as atividades recreativas foram as mais frequentemente afetadas pelos sintomas das DII. Esses resultados apoiam estudos prévios que revelam que a dor abdominal, o cansaço e a fadiga são os principais empecilhos relatados na prática de atividades físicas de crianças e adolescentes com DII (Beery et al., 2019). Ao conhecer o cotidiano dos pacientes com DII, é possível presumir que alguns sintomas possam dificultar ou impossibilitar sua inserção em atividades que requeiram maior dinâmica corporal. Por exemplo, a dor abdominal pode dificultar o envolvimento em brincadeiras de correr e jogar bola. Ademais, as restrições alimentares, a baixa absorção de nutrientes e os episódios de inapetência podem causar ingestão insuficiente de energia, o que influencia diretamente na disposição da criança para tais atividades (Fuller, 2019; Beery et al., 2019).
De qualquer modo, sabe-se que apenas uma pequena parcela dos pacientes relata que os sintomas da DII os impedem de praticar o esporte que desejam, com pequenas modificações dessas atividades após o diagnóstico (Beery et al., 2019). Mesmo diante dos desafios impostos pelo adoecimento, os pacientes pediátricos podem desenvolver resiliência e estratégias de enfrentamento mais assertivas e menos adoecedoras. A literatura sugere que, ao longo do desenvolvimento, os pacientes apresentam bons índices de adaptação ao adoecimento, de modo que, à medida que as crianças chegam à adolescência, elas passam a desenvolver mecanismos de enfrentamento mais eficientes (Chouliaras et al., 2017). Sobre este aspecto adaptativo, é possível que o instrumento utilizado no presente estudo não tenha sido suficientemente sensível para detectar com maior precisão os impactos dos sintomas nas interações sociais da criança. Por esse motivo, recomenda-se que, em futuros estudos, sejam realizadas entrevistas com a própria criança para explorar com maior profundidade tais aspectos da vida dos pacientes.
Considerações Finais
Os achados do presente estudo acrescentam importantes informações sobre as características do desenvolvimento de crianças e adolescentes acometidos por doenças inflamatórias intestinais, porque descreve as repercussões dos sintomas da doença em diferentes áreas da vida infantil. É oportuno sinalizar a necessidade de outras pesquisas nacionais, visto que a maioria dos estudos sobre as doenças inflamatórias intestinais pediátricas são de países desenvolvidos e não refletem a realidade da população brasileira. A despeito do caráter inovador, este estudo tem algumas limitações importantes que precisam ser consideradas na apreciação dos resultados. A principal diz respeito à reduzida quantidade de participantes, o que inviabiliza análises estatísticas mais sofisticadas. Outra limitação diz respeito às restrições do instrumento utilizado, que abarcou apenas uma parte das possíveis repercussões dos sintomas nas três esferas da vida examinadas.
De qualquer modo, apesar dessas limitações, este estudo revelou que os sintomas das DII afetam de maneira marcante as emoções dos pacientes pediátricos, intensificando a experiência com sentimento de tristeza, preocupação/medo e raiva/irritabilidade. Outra área afetada pela sintomatologia da enfermidade são as atividades recreativas, que, por sua vez, trazem importantes repercussões para o desenvolvimento socioemocional na infância e na adolescência. O estudo também destaca que, além dos sintomas, as características -socioeconômicas do país repercutem fortemente no absenteísmo escolar. Por fim, concluímos que o manejo adequado dos efeitos subjetivos das DII é essencial para a melhoria do atendimento ao paciente pediátrico. É fundamental que o profissional de saúde mental possa compor as equipes de gastroenterologia, com a finalidade de garantir assistência especializada e contribuir com a construção de planos terapêuticos sensíveis às necessidades psicossociais dos portadores de DII e seus cuidadores.