Introdução
Transtornos mentais comuns (TMC), denominados também de transtornos psiquiátricos menores, são definidos como quadros de transtornos mentais de menor gravidade (Tófoli et al. 2011). Esses, geralmente, mesclam sintomas depressivos, ansiosos e somáticos, sem uma base física clara e observável. Caracterizam-se por sintomas como esquecimento, dificuldade na concentração, na tomada de decisões, insônia, irritabilidade e fadiga, assim como queixas somáticas (cefaleia, perda de apetite, tremores, problemas de digestão, entre outras), todavia não abrangem transtornos psicóticos, dependência química ou transtornos de personalidade (Goldberg & Huxley, 1992).
A depressão e ansiedade são os transtornos mentais mais comuns na população mundial (Magnavita et al., 2021). A World Health Organization (WHO, 2017) estima que 4,4% da população global sofre de transtornos depressivos e 3,6% de transtornos de ansiedade. O diagnóstico de TMC não é de cunho psiquiátrico formal, mas representa custos elevados em termos de sofrimento psíquico e impacto nos relacionamentos e na qualidade de vida do sujeito, por conseguinte, comprometendo o desempenho nas atividades diárias e causando afastamento do trabalho, demanda nos serviços de saúde e prejuízos econômicos, com potencial para conduzir ao desenvolvimento de transtornos mais graves (Almeida et al., 2007).
Os TMC são morbidades que acometem uma parcela significativa dos trabalhadores no Brasil e no mundo (Baasch et al., 2020). No que tange aos trabalhadores e às organizações nas quais estes estão inseridos, os transtornos mentais e comportamentais são considerados a terceira causa de afastamento do trabalho e indicam grande probabilidade de absenteísmo (Illangasinghe et al., 2021), rotatividade no trabalho, redução de produtividade (Vries et al., 2018), maior quantidade de afastamentos (Mota et al., 2020) e insatisfação no trabalho (Souza et al., 2021).
Em trabalhadores, sua ocorrência está diretamente associada à sua situação ocupacional, bem como a fatores estressantes ocupacionais (Lucchese et al., 2014). A crise econômica implica aumento do desemprego, carga de trabalho elevada, redução de pessoal e de salários, e esses se caracterizam como importantes fatores estressantes, com impacto negativo na saúde mental (Marazziti et al., 2021).
A profissão de motorista de transporte coletivo de passageiros caracteriza-se como o profissional que dirige ônibus de empresas particulares, municipais ou interestaduais, acionando os comandos de marcha e direção e conduzindo-o no itinerário, de acordo com as regras de trânsito (Ministério do Trabalho e Emprego, 2015). Trata-se de uma atividade com potencial perigo para a saúde e o bem-estar geral (Illangasinghe et al., 2021). É considerada uma profissão desafiadora e complexa, devido à exigência de elevada atenção e concentração, alta capacidade de memorização dos itinerários a serem percorridos e grande responsabilidade, em razão de transportar vidas (Zanelato & Oliveira, 2008). As condições de trabalho dos motoristas de ônibus têm sido amplamente investigadas por pesquisadores e é alvo de preocupação por parte dos responsáveis pelos setores de transporte público, devido à baixa procura pelo trabalho no mercado, alta rotatividade e aposentadoria precoce por problemas de saúde (Illangasinghe et al., 2021).
Esse profissional desempenha um relevante papel à mobilidade urbana, pois atende às necessidades de pessoas em questões relacionadas ao trabalho, à educação ou ao lazer, na medida em que buscam ocupar menor espaço e tempo no trânsito, impactando significativamente, dessa forma, na redução de congestionamentos (Silva & Zavarize, 2017). Suas atribuições envolvem contato diário com um número elevado de passageiros, sendo submetido ao humor destes, o que lhe exige habilidade técnica e controle emocional (Alcântara et al., 2016).
Os motoristas profissionais são considerados propensos a riscos para a saúde (Serrano-Fernández et al., 2021). As condições de trabalho e os fatores psicossociais do trabalho desempenham um papel importante na explicação do bem-estar, autoavaliação geral da saúde e no desempenho dos motoristas de transporte coletivo (Alonso & Serge, 2018; Garbaccio, 2021).
Os motoristas de ônibus devem equilibrar as várias solicitações dos passageiros e da gestão, bem como seguir as regras e os regulamentos de trânsito quando estão em serviço. Desse modo, essas expectativas e exigências relacionadas ao trabalho aumentam a carga de trabalho e o estresse dos motoristas de ônibus, levando ao desgaste do trabalho e a um impacto negativo em seu bem-estar (Ching-Fu & Yuan-Chun, 2020).
A profissão de motorista de transporte coletivo de passageiros é considerada uma das mais estressantes (Silva & Zavarize, 2017). Entre os problemas de saúde que afetam esses profissionais, destaca-se o estresse, que é considerado fator de risco para várias doenças ligadas ao trabalho (Gomes et al. 2020). Diversos são os fatores de estresse identificados em motoristas de transportes coletivo, dentre os mais recorrentes estão os horários extremamente rigorosos, cobranças para manter as viagens sem atrasos, mesmo diante de inúmeros contratempos, intempéries do clima, assaltos, trânsito fatigante, atenção maior ao tráfego, engarrafamentos e/ou acidentes e agressividades oriundas dos usuários (Gomes et al. 2020), trabalhar horas extras, dormir pouco, passar pouco tempo com a família, outros compromissos não profissionais, horários de turnos e pressão de trabalho (Maynard et al., 2021).
No Brasil, a prevalência dos TMC foi investigada em motorista de transporte coletivo de passageiros e em cobradores de lotação: em Pelotas (Rio Grande do Sul), no ano de 1994; em Olinda (Pernambuco), no ano de 2002; em Campinas (São Paulo), no ano de 2007, e em Feira de Santana (Bahia), no ano de 2010. As taxas encontradas pelos estudos foram de 22,7%, 35%, 17% e 29,9%, respectivamente (Assunção & Silva, 2012).
Os TMC podem estar associados às características demográficas, às condições de vida, à estrutura ocupacional (Ludermir & Melo Filho, 2002) e a estressores ocupacionais (Sidhu & An, 2019). Os fatores associados aos TMC e motoristas de transporte coletivo de passageiros têm sido: trânsito ruim (Assunção & Silva, 2012; Rodrigues, 2015); segurança inadequada, como risco de assaltos, roubos e acidentes (Assunção & Silva, 2012); banco sem mecanismo de ajuste (Moraes et al., 2017; Sá, Gomes, & Silva, 2005); escala de trabalho (Usuche et al., 2017); baixa autonomia dos motoristas sobre a formulação das escalas de horários de trabalho, dos trajetos e horários a serem cumpridos para a sua realização (Santana, 2021; Sá & Gomes, 2005); relacionamento conflituoso com fiscais da empresa (Moraes et al., 2017; Sá, Gomes, & Silva, 2005); jornadas de trabalho caracterizadas por turnos irregulares e alternados (Sá et al., 2005), fixados pelo empregador (Maynard et al., 2021); falta de comunicação entre motorista e empresa (Usuche et al., 2017); assédio moral (Silva et al., 2020); e problemas na relação trabalho-família (Maynard et al. , 2021). Esses resultados assinalam evidências da influência do trabalho sobre o desenvolvimento dos TMC e quanto à relação entre os fatores ocupacionais e a ocorrência de tais transtornos (Assunção & Silva, 2012).
Em estudo de Assunção e Silva (2012), a prevalência global de TMC foi de 23,6%, sendo 19,2% e 28,7% em motoristas e cobradores, respectivamente. Apresentaram maiores prevalências de TMC os indivíduos do sexo feminino, os solteiros e aqueles com renda familiar superior a dois salários mínimos. Foram maiores as prevalências na faixa etária abaixo dos 40 anos, no segmento de trabalhadores com três ou mais filhos, com escolaridade superior a oito anos, que se autodeclarou branco, amarelo ou indígena, fumante, com antiguidade inferior a cinco anos na empresa e exposto a trânsito ruim ou muito ruim.
De acordo com a prevalência e os fatores associados a TMC entre motoristas de transporte coletivo de passageiros, cabe ampliar a compreensão acerca das condições de trabalho dos motoristas, bem como identificar os riscos e os estressores presentes na prática laboral associados aos TMC. Esta questão é relevante na medida em que estudo de Garbaccio (2021) identificou que motoristas apresentam uma boa autopercepção de saúde, apesar de reconhecerem fatores laborais de hábitos e ambientais desfavoráveis.
Esses profissionais cumprem um papel vital no que se refere à segurança e eficiência dos sistemas de transporte público, portanto, sua saúde e seu bem-estar são fundamentais para a mobilidade urbana (Cunradi et al., 2019). Assim, identificar e discutir o sofrimento psíquico é relevante para compreender esta realidade e desenvolver planos de ação eficazes para o cuidado em saúde mental, fortalecendo as políticas públicas existentes e construindo novas que entendam a saúde mental como um direito humano (Bezerra et al., 2021). Pelo exposto, este estudo de delineamento observacional, analítico e de corte transversal objetivou identificar os fatores sociodemográficos, laborais, riscos psicossociais e estressores ocupacionais associados aos TMC em motoristas de transporte coletivo de passageiros.
Método
Participantes
Participaram do estudo 258 motoristas de transporte coletivo de passageiros de duas empresas desse ramo, em que foram considerados os seguintes critérios de inclusão: estar em atividade profissional de motorista de transporte coletivo há pelo menos 6 meses e na mesma empresa. Todos os participantes eram do sexo masculino. A maioria dos participantes era casado (41,1%), possuía filhos (63,3%) e Ensino Médio completo (62,0%). A idade dos participantes variou entre 20 e 67 anos (M=40,70; DP = 10,922). Quanto aos dados laborais, a maior parcela dos participantes estava entre 1 e 5 anos na mesma empresa (38,8%), enquanto 29,1% estavam há mais de 10 anos na mesma empresa.
Instrumentos
1. Questionário de Dados Sociodemográficos: idade (anos), situação conjugal (com companheira(o), sem companheira(o), filhos (sim/não), escolaridade (Ensino Fundamental/Ensino Médio/Superior); 2. Questionário de Dados Laborais: tempo de profissão (anos), tempo de intervalo (menos de uma hora/mais de uma hora), período em que trabalha (manhã/tarde/noite); 3. Self-Reporting Questionnaire (SRQ-20) desenvolvido por Harding et al. (1980) e validado, no Brasil, por Mari e Willians (1986). Considerado um instrumento de screening de transtornos mentais em serviços de atendimento primário, recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), destina-se a avaliar o grau de suspeição de transtorno mental, não oferecendo diagnóstico específico do transtorno existente (Rocha, Almeida, Araújo, & Júnior, 2010). O instrumento tem 20 itens (α = 0,80) que avaliam duas dimensões (sintomas físicos - quatro itens - e distúrbios psicoemocionais - dezesseis itens). Esses são avaliados por meio de uma escala dicotômica (sim/não) para cada uma das suas questões; 4. Subescalas da Escala de Estressores Psicossociais no Contexto Laboral (Ferreira et al., 2015). As seis subescalas totalizam 31 itens: 1) Conflito e ambiguidade de papéis (cinco itens, α = 0,77), referindo-se à falta de clareza sobre as próprias funções e ao recebimento de demandas contraditórias sobre as funções desempenhadas; 2) Sobrecarga de papéis (seis itens, α = 0,71), que consiste no excesso de tarefas que o empregado é solicitado, por vezes, a desempenhar; 3) Falta de suporte social (seis itens, α = 0,77), sendo as dificuldades advindas da falta de suporte emocional no que tange a colegas e superiores no cotidiano de trabalho; 4) Falta de autonomia (cinco itens, α = 0,71), que se refere às dificuldades de planejar e tomar decisões acerca das suas próprias tarefas, controles de trabalho; 5) Conflito trabalho-família (cinco itens, α = 0,75), que avalia a percepção quanto à incompatibilidade entre as responsabilidades associadas à família e ao trabalho; 6) Pressão do grau de responsabilidade (quatro itens, α = 0,77) acerca de pessoas e equipamentos que o empregado possui no desempenho de suas funções, é avaliada por meio de uma escala de frequência de cinco pontos (zero “nunca” a 4 “diariamente”). 5. Questionário de estressores ocupacionais: elaborado, para o presente estudo, com base na literatura sobre estressores em motoristas de transporte coletivo de passageiros (Lámbarry et al., 2016; Tse & Flin, 2006; Oliveira & Pinheiro, 2007; Silve & Zavarize, 2017; Tu et al., 2021; Zanelato & Oliveira, 2008). Este possui 12 itens, que avaliam: condições ambientais (alagamentos, enchentes); condições da estrada (buracos, falta de sinalizações); condições ergonômicas da cabine; relacionamento motorista-cobrador (conflitos); relacionamento com passageiros (reclamações); relacionamento com fiscais da empresa (pressões); escala de trabalho; pressão do tempo para cumprimento do trajeto; possibilidades de assalto e roubos; congestionamentos no trânsito; acidentes (medo de se envolver em um); motociclistas e cliclistas (que não seguem normas de trânsito). Os itens foram avaliados por uma escala de cinco pontos (0 “nada estressante” a 4 “muito estressante”).
Procedimento de coleta de dados
Inicialmente, contatou-se a direção das empresas para obtenção da anuência e do apoio logístico para a realização do estudo. Após, cartazes foram colocados para divulgação do estudo e de seus objetivos. Posteriormente, foram entregues os questionários e o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) nos setores que os motoristas frequentavam, bem como os procedimentos para o preenchimento dos dados, com a orientação de que duas urnas estavam sendo disponibilizadas para que o instrumento fosse depositado em uma urna, e o TCLE, em outra. O período de realização da coleta ocorreu entre os meses de setembro a dezembro de 2018. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, sob o número CAAE: 94871018.7.000.5344.
Procedimento de análise de dados
A variável dependente foram os TMC, mensurados pelo SQR-20. Esse considerou casos suspeitos os motoristas que responderam a sete ou mais perguntas positivamente, ponto de corte baseado no estudo de Gonçalves et al. (2008).
Foram realizadas análises de regressão logística bivariada para testar a associação entre as variáveis independentes e a dependente (TMC) e as razões de chance (OR). Os dados foram analisados pelo SPSS, utilizando-se a prova de Fischer e p<0,05. As possibilidades de respostas dos instrumentos foram transformadas em variáveis categóricas dicotômicas. As subescalas da escala de Estressores Psicossociais no Contexto Laboral foram agrupadas às pontuações até o 2,50 (ponto de corte estabelecido pela mediana) para caracterizar a ausência de risco, enquanto pontuações acima de 2,50 identificavam a presença do risco. Quanto ao questionário dos estressores ocupacionais, as respostas 1 e 2 significavam ausência do estressor, e as possibilidades 3 e 4 configuravam a presença do estressor.
Resultados
A prevalência de TMC foi de 8,9% (23 motoristas). A Tabela 1 apresenta as características demográficas e laborais dos motoristas com e sem TMC. Quanto aos dados demográficos, a distribuição entre os motoristas com até 39 anos e os com 40 anos ou mais foi equivalente. A maior parte tinha companheira/o (n = 153, 55,43%) e filhos (n = 164, 59,42%). Em termos das variáveis laborais, houve um predomínio daqueles com um e cinco anos de profissão (n =100, 36,23%). A maioria trabalhava em turno diurno e noturno (n = 177, 64,13%) e contava com mais de duas horas de intervalo (n =156, 56,52%). No que tange à associação com TMC, apenas a variável tempo de intervalo associou-se ao desfecho. Entre aqueles com TMC, encontraram-se duas vezes mais chances entre aqueles com menos de duas horas de intervalo.
Característica demográfica/laboral | Com TMC | Sem TMC | OR (IC95%) | p | ||
---|---|---|---|---|---|---|
n | % | n | % | |||
Faixa etária | ||||||
40 anos ou mais | 10 | 45,5 | 112 | 50,5 | 1,00 | 0,412 |
Até 39 anos | 12 | 54,5 | 110 | 49,5 | 1,22 (0,50-2,94) | |
Situação conjugal | ||||||
Sem companheira/o | 6 | 27,3 | 91 | 39,9 | 1,00 | 0,172 |
Com companheira/o | 16 | 72,7 | 137 | 60,1 | 1,77 (0,66-4,69) | |
Filhos | ||||||
Não | 8 | 34,8 | 84 | 36,1 | 1,00 | 0,549 |
Sim | 15 | 65,2 | 149 | 63,9 | 1,05 (0,43-2,59) | |
Tempo de profissão | ||||||
Até 10 anos | 14 | 71,4 | 165 | 60,9 | 1,00 | 0,204 |
Mais de 10 anos | 9 | 28,6 | 66 | 39,1 | 1,60 (0,66-3,89) | |
Turno de trabalho | ||||||
Diurno | 8 | 34,8 | 72 | 30,8 | 1,00 | 0,427 |
Noturno e diurno/noturno | 15 | 65,2 | 162 | 69,2 | 1,20 (0,48-2,95) | |
Tempo de intervalo | ||||||
Mais de 2 horas | 10 | 43,5 | 146 | 65,8 | 1,00 | 0,031* |
Menos de 2 horas | 13 | 56,5 | 76 | 34,2 | 2,49 (1,04-5,95) |
*p ≤ 0,05
No tocante aos riscos psicossociais do trabalho, a maioria apontou que há ambuiguidade de papéis, sobrecarga de trabalho, conflito trabalho-família e pressão por responsabilidade. Inversamente, a maioria considerou que não há falta de suporte social. Em relação aos TMC, somente as variáveis falta de suporte social e falta de autonomia apresentaram significância estatística. Entre os motoristas com TMC, verificou-se uma chance quatro vezes maior entre os que sentem falta de suporte social; e três vezes maior entre os que sentem falta de autonomia (Tabela 2).
Riscos psicossociais | Com TMC | Sem TMC | OR (IC95%) | p | ||
---|---|---|---|---|---|---|
n | % | n | % | |||
Ambiguidade de papéis | ||||||
Não | 6 | 26,1 | 82 | 34,9 | 0,272 | |
Sim | 17 | 73,9 | 153 | 65,1 | 1,51 (0,57-4,00) | |
Sobrecarga de trabalho | ||||||
Não | 0 | 0,0 | 17 | 7,2 | 1,00 | 0,194 |
Sim | 23 | 100,0 | 218 | 92,8 | 3,76 (0,22-64,63) | |
Falta de suporte social | ||||||
Não | 20 | 87,0 | 227 | 96,6 | 1,00 | 0,029* |
Sim | 3 | 13,0 | 8 | 3,4 | 4,25 (1,04-17,31) | |
Falta de autonomia | ||||||
Não | 14 | 60,9 | 195 | 83,0 | 1,00 | 0,015* |
Sim | 9 | 39,1 | 40 | 17,0 | 3,13 (1,26-7,73) | |
Conflito trabalho e família | ||||||
Não | 4 | 17,4 | 52 | 22,1 | 1,00 | 0,413 |
Sim | 19 | 82,6 | 183 | 90,6 | 1,23 (0,42-3,61) | |
Pressão/Responsabilidade | ||||||
Não | 1 | 4,3 | 49 | 20,9 | 1,00 | 0,056 |
Sim | 22 | 95,7 | 186 | 79,1 | 5,79 (0,76-44,06) |
*p ≤ 0,05
Quanto aos estressores do trabalho de motorista, a maior parte não considerou estressantes as condições da estrada, o relacionamento com o cobrador ou fiscais da empresa, a escala de trabalho, as motos e os ciclistas no trânsito, nem a relação com passageiros idosos ou passageiros em geral. Os motoristas dividiram-se de maneira similar entre os que percebiam a possibilidade de assalto e roubo, os congestionamentos e os acidentes na estrada como estressores. Quanto às condições ambientais, a maioria considera estressante. Quanto aos TMC, apenas o estressor escala de trabalho associou-se, sendo que, entre os motoristas com TMC, detectaram-se quatro vezes mais chances entre aqueles que percebem a escala de trabalho como estressante (Tabela 3).
Estressores | Com TMC | Sem TMC | OR (IC95%) | p | ||
---|---|---|---|---|---|---|
n | % | n | % | |||
Condições das estradas | ||||||
Não | 14 | 60,9 | 156 | 66,4 | 1,00 | 0,375 |
Sim | 9 | 39,1 | 79 | 33,6 | 1,26 (0,52-3,06) | |
Relacionamento com cobrador | ||||||
Não | 17 | 73,9 | 187 | 79,6 | 1,00 | 0,343 |
Sim | 6 | 26,1 | 48 | 20,4 | 1,37 (0,51-3,67) | |
Relacionamento com fiscais da empresa | ||||||
Não | 15 | 65,2 | 174 | 74,0 | 1,00 | 0,247 |
Sim | 8 | 34,8 | 61 | 26,0 | 1,52 (0,61-3,76) | |
Escala de trabalho | ||||||
Não | 7 | 30,4 | 152 | 64,7 | 1,00 | 0,002** |
Sim | 16 | 69,6 | 83 | 35,3 | 4,18 (1,65-10,58) | |
Possibilidade de assalto | ||||||
Não | 11 | 47,8 | 121 | 51,5 | 1,00 | 0,453 |
Sim | 12 | 52,2 | 114 | 48,5 | 1,15 (0,49-2,72) | |
Possibilidade de roubo | ||||||
Não | 12 | 52,2 | 126 | 53,6 | 1,00 | 0,533 |
Sim | 11 | 47,8 | 109 | 46,4 | 1,05 (0,44-2,49) | |
Congestionamentos | ||||||
Não | 12 | 52,2 | 133 | 56,6 | 1,00 | 0,423 |
Sim | 11 | 47,8 | 102 | 43,4 | 1,19 (0,50-2,81) | |
Acidentes na estrada | ||||||
Não | 10 | 43,5 | 125 | 53,2 | 1,00 | 0,251 |
Sim | 13 | 56,5 | 110 | 46,8 | 1,48 (0,62-3,50) | |
Motos no trânsito | ||||||
Não | 15 | 65,2 | 161 | 68,5 | 1,00 | 0,455 |
Sim | 8 | 34,8 | 74 | 31,5 | 1,16 (0,47-2,85) | |
Ciclistas no trânsito | ||||||
Não | 16 | 69,6 | 172 | 73,2 | 1,00 | 0,437 |
Sim | 7 | 30,4 | 63 | 26,8 | 1,19 (0,47-3,03) | |
Condições ambientais | ||||||
Não | 6 | 26,1 | 57 | 24,3 | 1,00 | 0,509 |
Sim | 17 | 73,9 | 178 | 75,7 | 1,10 (0,41-2,92) | |
Relação com passageiros idosos | ||||||
Não | 13 | 56,5 | 173 | 73,6 | 1,00 | 0,070 |
Sim | 10 | 43,5 | 62 | 26,4 | 2,14 (0,89-5,14) | |
Relação com passageiros em geral | ||||||
Não | 17 | 73,9 | 176 | 74,9 | 1,00 | 0,545 |
Sim | 6 | 26,1 | 59 | 25,1 | 1,05 (0,39-2,79) |
**p ≤ 0,01
Discussão
O presente estudo buscou identificar os fatores sociodemográficos, laborais, riscos psicossociais e estressores ocupacionais associados aos TMC em motoristas de transporte coletivo de passageiros. Os resultados indicam que, entre as variáveis laborais, os motoristas que tinham menos de duas horas de intervalo estavam mais propícios a desenvolver os TMC.
A Lei nº 12.619/2012 refere-se ao trabalho efetivo como o tempo que o motorista se mantém à disposição do empregador, excluídos os intervalos para refeição, repouso, espera e descanso. Ao motorista profissional, fica assegurado o intervalo mínimo de uma hora para refeição, além de intervalo de repouso diário de onze horas a cada vinte e quatro horas e descanso semanal de trinta e cinco horas.
Devido à grade de horários de inúmeros itinerários, muitas vezes, esse intervalo alonga-se por até 4 horas, fazendo com que o motorista fique na rodoviária ou em local indicado pela empresa. Nesse período, o profissional costuma fazer suas refeições ou lanches e descansar (Battiston et al., 2006). Como o pouco tempo de intervalo relaciona-se com a chance de TMC, pôde-se entender que os motoristas aproveitam esses momentos para socializar com colegas, criando um espaço de lazer e companheirismo. A profissão do motorista é bastante solitária, pois, mesmo transportando muitas pessoas, ele fica isolado em sua cabine.
Segundo Battiston et al. (2006), a relação dos motoristas com os colegas de trabalho, tanto cobradores quanto outros motoristas, é amistosa ao compartilharem as mesmas condições de trabalho e solidarizarem-se com os colegas. O suporte social corresponde à existência ou disponibilidade de pessoas que se preocupam e valorizam a pessoa e nas quais ela possa confiar (Sarason, et al., 1983). Nesse sentido, o suporte social é um fator de proteção para esses profissionais, que, em face das jornadas extensas, estão expostos a muitos fatores de risco, como sonolência, estresse, hábitos não saudáveis, doenças e complicações médicas (Crizzle et al., 2017).
A falta de suporte social foi identificada como um fator de risco para TMC entre os participantes do presente estudo. A falta de suporte social pode, em parte, estar relacionada pela característica do trabalho dos motoristas de ônibus, ou seja, trabalham, a maior parte do tempo, isolados de seus colegas e superiores. Os motoristas relatam a falta de informações e de suporte por parte das gerências e do setor de manutenção da empresa, além da falta de reconhecimento pelo seu bom desempenho (Kompier, 1996). O suporte social alivia o estresse e desenvolve o bem-estar (Gable & Bedrov, 2022).
Outro risco psicossocial associado ao TMC foi a falta de autonomia. Essa pode ser compreendida pelo fato de os motoristas não terem controle sobre a formulação de suas escalas de horários, das linhas que fazem e dos horários a serem cumpridos para cada trajeto, além de não terem controle sobre qual veículo utilizarão ou com qual cobrador trabalharão (Rodrigues, 2015; Sá & Gomes, 2005). Autonomia é o grau de liberdade que o trabalhador tem para realizar o planejamento e a execução do seu trabalho (Morgeson et al., 2005) e está positivamente associada ao engajamento no trabalho e à saúde geral (Dorssen-Boog et al., 2020).
Assim, o fato de os motoristas sentirem falta de autonomia e de não terem controle sobre questões importantes de seu trabalho pode levá-los ao adoecimento (Sá & Gomes, 2005). A ausência de controle e o grau de autonomia dos trabalhadores sobre suas condições e -organização do trabalho têm explicado diversos problemas de saúde, diminuição da produtividade e da capacidade laboral precocemente (Costa, 2003). O controle do trabalhador sobre o trabalho e a sua importância social minimizam o sofrimento psíquico, reforçam o sentimento de autonomia e valor social no trabalho (Mishima-Santos et al., 2020).
Em relação aos estressores, apenas a escala de trabalho associou-se aos TMC. Esse resultado pode estar relacionado às características da organização do trabalho das empresas de transporte, visto que essas têm extensa e instável carga horária de trabalho para o motorista, devido à prestação do serviço ocorrer também em fins de semana e feriados, ou ainda em razão de horários que se iniciam no turno da manhã e encerram-se na madrugada (Battiston et al., 2006). O horário de trabalho estabelecido pelas empresas é a maior fonte do estresse ocupacional de motoristas (Oliveira & Pinheiro, 2007). Em consequência aos períodos de descanso e interjornadas exigidas pelas leis trabalhistas brasileiras, muitos motoristas não têm horários efetivos, tendo dificuldades em organizar a sua rotina (Oliveira & Pinheiro, 2007; Silva & Zavarize, 2017; Zanelato & Oliveira, 2008).
Os motoristas também são obrigados a cumprir escala de viagens com horários preestabelecidos, independentemente das condições de trânsito e meteorológicas ou qualquer outro empecilho que possa interferir no cumprimento da tabela de horários (Souza et al., 2016; Santana, 2021). É importante salientar que todos esses fatores podem contribuir para um desempenho menos satisfatório do trânsito, assim como o aparecimento de doenças ocupacionais (Zanelato & Oliveira, 2008).
Conclusão
Os resultados do estudo revelam um perfil de risco constituído por variáveis laborais (pouco tempo de intervalo), psicossociais (falta de suporte social e falta de autonomia) e de estressores ocupacionais (escala de trabalho), confirmando que fatores ambientais e contextuais são importantes para desenvolvimento dos TMC, conforme Goldberg e Huxley (1992).
Como forças do estudo, destaca-se a utilização de um consistente modelo teórico e de instrumentos adaptados para o contexto brasileiro que obtiveram adequados índices de confiabilidade na amostra investigada. O estudo apresenta limitações que devem ser consideradas na leitura de seus resultados. A primeira diz respeito ao delineamento transversal, que impossibilita inferir conclusões em termos de causalidade entre as variáveis (Carlson & Morrison, 2009); a segunda é no que tange à característica da amostra não probabilística, que não permite a generalização de seus resultados; e a terceira refere-se ao “efeito do trabalhador sadio”, viés característico em estudos transversais em epidemiologia ocupacional que, muitas vezes, exclui o possível doente (McMichael, 1976). Essa é uma situação que pode subestimar o tamanho dos riscos identificados, pois é possível que os profissionais mais afetados estejam afastados do trabalho, não tenham sido acessados pela técnica de estratégia de coleta de dados ou recusaram-se a participar.
Desse modo, sugere-se a realização de outros estudos com amostras probabilísticas e delineamento longitudinal de métodos mistos de múltiplas fontes, permitindo, com isso, ampliar a compreensão dos padrões comportamentais e elaboração de modelos explicativos e preditivos de variáveis investigadas. Nessa perspectiva, ampliar-se-ia o conhecimento sobre como se desenvolve, ao longo do tempo, o processo de estresse ocupacional e sua relação com os sintomas que caracterizam os TMC e o poder preditivo e a estabilidade das variáveis que compuserem o modelo.
Ao ampliar o conhecimento sobre TMC em motoristas de transporte coletivo de passageiros, é possível pensar ações para a prevenção desse tipo de adoecimento ocupacional. Quanto aos estressores ocupacionais, sugerem-se ações, por parte da gestão, como melhor organização das escalas de trabalho, no sentido de possibilitar a esses profissionais darem conta do equilíbrio entre os horários de trabalho e a vida pessoal/familiar. Essa estruturação da escala também permitiria uma sistematização do maior intervalo de trabalho aos motoristas, para que possam ampliar o tempo de interação com os colegas de profissão, trabalhando o suporte social e, também, visando ao descanso corporal necessário para a recomposição parcial do desgaste físico e psicológico, considerando que o pouco tempo de intervalo se associou a TMC. Destaca-se que as políticas desenhadas para melhorar a escala e os intervalos poderiam não apenas minimizar aspectos negativos do trabalho, mas também funcionar como fatores de proteção.