Introdução
A ofensa sexual contra crianças é a prática de qualquer ato libidinoso coercivo e/ou fraudulento com crianças, a fim de satisfazer a lascívia individual ou de terceiros. Para ser caracterizada como tal, aquele que ofende sexualmente tem de estar em posição desigual de poder em relação à vítima, seja devido à sua idade, seja em razão do seu estágio de desenvolvimento (World Health Organization, 2017). Na legislação brasileira, o estupro de vulnerável ocorre quando praticado contra crianças ou adolescentes menores de 14 anos, independentemente de qualquer consentimento prévio, com pena de reclusão de oito a 15 anos (Presidência da República, 2009). A ofensa sexual é considerada como um problema de saúde pública (World Health Organization, 2017), que envolve várias dimensões de vitimizações, caracterizando uma situação na qual um adulto com maior poder que uma criança ou adolescente vale-se dessa condição para impor sua vontade na busca de satisfação sexual para si ou para terceiros. O atendimento e a atenção às vítimas, criança e adolescente está preconizado não somente no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (Presidência da República, 1990), mas também no Plano Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes (Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, 2013). Esta ação se dirige à necessidade de interrupção do circuito da violência, de se observar a avaliação para evitar a reincidência do ato violento e de proteção às vítimas, sendo importante que se garantam as duas dimensões de responsabilização e de atendimento (Costa, Penso et al., 2018). Portanto, o objetivo deste texto é identificar, nos conteúdos de falas de homens adultos autores de ofensa sexual contra crianças e adolescentes, as teorias implícitas (representações mentais) sobre a masculinidade, a mulher e a criança/adolescente.
No Brasil, o último levantamento da Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS), referente ao período de 2011 a 2017, apontava 184.524 casos de violência sexual contra crianças e adolescentes (Ministério da Saúde, 2018). No último Informe Epidemiológico do Núcleo de Atenção, Prevenção e Atenção às Violências (NEPAV) do Distrito Federal (DF) (Secretaria de Estado de Saúde do DF, 2020), foram identificados 213 casos de violência sexual contra crianças e adolescentes. Este cenário agrava-se ainda mais ao se considerar a subnotificação expressiva da violência sexual, principalmente no que se refere à vitimização de meninos (Hillis et al., 2016; Said & Costa, 2019). A atenção em saúde ao autor da ofensa sexual pode ser vista como uma estratégia na redução de sua prevalência, prevenindo reincidência (Debona et al., 2018). No Brasil, as políticas públicas destinadas a este sujeito ainda se restringem ao contexto penal (Meneses et al., 2016), negligenciando a ofensa sexual como uma questão (também) de saúde, e não apenas de segurança pública. Consequentemente, os estudos sobre o ofensor sexual brasileiro e suas particularidades, neste contexto sociocultural, ainda são escassos (Costa, Cavalcante et al., 2018b; Nogueira et al., 2020).
Para a efetivação de intervenções junto ao autor de ofensa sexual, faz-se necessário conhecer e compreender os fatores clínicos envolvidos no cometimento da ofensa sexual contra crianças e/ou adolescentes (Christensen, 2017; Clayton et al., 2018; McKillop, 2019). As distorções cognitivas têm sido investigadas como fatores-chave na etiologia da ofensa sexual contra crianças (Lordan, 2020; Szumski et al., 2018). Ward et al. (2006) postulam que as distorções cognitivas podem ser racionalizações forjadas pelo autor da ofensa sexual, com fins de justificação, minimização ou negação do ato sexual, funcionando como mecanismo de defesa; ou derivarem de esquemas mentais centrais e subjacentes, denominados “teorias implícitas”. As distorções cognitivas são crenças desadaptativas preexistentes à ofensa sexual. Essas crenças derivam das “teorias implícitas” (Dangerfield et al., 2020), que são esquemas de representação mental formados a partir da assimilação de experiências individuais em associações mentais específicas (Ward, 2000). Na violência sexual, o indivíduo que ofende sexualmente supõe propriedades (desejos, intenções, atitudes) de suas vítimas a partir de suas próprias representações mentais acerca delas (Ward, 2000).
Na pesquisa de Nogueira et al. (2020) com autores de ofensa sexual da região Centro-Oeste do Brasil, foram identificados conteúdos de falas que se referiram às crianças como seres sexuais e à incontrolabilidade do desejo sexual masculino. O termo “gênero” refere-se aos papéis sociais que definem e privilegiam performances distintas entre homens e mulheres com base na construção ideológica de diferenças sexuais entre ambos os sexos (Zanello, 2018). No Brasil, questões de gênero vêm sendo abordadas na intervenção junto ao ofensor sexual de crianças/adolescentes (Nogueira et al., 2020; Meneses et al., 2016), demonstrando ser esse um elemento-chave na etiologia da ofensa sexual (Passarela et al., 2017). No estudo, objeto deste texto, parte-se do pressuposto de que as teorias implícitas referentes a crianças/adolescentes e à sexualidade masculina envolvem compreensões sobre o que é ser homem ou mulher. Apesar das teorias implícitas em si não serem diretamente acessíveis ao indivíduo ou a um interlocutor, elas podem ser inferidas a partir de conteúdos de falas e comportamentos que revelem interpretações de situações sociais (Szumski et al., 2018).
Método
Contexto da pesquisa
Este é um estudo de natureza qualitativa-descritiva acerca da compreensão de como as teorias implícitas estão presentes em falas de homens adultos que ofenderam sexualmente crianças e/ou adolescentes, durante a participação em uma intervenção psicossocial grupal que é oferecida em uma unidade de saúde pública brasileira. A pesquisa qualitativa busca análise documental para coleta de dados, por meio de diários de observação referentes ao registro de dois grupos ocorridos em 2018 e 2019. Os diários de observação – ou diários de campo – são materiais nos quais o pesquisador toma notas, registrando acontecimentos de maneira literal, reflexões pessoais, insights, entre outros (Yin, 2014). Na análise documental, são extraídos sentidos de documentos primários ainda não analisados, apresentando a vantagem de utilizar dados brutos íntegros (Cechinel et al., 2016). O uso da pesquisa documental se deu principalmente devido à dificuldade de acesso aos ofensores sexuais por outras vias, já que eles se recusam a participar de pesquisas sobre ofensa sexual, pois entendem que assim estariam admitindo o seu cometimento (Nogueira et al., 2020). A negação da ofensa sexual cometida ocorre tanto porque não há reconhecimento do que realmente aconteceu quanto por receio de penalizações adicionais, caso admitam a autoria.
Contexto da intervenção psicossocial grupal
Os homens adultos autores de ofensa sexual são encaminhados à unidade de saúde, pela justiça (vara criminal meio fechado ou aberto) ou por outros serviços de saúde (ambulatórios de psiquiatria, gerontologia, urologia), passando inicialmente por um período de avaliação multidisciplinar pela Psicologia, pelo Serviço Social e pela Psiquiatria. São realizadas entrevistas individual e familiar, a fim de averiguar a configuração da ofensa cometida (se intra ou extrafamiliar); o contexto psicossocial do autor, bem como de sua família; suspeita de pedofilia ou qualquer outro transtorno mental. Após esta avaliação, os autores são direcionados para atendimento individual e/ou grupal. O atendimento grupal compõe oito sessões que ocorrem a cada duas/três semanas, com os seguintes temas predeterminados: integração grupal, estigmas, violências sofridas, gênero, sexualidade, pensamentos de risco e proteção, desejo sexual por crianças, projeto de futuro. A equipe de profissionais é composta por um psicólogo e uma psicóloga, uma assistente social e um psiquiatra.
Participantes
A caracterização geral da clientela atendida pela unidade de saúde desta pesquisa já foi traçada. São, em sua maioria, homens negros e pardos (conforme autodeclaração) (Ministério da Saúde, 2017), de até 60 anos de idade, com baixa escolaridade, trabalhando em subempregos e vivendo em periferias de capital da região Centro-Oeste do país. Eles são encaminhados pelas Varas de Execuções Penais (regime fechado e aberto) regionais e já cumpriram – ou ainda estão cumprindo – medidas de transação penal ou reclusão. Trata-se, portanto, de uma população sentenciada. Suas vítimas são predominantemente meninas na faixa dos 11 anos de idade e com algum grau de aproximação com o autor (enteada, vizinha, sobrinha, entre outros) (Penso et al., 2016).
Neste texto, as informações coletadas referem-se aos participantes de dois grupos ocorridos no segundo semestre de 2018 e no segundo semestre de 2019, sendo que cada grupo reuniu oito participantes, em um total de 16. Pode-se caracterizá-los como heterossexuais e pardos, em sua maioria; com idade entre 28 e 59 anos; renda pessoal de R$ 600,00 a R$ 2.000,00; casados ou em união estável e solteiros; e a maioria relatou não fazer uso de álcool em excesso, exceto um deles. Em relação à escolaridade, possuíam ensino fundamental incompleto, ensino médio completo, médio incompleto e pós-graduação. A maioria estava em cumprimento de pena alternativa e menos da metade cumpriu pena privativa de liberdade. Em relação às vítimas, foram do gênero masculino e feminino, com idades entre cinco e 16 anos, relacionamento de vizinhança, parentalidade e família extensa.
Coleta das informações
Foram consultados dois diários de campo, referentes a dois grupos, selecionando-se informações relacionadas às representações dos participantes sobre a masculinidade, a mulher e criança/adolescente. Nessa unidade de saúde, como rotina do atendimento, as observações são realizadas desde o princípio da criação da unidade. Esta indicação se deu em função da grande novidade que se constitui o atendimento aos adultos que cometeram ofensa sexual e da perspectiva de que esse diário de campo constante forneceria subsídios para a melhoria da atuação profissional. Os participantes são informados desde o primeiro encontro sobre a observação que é realizada e têm liberdade para conferir as anotações feitas, mas raramente o fazem. As observações são utilizadas com fins de aprimoramento da intervenção psicossocial grupal e escrita de artigos científicos ou pesquisas de mestrado e doutorado. Nos diários, priorizou-se a coleta de conteúdos de falas dos ofensores que revelassem suas crenças acerca das categorias “masculinidade” (o ser homem), “mulher” e “criança/adolescente”.
Análise das informações
Utilizou-se a análise temática, que é um método qualitativo em que os dados são organizados em padrões, a partir de conceitos centrais. Neste estudo, foi realizada análise temática dedutiva (Braun & Clarke, 2019), já que o processo de codificação e elaboração de temas foi orientado pelos interesses teóricos dos pesquisadores em relação às teorias implícitas referentes às três entidades (masculinidade, mulher e criança/adolescente). Inicialmente, foi feita leitura exaustiva de todo o material compilado e, em seguida, os dados brutos foram codificados e agrupados de acordo com semelhanças latentes (significados) e semânticas. Após essa fase, os códigos foram agregados entre si, conforme núcleos de sentido relacionados ao objeto de estudo: as teorias implícitas referentes à masculinidade, à mulher e à criança/adolescente. Foram formados temas iniciais, que foram revisados e refinados até se tornarem temas abrangentes o suficiente, ou seja, que englobassem todos os temas iniciais e seus respectivos códigos. Assim disposto, os temas finais foram configurados a partir das categorias já mencionadas: masculinidade, mulher e criança/adolescente. Estas categorias receberam títulos: O Domínio do Homem/Pai sobre o Corpo das Mulheres e Crianças/Adolescentes; O Homem Predador Sexual; As Meninas Desejam Sexualmente.
Resultados e Discussão
Nesta seção, buscou-se dar visibilidade à construção das crenças e imposições de pensamento que são produzidas na vida social e familiar, as quais dão maior poder e dominação ao homem: gênero feminino submetido e dominado. Concepções como ser predador, ser dominador, são enfatizadas e mantidas à custa de inversão de responsabilidade social e sendo auxiliadas por aspectos da teoria implícita que sustentam o cometimento da violência e sua continuidade (Ó Ciardha et al., 2016; Ward, 2000). Faz-se necessário, ainda, agregar formas de pensamentos aprendidos e mantidos por preconceitos de gênero, que atuam em ampliação das crenças características de sociedades machistas, como a do Brasil, por exemplo (Marshall, 2018). Apresentam-se algumas falas dos ofensores no intuito de ilustrar o conteúdo original que resultou nas interpretações e na construção dos temas.
Tema final 1 – O Domínio do Homem/Pai sobre o Corpo das Mulheres e Crianças: “Sexualidade não é assunto para mãe. É para pai”. Este tema engloba sentidos referentes à dominação dos homens sobre os corpos das mulheres e crianças/adolescentes. Os sentidos elaborados a partir das falas expressam o “ser homem” relacionado à virilidade e ao poder. A virilidade surge em aspectos como ser o provedor, ser forte e não ser “bixa” – termo utilizado pelos participantes. O poder se mostra como a crença que apoia e sustenta a percepção de que os encontros heterossexuais são inerentemente adversários, as mulheres procurando enganar os homens sobre o que realmente desejam. O poder surge como uma urgência para que as necessidades dos homens sejam observadas (Ward & Beech, 2016). “. . . Foi violentado por homem ou mulher?” , “. . . se for mulher não fala que foi violentado, mas que perdeu a virgindade, né?”. As explicações (cognições) de nível superficial constituem-se em um conjunto de esquemas utilizados para explicar, prever e interpretar os fenômenos interpessoais, transformando-os em luta de poder. Esses esquemas podem ser considerados como “teorias implícitas” que ajudam os ofensores sexuais a explicar e interpretar as ações dos outros. Estas crenças provavelmente foram formadas durante a infância e permanecem exercendo seus efeitos por meio da filtragem de informações perceptivas, um sistema recursivo de percepção e memória (Lordan, 2020; Ward & Beech, 2016).
“. . . Símbolo de homem pra mim foi meu pai porque ele trabalhava . . . mas minha mãe também trabalhava”. Esta fala é muito interessante porque a ideia inicial seria enaltecer o pai como trabalhador, e não “vagabundo”. Em seguida, como se ampliasse a percepção e a memória, há o acréscimo de que a mãe também trabalhava. Em um momento da construção de um cartaz:
“. . . aqui o homem com futebol, carro. Eu vejo isso como uma ilusão, que homem não é só isso. Os homens estão dentro do carro. O jarro de flores é dela”.
“. . . a mulher sonha mais com a casa própria, o homem sonha mais com o carro”.
Uma percepção de gênero que caracteriza as relações e que são suportadas por ações e estímulos sociais (Javaid, 2018). “. . . Pega todas que dá”. O poder está relacionado ao homem “garanhão”, que tem várias mulheres ao seu dispor. Em relação às mulheres, alguns participantes acreditam que elas devem se recatar, sendo representadas em papéis/ espaços privados, de cuidado doméstico e vaidade consigo mesmas. O recato sexual inclui se “preservar” e se reclusar sexualmente, pois sexo não é assunto para mulheres. Todos os participantes concordam.
“Essa mulher ela também tá querendo e demonstrando que mulher não é só isso, cuidar da casa. Ela é uma supermulher, porque ela tá vencendo sobre o machismo. Ela é mãe, guerreira, trabalhadora”.
“Sexualidade não é assunto para mãe. É para pai”.
A ideia de dominação sexual do corpo feminino está conectada aos estereótipos de gênero, tanto na masculinidade quanto na feminilidade. O roteiro cultural a ser seguido na masculinidade é de que ser homem é exercer poder e controle sobre outras pessoas, como outros homens, mulheres, crianças e adolescentes que estão em situação de menor poder ou de vulnerabilidade (Cossins & Plummer, 2018; McPhail, 2015). A objetificação da mulher ocorre de duas maneiras: sexual e doméstica, nas figuras da mulher vista como “puta” ou da mulher que deve servir ao seu marido, inclusive sexualmente. Uma vez que “ser homem” está relacionado à virilidade e ao poder, alguns homens podem expressar este estereótipo cometendo atos de cunho sexual não consentidos (Oliveira et al., 2020). Em relação ao poder, os homens são mais homens quando expressam agressividade.
“. . . Que que o pai dele falou com ele sobre sexo?”
“Eu acho que pega todas que dá”.
“E a mulher que não quer transar?”.
“A gente faz jogo também, dá o troco”.
“No meu segundo casamento, a mulher não queria. Aí acabei traindo ela e fiz outra filha na rua”.
No que se refere às crianças, os sentidos aludem a representações de um ser sem direitos e espaço de fala, sob posse do pai/figura de autoridade. “Diz que antigamente o trabalho infantil não era considerado violência. Agora, até empurrão na criança já é”.
Tema final 2 – O Homem Predador Sexual: “Se o homem não arruma uma mulher, é ‘viado’”. As questões abordadas neste item destacam a necessidade de o homem apresentar, perante seus pares, uma virilidade sexual ativa e adequada ao esperado pela figura masculina hegemônica. Para ser aceito em sua masculinidade (“homem de verdade”), os homens têm de se relacionar sexualmente com as mulheres, de preferência com mais de uma, mantendo um resultado satisfatório e ainda se vangloriando de suas conquistas, ao contar para outros homens sobre seu desempenho sexual (McPhail, 2015). A representação desse papel de homem se mostra necessária na sociedade, pois, se o homem não se apresenta como másculo, dominador, sexualmente ativo, forte e trabalhador, pode não ser considerado homem. Então, os homens “não podem” negar uma relação sexual, e se, em especial, a mulher estiver “provocando”, devem aceitar; caso contrário, são alvo de chacota, considerados frouxos, menos homens. Essa situação pode ser exemplificada pelas frases: “Se o homem não arruma uma mulher, é ‘viado’”; “Como que o cara vê um pecado daquele e diz que não?”; “Já levaram nome de frouxo? [demais participantes do grupo respondem que sim]”; “A menina tá te provocando”.
A negação em manter uma relação sexual com uma mulher implica consequências, como “julgamento” e “rebaixamento” do próprio status social diante do próprio grupo de “amigos”, além de ficar “malvisto” pela mulher que foi “rejeitada”: “Aí fala que vai falar pras amigas”. Entende-se que há uma escolha a ser feita pelos homens, no sentido de aceitar ou não esse papel imposto pela cultura. Ao mesmo tempo, compreende-se como é difícil e lento o tempo para que todos compreendam o significado que a cultura exerce na formação dos comportamentos das pessoas (Javaid, 2018). Não se está generalizando esses comportamentos e consequências para todos os homens, mas se está apresentando essa configuração que aparece na maioria dos relatos dos homens participantes deste estudo.
Os papéis de homem e de mulher desenvolvidos na sociedade são uma questão cultural de gênero que implicam a expressão da sexualidade das pessoas (Hyde & DeLamater, 2017). Aprende-se socialmente que os homens devem ser dominadores e sexualmente ativos, de forma heterossexual, e que o relacionamento com crianças não é adequado e, quando ocorre, é silenciado, perpetuando um segredo (McPhail, 2015; Sullivan & Sheehan, 2016). Ao mesmo tempo que a ofensa ocorre de forma velada, são desenvolvidas justificativas para o cometimento do ato. Homens que cometeram ofensa sexual contra crianças e adolescentes buscam manter o ato sob segredo pela não permissão social para tal ação. Entretanto, quando há a revelação, fornecem justificativas baseadas em suas crenças, que explicam o ato cometido (Ó Ciardha et al., 2016). Independentemente de qualquer uma dessas justificativas, a lei brasileira não permite relações sexuais com menores de 14 anos, ainda que haja “consentimento” (Presidência da República, 1940) (Código Penal Brasileiro). A vítima pode até ter “aceitado” a relação, ou não ter negado, porém compreende-se que ela ainda não desenvolveu capacidade para discernir o que é ou não uma relação sexual adequada, ainda mais com um adulto.
As reproduções das distorções cognitivas também ocorrem nas relações familiares, e os casos de ofensa sexual intrafamiliar apresentam esta configuração de crédito na palavra do perpetrador adulto e de descrédito na palavra da vítima criança/adolescente (Javaid, 2018). A falta de controle do desejo sexual também foi um aspecto que se destacou sobre o cometimento da ofensa: “Um desejo sexual incontrolável por crianças e adolescentes e pergunta o que fazer”; “Conscientizar para não chegar ao ato. O desejo todos têm, cabe a cada um se controlar”. Nestas falas, pode-se observar o desejo incontrolável como forma de justificar o ato cometido. Este desejo pode ser sentido, porém, quando se concretiza, torna-se uma violência e, como explicitado nas falas, é importante controlá-lo o quanto antes. A necessidade de se sentir homem, dominador, com poder e com excelente desempenho sexual é fator cultural que permite que a ofensa ocorra, além do desenvolvimento do desejo por meninas mais novas, que aumenta as oportunidades de ofensa, considerando-se a vulnerabilidade presente em crianças e adolescentes (McPhail, 2015; Sullivan & Sheehan, 2016). Esses aspectos são partes de um conjunto multifatorial de fenômenos que contribuem para o cometimento da ofensa sexual, sendo imprescindível atentar para cada situação e compreender, de forma contextualizada, como ocorreu o ato (Sullivan & Sheehan, 2016). O pano de fundo são fatores históricos, sociais e culturais que constroem as concepções pessoais, como os papéis de gênero. Cabe lembrar as especificidades inerentes a cada caso, a fim de proporcionar uma intervenção efetiva para interrupção da violência.
Outro aspecto que se destacou nos relatos desses homens foi sobre a iniciação sexual precoce, que ocorreu com a maioria deles. A relação sexual apareceu como aspecto constituinte da masculinidade, o marco diferencial entre o menino e o homem, sendo comum os participantes relatarem relações sexuais com profissionais do sexo como ritual de iniciação sexual masculino, como no relato: “Com uns 14 anos meu pai me levou em um puteiro. Ele falou, vai lá”. A primeira relação sexual do homem é vista como um rito de passagem de menino para homem (Edley, 2017). Em geral, os relatos mostram que essa iniciação sexual é precoce, no início da adolescência, e ocorre com mulheres mais velhas, adultas, profissionais do sexo (Nogueira et al., 2020). Além disso, quem coordena essa iniciação são parentes próximos a esse homem adulto, em sua adolescência. Muitas vezes, esses adolescentes não estão prontos para a relação sexual, mas sentem que são obrigados a “obedecer”, pois querem se “tornar homens”. A iniciação sexual precoce se apresenta também como um aspecto cultural, em que meninos precisam virar homens tendo relações sexuais com mulheres. Observa-se que grande parte das primeiras relações sexuais dos homens/meninos pode ser considerada como violência sexual, no sentido de que eles são ainda crianças, e a relação sexual ocorreu com mulheres adultas. Esses homens, apesar de não terem significado esta experiência como algo violento e enaltecerem a situação como algo positivo, durante a reflexão mantida em grupo, acabam por perceber que foi também uma circunstância que trouxe sofrimento. E, mais importante, que foram condicionados a terem de se submeter à situação por questões culturais do papel de homem, as quais são construídas e passadas a cada geração (Nogueira et al., 2020).
Tema final 3 – As Meninas Desejam Sexualmente: “Há uma pré-adolescente bem ali. Como ela é?”. Embora este texto não trate sobre pedofilia, faz-se necessário integrar princípios que definem a pedofilia e que também permeiam os comportamentos dos ofensores sexuais, mesmo que as ofensas sexuais oportunistas (caso dos participantes deste texto) não sejam vistas como conduta pedofílica (Seto, 2012). A conduta pedofílica é um interesse prioritário por manter relações sexuais com crianças, sendo que, atualmente, o termo preferencial é “indivíduo com interesse pedofílico” (Seto, 2012). Seto (2012) questiona que não se sabe de nenhum caso de uma criança que tenha feito um pedido, ou uma indicação comportamental, de interesse por manter relação sexual com um adulto, de forma espontânea e natural. Sendo assim, o subtítulo dado a este tópico já pressupõe uma distorção cognitiva presente nos discursos dos adultos ofensores, em uma tentativa de justificarem a ofensa sexual.
As falas dos ofensores escolhidas como exemplos referem-se às crianças do gênero feminino como seres sexuais, capazes de provocar sexualmente um adulto, com discernimento de sedução e possibilidade de dominação do ofensor. Além de contrariar a noção anteriormente questionada por Seto (2012), compreende-se que esta inversão de papel implica que o ofensor se veja como vítima, justificando uma posição de falta de condições de reação. Connolly (2004) aponta que existem vários caminhos para a construção das distorções cognitivas, um deles é a criação de um roteiro plausível e convincente, para si mesmo e para o outro, a sociedade e os pares. O desenvolvimento da distorção cognitiva, com base na sedução feminina, tem início muito precocemente na infância e encontra eco nos valores sociais baseados em preconceitos de gênero, o homem viril, forte e a mulher possuindo somente a arma da sedução para fazer frente a esta diferença de poder. Novamente, o homem é visto como vítima, de forma ainda mais insidiosa e plena de subterfúgios (Depraetere et al., 2018). “. . . às vezes ela sai de toalha e não significa nada para ela, não tem malícia . . . e às vezes você que tá vendo algo”.
Na verdade, esta inversão de papel de sedutor auxilia os ofensores com dificuldades de estabelecer relações de intimidade com pessoas adultas, diminuindo a ansiedade e preocupação com o estabelecimento de vínculos afetivos (Nogueira et al., 2020), quando se constrói uma relação intensamente sexualizada em vez de afetiva. Outra perspectiva é a criação de um roteiro de conduta sexual desviante já existente e que se normaliza nas relações ambientais favorecedoras desta falsa noção (Connolly, 2004). Trata-se de um indivíduo que teve a experiência de ser iniciado na vida sexual de maneira muito precoce, sem que a percepção da violência presente nesta situação tenha sido conscientizada (Connolly, 2004; Nogueira et al., 2020). As condutas sexuais desviantes são vividas de forma muito precoce, sem orientação nem supervisão parental ou de adultos. Estas experiências podem ter continuidade e se constituírem em uma tentativa de criar imagens mentais boas que permaneçam (Connolly, 2004). A dificuldade de manter intimidade emocional afetiva com um par adulto induz a uma posição de dominação altamente hierarquizada, diminuindo assim a ansiedade de relação com um igual. A configuração desta circunstância soma iniciação sexual precoce, presença de preconceitos de gênero nas comunicações familiares e sociais, existência de crenças e conceitos míticos dentro dos grupos de pertencimento (Beech & Ward, 2004; Ward & Beech, 2016).
A sexualização do corpo infantil surge de duas formas: na adultização e no desejo por meninas “novinhas”. Há falas aludindo ao corpo das meninas adolescentes, que são semelhantes ao corpo de uma mulher adulta e, em contrapartida, há aqueles que erotizam a infantilidade do corpo feminino, que é mais “gostoso”. Participante: “. . . na novinha é mais gostoso”. Profissional: “. . .você passou no concurso e você vai com seus amigos comemorar na toca das gatas. Uma profissional desperta interesse sexual em você, mas fica na dúvida com relação à idade dela. O que você vai fazer?” E apresenta placas de trânsito para escolha de caminho a seguir – bifurcação; respeite a vida; na dúvida, não ultrapasse. Participante reage: “. . . pede identidade?”. Outro participante: “. . . nessas horas todas têm 18 anos, identidade falsa, tem 13, corpo de 17 e identidade de 18”. Outro participante: “Há uma pré-adolescente bem ali. Como ela é?”. Outro participante: “ Tem umas de 11 com cara de 20. Hormonalmente desenvolvida”.
Estas falas exemplificam o que Lordan (2020) aponta como desvio na percepção do sexo consensual, que é uma mutualidade na aceitação de um contato sexual, supondo duas pessoas com amadurecimento e consciência de seu desejo e atitude sexual. Este desvio de percepção permite “falsificar” a compreensão da situação, a fim de justificar suas dificuldades de natureza emocional e afetiva. De forma semelhante ao já exposto, esta autora aponta a “falsificação” como consequência de estresse no desenvolvimento das relações não saudáveis na infância, compreensão limitada do que significa sexo consensual, tanto na própria experiência como criança e/ou adolescente como na atualidade do ofensor. Acrescem-se as crenças de que os encontros sexuais acontecem entre “adversários”, uma mulher e posteriormente uma menina criança, e encerram um propósito competitivo de dominar/enfrentar/enganar o homem adulto (Lordan, 2020; Seto, 2012; Ward & Beech, 2016).
Um outro caminho é a existência de fantasias, que são consideradas como pensamentos de risco, porque fazem parte do circuito de violência sexual (Setubal et al., 2020). Como apontado por Ward e Beech (2016), a distorção cognitiva funciona como um esquema mental, utilizado individualmente pelo adulto ofensor para a dominação de suas relações. Vários autores (Beech & Ward, 2004; Connolly, 2004; Ward & Beech, 2016) concordam que estes esquemas têm origem na qualidade de relações precoces sexualizadas, deficiência no desenvolvimento de habilidades socioafetivas e impulsividade sem regulação. A existência de fantasias sexuais envolvendo crianças/adolescentes ou mulheres tem fator propositivo na manutenção do esquema mental. A fantasia tem papel de retroalimentação na situação de ofensa sexual, quando o ofensor comete a violência e passa a povoar suas fantasias com as imagens das vítimas, em um movimento recursivo (Setubal et al., 2020).
Considerações Finais
A dominação, a expressão da virilidade e a relação de mando são construtos mentais privilegiados e que se expressam em diferentes formas específicas, relativas à qualidade da relação estabelecida. Com a mulher adulta, é a submissão e a dominação de forma violenta, grosseira ou explícita, para que o ambiente social perceba quem manda. Com a criança/ adolescente, é a tentativa de adultização e sexualização, transformando-a em uma mulher sensual, atraente e que representa por si só um perigo. Esta dominação, com adultas ou crianças/adolescentes, comunica sua preocupação com a demonstração de virilidade que é dirigida muito mais aos outros homens do que às vítimas (Connolly, 2004; Lordan, 2020).
O estudo e o reconhecimento da construção mental que ampara a explicitação dessas estratégias (a teoria implícita) têm papel primordial no planejamento e na execução de ações terapêuticas que visem oferecer intervenções aos adultos ofensores sexuais, a partir de oportunidade para reflexão. A compreensão do poder das crenças sobre os atos violentos deve fazer parte destas ações, visando a uma melhor percepção de como o gênero configura as relações e as violências praticadas.
A limitação do texto diz respeito à discussão do próprio tema (violência sexual contra crianças e adolescentes), que traz constrangimento e medo de que os participantes possam ter maior envolvimento criminal ao relatarem fatos que se constituam em ações dolosas. Mesmo que a intervenção psicossocial seja caracterizada por uma total independência com relação ao sistema jurídico, os participantes ainda demonstram preocupação com aspectos como sigilo – apresentando, em muitos momentos, uma fala reticente e vaga.