Introdução
Problemas relacionados à saúde mental têm sido um dos maiores desafios para a saúde pública no Brasil. Segundo o relatório da World Health Organization (WHO, 2017), cerca de 11 milhões de pessoas (5,8% da população) apresentam diagnóstico de -transtornos depressivos no Brasil. Estes números são ainda maiores para transtornos ansiosos (TA), atingindo cerca de 18 milhões de pessoas (9,3% da população), o que coloca o Brasil como o país mais ansioso do mundo. Por fim, os dados da WHO indicam ainda que cerca de 12% dos afastamentos do trabalho estão relacionados a problemas de saúde mental, número elevado se considerarmos todas as patologias passíveis de serem limitadoras da prática laboral.
O TA pode ser caracterizado por medo diante de situações ou eventos e por preocupação exagerada em relação a acontecimentos futuros (American Psychological Association, 2014). A etiologia dos TA tem múltiplas fontes, como estresse, traumas, características genéticas, disfunções neurológicas e psicológicas (Bandelow et al., 2017). Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais atualmente em sua quinta versão (DSM-5 [APA, 2014]) categoriza ao menos 17 classificações de TA, sendo que os tipos de objetos ou situações que induzem o medo e a preocupação excessiva são o principal fator que distingue os diferentes TAs. Dentre eles, o transtorno de ansiedade generalizada (TAG) é indicado pela literatura como mais frequentemente diagnosticado e com relevante impacto na qualidade de vida do indivíduo (Somers et al., 2006; Barrera & Norton, 2009). Este transtorno é caracterizado pela presença de ansiedade e preocupações exageradas, sensação de incapacidade de controlar suas preocupações, sendo estas relacionadas a diversos contextos e situações, juntamente a sintomas fisiológicos (por exemplo, tensão muscular e perturbação do sono) e psicológicos (irritabilidade, dificuldade de concentração) (APA, 2014).
O TAG está relacionado a outras psicopatologias, como abuso de substâncias químicas (Simon, 2009; Smith & Book, 2010), transtornos depressivos (Buhk et al., 2020; Li & Wang, 2020; Schoevers et al., 2005) e transtorno obsessivo compulsivo (Kim et al., 2014). Dada sua alta taxa de comorbidade e associação com diversos outros transtornos psiquiátricos, identificar de forma precoce a TAG auxilia não apenas na detecção desse transtorno, como elucida e contribui para o diagnóstico diferencial de outras comorbidades.
Avaliar e identificar altos níveis de TAG proporcionará melhor qualidade de vida e melhores prognósticos para o paciente. Dessa forma, medidas de rastreio, como testes psicológicos, podem auxiliar nesse processo. A Generalized Anxiety Disorders 7-Item (GAD-7) é uma escala de autorrelato composta por sete itens que têm como objetivo rastrear níveis de TAG (Spitzer et al., 2006). A medida foi desenvolvida com base nos critérios diagnósticos do DSM-IV e outros instrumentos de avaliação da ansiedade. A GAD-7 foi traduzida e aplicada em vários países, como Portugal (Bártolo et al., 2017), Espanha (García-Campayo, 2010), Holanda (Donker et al., 2011) e Brasil (Moreno et al., 2016). Por ser uma escala curta, a GAD-7 apresenta-se como uma alternativa viável para utilização em diversos contextos, e estudos têm indicado propriedades psicométricas adequadas (e.g. Löwe et al., 2008; Johnson et al., 2019; Moreno et al., 2016).
A estrutura fatorial original da GAD-7 consiste em um único fator (Spitzer et al., 2006). Porém, estudos indicam que, apesar do caráter unidimensional proposto na construção do instrumento, esta estrutura fatorial não tem gerado índices de ajustes adequados (Bartolo et al., 2017; Beard & Björgvinsson, 2014; Kertz et al., 2013). No Brasil, poucos estudos investigaram as propriedades psicométricas da GAD-7. Dentre eles, Moreno et al. (2016), que verificaram adequados ajustes para uma estrutura unidimensional da GAD-7 (Confirmatory Fit Index = 0, 99; Tucker-Lewis Index = 0, 99; Root Mean Square Error of Approximation = 0,068 e Silva et al. (2018) que verificou associação positiva entre GAD-7 e sintomatologia depressiva.
Porém, ainda há lacunas a serem preenchidas do ponto de vista das qualidades psicométricas da escala, como a melhor estrutura fatorial para o teste. Por haver divergências na literatura sobre os indicadores de ajustes da estrutura fatorial da escala, o presente estudo buscou verificar as suas qualidades psicométricas. Para isso, foram analisados seus indicadores, bem como a confiabilidade da consistência interna. Dada a escassez de estudos brasileiros que verificaram a associação entre a GAD-7 e variáveis externas, nosso segundo objetivo foi verificar a correlação entre GAD-7 e medidas de saúde mental geral, bem-estar e depressão. Por fim, analisou-se a capacidade da medida em diferenciar indivíduos com e sem transtorno psiquiátrico prévio. Nós desenvolvemos cinco hipóteses para este estudo, a saber, esperamos encontrar uma estrutura unidimensional com índices de ajuste adequados (H1), associação positiva entre maiores níveis de ansiedade, depressão (H2) e prejuízo na saúde mental (H3) e associação negativa entre níveis mais altos de ansiedade e bem-estar (H4). Além disso, espera-se que a GAD-7 diferencie indivíduos com e sem histórico de transtorno psiquiátrico (H5).
Método
Trata-se de um estudo de caráter transversal e amostra coletada por conveniência. O critério de seleção foi idade ≥ 18 anos. Participaram deste estudo 545 adultos com idade variando de 18 a 76 anos (M = 37; DP = 12,9), sendo a maioria mulheres (412), da região Sudeste (50,9%), servidores públicos (27,3%) e empregadores privados (21,3%). Os detalhes sobre os dados demográficos da amostra são apresentados na Tabela 1.
Feminino | Masculino | Outro | |||||
---|---|---|---|---|---|---|---|
Sexo | N | 412 | 132 | 1 | |||
% | 75,6 | 24,2 | 0,2 | ||||
Diagnóstico psiquiátrico | Não | Sim | |||||
N | 399 | 146 | |||||
% | 73,2 | 26,8 | |||||
Região | Sul | Sudeste | Norte | Nordeste | Centro-Oeste | Fora do país | |
N | 101 | 277 | 12 | 40 | 87 | 28 | |
% | 18,5 | 50,8 | 2,2 | 7,3 | 16 | 5,1 | |
Trabalho | Servidor público | Setor privado | Não exerce | Autônomo | Aposentado/ Pensionista |
Outro | |
N | 147 | 156 | 84 | 78 | 31 | 49 | |
% | 27 | 28,6 | 15,4 | 14,3 | 5,7 | 8,9 |
Nota: M = Média; DP = Desvio-padrão.
Instrumentos
Questionário sociodemográfico
O questionário foi composto por perguntas referentes à idade, ao sexo, à região do Brasil em que reside, ao tipo de atividade laboral desenvolvida e ao diagnóstico psiquiátrico. São perguntas escolhidas pelos pesquisadores e usualmente utilizadas em pesquisas com o obje-tivo de caracterizar a amostra, para que os achados de evidências de validade sejam compreendidos neste recorte.
Generalized Anxiety Disorder 7-Item (GAD-7) (Spitzer et al., 2006)
O GAD-7 consiste em um questionário de autorrelato que permite a detecção rápida de TAG. Os indivíduos avaliam a presença de sintomas relacionados à ansiedade, respondendo a sete itens em uma escala de quatro pontos, com base na frequência com que perceberam esses sintomas (nem um pouco = 0; vários dias = 1; mais da metade dos dias = 2; quase todos os dias = 3). Os escores totais variam de 0 a 21, com pontuações mais altas refletindo níveis mais elevados de gravidade da sintomatologia TAG. O GAD-7 mostrou bons indicadores psicométricos e confiabilidade da consistência interna α = 0,92 em nosso estudo.
General Health Questionnaire (GHQ-12) (Goldberg & Williams, 1988)
O GHQ-12 consiste em um questionário de autorrelato composto por 12 itens, cada um avaliando a gravidade de um sintoma mental usando uma escala do tipo Likert de quatro pontos, variando de 0 “nunca” a 3 “sempre”. Para cálculo da pontuação final, é necessário inverter os valores dos itens negativos. Os escores variam de 0 a 36, com pontuações mais altas indicando níveis mais elevados de prejuízos na saúde mental geral. A escala apresentou bons indicadores psicométricos (Gouveia et al., 2010) e confiabilidade da consistência interna α = 0,90 em nosso estudo.
Índice de Bem-Estar da World Health Organization (WHO-5) (WHO, 1998)
A WHO-5 é uma escala de autorrelato composta por cinco itens que avaliam o nível de bem-estar em uma escala tipo Likert de seis pontos, variando de 0 “em nenhum momento” a 5 “o tempo todo”. Os escores variam de 0 a 25, com pontuações mais altas indicando níveis mais elevados de percepção de bem-estar. A escala apresentou propriedades psicométricas satisfatórias (Topp et al., 2015). No presente estudo, o alfa da escala foi de 0,92.
Center for Epidemiological Studies - Depression (CES-D) (Radloff, 1977)
O CES-D consiste em um questionário de autorrelato composto por 20 itens que avaliam sintomas depressivos. O respondente deve indicar a frequência com que percebeu cada um. O questionário é pontuado numa escala que varia de 0 “nunca” a 3 “diariamente”. O escore total da CES-D varia de 0 indicando ausência de sintomas depressivos a 60 indicando sintomas depressivos mais frequentes ou graves. A escala apresentou bons indicadores psicométricos (Fernandes & Rozenthal, 2008) e confiabilidade da consistência interna α = 0,84 em nosso estudo.
Procedimento
Os procedimentos éticos deste estudo seguem as disposições da Declaração de Helsinque referente à pesquisa com seres humanos. Todos os participantes assentiram eletronicamente ao Termo de Consentimento Livre e Esclarecido após conhecer os objetivos da pesquisa. A coleta de dados foi realizada on-line, por meio do Google Forms, e divulgada por meio de mídias sociais, como Facebook, Twitter e WhatsApp.
Análises de Dados
Foi feita análise descritiva dos dados para caracterizar a amostra e calcular os valores de média e desvio-padrão dos instrumentos utilizados. Com intuito de verificar se a estrutura unifatorial indicada no estudo original com a GAD-7 (Spitzer et al., 2006) se mantém para a amostra de adultos brasileiros, foi realizada uma análise fatorial confirmatória utilizando o estimador Weighted Least Squares Means and Variance Adjusted (WLSMV) por meio do Mplus. Para verificar o ajuste do modelo, foram utilizados os seguintes índices: Confirmatory Fit Index (CFI; > 0,90), Tucker-Lewis Index (TLI; > 0,90) e Root Mean Square Error of Approximation (RMSEA; < 0,06), de acordo com os critérios apontados por Hu e Bentler (1999) e Hair Jr. et al. (2005).
Para verificar a associação entre o escore da GAD-7 e as três medidas externas aplicadas (saúde mental geral, bem-estar e depressão), foi feita análise de correlação de Pearson. Foram consideradas correlações estatisticamente significativas quando p ≤ 0,05. Os valores de magnitude de correlação foram baseados no sugerido por Cohen (2013), em que correlações acima de 0,50 indicam forte magnitude. Uma análise de sensibilidade usando G * Power 3.1 sugere que, com uma amostra composta por 545 sujeitos, temos poder = 0,99 para detectar uma correlação de r = | 0,18 | (p = 0,05, bicaudal).
Para analisar se os escores dos sujeitos sem histórico de transtorno psiquiátrico (1) se diferem dos respondentes que indicaram ter sido diagnosticados com algum transtorno psiquiátrico (2), foi feita comparação entre médias por meio do teste t. Foram consideradas diferenças significativas quando p ≤ 0,05. Além disso, foi verificada a magnitude da diferença considerados valores acima de 0,30, por meio do d de Cohen. As análises foram feitas usando SPSS.
Resultados
A análise fatorial confirmatória unifatorial apresentou índices de ajustes adequados (RMSEA = 0,08; CFI = 0,993; TLI = 0,990). As cargas fatoriais e a consistência interna estão apresentadas na Tabela 2.
Itens | Cargas |
---|---|
1 - Sentir-se nervoso, ansioso ou no limite | 0,87 |
2 - Não ser capaz de parar ou controlar a preocupação | 0,89 |
3 - Preocupar-se muito com coisas diferentes | 0,84 |
4 - Problemas para relaxar | 0,83 |
5 - Sentir-se tão inquieto a ponto de ser difícil ficar parado | 0,79 |
6 - Tornar-se facilmente aborrecido ou irritado | 0,81 |
7 - Sentir medo, como se algo terrível pudesse acontecer | 0,76 |
Α | 0,92 |
Ω | 0,92 |
As cargas fatoriais variaram entre 0,76 e 0,89. A fidedignidade por meio da consistência interna, verificada pelo alfa e ômega, apresentou valor de 0,92 para cada um. Na Tabela 3, estão apresentados os resultados das correlações do escore da GAD-7 com as medidas externas de saúde mental geral (GHQ), bem-estar (WHO) e depressão (CES-D).
As correlações entre os escores da GAD-7 e as medidas externas foram todas de forte magnitude. A relação com depressão e saúde geral foi positiva, indicando que maior frequência de sintomas de ansiedade está associada a maiores indicadores de sintomatologia depressiva e prejuízos na saúde mental geral. De modo diferente, observou-se correlação negativa entre os escores da GAD-7 e bem-estar, o que indica que maior frequência de sintomas de ansiedade está inversamente associada à percepção de bem-estar.
Na Tabela 4, está apresentada a comparação das médias dos grupos (1) com histórico de transtornos psiquiátricos e (2) sem histórico de transtornos psiquiátricos na GAD-7.
Grupo | n | M | DP | T | P | d | |
---|---|---|---|---|---|---|---|
GAD-7 | 1 | 146 | 17,10 | 6,26 | 4,82 | <0,01 | 0,45 |
2 | 399 | 14,49 | 5,35 |
Nota: M = Média; DP = Desvio-padrão; Grupo 1 = participantes com histórico de transtorno psiquiátrico; Grupo 2 = participantes sem histórico de transtorno psiquiátrico.
Houve diferença significativa entre os grupos, sendo que o grupo de pessoas com histórico de transtornos psiquiátricos (1) apresentou a maior pontuação média. A magnitude da diferença calculada por meio do d de Cohen foi moderada.
Discussão e Conclusão
O presente estudo teve o objetivo de verificar as qualidades psicométricas da GAD-7, medida desenvolvida para rastreio de níveis de TAG. Para isso, foram analisados os indicadores de ajuste da estrutura fatorial, a confiabilidade da consistência interna, sua associação com variáveis externas e a capacidade da medida em diferenciar indivíduos com e sem transtornos psiquiátricos prévios. Foram formuladas cinco hipóteses, todas confirmadas. Os resultados indicaram adequação psicométrica da escala com a amostra deste estudo, conforme discutido nos parágrafos seguintes.
A estrutura interna da GAD-7 verificada por meio de CFA tendo como base a estrutura original do instrumento (unifatorial) apresentou índices de ajustes aceitáveis, de acordo com as diretrizes apontadas na literatura (Hair Jr. et al., 2005; Hu & Bentler, 1999). Assim como verificado pela maioria dos estudos (Moreno et al., 2016; Spitzer et al., 2006), a GAD-7 apresentou uma estrutura unidimensional, com índices de ajuste adequados, com cargas fatoriais e consistência interna altas. Este resultado atende às expectativas dos autores, que tinham como primeira hipótese a unidimensionalidade da escala (H1).
Houve associação positiva e de forte magnitude entre indicadores de TAG, maiores níveis de prejuízos na saúde mental geral e presença de sintomatologia depressiva (hipóteses H2 e H3). Esses achados corroboram estudos anteriores (Buhk et al., 2020; Li & Wang, 2020; Silva et al., 2018) e são consonantes à alta comorbidade verificada entre TAG e outros transtornos psiquiátricos (APA, 2014). Junto disso, a associação negativa e de magnitude forte entre a GAD-7 e a medida de bem-estar indica que a escala avalia aspectos relacionados à baixa percepção de sentimentos de tranquilidade, disposição e característicos do bem-estar, o que está ao encontro da quarta hipótese deste estudo, que era exatamente a associação negativa entre níveis mais altos de ansiedade e bem-estar (H4).
Por fim, os resultados indicaram que os participantes com histórico de transtorno psiquiátrico pontuam significativamente mais alto quando comparados àqueles sem histórico prévio, o que alcança nossa hipótese cinco, de que a GAD-7 seria capaz de diferenciar indivíduos com e sem histórico de transtorno psiquiátrico. Além de reforçar a associação entre TAG e comorbidades psicopatológicas (APA, 2014), esse dado ressalta a usabilidade da medida para contexto de avaliação de transtornos psiquiátricos e indica que o instrumento é adequado para rastreio clínico (Beard & Björgvinsson, 2014; Johnson et al., 2019). Contudo, salienta-se que se trata de um achado preliminar, sendo necessário verificar sua replicabilidade em outros delineamentos amostrais.
Os alcances do presente estudo são promissores em termos da apresentação das qualidades psicométricas da escala e sua adequação para uso em contexto clínico e de pesquisa. Porém, o estudo também apresenta limitações, como o método de extração de dados. Por se tratar de uma pesquisa on-line e amostra de conveniência, é possível que uma porção muito específica da população tenha sido selecionada, sendo necessária a investigação com outras configurações de amostra, inclusive contendo participantes com diferentes transtornos psiquiátricos.