Introdução
A memória é um dos grandes grupos das habilidades das funções cognitivas, juntamente à linguagem, às funções executivas e à atenção (Vale et al., 2022). A memória é um elemento essencial para o processo de aprendizagem, uma vez que engloba a capacidade de guardar e evocar informações (Lindôso, 2018). Dessa forma, ela reflete diretamente no bem-estar psicológico e social e permite ao indivíduo o sentimento de pertencimento à sociedade (Lima & Cammarota, 2012).
A memória subjetiva está associada a um conjunto de crenças, percepções e sentimentos que os indivíduos têm sobre seu desempenho cognitivo (Silva, 2014). No ambiente laboral ou estudantil, especificamente, esse tipo de memória é um componente fundamental, pois está atrelado à percepção de retenção de informações, manutenção da linha de raciocínio, realização eficaz de variadas tarefas e tomada de decisões (Lindôso, 2018).
Quando há alguma percepção de declínio da memória subjetiva, diversas consequências negativas à saúde dos indivíduos podem se manifestar, como prejuízos no desempenho, na concentração e na produtividade (Schwabe et al., 2010; Prado, 2016). Isso ocorre porque a capacidade de fazer cálculos mentais, seguir instruções complexas e lembrar-se de nomes e rostos de colegas de trabalho (Mourão & Faria, 2015), por exemplo, pode ficar prejudicada.
Fica evidente, portanto, que a memória subjetiva influencia diretamente na vida profissional e pode gerar preocupações entre os trabalhadores. Isso ocorre porque ela está diretamente relacionada à aprendizagem e ao desempenho das atividades básicas e instrumentais da vida diária (Mourão & Faria, 2015; Lindôso, 2018) e, de igual forma, pode ser uma preditora para a ocorrência do declínio cognitivo e da demência (Jonker et al., 2000; Luck et al., 2015).
Dentre os fatores associados à autopercepção subjetiva da memória estão o sexo, a idade, a escolaridade, a sintomatologia ansiosa e depressiva, o estresse e os comportamentos relacionados à prática de atividade física (Zapater-Fajarí et al., 2022; Sabatini et al., 2022; Phillips et al., 2017).
No que se refere à saúde mental e à prática de atividade física, especificamente, estudos demonstram que indivíduos inativos fisicamente/insuficientemente ativos apresentam mais sintomas de ansiedade, depressão e/ou estresse (Biernat et al., 2022), e estes tendem a apresentar uma autopercepção de memória ruim (Sousa et al., 2021; Yoon et al., 2019; Zapater-Fajarí et al., 2022). Essas psicopatologias afetam a iniciativa e a tomada de decisão dos indivíduos, deixando-os menos interessados no ambiente e comprometendo seu interesse por atividades cognitivamente mais complexas (American Psychiatric Association, 2014). Em contrapartida, indivíduos ativos fisicamente tendem a apresentar uma avaliação positiva da memória subjetiva (Chen et al., 2018; Cassilhas et al., 2016, Phillips et al., 2017; Feter et al., 2021). Isso porque a atividade física interfere prevenindo ou mesmo atenuando o declínio funcional e cognitivo, aumentando o bem-estar e a qualidade de vida dos indivíduos, conforme aponta a revisão ampliada de estudos conduzida para o comitê consultivo das diretrizes de atividade física para a população americana (Erickson et al., 2019).
A despeito da existência de estudos prévios que investigaram as associações entre autopercepção de memória, sintomatologia psicológica e atividades físicas em outras populações, não foram encontradas investigações específicas que se dediquem a esses aspectos na população de trabalhadores, representando, portanto, uma importante lacuna científica. Diante disso, o presente estudo objetivou testar a associação entre a percepção subjetiva de memória ruim, nível de atividade física de lazer e sintomas de ansiedade, depressão e estresse, em trabalhadores de uma universidade pública federal do extremo sul do Rio Grande do Sul, no ano de 2022.
Métodos
Delineamento
Trata-se de um estudo quantitativo, analítico e observacional, de delineamento transversal, que fez parte do macroprojeto “Saúde e comportamento de trabalhadores da Universidade Federal do Rio Grande: um estudo prospectivo”. O estudo foi conduzido com trabalhadores da Universidade Federal do Rio Grande (FURG), no período de 17 de outubro a 4 de dezembro do ano de 2022. Foram incluídos, no estudo, trabalhadores da universidade (docentes e técnicos da ativa, estagiários e terceirizados), de ambos os sexos, com idade ≥ 18 anos.
Coleta de dados
A coleta de dados foi realizada por meio de um questionário on-line. Para isso, por questões logísticas, utilizou-se a plataforma Google Forms, uma vez que se tinha como objetivo captar o maior número de trabalhadores possível. A pesquisa foi divulgada pelos sistemas da universidade, incluindo-se o Sistema de Gestão de Pessoas (SIGEPE), por meio de contatos individuais por e-mail e WhatsApp, com intuito de sensibilizar os trabalhadores da universidade. Foram feitas três tentativas de contato com os potenciais participantes, e aqueles que não retornaram após essas tentativas foram considerados como perdas do estudo.
Desfecho
O desfecho, percepção subjetiva sobre a memória, foi avaliado por meio da questão “Como você classifica sua memória hoje?”, com as seguintes opções de resposta: “excelente”, “muito boa”, “boa”, “razoável” ou “ruim” (Lara et al., 2016; Feter et al., 2021). No presente estudo, a percepção da memória foi categorizada em “excelente/muito boa”, “boa/ razoável” ou “ruim”, e foram considerados como tendo pior percepção da memória aqueles que apontaram sua memória como ruim, como definido em outros estudos epidemiológicos (Feter et al., 2021; Vancampfort et al., 2017).
Exposições
As exposições foram o nível de atividade física de lazer (AF) e os sintomas de depressão, ansiedade e estresse. O nível de AF foi avaliado a partir das questões utilizadas no Vigitel (Ministério da Saúde., 2019): “Quantos dias por semana o(a) Sr.(a) costuma praticar exercício físico ou esporte?” (1 dia; 2 dias; 3 dias; 4 dias; 5 dias; 6 dias; 7 dias); “Quanto tempo por dia?”; e “Qual(is) tipo(s) de atividade(s)?”. Isso gerou um escore de atividades físicas em min./sem. e, posteriormente, foram classificados como ativos aqueles que tiveram escore ≥ 150 min./sem. (Bull et al., 2020), e insuficientemente ativos aqueles escores inferiores a este.
Os sintomas de depressão, ansiedade e estresse foram avaliados pela Escala de Depressão, Ansiedade e Estresse-21 (DASS-21), adaptada e validada para a língua portuguesa (Vignola & Trucci, 2014). A DASS-21 é um instrumento de autorrelato com 21 questões (sete para cada diagnóstico), e a pontuação é baseada por uma escala do tipo Likert de quatro pontos, variando de zero (“não se aplicou a mim”) a três (“aplicou-se muito”), referente ao sentimento da última semana. Para fins de análise no presente estudo, agrupou-se a gravidade de cada diagnóstico em duas categorias: sem sintomas e com sintomas. Foram considerados como não tendo sintomas de estresse aqueles com pontuação ≤ 10 pontos, e, como apresentando esta sintomatologia, aqueles com pontuação ≥ a 11 pontos. Para a ansiedade, foram considerados com não tendo sintomas aqueles com a pontuação ≤ 6, e, como tendo sintomas, aqueles com pontuação ≥ 7; para os sintomas depressivos, aqueles com pontuação ≤ 9 foram considerados como não tendo esta sintomatologia, e, como tendo sintomas de depressão, aqueles com pontuação ≥ 10 (Wang et al., 2020; Corrêa et al., 2020).
Variáveis intervenientes
As variáveis intervenientes foram: sexo biológico (feminino, masculino), idade em anos completos (19-29, 30-39, 40-49, 50 ou mais), cor da pele (branca, outras [negra, amarela, indígena]), situação conjugal (casado ou vivendo com o companheiro, sem companheiro), categoria profissional (técnico, estagiário, professor), renda em salários mínimos relativos ao ano-base 2022 (R$ 1.212,00) e categorizada em tercis, escolaridade (doutorado/mestrado, graduação completa/especialização, outra formação inferior à graduação completa), relato de covid-19 (sim, não), Índice de Massa Corporal (normal, sobrepeso, obesidade), consumo de álcool (sim, não) e hábito tabagista (nunca fumou, ex-fumante, fumante).
Análises estatísticas
Os dados do Google Forms foram convertidos em planilha do programa Microsoft Excel e posteriormente transferidos para o pacote estatístico Stata® 14.2, onde foram realizadas as análises do estudo. Inicialmente, foi avaliada a normalidade dos dados por meio do teste de Shapiro-Wilk. A estatística descritiva incluiu as frequências absoluta e relativa (%), médias e desvios-padrão (DP), valores máximos e mínimos e mediana. Na estatística analítica, empregou-se qui-quadrado, qui-quadrado para tendência linear, teste exato de Fisher e, posteriormente, regressão logística ordinal, que também foi utilizada nas análises ajustadas, com resultados expressos em razão de odds (RO) e intervalos de confiança de 95% (IC95%). Na análise ajustada, todas as variáveis foram inseridas ao mesmo tempo no modelo. Adotaram-se, como estatisticamente significantes, valores p < 0,05 para testes bicaudais.
Resultados
Participaram do estudo 297 trabalhadores com média de idade de 42,9 (DP: 10,8) anos, variando entre 19 e 68 anos; 65,7% dos respondentes foram do sexo feminino; 85,0%, de cor da pele branca; 46,3% eram técnicos; a mediana de salário mínimo foi de 5,3 referente ao ano de 2022; 66,6% eram casados ou viviam com companheiro; 17,7% perceberam sua saúde como regular ou ruim; 59,6% reportaram ter tido covid-19 e 58,8% apresentaram sobrepeso ou obesidade (Tabela 1).
Tabela 1 Características Sociodemográficas, Laborais e de Saúde dos Trabalhadores Envolvidos no Estudo, de Acordo com Percepção Subjetiva de Declínio da Memória (n=297)
Autopercepção da memória | ||||||
---|---|---|---|---|---|---|
Variáveis | N | % | Excelente/ muito boa (%) n=85 | Boa/ regular (%) n=193 | Ruim (%) n=19 | Valor p |
Sexo | <0,001a | |||||
Feminino | 195 | 65,7 | 20,0 | 72,8 | 7,2 | |
Masculino | 102 | 34,3 | 45,1 | 50,0 | 4,9 | |
Idade (anos completos) | 0,028b | |||||
19-29 | 32 | 10,8 | 12,5 | 75,0 | 12,5 | |
30-39 | 78 | 26,5 | 23,1 | 69,2 | 7,7 | |
40-49 | 107 | 36,4 | 28,9 | 64,5 | 6,5 | |
50 ou mais | 77 | 26,2 | 41,5 | 55,8 | 2,6 | |
Cor da pele | 0,217b | |||||
Branca | 249 | 85,0 | 30,9 | 62,5 | 6,4 | |
Outras | 44 | 15,0 | 18,2 | 75,0 | 6,8 | |
Situação conjugal | 0,204a | |||||
Casado ou vivendo com companheiro | 197 | 66,6 | 30,9 | 64,0 | 5,1 | |
Sem companheiro | 99 | 33,4 | 23,2 | 67,7 | 9,1 | |
Categoria profissional | 0,001b | |||||
Estagiário | 37 | 12,5 | 10,8 | 75,7 | 13,5 | |
Técnico | 137 | 46,3 | 26,3 | 70,8 | 2,9 | |
Professor | 122 | 41,2 | 36,9 | 54,9 | 8,2 | |
Escolaridade | 0,044b | |||||
Doutorado/mestrado | 199 | 67,0 | 30,7 | 62,3 | 7,0 | |
Especialização/graduação completa | 64 | 21,6 | 31,3 | 67,2 | 1,6 | |
Outra formação inferior à graduação | 34 | 11,4 | 11,8 | 76,4 | 11,8 | |
Renda (tercil de salário) | 0,187a | |||||
1° (menor) | 89 | 35,0 | 22,5 | 69,7 | 7,9 | |
2° | 82 | 32,3 | 25,6 | 68,3 | 6,1 | |
3° (maior) | 83 | 32,7 | 38,6 | 55,4 | 6,0 | |
Covid-19 | 0,509a | |||||
Sim | 177 | 59,6 | 26,6 | 66,1 | 7,3 | |
Não | 120 | 40,4 | 31,7 | 63,3 | 5,0 | |
IMC | 0,258b | |||||
Normal | 122 | 41,2 | 26,2 | 67,2 | 6,6 | |
Sobrepeso | 103 | 34,8 | 34,9 | 61,2 | 3,9 | |
Obesidade | 71 | 24,0 | 22,5 | 67,6 | 9,9 | |
Consumo de álcool | 0,767a | |||||
Sim | 198 | 66,7 | 27,3 | 66,1 | 6,6 | |
Não | 99 | 33,3 | 31,3 | 62,6 | 6,1 | |
Hábito tabagista | 0,094a | |||||
Nunca fumou | 222 | 74,7 | 27,9 | 67,6 | 4,5 | |
Ex-fumante | 56 | 18,9 | 33,9 | 53,6 | 12,5 | |
Fumante atual | 19 | 6,4 | 21,1 | 68,4 | 10,5 |
Nota. IC95%: intervalo de confiança de 95%;
aTeste do qui-quadrado para heterogeneidade;
bTeste exato de Fisher.
A prevalência do relato de percepção subjetiva de memória ruim, conforme critério adotado no presente estudo, foi de 6,4% (IC95%: 5,8; 6,9) e, na Tabela 1, é possível observar que esta percepção foi reportada com mais frequência e de forma significativa por mulheres, trabalhadores mais jovens, estagiários e por aqueles de menor escolaridade, independentemente do nível de AF e das condições de saúde mental.
Do total de participantes, 42,4% foram insuficientemente ativos no lazer; 29,7% apresentaram sintomas de depressão, 25,4%, sintomas de ansiedade; e 41,8%, sintomas de estresse (Tabela 2). Destaca-se que, entre os insuficientemente ativos, as prevalências de depressão, ansiedade e estresse foram de 25,3%; 24,4%; e 40,9%, respectivamente.
Tabela 2 Análise Bivariada entre Nível de Atividade Física e Sintomas Psicológicos de Acordo com Percepção Subjetiva de Declínio da Memória (n=297)
Autopercepção da memória | ||||||
---|---|---|---|---|---|---|
Variáveis | N | % | Excelente/ muito boa (%) n=85 | Boa/regular (%) n=193 | Ruim (%) n=19 | Valor p |
Nível de AF lazer* | 0,005a | |||||
Ativos | 121 | 57,6 | 39,7 | 57,9 | 2,5 | |
Insuficientemente ativos | 89 | 42,4 | 22,5 | 67,4 | 10,1 | |
Sintomas de depressão | <0,001b | |||||
Sem sintomas | 204 | 70,3 | 36,3 | 61,8 | 2,0 | |
Com sintomas | 86 | 29,7 | 10,5 | 72,1 | 17,4 | |
Sintomas de ansiedade | 0,001a | |||||
Sem sintomas | 214 | 74,6 | 36,5 | 58,4 | 5,1 | |
Com sintomas | 73 | 25,4 | 6,9 | 82,2 | 11,0 | |
Sintomas de estresse | 0,001a | |||||
Sem sintomas | 167 | 58,2 | 37,1 | 59,3 | 3,6 | |
Com sintomas | 120 | 41,8 | 15,8 | 73,3 | 10,8 |
Nota.
*Variável com menor número de observações (210); IC95%: intervalo de confiança de 95%;
aTeste do qui-quadrado para comparação de proporções;
bTeste exato de Fisher.
Na Tabela 2, também se observa, a partir da análise bivariada, que a percepção de memória ruim esteve significativamente associada aos trabalhadores que não atingiam as recomendações atuais de AF e que apresentavam sintomas de depressão, ansiedade e estresse.
Na Tabela 3, observa-se a mesma associação encontrada na análise bivariada. Tanto na análise bruta quanto na ajustada, a percepção ruim da memória esteve significativamente associada com o nível de AF e com os sintomas psicológicos, nos quais aqueles trabalhadores insuficientemente ativos (RO: 2,5; IC95%: 1,4; 4,5; p=0,002), assim como aqueles com sintomas de depressão (RO: 2,5; IC95%: 1,4; 4,5; p<0,001), ansiedade (RO: 2,5; IC95%: 1,4; 4,5; p<0,001) e estresse (RO: 2,5; IC95%: 1,4; 4,5; p<0,001), apresentavam pior percepção subjetiva de memória. Observamos que, no modelo ajustado para diversas variáveis intervenientes, foi atenuada a associação entre nível de AF, sintomas de depressão, ansiedade e estresse com a percepção de memória, com a chance de percepção ruim sendo reduzida para duas vezes entre os insuficientemente ativos, 5,9; 3,3; e 2,6 vezes entre aqueles com sintomas de depressão, ansiedade e estresse, respectivamente; porém, manteve-se a significância estatística.
Tabela 3 Análise Bruta e Ajustada da Percepção Subjetiva de Declínio da Memória, com o Nível de Atividade Física de Lazer e Sintomas Psicológicos
Variáveis | Análise bruta | Análise ajustada | ||
---|---|---|---|---|
RO (IC95%) | Valor p | RO (IC95%) | Valor p | |
Nível de AF lazer* | 0,002 | 0,023 | ||
Ativos | 1 | 1 | ||
Insuficientemente ativos | 2,5 (1,4; 4,5) | 2,0 (1,1; 3,8) | ||
Sintomas de depressão | <0,001 | <0,001 | ||
Sem sintomas | 1 | 1 | ||
Com sintomas | 6,3 (3,2; 12,3) | 5,9 (3,0; 11,8) | ||
Sintomas de ansiedade | <0,001 | 0,001 | ||
Sem sintomas | 1 | 1 | ||
Com sintomas | 4,5 (2,4; 8,6) | 3,3 (1,7; 6,4) | ||
Sintomas de estresse | <0,001 | 0,001 | ||
Sem sintomas | 1 | 1 | ||
Com sintomas | 3,2 (1,9; 5,4) | 2,6 (1,5; 4,4) |
Nota. RO: Razão de Odds; IC95%: intervalo de confiança de 95%; AF: atividade física; ajustes para sexo, idade, cor da pele, escolaridade e categoria profissional.
Discussão
O objetivo do estudo foi testar a associação entre percepção subjetiva da memória e nível de atividade física de lazer e sintomas de ansiedade, depressão e estresse em trabalhadores de uma universidade pública federal do extremo sul do Rio Grande do Sul, no ano de 2022. Os resultados obtidos demonstram que a prevalência de percepção ruim da memória foi de 6,4%, sendo que os trabalhadores insuficientemente ativos no lazer e aqueles que apresentavam sintomas de depressão, ansiedade e estresse foram os que apresentaram mais chance de relato desta percepção negativa.
Com relação à associação entre a percepção ruim de memória e a prática de atividade física, observou-se que a chance de perceber a memória ruim foi maior entre os trabalhadores inativos fisicamente, resultado que se encontra convergente à literatura (Chen et al., 2018; Feter et al., 2021; Lara et al., 2016; Vancampfort et al., 2017). Esse achado reforça a importância desse comportamento para a qualidade de memória, e estudos recentes têm destacado este fato. Neste sentido, Feter et al. (2023) apontam, por exemplo, que a realocação de cinco minutos de comportamento sedentário para a prática de atividade física, de moderada a vigorosa intensidade, diminui em 13% a chance de comprometimento cognitivo em trabalhadores de universidades e instituições de pesquisa brasileiras (Feter et al., 2023). Em estudo de base populacional conduzido com essa mesma população, os autores evidenciaram que a fração de risco atribuível da inatividade física para a demência, causada pelo agravamento dos problemas de memória, é de 11,2% (Borelli et al., 2022). Além disso, diversos estudos demonstraram que as atividades físicas, ao melhorarem as funções cardiovasculares e o metabolismo, propiciam importantes benefícios para a neuroplasticidade e otimizam as funções de memória dos indivíduos (Erickson et al., 2009; Cassilhas et al., 2016; Erickson et al., 2019).
Quanto à associação entre percepção de memória ruim com sintomas psicológicos, foi possível verificar associações estatisticamente significativas entre aqueles trabalhadores que também apresentavam sintomas de depressão, ansiedade e estresse. Embora a literatura aponte forte associação entre declínio cognitivo, depressão e ansiedade, a relação causal entre autopercepção de memória subjetiva e problemas de saúde mental ainda não está bem estabelecida. De forma geral, os estudos destacam que a depressão e a ansiedade são fatores preditores para a percepção de perda de memória subjetiva, ou seja, quanto maiores forem os níveis de depressão e ansiedade, mais a perda da memória subjetiva é percebida como intensa entre os indivíduos (Sabatini et al., 2022; Feter et al., 2021).
O estresse associado ao ambiente ocupacional também é comumente retratado, pois é capaz de afetar o indivíduo em diversos aspectos, principalmente relacionados à exaustão física e psicológica (Camelo & Angerami, 2004). A reação ao estresse exerce diferentes efeitos no recrutamento de sistemas de memória, na formação, no armazenamento e na recuperação das informações. Esses efeitos variam de acordo com a duração e o momento do estresse, bem como com a fase operacional da memória (Schwabe et al., 2010). Nesse sentido, a exposição ao estresse prolongado pode afetar não só o rendimento profissional, por estar associado a dificuldades de atenção e concentração (Sabatini et al., 2022), como também pode levar o sujeito ao desenvolvimento de psicopatologias graves (Duman et al., 2016). Aliado a isso, o estresse agudo afeta mais os aspectos de memória em adultos jovens do que em idosos. Porém, o estresse crônico parece impactar mais a memória na idade mais avançada (Hidalgo et al., 2019).
Este estudo reforça a importância do acompanhamento de saúde entre trabalhadores de universidades públicas, ainda mais se levado em consideração o momento turbulento vivido após uma pandemia quase sem precedentes e todos os ataques às instituições públicas de ensino brasileiras ocorridos até o final de 2022. Espera-se que esses achados forneçam subsídios para o desenvolvimento de intervenções pautadas na identificação precoce e prevenção de declínios subjetivos de memória por intermédio da promoção da prática de atividade física e redução de danos psicológicos. Segundo Genuíno et al. (2010), trabalhadores que ocupam cargos com alto nível de responsabilidade, com necessidade de habilidades decisórias ágeis e outras aptidões que requerem resultados satisfatórios durante o horário de trabalho, tendem a renunciar aos momentos de lazer e descanso para atingir suas metas, o que pode resultar em desgastes fisiológicos e cognitivos significativos (Prado, 2016).
Entende-se que, nesse processo, a prática de atividade física pode atenuar os declínios de memória, ao atuar na redução de estresse e sintomas ansiosos e depressivos dos trabalhadores. Outro aspecto que reforça a importância do presente estudo é o de que a autopercepção de memória ruim pode ser preditiva de demência, mesmo quando não há indicação de comprometimento cognitivo (Jonker et al., 2000; Luck et al., 2015).
Dentre as limitações do estudo, destaca-se que: 1) por se tratar de um estudo de delineamento transversal, a causalidade não pode ser inferida; 2) indivíduos com diagnóstico de demência podem ter sido incluídos no estudo; 3) por estarem distantes do pesquisador, os participantes não puderam esclarecer eventuais dúvidas acerca do questionário on-line; e 4) o pesquisador não tem conhecimento das circunstâncias em que o questionário foi respondido. No que se refere ao viés de causalidade reversa, é necessário destacar que, embora os distúrbios de memória possam ser ocasionados por episódios de depressão, ansiedade e estresse, os referidos problemas de saúde mental também podem ocorrer pela autopercepção de memória ruim.
Conclusão
A percepção subjetiva de memória ruim esteve significativamente associada com a prática insuficiente de atividade física no lazer, com a presença de sintomas de depressão, ansiedade e estresse entre os trabalhadores avaliados. Realizar no mínimo 150 min./sem. de atividade física, controlar níveis de ansiedade e estresse e prestar atenção aos sinais de depressão são condições fundamentais para a saúde mental; aliado a isto, destaca-se o fato de que esses aspectos são importantes para a promoção de benefícios cognitivos diretamente ligados ao desempenho das atividades laborais e saúde geral dos trabalhadores. Salienta-se também a importância de ampliação dos cuidados à saúde física e mental dos trabalhadores, por meio dos departamentos de atenção à saúde do trabalhador, seja na esfera pública, seja na esfera privada, haja vista o impacto que esses problemas causam na sociedade como um todo.