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Psicologia Ensino & Formação

versão impressa ISSN 2177-2061

Psicol. Ensino & Form. vol.1 no.2 Brasília  2010

 

ENSAIOS E ESTUDOS TEÓRICOS

 

Masoquismo feminino e violência doméstica: reflexões para a clínica e para o ensino de Psicologia

 

Feminine masochism and domestic violence: reflexions for clinic and the educational psychology

 

 

Martha G. Narvaz

Universidade federal do Rio Grande do Sul. Doutoranda em psicologia - UFRGS. phoenx@terra.com.br

 

 


RESUMO

O objetivo deste trabalho é problematizar os discursos sobre o masoquismo feminino em sua relação com a violência doméstica contra as mulheres. Temos encontrado discursos que atribuem às vítimas a culpa pelas violações sofridas, uma vez que são percebidas como masoquistas. Nesse contexto, destacamos o papel da psicanálise freudiana como discurso normativo do feminino que, baseada em alguns equívocos, parece ter contribuído para a reificação da cena masoquista como especificamente feminina. Há, portanto, que dar historicidade a tais discursos, identificar seus efeitos ético-políticos na constituição das relações de gênero e problematizar suas naturalizações, para o que nos propomos contribuir através do presente trabalho.

Palavras-chave: masoquismo. mulheres. feminino. violência. psicanálise.


ABSTRACT

This paper intends to question present discourses about female masochism in relation to domestic violence against women. We have found discourses which lay the blame on the victims, who have been seen as masochists. In that sense, we would like to highlight the role of Freudian Psychoanalysis as a normative discourse about the feminine that, based on some mistakes, seem to have had a hand in rendering the masochistic scene as being specifically feminine. It is important to historicize these discourses, identify their ethical and political effects on gender relations and question their naturalizations; it is what we would like to approach in this paper.

Keywords: masochism; women; feminine; violence; Psychoanalysis.


 

 

INTRODUÇÃO

O interesse pelo desnudamento da produção ideológica dos discursos de culpabilização das mulheres nas teorias e nas práticas psicológicas vem-se construindo a partir do nosso cotidiano de trabalho com mulheres e com meninas vitimadas por várias formas de violência, sobretudo doméstica e sexual. Nesse percurso, encontramos muitas mulheres e meninas que, ao revelarem os abusos sofridos, são mal acolhidas pelos órgãos de denúncia legal e pelo sistema de saúde aos quais recorrem. Sentindo-se desacreditadas, culpabilizadas e estigmatizadas ao realizarem seus relatos, quando o fazem, não contam com a escuta e com a proteção familiar, comunitária, jurídica e institucional da qual necessitam. Desamparadas, elas silenciam. Por não acreditarem na real possibilidade de romper a condição de submissão impetrada pela violência, essas mulheres suportam, às vezes por muitos anos, situações abusivas, produtoras de intenso sofrimento psíquico. As atividades de pesquisa e de ensino acadêmico, de capacitação da rede de atendimento a vítimas de violência em várias cidades do País têm-nos revelado o despreparo da rede para a compreensão das especificidades de gênero inscritas nessas violências. A intensa mobilização de diferentes e contraditórios afetos nas equipes diante das mulheres vítimas de violência que, mesmo denunciando os parceiros abusivos, voltam a conviver com eles, bem como o desejo de proteção e de amor das meninas e das mães das vítimas de incesto diante do pai abusivo é recorrente (NARVAZ, 2003). As dificuldades na adequada escuta dessas mulheres e dessas meninas, atravessadas por confusões e angústias típicas das situações de violência vivivas como intrusão no real do corpo, parecem encontrar alívio ao recorrerem a mitos explicativos do senso comum, circulantes na cultura, dentre eles, o de que mulher gosta de apanhar e de que as filhas seduzem os pais abusivos. Esses discursos, segundo os quais as mulheres e as meninas são percebidas como coniventes com os seus agressores, são sedutoras e provocadoras das violências que sofrem e inscrevem-se em diversas práticas, desde as dramaturgias rodrigueanas às praticas psi (NARVAZ; KOLLER, 2007).

Ao resgatar a historicidade da constituição dos discursos que orientam nossas práticas (NARVAZ, 2009), identificamos que psicólogos(as) que trabalham em programas de atenção às mulheres em situação de violência têm sua formação baseada predominantemente no referencial teórico da psicanálise (CFP/CREPOP, 2008), que, embora não possa ser considerada um discurso unívoco, por diversas versões, díspares e incongruentes (BIRMAN, 1991), teve ampla disseminação acadêmica e cultural, sendo o referencial predominante nas disciplinas de Psicologia clínica dos cursos de graduação em nosso meio (NARVAZ, 2009; TEIXEIRA; NUNES, 2001). Concebida como verdade universal e atemporal em alguns círculos mais conservadores, a psicanálise freudiana, sem consideração histórico-crítica, é problemática, e seus conceitos e pressupostos têm sido contestados e revisados em relação às concepções misóginas e sexistas, sobretudo no que tange às questões da diferença sexual, do feminino e da feminilidade (KEHL, 1998, 2004; POLI, 2007; ROUDINESCO, 2003).

Leituras simplistas e descontextualizadas de alguns postulados freudianos, dentre eles, o de um masoquismo "autenticamente feminino" (FREUD, 1924b/1967, p. 933) e o da sedução infantil, segundo a qual a criança deseja e fantasia o abuso (FREUD, 1905/1967), têm efeitos nefastos na compreensão das situações de sofrimento psíquico produzido por abusos e violações, pois, "para uma mulher, não existe horror maior do que ver e sentir seu corpo, seu espaço psíquico e corporal, ser penetrado e invadido por uma sexualidade estranha e estrangeira, sem que ela deseje essa invasão" (CROMBERG, 2004, p. 24). Tais aspectos engendram práticas equivocadas que interpretam os relatos de abuso sexual como fantasias histéricas, bem como imputam às meninas e às mulheres o estatuto de cúmplices que desejam as violências sofridas, uma vez que, masoquistas, gozam com elas (FORRESTER, 1990; NUNES, 1998). Em vez de constituírem uma rede de proteção, de garantia de direitos e de promoção de saúde, implícita e, por vezes, explicitamente, essas práticas operam como dispositivos de naturalização da violência e de legitimação da submissão feminina, uma vez que relativizam a escuta e a compreensão do sofrimento diante dessas violações, fundamentadas nas teorias freudianas. Sabendo-se que o apoio social é suporte necessário para a superação das situações de vulnerabilidade e de desamparo impetradas pela violência, é fundamental que exista uma rede de apoio competente para a escuta das vítimas de quaisquer violações, ressaltando-se aí as mulheres agredidas por seus parceiros (NARVAZ, 2005).

As Diretrizes Curriculares Nacionais para os Cursos de Formação em Psicologia (ABEP, 2009) postulam a inclusão da reflexão histórica, epistemológica e ético-política sobre a construção do saber psicológico na formação acadêmica, a fim de viabilizar a análise crítica das linhas de pensamento em Psicologia que fundamentam suas práticas. Buscamos, alinhadas a essas propostas, dar historicidade e revisar os discursos sobre o masoquismo, o feminino e as mulheres veiculados na psicanálise freudiana, avaliando as implicações ético-políticas desse saber na constituição de determinadas práticas, contribuição que ora procuramos dar.

 

FREUD, AS MULHERES, O FEMININO E O MASOQUISMO

Conforme Poli (2007), desde a publicação de Uma teoria sexual (FREUD, 1905) o Ocidente tem tentado resolver a questão da diferença e da significação sexual com o recurso à anatomia, que tem no pênis o referente material da constituição da diferença sexual. Oscilando em textos de diferentes épocas, a referência à anatomia aparece, inicialmente, na famosa frase "anatomia é destino", proferida por Freud (1912/1967) em Sobre uma degradação geral da vida erótica. No texto A dissolução do complexo de Édipo, Freud (1924a/1967) utiliza a mesma frase para marcar os diferentes destinos de homens e de mulheres. A diferença situa-se na forma como cada sexo anatômico experimenta o complexo de castração: já que as meninas não têm pênis, devem renunciar ao desejo de possuí-lo, substituindo-o pelo desejo de ter um filho. Em Algumas considerações psíquicas da diferença anatômica entre os sexos, Freud (1925/1967) afirma que o fundamento anatômico seria o dado natural sobre o qual se apoia a sexualidade infantil na definição das posições de homens e de mulheres. Ter ou não ter um pênis é o que define essas posições, advindo daí o sentimento de inferiroridade da menina diante da constatação de sua privação. Já em Psicogênese de um caso de homossexualidade feminina, Freud (1920b/1967) contradiz o fundamento anatômico como pressuposto para a constituição da identidade sexual, distinguindo três elementos nessa trama, independentes entre si, quais sejam: 1) a identidade psíquica, que oscila entre atividade/passividade, 2) a escolha de objeto e, 3) os caracteres sexuais anatômicos (POLI, 2007). A partir de 1920, a constituição da masculinidade ou da feminilidade passa a ser um enigma que não é apreendido na anatomia. Se recorrermos à anatomia, desconsideramos o trabalho psíquico necessário à constituição da identificação sexual, uma vez que masculinidade e feminilidade são construções psíquicas. O corpo é importante nesse processo, mas não é suficiente (NUNES, 2004).

A diferença anatômica genital, invocada especialmente nas formulações iniciais do pensamento freudiano sobre a sexualidade feminina, seguiram sendo reafirmadas em diversos textos, fortemente carregadas de conteúdo misógino (POLI, 2007). Para Freud, "criador da mulher histérica e da libido única" (ROUDINESCO, 2003, p. 134), as mulheres são sedutoras, vorazes e mortíferas (MANNONI, 1999). Mesmo não tendo participado do assassinato do pai, foram elas que seduziram os homens e provocaram as rivalidades masculinas, incitando-os ao crime (ASSOUN, 1993). Passivas, castradas e naturalmente masoquistas, as mulheres são feitas para o amor e para a maternidade, não devendo ser encorajadas a exercer uma profissão, dado que "são mais débeis e sua capacidade de sublimação é menor que a dos homens (...); incapazes de militarem pela igualdade, uma vez que seu escasso interesse social e sentido de justiça dependem do predomínio da inveja em sua vida psíquica" (FREUD, 1933/1967, p. 942), e devem submeter-se ao seu destino biológico de serem esposas e mães. A inveja do pênis e a não aceitação de sua passividade e de sua castração as tornam neuróticas, perversas e histéricas (FREUD, 1914/1967), e sua dissimulação busca esconder essa falta através da sedução e de encantos (FREUD, 1933/1967). Nesse ensaio, intitulado A feminilidade, de 1933, ele creditou às mulheres, que pouco teriam contribuído para as descobertas e invenções da história da civilização, uma invenção singular: a atividade de tecer panos para esconder sua castração. A motivação inconsciente teria sido a necessidade de cobrir sua nudez, sua falta. Tendo que esconder seu nada, as mulheres se recusariam a expor sua nudez, onde não há mais nada a esconder, extraindo daí, secundariamente, um ganho, ao transformarem a falta assim ocultada em um tesouro de encantos, dissimulação mascarada.

O feminino, inicialmente associado às mulheres, à castração e à falta do pênis (FREUD, 1912/1967), foi sendo desvinculado do critério anatômico no discurso freudiano, sabidamente biologicista em sua fase inicial, permanecendo, entretanto, associado à passividade (FREUD, 1920b/1967) e ao sentimento de inferioridade, cicatriz resultante da ferida narcísica diante da inveja feminina do pênis (FREUD, 1925/1967). Nos escritos dos anos 1920 e 1930 sobre a sexualidade feminina, Freud enunciou categoricamente que a mulher estava fadada à maternidade. Recuando, posteriormente, dessas teorizações nos ensaios Sobre a sexualidade feminina (FREUD, 1931/1967), ele entende que as mulheres poderiam ter três diferentes destinos possíveis ao descobrirem sua condição de castração e de falta do pênis/falo: a neurose e a inibição sexual, a virilidade feminina e a maternidade. Portanto, ser verdadeiramente mulher implicaria tanto o reconhecimento de sua condição castrada, pela ausência do pênis/falo, quanto o desejo da maternidade. Caso contrário, a mulher estaria fadada ao destino trágico da inibição sexual, da neurose e da perversão, já que, maculada pela anomalia e pela patologia de seus humores eróticos, alimentaria a pretensão secreta de ter o pênis/falo e de ser como um homem. Freud manteve, assim, intacto o estatuto das mulheres estabelecido no século XVIII, segundo o qual elas seriam mães por natureza, sendo a maternidade, a fragilidade e a dependência de uma figura masculina os traços de sua essência. Embora ele tenha traçado três vias possíveis para o confronto das mulheres com sua castração - a frigidez, a virilidade e a maternidade -, a única possibilidade efetiva para tornar-se mulher seria a maternidade. Não obstante, acrescentou ainda que as mulheres deveriam ser mães por vocação libidinal e, em consequência, deveriam funcionar no espaço familiar, e não no espaço público (BIRMAN, 1999, 2001).

Em O problema econômico do masoquismo, Freud (1924b/1967) sistematiza três formas de masoquismo, quais sejam: 1) um masoquismo erógeno, ou primário, espécie de mescla pulsional entre Eros e a pulsão de morte, o que o aproxima do erotismo, 2) um masoquismo moral, atrelado às exigências culturais e efeito do sentimento de culpa inconsciente diante de desejos incestuosos, e 3) um masoquismo feminino, que corresponderia ao modelo da perversão masoquista. Enquanto o masoquismo moral é a relação do sujeito com o social, o masoquismo feminino se materializa no relacionamento com o outro, ao qual o sujeito se oferece como objeto para ser aviltado e humilhado. O que está em questão é a posição de humilhação frente ao objeto amoroso, pois aqui se faz necessária a encenação masoquista com o outro, diferentemente do masoquismo moral, no qual a figura do outro aparece sob a forma das injunções da cultura (FORTES, 2007).

O masoquismo "autenticamente feminino" (FREUD, 1924b/1967, p. 933) é expresso através das fantasias de ser castrado, copulado, amordaçado, amarrado, espancado, aviltado e humilhado, e foi considerado por Freud (1919/1967) desde Bate-se em uma criança, cujas conclusões são complexas, contraditórias e, por vezes, bizarras. Aparece aí a equivalência entre passivo, infantil e feminino, posição segundo a qual o(a) masoquista deseja ser tratado(a) como uma criança pequena, desamparada e, particularmente, como uma criança desobediente e travessa que merece ser punida. O desejo da criança, menino ou menina, de ser espancado pelo pai seria uma forma substitutiva das pulsões sexuais incestuosas. Erotizada a violência, a criança interpreta que, "se o pai me bate, é a mim que ama, eu sou a(o) preferida(o)", fantasia de flagelação advinda do elo incestuoso com o pai. É nesse sentido que deve ser interpretado o masoquismo feminino: não como específico das mulheres ou das meninas, mas da atitude feminina de ambos os sexos na relação com o pai, atitude que corresponde, na menina, ao complexo de Édipo, cujas fantasias se referem a ser castrado, ser copulado e parir, fantasias que seriam típicas da feminilidade, mesmo nos meninos. Convém sinalizar que o próprio Freud (1900/1967), em A interpretação dos sonhos, entendia que a realidade psíquica e fantasmática dos desejos inconscientes não podia ser confundida com a realidade material. Essa confusão entre fantasma e recordação se mantém presente na compreensão de toda uma linha de pensamento psicanalítico pós-freudiana, e parece residir no ponto manifesto das atitudes femininas, referidas à sua incompletude constitucional, desprezando o conteúdo da fantasia fundamental. A confusão entre fantasma e recordação é o que esteve em jogo no abandono da teoria da sedução por Freud, que priorizou a via fantasmática da realidade psíquica em detrimento da realidade material dos atos incestuosos efetivamente cometidos(CROMBERG, 2004).

A oposição entre passividade e atividade e suas relações com o masculino e o feminino, bem como a teoria do masoquismo, foram repensadas por Freud (1930/1967) a partir de reflexões sobre a guerra, sobre a morte e sobre o mal-estar na civilização, época na qual elabora o conceito de pulsão de morte. Em Mais além do princípio do prazer (FREUD, 1920a/1967), o conceito de pulsão de morte indicava a dimensão de um excesso da força pulsional, ameaçador do psiquismo. Frente ao impacto pulsional, o sujeito pode se proteger do real da angústia e do seu desamparo pela colagem submissa e dependente a um outro, emprestando seu corpo de maneira humilhante para o gozo deste. Essa posição masoquista propiciaria certa proteção ao sujeito, que poderia se esquivar da angústia produzida pelo desamparo. O sujeito se inscreveria no registro da servidão, pela mediação do masoquismo, para se subtrair da angústia do real e de seus efeitos traumáticos. Seria essa condição de excesso que o colocaria frente a um desamparo insuperável diante da incapacidade de domínio absoluto da pulsão (BIRMAN, 1996).

Na Conferência XXXIII sobre A feminilidade, Freud (1933/1967) aborda as relações entre desamparo, masoquismo e feminilidade. A feminilidade passa a ser concebida como condição originária dos sujeitos, independentemente de seu sexo anatômico, não mais uma posição autenticamente feminina, e representa a perda dos emblemas fálicos para ambos os sexos/gêneros. Nesse sentido é que a posição da feminilidade seria aquela que produziria horror tanto em homens quanto em mulheres diante do confronto com a perda da arrogância fálica, seja por não mais se sentirem superiores pela posse do pênis/falo, seja pela inveja do pênis. Seria para essa desfalicização e para o desvanecimento narcísico que nos remete a feminilidade, para além da diferença sexual anatômica. A aceitação da feminilidade equivale à aceitação da castração e do sentimento de incompletude e de desamparo, cujo repúdio denuncia que o sujeito se defende dessa experiência através de investimentos fálico-narcísicos. Diante dessas reformulações, as concepções sobre o masoquismo foram revisadas, não havendo mais um primado do masoquismo nas mulheres, mas em ambos os sexos. A relação de submissão a um outro forte e protetor seria uma possibilidade imaginária para quaisquer sujeitos como saída da condição de angústia do desamparo. O masoquismo feminino seria uma defesa contra a experiência de desamparo, protótipo da dependência infantil de um Outro pretensamente poderoso e protetor (BIRMAN, 1999, 2001).

 

AS CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO DO DISCURSO FREUDIANO

Uma vez que as teorias não podem se proteger contra as determinações sociohistóricas de seu tempo (HENRY,1997), é fundamental resgatar a historicidade da produção do discurso freudiano sobre as mulheres. A posição discursiva freudiana desvela-se nos problemas contratransferenciais enfrentados por Freud no tratamento de Dora (BERNHEIMER; KAHANE, 1985), na recusa de sua feminilidade (ANDRÉ, 1996, 1998), nos seus preconceitos e nas suas dificuldades com as mulheres, com o feminino e com a própria mãe (MANNONI, 1999). Segundo diversos psicanalistas e historiadores, dentre eles P. Assoun (1993), C. Bertin (1990), L.A. Celles (2005) e J. Forrester (1990), o discurso psicanalítico freudiano é enunciado de uma posição burguesa, patriarcal e conservadora, marcado pelo falicismo de seu tempo. Embora atento às contestações femininas e aos trabalhos das analistas mulheres que influenciaram seu trabalho de 1925 a 1940, "a relação de Freud com a mulher é marcada pelo temor à sedução, da qual ele se defende, e à morte, figura do destino que assume os traços da mãe" (MANNONI, 1999, p. 88). Para Freud, "as mulheres tinham como função ser anjos a serviço das necessidades e do conforto dos homens" (MANNONI, 1999, p. 29). Para ele, era impensável querer lançar as mulheres na luta pela vida, à maneira dos homens, e evocava a tese da fraqueza comparativa das mulheres na seleção natural social. A educação e o trabalho, para as mulheres, sufocaria, segundo Freud, o que havia de mais precioso nelas, a doçura e o ideal de feminilidade caracterizado pela maternidade - ideal da cultura conservadora, burguesa e patriarcal da Viena vitoriana de então (ANDRÉ, 1996; ARÁN, 2006; ASSOUN, 1993; BERTIN, 1990).

A concepção de uma essência feminina submissa, servil, passiva e masoquista, voltada para o sacrifício, para a renúncia pulsional em nome do desejo do Outro e para a maternidade, vinha sendo elaborada no discurso científico desde as últimas décadas do século XVIII. A ideia de que o masoquismo seria inerente à sexualidade feminina esboçou-se, inicialmente, por Richard Von Krafft-Ebing, em 1880, para quem a sexualidade era predeterminada pelos instintos e restringia-se à reprodução da espécie. Tudo aquilo que não se inscrevesse nesse modelo era considerado anomalia do sexo e, portanto, perversão. As perversões sexuais inseriam-se na teoria da degeneração, constituída por Morel, em 1860, e que adquiriu prestígio na segunda metade do século XIX. Por meio dessa categoria, articulavam-se os discursos moral e científico, cujo efeito foi, dentre outros, a estratégia política de dominação das minorias transgressoras dos ditames da normalização sexual e de gênero. O que era politicamente problemático no campo da perversão era que o(a) perverso(a) subvertia a ordem natural da reprodução em nome do prazer, afronta à manutenção da ordem familiar e aos valores morais então dominantes (BIRMAN, 1993). Krafft-Ebing propunha haver uma essência especificamente feminina, vinculada às características de seu sexo, na qual o masoquismo seria uma exacerbação de potencialidades inscritas na natureza das mulheres. O desejo da submissão (sexual) à figura masculina seria a essência da feminilidade, bem como a tendência à passividade, à servidão e ao sofrimento, daí serem as mulheres naturalmente propensas ao masoquismo. O masoquismo era não somente aceitável como desejável nas mulheres, mas deveria ficar circunscrito ao casamento e à maternidade, pois os instintos sexuais das mulheres eram mais facilmente degeneráveis que os dos homens e, assim, mais facilmente levados à perversão e ao descontrole das paixões (NUNES, 1998).

A sexualidade feminina foi sendo cada vez mais circunscrita ao casamento e à maternidade, e almejava-se uma espécie de dessexualização das mulheres. No lugar do instinto sexual, aparece o instinto materno, advogando-se que a relação com o marido deveria ser marcada pela subserviência, dado o desejo inato de submissão nas mulheres e sua capacidade natural de suportar dores e sofrimentos atestada pela gestação e pelo parto. A ideia de que as mulheres seriam dotadas de maior capacidade de sofrimento e de devotamento ganha cada vez mais adeptos, ideia que prescreve o casamento como um sacrifício ao qual as mulheres deveriam se submeter, alegre e passivamente, na constituição de seu destino, fonte da felicidade das mulheres. Toda a socialização de gênero estava voltada para essas concepções, reprimidas quaisquer necessidades de independência das mulheres e de interesses externos à esfera doméstica, fossem nas artes, nas ciências ou na política. Comportamentos e aspirações femininas que escapassem ao binômio casamento-maternidade eram excessos da sexualidade feminina. Patologizados e medicalizados os desejos das mulheres que não correspondiam a essas prescrições, aparece a figura da histérica, protótipo da feminilidade rebelde, excessiva, desregulada e perigosa, que renega a posição passiva na tentativa de preservar sua potência, protesto viril contra o jugo da submissão. Às histéricas eram reservadas as duchas frias, as camisas-de-força e as mutilações cirúrgicas, tentativas de suprimir sua sexualidade transbordante à contestação da ordem patriarcal (KEHL,1998; NUNES, 1998).

As atividades criativas eram atributos da masculinidade. Mulheres que revelavam tais interesses ou inteligência exacerbada eram consideradas anormais, viris ou assexuadas. Os homens criavam obras de arte, nas quais representavam as possibilidades eróticas para as mulheres como objetos de seus desejos, relação erótica retratada como submissão feminina ao desejo e à potência masculina. As representações relativas à sexualidade feminina eram sempre passivas, realizadas por homens, nas quais os artistas (masculinos) as representavam a partir de suas fantasias e de seus desejos de dominação. Excluídas das possibilidades de representar seus próprios desejos e fantasias, as mulheres recriavam-se a si próprias nos seus filhos e filhas, restando a maternidade como possibilidade sublimatória legitimada pela cultura patriarcal. As mulheres subjetivavam-se através de discursos que associavam ao feminino à dor, à passividade e ao masoquismo. Tornando-se objeto de desejo e de gozo masculino e inscrevendo aí o seu desejo, a mulher se defenderia do desamparo ao qual estava exposta em uma ordem cultural que lhe oferecia poucas possibilidades de sobrevivência autônoma, real e psíquica, ao mesmo tempo em que se obstaculizava sua experiência erótica. Essa operação reassegurava ao parceiro sua potência, encobrindo a condição de desamparo que também o ameaçava, fazendo-o acreditar ser imprescindível a ela no jogo erótico de sua masculinidade. O modelo de mulher abnegada e servil que se sacrifica e abre mão de sua condição de sujeito em nome do homem, tornando-se vital para ele, apresentava-se como a possibilidade normativa de subjetivação para a mulher, sintonizada com o desejo masculino. Condenada a entrar no desejo através da união com o homem, seu ingresso no casamento condenava-a a ligar ao homem o seu gozo (ASSOUN, 1993).

São essas as condições de produção do discurso freudiano sobre a posição masoquista feminina, possibilidade simbólica de constitução do sujeito mulher em uma ordem social adversa a qualquer aspiração que não correspondesse ao ideal burguês de esposa e mãe. O masoquismo feminino poderia ser uma alternativa possível para a mulher ter acesso a uma experiência erótica e uma defesa contra o desamparo, inscrevendo-se no registro da servidão, ou seja, de submeter-se ao desejo do Outro para se proteger da angústia do real e de seus efeitos traumáticos (ANDRÉ, 1996; ASSOUN, 1993). Ainda que o masoquismo não fosse mais exclusivo das mulheres, pois tal posição pode ser assumida por quaisquer sujeitos, se o desejo masoquista é o de se colocar em uma posição infantil, passiva, submissa e/ou desamparada, o jogo que o(a) masoquista encena é o lugar reservado, no imaginário social, às mulheres, em contraste com a posição masculina, ativa e dominante. Há que se destacar que a subjetividade masoquista é uma forma possível de inscrição dos sujeitos na ordem da cultura, possibilidade que não é exclusiva e nem natural das mulheres. A possibilidade real de inscrição das mulheres na posição passiva e masoquista deve ser compreendida, portanto, como saída para o desamparo gerado por uma organização social que circunscrevia às mulheres posições dependentes de uma figura masculina provedora e protetora, o que era especialmente acentuado na Viena vitoriana de Freud, filho do patriarcado judeu vienense do fim do século XIX. O que tornou essa possibilidade mais concreta para elas foi o fato de encontrarem menores possibilidades de reasseguramento social e de sublimação para seu desamparo primário, o que rebate o discurso ideológico de uma suposta natureza feminina submissa, passiva, dependente, maternal, sacrificial e masoquista (BERTIN, 1990; NUNES, 1998). As mulheres não são naturalmente masoquistas, mas o masoquismo arremeda, na posição de objeto de gozo do Outro, a suposição de um gozo feminino (BATISTA; PINHEIRO, 2000).

Segundo a psicanalista Sílvia Nunes (1998), diante da condição de desamparo na qual se encontravam as mulheres do final do século XIX, o que ocorre ainda na atualidade, o masoquismo aparecia como uma possibilidade real de inscrição do sujeito feminino na cultura, sendo a histérica a figura que emergiu como protesto ao torniquete imposto pelo ideal de feminilidade servil, assexuado e maternal vigente. A masoquista seria aquela que, deparando-se com um universo restrito de insígnias fálicas, aceitava o jogo mortífero da servidão na tentativa de escapar ao desamparo, à dor e ao sofrimento, obtendo aí alguma possibilidade de prazer. Para ilustrar essa hipótese, a autora discute duas obras que marcaram a produção artística da época, dentre elas, Madame Bovary, de G. Flaubert, e Casa de Bonecas, de Henrik Ibsen. Emma Bovary aparece como uma mulher que renega os deveres do casamento e da maternidade em nome da paixão, com força subversiva capaz de minar a estrutura da família burguesa. Emma parece um retrato bem acabado da mulher oitocentista, insatisfeita com seu destino de mulher e frustrada sexualmente. Incapaz de se adaptar ao ideal de esposa e mãe, sem ter como buscar satisfação para seus desejos sexuais e intelectuais, excessivos para uma mulher de sua época, é diagnosticada sua doença nervosa. Envolve-se, como tentativa de sobrevivência psíquica, em uma paixão na qual a servidão será a marca fundamental. Através dessa personagem, Flaubert pinta a problemática feminina que, principalmente nas camadas burguesas, explode na segunda metade do século XIX, momento no qual as mulheres começam a almejar outra inserção social que não apenas a de esposa e mãe, isto é, as histéricas começam a se sentir asfixiadas em seus espartilhos. Já Nora Helmer, a personagem de Casa de Bonecas, baseado em um caso real, faz o caminho inverso. Inicialmente, ela aceita seu lugar de esposa e de mãe. Renunciando a qualquer vontade própria, torna-se brinquedo do marido, dando-lhe a ilusão de poder de que ele necessita. Desiludindo-se, a certa altura, com o marido, ela sai de casa e decide estudar para compreender o mundo patriarcal e suas leis arbitrárias. Com essas duas personagens, Sílvia Nunes demonstra as alternativas que se apresentam a um sujeito, homem ou mulher, diante do encontro com a feminilidade em uma realidade adversa que, no caso das mulheres, as infantilizava e lhes apontava a posição masoquista de servidão como possibilidade normativa de subjetivação. Parece que "o masoquismo feminino, condizente com a natureza das mulheres, era a condição de possibilidade para o sucesso do casamento e da ordem familiar burguesa. Sem uma boa dose de masoquismo por parte das mulheres, esse modelo não se sustentaria" (NUNES, 1998, p. 229).

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Parece que todos os artifícios e dispositivos de uma época estiveram voltados para a produção de subjetividades femininas concebidas como guardiãs da afetividade, capazes de assegurar o modo adequado de educar as crianças de forma a que estas se tornassem seres governáveis. O governo, tanto das mulheres quanto das crianças, entendido no horizonte da sociedade disciplinar (FOUCAULT, 1975/2002), é dotado de dispositivos que se articulam para fabricar subjetividades conforme as normas de gênero prescritas pela ordem social, normas estas ideologicamente chanceladas por discursos que, no caso das mulheres, "as pretendem passivas para melhor instrumentar sua sujeição" (ASSOUN, 1993, p. XIII). O masoquismo, a passividade e o desejo de servidão sexual inscrevem-se, portanto, não em uma pretensa natureza feminina, mas na história da produção ideológica das subjetividades em gêneros (NARVAZ, 2009) segundo determinado imaginário social encontrado ainda hoje em algumas teorias psicanalíticas (BATISTA; PINHEIRO, 2000). Concepções preconceituosas, equivocadas e simplistas, sem consideração histórico-crítica, de toda forma odiosas, segundo "as quais as mulheres participam do ato sexual violento" (CROMBERG, 2004, p. 64), podem operar na contramão da luta contra as diversas formas de violência sexual e doméstica impetrada contra as mulheres, uma vez que individualizam e naturalizam a passividade e o masoquismo femininos, alegando sua cumplicidade com a sujeição aos abusos e à violação.

As teorias não podem se proteger contra as determinações sociohistóricas de seu tempo (HENRY,1997). O político é constitutivo dos sentidos construídos, engendrando imagens teóricas que são sempre provisórias, através das quais os sujeitos elaboram imagens de si, dos outros, do desejo, do prazer, do sofrimento ou da alegria com base no material cultural disponível. Tornamo-nos o que a cultura permite que venhamos a nos tornar (COSTA, 2000). O efeito de verdade produzido pelos discursos científicos sobre os sujeitos atesta o poder das teorias psi, mais do que de outros discursos, de estabelecerem verdades (LEITÃO; BAZILIO; MONTEIRO; ZIDAN; RESENDE; FERREIRA, 2006). Tomadas como científicas, essas verdades se voltam sobre os sujeitos, produzindo efeitos que regulam a produção das subjetividades, as possibilidades de existência, os saberes e os fazeres profissionais. Constituindo-se conforme determinadas filiações, toda teoria tem uma história, que é política e ideológica e que representa os interesses de determinados grupos científicos e sociais. Algumas leituras de escolas freudianas mais conservadoras, preocupadas com uma suposta fidelidade na transmissão da psicanálise, parecem imunes aos efeitos do tempo, do espaço, da história e das marcações da diferença (e) do gênero. Esses discursos materializados em diferentes teorias e práticas, em nome da ciência, legitimam desigualdades e violências que, historicamente, buscam normatizar as subjetividades, destacando-se aqui a subjetividade feminina. O ser femininamente mulher já não passa mais pela obrigatoriedade e pela impossibilidade de ser mulher sem que sofra as penas, as dores e as delícias da maternidade (BIRMAN, 2001). Com o avanço tecnológico da era moderna e com as conquistas pelas mulheres de espaços antes reservados aos homens, conquistas essas tributárias das lutas das feministas, os discursos ideológicos de inferioridade, de passividade e de desejo de servidão das mulheres não encontram mais justificação (ARÁN, 2006; BIRMAN, 1999), devendo ser situados historicamente e revisados em seus postulados diante das transformações nas formas de subjetivação disponíveis na cultura em cada tempo e espaço social.

Entendendo que "as análises acadêmicas também funcionam como uma intervenção na vida política e social" (BERNARDES; GUARESCHI, 2004, p. 221), há que se superar a divisão Psicologia versus política, pois as teorias psicológicas fazem(se) políticas, queiramos ou não. Conscientes ou não de seus efeitos e de suas implicações, os discursos das teorias psicológicas às quais nos filiamos, que ensinamos e que fundamentam nossas investigações são importantes instrumentos políticos de produção de subjetividades, enfatizando-se aqui a produção disciplinar dos sujeitos em gêneros (NARVAZ, 2009). Nesse sentido, deseja-se estimular a reflexão sobre os discursos psi, incluindo-se aí o discurso freudiano, em sua heterogeneidade, para avaliar os interesses implicados na compreensão das mulheres ora como mortíferas, ora como passivas, masoquistas e cúmplices das violências sofridas. Há que se estimular, a partir do ensino de Psicologia, a reflexão ético-política acerca dos efeitos de verdade produzidos pelas teorias e pelas práticas psicológicas, interrogar esses nossos saberes psi de dentro, de perto, a fim de dar visibilidade aos seus interesses, às forças que os produzem e aos efeitos que eles têm. Alinhamo-nos, assim, aos psicólogos e às psicólogas do Brasil que vêm lutando pelo fim da violência e da intolerância à diversidade cultural, sexual e racial (CFP/CREPOP, 2008), posição com envolvimento ético-político que busca superar a velha e histórica dicotomia Psicologia versus política, presente ainda hoje entre nós.

 

REFERÊNCIAS

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Recebido em: 30 de janeiro de 2009.
Aceito em: 12 de maio de 2010

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