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Saúde & Transformação Social

versão On-line ISSN 2178-7085

Saúde Transform. Soc. vol.5 no.2 Florianopolis nov. 2014

 

Resenha

 

Sobre tropeçar, gaguejar, participar: intencionalidades e experimentações numa pesquisa avaliativa em saúde

 

 

Alice Grasiela Cardoso Rezende Chaves*; Simone Mainieri Paulon**

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS - Brasil

Endereço para correspondência

 

 

No panorama de crescente demanda democratizante no campo da saúde pública brasileira, a pesquisa avaliativa emerge como peça estratégica no tocante à administração dos serviços públicos, uma vez que oferece os instrumentos necessários, mais comumente conhecidos como procedimentos científicos, para que o Estado possa exercer seu papel regulador. É nesse arranjo-cenário que, no Brasil, tornou-se necessária a constituição de uma política de avaliação das práticas de saúde no SUS, articulada à construção de uma cultura mais democrática nos serviços, ocasionando a emergência e expansão das pesquisas avaliativas participativas.

Levando-se em consideração a constituição do referido cenário, o campo de estudo desta dissertação foi uma pesquisa multicêntrica que tinha como objetivo principal a proposição de avaliar os processos de formação de apoiadores institucionais e seus efeitos na produção de saúde, nos territórios do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo. Consistia em uma pesquisa-intervenção com orientação metodológica que teve como base uma avaliação participativa. Ou seja, constava como intencionalidade a superação da simples identificação do ponto de vista dos pesquisados, avançando em direção a uma participação definida como a efetiva inserção deles em ações mais complexas, propositivas e, por que não dizer, protagonistas no processo da pesquisa.

A experimentação de tal processo, com pretensões participativas, provocou um movimento instigante de busca pelos sentidos conferidos à participação em tempos de democracia midiática, como também pelo modo com que o participar constitui-se numa prática e não apenas numa intencionalidade, numa retórica vazia, numa prescrição metodológica. Esse mesmo movimento de busca invocou a adoção de um olhar estrangeiro, um olhar flutuante voltado ao cotidiano da pesquisa, num inquietante convite ao desmantelamento do já-sabido: por que mesmo desenvolver uma pesquisa com metodologia participativa? Como e por que incluir na equipe de pesquisadores os apoiadores formados nos cursos em avaliação?

Tais indagações agregaram elementos disparadores de um movimento cartográfico que conspirou para a invenção de um outro problema de pesquisa que embalou a construção da presente dissertação cuja experimentação da participação tornou-se seu fio condutor.

Este estudo configurou-se, portanto, numa pesquisa sobre outra pesquisa! E teve como objetivo acompanhar a experiência de participar de uma investigação avaliativa e participativa em saúde.

Mas como pesquisar uma pesquisa? Como pesquisar um processo no qual se atua como sujeito da própria investigação?

Tal desafio demandou um mergulho nas intensidades que o percurso investigativo apresentava em seu caminhar, mergulho no qual a escolha de cada instrumento de pesquisa ia-se definindo com a imersão na experiência da pesquisa multicêntrica –foco desta investigação. Longe de um padrão fixo de utilização dos referidos procedimentos, o modo de produção de dados foi guiado pelo próprio problema e por suas modulações ocorridas no transcorrer do processo investigativo.

Para tanto, dentre os procedimentos metodológicos utilizados, estão os registros em diário de campo, além de grupos focais e grupos de enunciação. A realização destes últimos foi inspirada na estratégia proposta pelos analistas institucionais1, denominada de restituição. A mencionada técnica consiste em se centrar numa tarefa de análise coletiva da situação presente, em função das diversas implicações de cada um com e na pesquisa. Não significa confissão privada ou pública, mas um movimento para retomar os acontecimentos, em geral excluídos, deixados à sombra, comumente silenciados. Em consonância com o referencial teórico-metodológico que deu sustentação a esta investigação de mestrado, o uso de tais ferramentas possibilitou movimentos de análises coletivas dos dados produzidos.

E assim, entre diários, focos e enunciados, muitos dados foram criados. Porém, diante das múltiplas intensidades vividas no processo de pesquisa, como tecer uma escrita com todo material produzido? Como compor a trama que inundaria a narrativa do que fora vivenciado?" Se tudo o que aconteceu é igualmente digno [...], como um fato seria mais importante do que outro?" Como não reduzir tudo "a uma pintura cinzenta de acontecimentos especiais?"2.

Foi necessário criar uma escrita-corpo-continente para dar conta daquela sensação oceânica que a produção dos dados provocava. Foi preciso escolher no intuito de se "evitar dispersão de singularidades e uma indiferença em que tudo teria o mesmo valor". Afinal, "uma trama é constituída por uma mistura de causas palpáveis, intentos, imprevistos e por um recorte que se faz por conveniência"2.

Seguindo esta inspiração do historiador, foram escolhidos, convenientemente, alguns acontecimentos-cenas que irromperam o cotidiano da investigação multicêntrica, criando zonas de instabilidade e provocando rachaduras naquele campo de pesquisa, alterando a sensação de uma aparente homeostase no cotidiano do processo investigativo.

Nos tropeços cotidianos dos grupos de pesquisa, numa busca "gaga" pela participação, a metodologia participativa foi sendo construída. A sensação era a de que a cada passo, rumo à produção de uma pesquisa avaliativa-participativa, tropeçávamos num cânone cientificista que se atravessava em nossas experimentações, tornando a prática da participação um exercício que travava de tempos em tempos, que não seguia num ritmo contínuo. Enfim, que seguia seu rumo "aos tropeços".

Além disso, experimentou-se o exercício da participação como um vacilo gaguejante, confrontando-nos com a desconstrução de algumas certezas no campo das pesquisas participativas, à medida que passamos a decompor todo o conjunto de ideias que se pretendiam "justas", no intuito de com esse movimento extrair "justo" ideias.

Ou seja, a dimensão participativa indagou a instituição pesquisa à medida que a participação operou como um potente dispositivo que fez ver e falar aquilo que se encontrava sobreposto sob as camadas do instituído! Nesse sentido, tornaram-se visíveis e dizíveis as relações de poder; a verticalidade de um processo de pesquisa; os seus segredos... Estiveram em questão os modos como a pesquisa foi pensada, conduzida e executada. Colocou-se todo o processo de pesquisa em análise, possibilitando aberturas para a invenção de um modo outro de pesquisar.

Em suma, aos "tropeços e gaguejos", a prática da participação interrogou o modelo academicista, produzindo um movimento desinstitucionalizante da própria função de pesquisador ao colocar para o grupo de pesquisadores o desafio do enfrentamento da dimensão pesquisador clássico, guardião da expertise dos processos investigativos e fiel aos cânones cientificistas de separação e de oposição hierárquica entre os atores de uma pesquisa.

Convém, ainda, relatar que todo tropeço e gaguejo trazem consigo momentos de parada, vácuos de linguagem, pontos de escuridão que contêm, também e paradoxalmente, potências criadoras3. Foi por tais intervalos "silenciosos" que o diferente transitou. A partir deles foi possível tracejar novas composições; alterar nossas orientações e produzir outras configurações no pesquisar. Nesses tropeçar e gaguejar, conseguimos criar novas personagens, cenários, enredos, performances, enfim, artistar a pesquisa.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Lourau R. Análise Institucional e práticas de pesquisa. Rio de Janeiro: UERJ; 1993.         [ Links ]

2. Veyne P. Como se escreve a história e Foucault revoluciona a história. Tradução de Alda Baltar e Maria Auxiliadora Kneipp. 4ª ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília; 2008. p. 41.         [ Links ]

3. Deleuze G. Conversações. Tradução de Peter Pál Pelbart. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora 34; 2010.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Alice Grasiela Cardoso Rezende Chaves
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Av. Paulo Gama, 110 - Farroupilha
CEP: 90040-060. Porto Alegre, RS – Brasil
Tel.: (51) 8101-7178

 

Artigo encaminhado 05/10/2014
Aceito para publicação em 13/11/2014

 

 

Notas

* Mestre em Psicologia
** Professora Adjunta