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Estudos Interdisciplinares em Psicologia

versão On-line ISSN 2236-6407

Est. Inter. Psicol. vol.11 no.3 supl.1 Londrina  2020

https://doi.org/10.5433/2236-6407.2020v11n3suplp100 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

O desamparo da ralé

 

The helplessness of the rabble

 

El desamparo de la chusma

 

 

Milton Bezerra de LimaI; Véronique DonardII

ITribunal de Justiça de Pernambuco
IIUniversidade Católica de Pernambuco

 

 


RESUMO

Este artigo reflete sobre as possibilidades de uma clínica psicanalítica ampliada na perspectiva de adolescentes em conflito com a lei. Ele considera a situação de desamparo social e discursivo à que sua maioria se vê submetida enquanto classe social destituída de horizontes de cidadania, tornando-a num objeto privilegiado da judicialização da desigualdade social. Fundamentado na filosofia de Agamben e na sociologia de Souza, o texto situa os sujeitos contemporâneos do desamparo radical, representados pelas categorias "muçulmano" e "ralé", figuras emblemáticas da brutal desigualdade que caracteriza as sociedades capitalistas, notadamente a brasileira. Dialogando com o pensamento de Rosa, o artigo evidencia a psicanálise como prática clínica e reflexão teórica sobre os efeitos da destituição discursiva em que se vêm colocados os sujeitos em situações extremas de sofrimento, e mostra como o trabalho com adolescentes em conflito com a lei descortina um campo privilegiado para a produção de uma clínica ampliada.

Palavras-chave: desamparo; psicanálise; discriminação social.


ABSTRACT

This article proposes to reflect on the possibilities of an expanded psychoanalytic clinic from the perspective of adolescents in conflict with the law. It considers the situation of social and discursive helplessness to which most of them are submitted as a social class devoid of citizenship horizons, which makes it the privileged object of the judicialization of social inequality. Based on Agamben's philosophy and Souza's sociology, the text characterizes the contemporary subjects of radical helplessness, represented through the categories "muslim" and "rabble", emblematic figures of the brutal inequality that characterizes capitalist societies, notably Brazilian. Dialoguing with Rosa, the article highlights psychoanalysis as a clinical practice and theoretical reflection on the effects of discursive destitution in which subjects are placed in extreme situations of suffering and shows how working with adolescents in conflict with the law reveals a privileged field for the production of an expanded clinic.

Keywords: helplessness; psychoanalysis; social discrimination.


RESUMEN

Este artículo propone una reflexión sobre las posibilidades de una clínica psicoanalítica ampliada desde la perspectiva de los adolescentes en conflicto con la ley. Considera su desamparo social y discursivo, como clase social desprovista de horizontes de ciudadanía y objeto privilegiado de la judicialización de la desigualdad social. Basado en la filosofía de Agamben y la sociología de Souza, el texto sitúa los sujetos contemporâneos del desamparo radical, a través de las categorias "musulmân" y "chusma", figuras emblemáticas de la desigualdad que caracteriza a las sociedades capitalistas, especialmente la brasilena. Dialogando con el pensamiento de Rosa, el artículo presenta el psicoanâlisis como prâctica clínica y reflexión teórica sobre los efectos de la destitución discursiva en la que se encuentran los sujetos en situaciones extremas de sufrimiento, y muestra cómo el trabajo con adolescentes en conflicto con la ley consiste en un campo privilegiado para la producción de una clínica ampliada.

Palabras clave: desamparo; psicoanâlisis; discriminación social.


 

 

INTRODUÇÃO

Um dos maiores desafios na contemporaneidade é a produção em escala da pobreza estrutural, o que tende a se agravar com a pandemia da COVID-19. O consequente aprofundamento do fosso social entre as classes assume características cada vez mais perversas, sobretudo em relação aos segmentos mais pauperizados e menos qualificados que, entregues à própria sorte, vivem no limiar da revolta e da delinquência. Todavia, a tênue linha que separa a revolta silenciada e a delinquência demarca a forma mais obscena de estigmatização, aquela reservada aos apenados e à população socioeducativa, que, além de despossuídos de cidadania, são discriminados e humilhados entre os próprios deserdados. A conflitividade com a lei é a ultrapassagem do umbral que os mantinha iguais aos desiguais, retirando-os da expectativa de qualquer horizonte. É com essa destituição que se depara o trabalho no âmbito socioeducativo, inclusive quanto ao tipo de intervenção psicanalítica capaz de produzir efeitos subjetivos que se contraponham à fatalidade da posição de o(a)bjetos do sistema de justiça.

Poderíamos conceber saídas transformadoras para esses sujeitos? Para problematizá-las, nos apoiaremos na filosofia de Agamben e na sociologia de Souza, que caracterizam os sujeitos contemporâneos do desamparo radical por meio das categorias "muçulmano" e "ralé", figuras emblemáticas da brutal desigualdade que caracteriza as sociedades capitalistas, notadamente a brasileira. A seguir, situando o desamparo na perspectiva psicanalítica, recorreremos à sua concepção em Freud, para compreendê-lo como condição humana. Por fim, dialogando com Rosa e baseando-nos nas noções de desamparo social e desamparo discursivo (Rosa, 2016), trataremos da psicanálise implicada enquanto aposta para restituir o desejo de emancipação destes sujeitos, o que tem nos guiado no trabalho como psicólogo no campo jurídico. Portanto, com o presente artigo objetivamos investigar como a escuta analítica pode se constituir um suporte para superar situações de desamparo discursivo e social vivenciados por adolescentes em conflito com a lei.

 

UMA COMPREENSÃO FILOSÓFICA E SOCIOPOLÍTICA DO DESAMPARO SOCIAL

A análise de Agamben em torno do muçulmano como figura emblemática de Auschwitz e, por extensão, da modernidade enquanto continuum da experiência gestada pelo fascismo, coloca em evidência uma figura sub-humana, paradigmática da opacidade em que sujeitos são colocados por teorias guiadas pelos preconceitos racial e de classe. A partir de Auschwitz, inaugurou-se um novo lugar da ética, não mais restrito à dignidade, mas igualmente voltado à falta da dignidade vivenciada pelo muçulmano enquanto ultrapassagem da fronteira entre homem e não-homem, entre vida e morte.

Para Agamben (2008), o muçulmano é o melhor exemplo de "imagem do mal" na contemporaneidade: "[...] um homem macilento, cabisbaixo, de ombros curvados, em cujo rosto, em cujo olhar, não se possa ler o menor pensamento" (p. 52). O termo, usado pelos demais prisioneiros nos campos de concentração, referia-se àqueles que renunciavam a qualquer esperança de sobreviver. Tal prática encontrava justificação em uma concepção equivocada da fatalidade islâmica, lenda que havia se difundido desde a Idade Média, de forma depreciativa, na cultura europeia. Todavia, o autor contesta a associação no seu ponto mais crucial, pois não vê proximidade entre a resignação muçulmana movida pela crença em Alá - e, portanto, impulsionada pela vontade da fé - com a total perda da esperança do "muçulmano":

Sobre as origens do termo Muselmann [...] remete ao significado literal do termo árabe muslim, que significa quem se submete incondicionalmente à vontade de Deus [...] Contudo, enquanto a resignação do muslim se enraíza na convicção de que a vontade de Alá está presente em cada instante [...] o muçulmano de Auschwitz parece ter, pelo contrário, perdido qualquer vontade e qualquer consciência [...] (Agamben, 2008, pp. 52-53).

Podemos estender essa figura paradigmática da renúncia ao existir, invisibilizada pelo olhar que a aprisiona em sua condição sub-humana, às classes sociais marcadas pelo desamparo e pela negação de sua existência e dignidade. Para pensarmos os aspectos sócio-políticos desse desamparo social, acessaremos coordenadas sociológicas para percorrer o território da "ralé", termo com o qual Souza se propõe a nomear uma invisibilizada "[...] classe inteira de indivíduos, não só sem capital cultural nem econômico em qualquer medida significativa, mas desprovida [...] das precondições sociais, morais e culturais que permitem essa apropriação" (Souza, 2009, p. 21).

Para o autor, não é possível desmascarar a sordidez da desigualdade que penaliza a ralé se insistirmos em atitudes de má-fé travestidas de teorias sofisticadas, as quais legitimam o fosso social. Souza (2009) refuta com veemência teses como a de um suposto jeitinho brasileiro, consideradas como ardil de classe, pois tentam confundir estratégias de sobrevivência e autolegitimação, fenômeno comum a qualquer cultura no ocidente, com um caráter nacional. Revela o sentido ideológico dessas ideias como dispositivos de ocultação das diferenças abissais entre a ralé e as classes média e alta, possuidoras de relações privilegiadas e capital simbólico para fazer valer seus interesses nas disputas pelos bens escassos e o poder político na sociedade. Mais do que isso: demonstra como essas produções teóricas, ao se disseminarem como senso comum, forjam a resignação fatalista da ralé, que passa a se acreditar portadora do fracasso e do consequente alijamento socioeconômico. É o que ocorre com a propalada meritocracia como valor supremo decantado pela classe média em detrimento dos desclassificados na arena social.

Para os esmagados por uma ordem incompreensível cujo sofrimento não pode deixar de ser vivido não só como natural, mas acima de tudo como "merecido", pelo efeito da "culpa individualizada" da ideologia meritocrática percebida como verdade absoluta, resta o devaneio das "saídas mágicas" ou o ressentimento individualizado contra "pessoas" (Souza, 2009, p. 417).

Os defensores da meritocracia partem de uma suposta igualdade de oportunidades entre todos os cidadãos para competirem pelos bens e serviços escassos da sociedade, o que legitimaria as disparidades reais entre as classes sociais. Com isso escamoteia-se a extrema desigualdade do jogo, pois os filhos da ralé estarão fora dele desde o início do certame, uma vez que se encontram desprovidos dos estímulos afetivos e cognitivos que predispõem a criança para o ambiente escolar, ao contrário dos filhos das classes média e alta.

[...] como nos ensina o filósofo e sociólogo alemão Axel Honneth, o reconhecimento da criança como um "fim em si", ou seja, a percepção da criança de que ela é amada pelo simples fato de existir como ela é, e não como possível "instrumento" para as mais diversas necessidades dos adultos, é uma precondição fundamental para a construção de um adulto maduro e produtivo [...] Existem, portanto, "pré-condições" não só materiais, mas, também, emocionais e simbólicas que explicam como classes sociais inteiras são construídas e reproduzidas como bem-sucedidas ou como fracassadas desde o berço (Souza, 2009, p. 412).

Existe aqui uma inevitável aproximação da ralé com o muçulmano, na total submissão e renúncia de si em favor do vencedor (ou carrasco, no caso do muçulmano), o que materializa, na lógica discursiva de exclusão do mercado, um poder absoluto para estabelecer os limites entre a dignidade e a infâmia, o humano e o não-humano, a vida e a morte. Daí que Souza denuncie o caráter deletério dessas teses e o quanto produzem concretamente uma subcidadania e uma subvida para parcelas imensas da população. E conclua que não há outra forma de reverter a disparidade social, se não pelo acesso mínimo ao capital cultural e material, que permita às classes subalternas estabelecer novas formas de relação com as classes privilegiadas e construir meios de superação de sua "miséria social e existencial" (Souza, 2009, p. 410).

Prosseguindo com o pensamento de Rosa (2016), que será aprofundado à continuação, lemos que o capitalismo em sua face mais brutal, o neoliberalismo, atualiza a produção em escala do muçulmano ao condenar um contingente considerável de sujeitos ao desterro permanente "[...] circunscritos num espaço de visibilidade/invisibilidade, para que não denunciem - com sua presença, já que lhes é negado a possibilidade de narrativa - o furo, a lacuna, que reside em todo ato de governar e de regular as civilizações" (pp. 134-135).

Para a autora, há uma incidência desigual dos efeitos de subjetivação e de destituição subjetiva da lógica imposta pelo capitalismo aos diferentes grupos, o que torna os sujeitos mais afetados por ela nos que melhor traduzem seus efeitos mortíferos, dando-nos pistas valiosas sobre os desafios e perspectivas abertas para as próximas gerações, assim como para a própria atualização da clínica psicanalítica. Esses processos de banimento se concretizam como um vaticínio que se cumpre inescapavelmente, produzindo uma subgente oriunda do desemprego estrutural, da falta de assistência mínima em saúde, desprovida de habitação e exilados de sua terra, para não falar de outras condições que definem um mínimo de cidadania. Tentar enquadrá-los em categorias de dignidade inexistentes apenas reforça sua invisibilização.

A partir dessas leituras, em diálogo com a prática enquanto psicólogo do Tribunal de Justiça, inferimos sobre a necessidade de pensar o verdadeiro estatuto do sujeito adolescente em conflito com a lei, constituído majoritariamente por filhos da ralé. Trata-se de tarefa crucial para evitar o perigo de categorizá-lo em entidades familiares à clínica psicanalítica, antes de entendê-lo às voltas com situações extremas. É oportuno, assim, traçar coordenadas que nos permitam vê-los em seu contexto, antes de apressadamente interpretar sua fala ou seu silêncio. Afinal, como analisou Agamben (2008) a respeito da tentativa de Bettelheim de resgatar a fala do muçulmano em sua clínica do autismo, como uma espécie de esforço para ressignificar sua própria experiência nos campos de concentração, não se tratava de diagnosticar o que se experienciou.

[...] o conceito de "situação extrema" nunca deixou de ter para Bettelheim uma conotação ética e política, assim como o muçulmano nunca se reduziu para ele a uma dimensão clínica [...] na situação extrema, estava em jogo "continuar sendo ou não um ser humano", o muçulmano marcava de algum modo o instável umbral em que o homem passava a ser não-homem, e o diagnóstico clínico passava a ser análise antropológica (Agamben, 2008, p. 55).

Pensar o adolescente em conflito com a lei é necessariamente remeter-se à relação que ele mantém com o sistema de justiça, que diz muito de como ele é visto e, sobretudo, de como se enxerga. Nesse sentido, Coutinho (2009) avalia que em nenhum outro lugar a face da desigualdade se mostra tão radical quanto no sistema de justiça, onde ela se manifesta enquanto opressão de classe na interação entre o aplicador da lei e o jurisdicionado penal (constituído predominantemente pela ralé) e também através da configuração institucional que historicamente desconsiderou a própria existência social das classes pauperizadas, relegando-as a objetos de criminalização. A pesquisadora, que entrevistou operadores do direito a respeito de sua postura com relação a réus oriundos da ralé, concluiu que há uma (im)postura vinculada à posição de classe assumida por eles, que aplicam aos casos concretos o contrário do que aprenderam nos manuais jurídicos e nas legislações correlatas, onde se prevê como objetivo da justiça penal possibilitar a ressocialização dos apenados, em especial através das penas alternativas ou de medidas socioeducativas mais leves (quando se tratar de adolescentes). No entanto, mesmo que reconheçam o peso da desigualdade socioeconômica no envolvimento e permanência de boa parte dos sujeitos em práticas delitivas, decidem em nome de valores que só fazem sentido no seu contexto, desprezando completamente a realidade de quem é julgado por eles. O efeito da imposição jurídica, nestes casos, é nulo quanto à ressocialização, efetivando-se a máxima agambeniana da mera pretensão julgadora, em oposição ao senso comum, que define como finalidade do direito a garantia da justiça e a busca da verdade. O que objetiva, na realidade, é o julgamento e o seu ritual burocrático, o processo, que assume uma força coercitiva pela sentença, proferida em detrimento da justiça e da verdade.

Por isso, as decisões judiciais soam inócuas e estranhas a quem as recebe, argumenta Coutinho (2009), não logrando adequar a ralé aos princípios valorativos estranhos que a fundamentam:

Um sujeito de direito não é criado pela lei, mas socialmente construído. A internalização de valores socialmente compartilhados depende de uma série de experiências, de um aprendizado no qual o interesse afetivo por reconhecimento incentive o respeito às normas (p. 341).

Em nossa pesquisa acadêmica sobre os adolescentes em contexto sócio-educacional do Centro de Atendimento Socioeducativo de Jaboatão dos Guararapes (Lima, 2019), verificamos que havia insatisfação por parte de alguns dos internos da unidade, que não entendiam como adolescentes que cometeram atos mais graves que os seus haviam "pegado liberdade assistida" (progressão para uma medida em meio aberto) e eles permaneciam internados. Portanto, o "esclarecimento" jurídico prestado pelos diversos operadores do direito (juiz, promotor, defensor ou advogados da entidade) não eram reconhecidos como legítimos ou satisfatórios. Pelo contrário, os deixavam desconfiados e revoltados por algo que entendiam como um tratamento desigual a situações equivalentes.

A atitude de indiferença de parcela conservadora da magistratura em relação à ralé, segundo Coutinho (2009), é justificada como defesa da sociedade, isto é, como forma de atender ao clamor social por medidas mais duras contra quem encarna a ameaça. Não é dada nenhuma relevância à precariedade do arranjo familiar que antecedeu a prática infracional, no caso dos adolescentes, e às consequências traumáticas dessa socialização. Fecha-se, assim, o círculo de perpetuação da desigualdade, transformando questões socioeconômicas em casos de justiça juvenil e penal. Pudemos observar esta realidade em vários jovens que passaram pelo sistema socioeducativo, os quais reencontramos ou soubemos estar cumprindo pena como adultos, todos filhos da ralé, e que não conseguiram sair do sistema de justiça, seu destino final irrecorrível. O efeito de distanciamento entre as figuras do direito e os adolescentes ocorre até mesmo em relação ao defensor público, desconhecido da maioria deles, sobretudo enquanto agente de garantia de seus direitos, como evidenciaram aqueles que entrevistamos no trabalho como psicólogo jurídico.

Para Souza (2009), o avatar da criminalização da ralé está dado desde cedo, pela incorporação de valores e perspectivas que os colocam à margem social e, portanto, abaixo da lei. Este processo se dá pela "[...] construção "afetiva" e pré-reflexiva montada por uma "segunda natureza" comum que tende a fazer com que toda uma percepção do mundo seja quase que "magicamente" compartilhada sem qualquer intervenção de "intenções" e "escolhas conscientes" (p. 407).

Portanto, para efeito de pensar esses sujeitos em sua dimensão ético-política, podemos estabelecer um paralelo entre as figuras do muçulmano e da ralé, que nos informará dos limites da precariedade a que são submetidos e o quanto isto faz deles a expressão mais radical dos processos de desumanização e dessubjetivação contemporâneos. Nesse sentido, uma característica que mais os aproxima é a redução aos seus corpos, desprovidos da "autodisciplina e conhecimento útil passível de ser utilizado no mercado de trabalho competitivo" (Souza, 2009, p. 416) e, portanto, vinculados à espécie humana pela mera pertença biológica, em sentido estrito e descolado de qualquer perspectiva de solidariedade ou política. Essa condição torna-os invisibilizados e alijados das lutas emancipatórias, calcadas que estão num sujeito histórico autônomo e vinculado às forças econômicas produtivas, apesar de constituir uma massa populacional crescente. A tarefa ético-política que nos fazem encarar é a de nos destituir das ilusões que alimentam a indiferença nossa de cada dia com estes sujeitos, pois desmascaram a hipocrisia do discurso igualitário e democrático vendido pelo liberalismo vigente e consumido pelas classes que detêm o capital econômico (classe alta) e cultural (classe média).

 

A CLÍNICA PSICANALÍTICA FACE AO DESAMPARO SOCIAL

Chegamos, assim, ao terreno próprio à psicanálise neste contexto. Se o esmagamento histórico da ralé a condenou à passividade ante sua opressão, assim como aconteceu com o muçulmano de Auschwitz, o que lhe reservou como horizonte apenas sobreviver à sua degradação, o que a psicanálise tem a dizer sobre isto? Que subjetivação é possível tecer sob tamanha precariedade?

Para responder a estas questões, torna-se necessário, em primeiro lugar, revisitar a noção de desamparo em Freud. Na obra Inibições, sintomas e ansiedade (1926/1974), o autor localiza a origem do desamparo humano em situações de perigo caracterizadas como aquelas decorrentes de uma não satisfação das necessidades e das pulsões que levam a uma crescente tensão, à qual a criança não consegue responder. Freud nomeia três fatores que submeteriam o ego a uma interminável batalha contra as forças do id, do superego e da natureza, e cuja consequência é a neurose. O fator biológico nos tornaria a espécie mais desamparada e dependente, em face de nascermos prematuramente e sofrermos influências do meio exterior, de cujas ameaças somos protegidos pelo cuidado de um outro, o que faz dessa vivência inicial o protótipo da necessidade de amor que nos marcará por toda a vida. A angústia então se instala e se mantém como resposta ao desamparo biológico ao qual a criança esteve exposta. O fator filogenético, por sua vez, fundamenta-se na peculiaridade do nosso desenvolvimento libidinal, caracterizado pela interrupção após o quinto ano de vida, quando o ego identifica as moções pulsionais como perigosas, desviando seu curso natural. A pressão da sexualidade infantil ressurgirá com grande força durante a puberdade e seu necessário recalque resultará em manifestações patológicas. As moções pulsionais exercerão, desde suas primeiras manifestações, o mesmo efeito que os estímulos externos exerceram inicialmente sobre o ego, aproximando os fatores biológico e filogenético em termos do perigo que representam para a criança. Por fim, o fator psicológico obriga o ego a considerar o id e sua incessante pressão, levando a uma solução de compromisso "restringindo sua própria organização e aquiescendo na formação de sintomas em troca de ter prejudicado o instinto" (Freud, 1926/1974, p. 180). Uma vez que o id insiste em pressionar, as defesas erguidas mostram-se insuficientes para resistir-lhe e o ego é obrigado a recorrer a formações neuróticas que atendam parcialmente às novas exigências pulsionais.

Em Mal-estar na civilização (1930/1974), Freud dá ênfase aos dissabores resultantes das relações humanas como fator de desestabilização psicológica. Lidamos de modo diferente com as três fontes de sofrimento - a superioridade da natureza sobre nós, a nossa fragilidade corpórea e a inadequação das instituições sociais (família, estado e sociedade) às nossas necessidades e desejos, adotando uma atitude de mitigação dos efeitos das duas primeiras, a partir do acúmulo de experiência ao longo da história;enquanto que permanecemos francamente descontentes com o resultado de nossos esforços em torno do que estabelecemos como regras para a convivência social, pois não nos proporcionam os benefícios e proteção esperados. Isso se deve ao fato de que, apesar das evidentes conquistas que os avanços civilizacionais nos ofereceram, uma cota considerável de renúncia pulsional nos é cobrada, seja em relação aos impulsos sexuais seja em relação à agressividade, o que torna "difícil ser feliz nessa civilização" (p. 137).

A psicanálise, enquanto processo terapêutico e como crítica do social, constitui uma via privilegiada para lidar com o desamparo psicológico. Neste sentido, disponibiliza ao sujeito oportunidades de reposicionar-se ante as situações de desamparo, à medida que lhe propicia o suporte necessário à convivência com esta condição fundamental ao próprio funcionamento psíquico. Pereira (2008) defende a necessidade de manejo do angustiante nas situações de desamparo, quando alcançam um nível de desmesura, demandando sua mitigação a um ponto ótimo, desejável para desdobrar um processo de elaboração e transformação do silêncio em palavra, para transformar o inominável em uma "obra de linguagem" (p. 171).

Todavia, os sujeitos que experimentam situações-limite ou traumáticas, as quais não puderam esquecer ou recalcar, a exemplo de refugiados forçados ou daqueles submetidos à grave violência, não conseguem encarar o desamparo em sua dimensão ontológica, posto que este contato pressupõe o recalque e o manejo do angustiante:

[...] O traumático faz-se quando o sujeito, diante do desamparo que lhe é constitutivo [...] recua nesse embate com a violência obscena do Outro - lança o sujeito no impedimento do esquecimento ou do recalcamento necessário para tomar seu lugar no acontecimento e para a tramitação do trauma [...] no lugar da representação da experiência [...] apresentam-se imagens, manifestações ao modo da loucura individual ou coletiva [...] característica dessa dor, diferente das psicoses e expressa pelo estranhamento (Rosa, 2016, p. 67).

Rosa (2016) propõe a aposta na psicanálise implicada com os fenômenos sociais e políticos como uma via possível para encontrar a fala e o silêncio dos perdidos/perdedores não como impronunciáveis, mas como atos de resistência. Transforma em dispositivo clínico a compreensão da estratégia em jogo nas situações-limite, servindo-se de uma concepção da filosofia agambeniana: a subjetivação na dessubjetivação.

Entende a autora que estes sujeitos vivem um desamparo discursivo, produzido por vivências que não foram elaboradas, em contextos marcados pela violência e pela exclusão. O consequente silenciamento e desinteresse em constituir laço social implicam numa dessubjetivação produzida pela pobreza afetiva e intelectual. Considera este processo como uma estratégia que serve para ocultar

[...] a possibilidade de elaboração simbólica que poderia dar forma sintomática ao que é vivido como traumático [...] Observa-se nessa suspensão temporária [...] um modo de resguardo do sujeito ante a posição de resto na estrutura social. Uma posição necessária para a sobrevivência psíquica, uma espera, uma esperança [...] algumas situações de escuta fazem surgir ali o sujeito desejante, vivo, onde parecia haver apenas vidas secas (p. 43).

A identificação deste processo como uma forma de subjetivação na dessubjetivação fundamentou-se na análise de Agamben (2008) do experimento político que produziu o muçulmano como sua figura absoluta, introduzindo à força o impossível no real (Rosa, 2016).

O muçulmano, produzido por Auschwitz, é a catástrofe do sujeito que daí resulta, sua anulação como lugar da contingência e sua manutenção como existência do impossível. A definição de Goebbels a respeito da política - "a arte de tornar possível o que parece impossível" [...] um experimento biopolítico sobre os operadores do ser, que transforma e desarticula o sujeito até um ponto-limite no qual o nexo entre subjetivação e dessubjetivação parece romper-se (Rosa, 2016, p. 149).

O empréstimo da filosofia guiará o que Rosa (2016) considera uma posição polêmica em termos clínicos, mas que sustenta por acreditar que esta "forma de se subjetivar em absoluta dessubjetivação" (p. 126) compõe uma sutil "estratégia de resistência a certa modalidade de vida e de morte que lhe é imposta" (p. 126), "pela intervenção do "Outro" totalitário, que pretende apagar as marcas do sujeito e reduzir os homens a restos" (Rosa, 2015, p. 30). E explica o que significa tal intervenção: uma escuta que espera o momento para o sujeito se enunciar, que é precedido pelo necessário "distanciamento da experiência" traumática, pelo seu "esquecimento" para que possa "ser lembrada e significada". Só então o analista poderá compreender que o silenciamento do sujeito foi a maneira que encontrou para, como "morto-vivo", poder testemunhar o que viu e sentiu e, assim, recompor sua história e da sua comunidade. O traumático associa-se, então, a situações de ruptura do laço social capazes de desestruturar a subjetividade ante a irrupção do que está "fora de uma trama de saber" (p. 44). A escuta analítica tem a tarefa de resgatar a memória do sujeito, rompendo barreiras que impediam o compartilhamento da sua experiência e conferindo-lhe sentido.

A autora, retomando a tradição freudiana, enfatiza a potência da escuta analítica como caminho para elaborar o trauma e emancipar o sujeito da ameaça de apagamento subjetivo. Todavia, a escuta numa perspectiva ético-política não se limitará a localizar resistências individuais à degradação, pois estas são insuficientes para transformar o laço social. O espaço de fala individual só faz sentido se articulado a dispositivos de transformação do laço social, lugar do compartilhamento e validação da experiência. Para isso, busca na interlocução entre a psicanálise, a filosofia e as ciências sociais uma abertura a fontes de uma socialização inclusiva e receptiva aos sujeitos da ralé e ao muçulmano, a fim de dotar estes sujeitos de um estatuto político que lhes foi negado e interditado. E se vale de Agamben (2005) para refletir sobre o que significa resgatar a experiência do seu empobrecimento e aprisionamento, reencontrando-a na infância do homem:

[...] a psicanálise mostra-nos precisamente que as experiências mais importantes são aquelas que não pertencem ao sujeito, mas a 'aquilo' (Es). 'Aquilo' não é, como na queda de Montaigne, a morte, pois agora o limite da experiência se inverteu: não se encontra mais em direção à morte, mas retrocede à infância. Nessa reviravolta do limite [...] devemos decifrar os caracteres de uma nova experiência (2005, p. 51).

Rosa (2016) traça uma perspectiva de intervenção psicanalítica que contempla a escuta do traumático, sem descuidar de articulá-la a dispositivos da rede socioassistencial e da saúde, os quais possibilitam o acolhimento e a expressão coletiva do sofrimento, sobretudo de sujeitos submetidos a situações de violência, o que demanda ações específicas que atenuem seu drama fora do âmbito clínico. Ela ilustra a proposta com o trabalho desenvolvido na Casa do Migrante, em São Paulo. As demandas políticas urgentes de sujeitos radicalmente desterritorializados de suas referências identitárias empurra-os para uma posição reativa à condição de "perdidos" (sem documento, sem lugar, sem emprego, sem laços de parentesco). O apego ao perdido fixa-os muitas vezes à busca de recuperar essas referências como se fossem a reconquista definitiva da posição perdida, capaz de protegê-los de forma permanente, o que pode revelar-se uma ilusão, pois a precariedade persiste sob a forma de desemprego ou subempregos que se seguem à legalização de sua cidadania. Diria que o mesmo acontece com os jovens que passam pelo sistema socioeducativo, a quem a restituição de sua liberdade não é acompanhada de oportunidades concretas de cidadania e de novos laços com o social.

Rosa (2016) propõe para o contexto dos migrantes e refugiados, em face da diversidade de culturas, línguas e origens, a circulação da palavra, de modo a ressignificarem sua experiência de deslocamento forçado. O contato destes sujeitos com a obscenidade da violência os expõe a uma situação traumática sem contornos pelo simbólico, sem narrativa que a ancore no sintoma, produzindo um desamparo insuportável e o recolhimento no silêncio por não haver uma interlocução possível ante a vivência do outro como pura ameaça. A autora entrelaça psicanálise e política para defender que nenhum trauma, nenhuma tragédia elimina o desejo, que precisa expressar-se em atos que reinventem a história, que elaborem o drama como trama de sentidos. No caso específico do migrante forçado, ela supõe uma intervenção que encare o processo político que envolveu uma escolha pela fuga ao insuportável, a escolha em partir, deixando para trás sua história e relações que podem ser retomadas sob a forma de relatos, ao invés de silenciarem ante o peso da urgência de se adaptarem à terra estrangeira. Mas a escuta e reconstrução das trajetórias, ao deparar com o limite da culpa e da angústia de ter sobrevivido a uma tragédia que ceifou os que deixou para trás, precisa manejar a angústia para que se transforme em desejo de viver como testemunha, como quem não pode não dizer o que vivenciou. O que nem sempre se operará, pois há os sujeitos que se afogaram no traumático sob o impacto da violência desmedida do outro, que sucumbiram ao acontecimento como a uma verdade absoluta contra a qual não há nada mais o que dizer:

O traumático faz-se quando o sujeito, diante do desamparo que lhe é constitutivo, ou do "trou", vazio que o habita, recua nesse embate com a violência obscena do Outro - lança o sujeito no impedimento do esquecimento ou do recalcamento necessário para tomar seu lugar no acontecimento e para a tramitação do trauma [...] no lugar da representação da experiência [...] apresentam-se imagens, manifestações ao modo da loucura individual ou coletiva [...] característica dessa dor, diferente das psicoses e expressa pelo estranhamento (Rosa, 2016, p. 67).

O manejo do angustiante se faz como um trabalho de luto da partida, sustentando o caráter de uma escolha forçada e necessária para que o sujeito continue vivendo, apesar da culpa e da vergonha que isso implica para ele. Várias estratégias são necessárias ao trabalho para processar o luto e a reconstrução da trajetória pessoal e coletiva. Rosa (2016) concebe como primeiro passo a constituição de um lugar e um tempo que permitam ao sujeito sentir-se cuidado, em um acolhimento "quase maternal", o que pode ser propiciado por espaços como a Casa do Migrante. Abre-se com isso uma pausa, um intervalo para que o sujeito se reencontre com a fala de si e de algo a ser testemunhado, transmitido, permitindo

[...] a torção da posição de vítimas do Outro, forçados a uma fuga, torturados pela culpa e pela vergonha, para a posição de escolha pela vida em detrimento do sentido [...] O desejo de saber supõe o insabido, o enigma, a incógnita [...] Começar sobre o que se sabe. E ir atrás das inscrições [...] Algo se partiu, pariu-se (p. 70).

É preciso considerar também um tempo para esquecer, em que o sujeito está impossibilitado de formular uma demanda, devendo a intervenção clínica se dar no território geográfico e psíquico onde circula, de modo a implicar o laço social. Todo o esforço é para constituir um testemunho da experiência, que permita ao sujeito transmiti-la e, assim, elaborar o luto pela transformação do trauma em experiência compartilhada. Portanto, diferentes tempos compõem a narrativa que situará o sujeito na sua experiência e na história de sua comunidade: o momento de partir, o tempo de esquecer e o tempo de contar, os quais implicarão formas diferentes de abordagem, pela presença, pelo acolhimento e pela escuta. A presença do psicólogo/psicanalista oportuniza um lugar de fala para que os sujeitos organizem suas histórias em narrativas que os relancem no laço social, a despeito da desconfiança que o seu contexto traumático produziu.

A narrativa tem um tempo diferente da dimensão do acontecimento em andamento - contar antecipado pode fixar, enrijecer e estagnar um desenrolar de acontecimentos sem sentido, que só depois terão sua significação. As narrativas inicialmente enfocam a partida - geralmente forçada - e as escolhas que se processaram e só depois, na própria transmissão, serão ressignificadas (Rosa, 2016, p. 71).

Esses sujeitos falados pelos seus processos judiciais, muitas vezes mantêm-se em silêncio quando tentamos ouvi-los, como frequentemente acontece quando os entrevistamos por demanda dos operadores do direito. Calar ou responder de modo monossilábico, além de ser uma atitude de desconfiança com o que será feito de suas palavras, diz também do momento de suspensão subjetiva de experiências traumáticas que são revividas no ambiente socioeducativo. Foi o que testemunhamos com Jesubambino, apresentado ao nosso serviço, junto com sua mãe, para avaliarmos as condições de cumprimento de sua medida socioeducativa. Com diagnóstico de retardo mental leve e histórico de sofrimento psíquico desde a infância, fez sua aparição mais contundente na cena social ao envolver-se em ato infracional. Nada respondia às nossas interpelações, mantendo uma expressão tola e ausente, além de ficar em permanente agitação, ora balançando-se na cadeira, ora levantando-se, ora mexendo nos teclados dos computadores. A mãe, apreensiva por uma resposta ao descontrole crescente dele, falava por ele. Assim foram os sucessivos atendimentos até finalizar-se o seu processo judicial sem aparentes avanços na dinâmica psíquica e familiar do adolescente.

Todavia, a mãe retomou inúmeras vezes para falar conosco do que realmente lhe interessava: questões familiares, sobrevivência material, ameaças a sua integridade em face do envolvimento de outro filho com o tráfico. E o adolescente, do qual sabíamos até então a partir da mãe, voltou sozinho para falar de si, demonstrando confiança e expectativa de que nossa intervenção ajudaria a reconquistar um mínimo de autonomia que havia alcançado com o comércio de água mineral, o qual havia interrompido. Sua narrativa testemunhava que não estava reduzido a destinatário do Benefício de Prestação Continuada concedido por conta de seu retardo, nem mesmo ao tráfico de drogas que se apresentava como atavismo familiar e comunitário. Os dispositivos da rede socioassistencial foram fundamentais para que o seu desejo se manifestasse e se reposicionasse, encontrando brechas para sua expressão criativa e um ponto a partir do qual tecesse sua resistência à condenação de infrator e de resto da exclusão socioeconômica.

Portanto, a atenção articulada com os serviços socioassistenciais e a disposição de ouvir o que extrapolava os autos processuais, significou para o adolescente e sua família a constituição do acolhimento preliminar necessário à circulação da fala em lugar de sua terceirização (demanda judicial e mãe remetendo para o filho questões que também eram suas). Passaram a apostar na narrativa compartilhada como caminho aberto para transformarem as dores congeladas e insuportáveis em sofrimento contado e ressignificado. Apresentaram demandas próprias de uma escuta clínica mais singular, anunciada em seu desamparo discursivo e em sua dificuldade de superação dos traumatismos que passavam, necessariamente, por sua elaboração em um espaço clínico, o qual buscamos constituir fora do âmbito jurídico, encaminhando-os aos serviços protetivos e de atenção em saúde.

O encontro com a instância de representação da lei no campo normativo havia propiciado uma oportunidade de fala, o que deu margem para construírem outras formas de laço com o social e para transformarem retroativamente suas histórias, à medida que o sofrimento sem fala pôde também tramitar, dentro e fora dos autos processuais. Desse modo, o processo socioeducativo operou efeitos de subjetivação para o adolescente e sua família, por constituir um momento de contenção da impulsividade como única relação com a insuportável realidade que os esmagava, além de permitir que o drama sociofamiliar fosse visibilizado e compartilhado como digno de ser contado e retomado, adquirindo sentido, enquanto história em aberto, pelo testemunho vivo dos seus personagens-narradores.

 

À GUISA DE CONCLUSÃO

Diante da condenação de contingentes significativos de pessoas à completa inexistência como sujeitos de direito, a psicanálise se vê convocada a dialogar com as ciências sociais e a filosofia, para arriscar-se nesses novos territórios da (des)subjetivação. No presente artigo, pudemos percorrê-los, no contexto brasileiro, com as coordenadas sociológicas de Souza, para entender como a vida reduzida à mera subsistência produz uma subcidadania, que só pode ser superada por políticas públicas calcadas no reconhecimento dessa condição. A perspectiva de Agamben nos norteou para enxergar como o experimento de Auschwitz guia o estado de exceção a que nos vemos submetidos, concebendo um lugar privilegiado para o indigno como reflexão crucial para desmontar os dispositivos que o engendra. Pudemos então evidenciar como a psicanálise, com base nessas referências, pode se apresentar como prática clínica e reflexão teórica sobre os efeitos da destituição discursiva em que se vêm colocados os sujeitos em situações extremas de sofrimento, como nos propõe Rosa em suas intervenções.

Guiados por essas reflexões, pudemos mostrar que o trabalho com adolescentes em conflito com a lei descortina um campo privilegiado para a produção de uma clínica ampliada, a fim de restituir aos sujeitos exilados do social e expropriados de narrativas, espaços diferenciados de circulação de sua fala, retirando-os do apagamento em que são colocados. Para tanto, torna-se necessário estabelecer com os operadores do direito uma relação dialetizada, tensionando a "verdade dos fatos" objeto dos procedimentos judiciais com a escuta do sujeito desejante, permitindo que se abram perspectivas de subjetivação para além da pretensão punitivista ou ortopédica.

 

REFERÊNCIAS

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Lima, M. B. (2019). "Comandos" e "bênçãos" face ao desamparo: Expressões da função fraterna em adolescentes privados de liberdade (Dissertação de Mestrado). Universidade Católica de Pernambuco, Recife. Disponível em: http://tede2.unicap.br:8080/handle/tede/1109        [ Links ]

Rosa, M. D. (2016). A clínica psicanalítica em face da dimensão sociopolítica do sofrimento. São Paulo, SP: Escuta/Fapesp.         [ Links ]

Rosa, M. D. (2015). Psicanálise, política e cultura: A clínica em face da dimensão sociopolítica do sofrimento (Tese de Livre-Docência) Universidade de São Paulo Disponível em: https://psicanalisepolitica.files.wordpress.com/2014/06/psicanc3a1lise-cultura-e-polc3adtica-livre-docencia-maio-2015impresso.pdf        [ Links ]

Souza, J. (Org.). (2009). A ralé brasileira: Quem é e como vive. Belo Horizonte, MG: Editora UFMG.         [ Links ]

 

 

Recebido em:30/07/2020
1ª revisão em: 01/10/2020
Aceito em: 21/11/2020

 

 

CONFLITOS DE INTERESSES
Não há conflitos de interesses.
SOBRE OS AUTORES
Milton Bezerra de Lima. Mestre em Psicologia Clínica pela Universidade Católica de Pernambuco. Formação em Clínica Psicanalítica da Infância e da Adolescência pelo Centro de Pesquisa em Psicanálise e Linguagem. Psicólogo do Tribunal de Justiça de Pernambuco.
E-mail: milton.bezerra691@gmail.com
https://orcid.org/0000-0002-6331-810X
Véronique Donard. DESS em Psicologia Clínica e Doutorado em Psicopatologia Clínica pela Université Paris VII. Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP).
E-mail: veronique.donard@unicap.br
https://orcid.org/0000-0003-4812-6668

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