SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.6 número especialÉtica e pesquisa: o compromisso com o discurso do outroVeias abertas na produção em pesquisa índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

artigo

Indicadores

Compartilhar


Revista Polis e Psique

versão On-line ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.6 no.spe Porto Alegre jan. 2016

 

ARTIGOS

 

EscritaCom: Heterotopias

 

Writewith: Heterotopias

Escrituracon: Heterotopías

   

 

Anita Guazzelli BernardesI e Jeferson Camargo TabordaII

I Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Porto Alegre, RS, Brasil.

II Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), Campo Grande, MS, Brasil.

 

 


RESUMO

Este artigo focaliza uma reflexão sobre a escritaCom a partir do conceito de heterotopia. O conceito de heterotopia permitiria uma zona de aproximação e de criação de um espaço outro, na medida em que se considerar que um exercício de escrita se faz em um espaço. A heterotopia torna-se fio condutor para um exercício de pensamento sobre a escritaCom. Afirma-se que a escritaCom constitui uma possibilidade heterotópica porque o escrever exclusivamente solitário constitui uma utopia. Isto porque nunca se escreve solitariamente: multiplicidades de vozes fazem-se presentes a cada pensamento e a cada palavra. A escritaCom é tomada como uma política de pesquisa e torna-se, ela mesma, a condição mediante a qual a pesquisa se encontra com a vida. Um vetor afetivo que permite perseguir desdobramentos éticos e políticos na pesquisa, a partir do qual se tornaria possível conciliar política e afetos.

Palavras-chave: Escrita; Heterotopia; Pesquisa; Afeto; Política.


ABSTRACT

This article focuses on the writeWith embodied methodology from the vantage point of the concept of heterotopia. Heterotopia would allow an approach zone and creation of an other-place, to the extent that one may consider that a writing exercise is conducted somewhere. Heterotopia becomes the conducting wire for a thought exercise that engages writingWith. We contend that to writeWith is a heterotopic possibility because to write alone, exclusively, is a utopia. One never writes alone: a multiplicity of voices make themselves present in each thought and in each word. When writeWith is adopted as a research policy it becomes a mediating condition for the encounter of research with life; it becomes an affective vector that allows one to follow ethical and political unfoldings in the research, and through which it would become possible to reconcile policies and affects.

Keywords: Writing; Heterotopia; Research; Affections; Policy.


RESUMEN

El presente artículo objetiva ofrecer una reflexión sobre la escrituraCon, tomando como punto de partida el concepto de heteronomía. El concepto de herotonomía es una zona de aproximación y de creación de un espacio otro, en la medida en que se considera que el ejercicio de la escritura se hace en un espacio. La heteronomía tornase hilo conductor para un ejercicio de pensamiento sobre la escrituraCon. Se afirma que la escrituraCon constituye una posibilidad heterotópica, porque el escribir exclusivamente solitario constituye una utopía. Esto porque nunca se escribe solitariamente: multiplicidades de voces se hacen presentes en cada pensamiento y encada palabra. La escrituraCon, es tomada como un política de la investigación e se torna, ella misma, a condición mediante la cual la investigación se encuentra con la vida. Un vector afectivo que permite dar seguimiento a desdoblamientos éticos y políticos en la investigación, a partir de lo que se tornaría posible la conciliación de política y afectos.

Palabras-clave: Escritura; Heterotopía; Investigación; Política.


 

 

Ao pensarmos no texto tanto como ato de escreverCom quanto de pensar sobre, optamos por seguir alguns caminhos de conversa, como quando sentamos com os amigos e se lançam histórias e estórias. Fomos lançando alguns fios por onde a conversa caminharia. Uma conversa que foi sendo feita ao longo de um tempo de trabalho juntos, em que as ideias foram se compondo por algo em que ambos tínhamos interesse: a heterotopia. A heterotopia, então, permitiu-nos uma zona de aproximação e de criação de um espaço outro que para nós era um pouco inédito, pois se tratava de um conceito com o qual não tínhamos ainda familiaridade, mas que se tornava gradativamente recheado de afetos: gostamos do conceito, mas não sabíamos muito bem por que ou aonde nos levaria.

Então, começamos agora a tomar alguns murmúrios do que fomos tocando pelo conceito e, sobretudo, como o conceito nos permitiu indagar sobre um não-conceito: a escritaCom. A reflexão sobre as possibilidades de uma escritaCom apoia-se nesta proposição que Foucault (2009, p. 414) tece sobre o espaço: “o espaço no qual vivemos, pelo qual somos atraídos para fora de nós mesmos, no qual decorre precisamente a erosão de nossa vida, de nosso tempo, de nossa história, esse espaço que nos corrói e nos sulca é também em si mesmo um espaço heterogêneo”. A escolha deste pensamento dá-se em razão de considerarmos que um exercício de escrita se faz em um espaço, marcará um espaço e também constituirá um espaço. Ao mesmo tempo, como assinala o autor, o espaço é aquilo que nos sulca e nos corrói, onde decorre a erosão de uma vida, por ter uma qualidade imanente de heterogeneidade. É justamente neste traçado da heterogeneidade e da vida que o espaço se torna um fio condutor para um exercício de pensamento sobre a escritaCom.

Pensar a escritaCom em um espaço é percorrer aquilo que a produz e também o que produz, mas sobretudo, que espaço é este possível de uma escritaCom. Seguindo este caminho, a escritaCom encontra-se com um espaço heterogêneo, um espaço que, segundo Foucault (2009), pode ser pensado como uma heterotopia. A heterotopia é um espaço onde se vive no interior de um conjunto de relações, “como uma rede que religa pontos e que entrecruza sua trama” (Foucault, 2009, p. 411).

Se aqui se afirma que a escritaCom constitui uma possibilidade heterotópica, é porque o escrever exclusivamente solitário constitui uma utopia. Isto porque nunca se escreve solitariamente: multiplicidades de multiplicidades de vozes fazem-se presentes a cada pensamento e a cada palavra. O que a escritaCom busca é dar visibilidade a esta questão. Ligar pontos e entrecruzar uma trama são relações, vizinhanças irredutíveis umas às outras e também impossíveis de sobreposições. Enquanto uma utópica escrita solitária anseia estabilidade porque crê existirem apenas territórios fixos, para escreverCom, é preciso compreender que qualquer território é provisório, por isso a busca em desterritorializar e reterritorializar espaços outros: “só o desterritorializado é capaz de se reproduzir” (Deleuze & Guattari, 1995, p. 97). A escritaCom, como um espaço heterotópico, constituiria esta possibilidade ao mesmo tempo real e virtual.

A escritaCom como espaço real é um espaço em que se trama uma rede de vizinhanças entre distintas figuras e personagens que naquele momento encontram uma condição de aproximação, uma possibilidade de um espaço outro em que estes encontros se tornam possíveis. As linhas heterogêneas que formam a trama tecida não visam somente a formar um plano de consistência mais ou menos espesso, mas, antes de tudo, criar linhas de fuga que possibilitem novas conexões. Trata-se de um movimento centrípeto no espaço em que certos elementos heterogêneos dispersos se aproximam, e, nesta aproximação, outro espaço constitui-se, ou seja, é possível justapor em um só lugar relações distintas e, muitas vezes, incompatíveis. A incompatibilidade residiria nas diferentes posições e conformações que as figuras e personagens ocupam em certo lugar, por exemplo, a Academia. Esta incompatibilidade de posições corrói certos espaços e torna possíveis outros quando escrevemosCom. EscreverCom são mudanças de posições, sobretudo, novas composições, um espaço outro, ou uma heterotopia. No texto escrito, a heterotopia se faz real, um recorte no tempo em que se rompe com um tempo tradicional.

Como virtualidade, a heterotopia é uma suspensão provisória de posições. Trata-se de uma hospedagem de passagem, porque se faz no momento de um encontro, ou na possibilidade dele. A hospedagem de passagem é uma virtualidade, não modifica um espaço em termos de posições que ali se encontram, mas cria a possibilidade de outro espaço, passageiro, fugaz, que habitamos em recortes do tempo. A hospedagem de passagem permite, na sua condição de virtualidade, arranjos inéditos que não se esgotam, e sim se dispersam. Entretanto, esta condição de dispersão, de sermos atraídos para fora de nós mesmos, torna a heterotopia um espaço que nos sulca e que nos encanta. Uma virtualidade que nos desafia por ser ela mesma a possibilidade de outro espaço, de outros modos de subjetivação, ou seja, de diferença e de imaginação.

Sendo assim, a experiência, como um domínio ao mesmo tempo real e virtual, tal como aquela que acontece em laboratórios a partir de misturas de diferentes elementos, sejam eles químicos, físicos ou biológicos, torna-se condição para subjetividades virtuais possíveis (Foucault, 2010). A experiência como experimentação constitui-se como espaço privilegiado para uma escritaCom. O enfoque em práticas e experimentações, ou seja, em experiências, constitui-se em um plano de imanência no qual se torna possível pensar em produzir espaços heterotópicos. Os focos de experiências são os planos mediante os quais a norma recai sobre a vida ao mesmo tempo em que a vida afirma sua potência em criar normas.

A heterotopia opera tanto com a experiência de tempo quanto de espaço; ela é um contraespaço que se constitui em um tempo, um outro lugar de contestação mítica e real no qual vivemos. Mítica porque se trata de experiências-rituais; real porque se produz pelo movimento de um corpo com espessuras, contornos, dilatações, inflexões, uma experiência-corporal. Sobretudo, a heterotopia é um espaço da invenção, em que o tempo se dilata ou se contrai de acordo com o ritual e com o movimento do corpo, portanto, espaço da potência da vida em criar normas. Neste sentido, de uma potência da vida, a heterotopia seria a afirmação de que o espaço não é neutro tampouco branco - “vive-se, morre-se, ama-se em um espaço quadriculado, recortado, matizado, com zonas claras e sombras, diferenças de níveis, degraus, escadas, vãos, relevos, regiões duras e outras quebradiças, penetráveis, porosas” (Foucault, 2013, p. 19).

A heterotopia serviria como uma política de pesquisa, na medida em que se faz, além de um contraespaço em um tempo, também um espaço de contestação, um contraespaço para a produção, no qual uma experiência de outros lugares se torna real e virtual, ritual e corporal. A escritaCom assumiria a condição de um movimento ritual do corpo, não pela repetição do mesmo, mas pela experimentação e invenção de outras experiências. Neste caso, voltaríamos a pesquisa para a experiência artificial produzida nos laboratórios, mas assumida como condição heterotópica de produção de mundos. Ou seja, seria considerar o laboratório como espaço heterotópico em que certas experiências se fazem possíveis, migrando da ideia do laboratório como espaço asséptico, neutro, embrutecido, para a ideia da invenção de mundos, da criação de novas normas. Não mais o espaço da produção da verdade, mas da experiência de novas possibilidades de composição da vida.

 

Deslizar nas Heterotopias

Então, diz Czerkinsky (Deleuze, 2006, p. 353): “vamos fazer superfícies, não uma apresentação. Vamos deslizar”. A possibilidade de deslizar, de constituir de uma superfície heterotópica, encontra-se com algumas questões que Deleuze (2006) propõe sobre o pensamento nietzschiano – o intempestivo e o intensivo. A escritaCom seria uma possibilidade de um procedimento que se faz no tempo, mas também contra o tempo, ao espacializar uma condição que está fora de um tempo. A heterotopia, como superfície de um encontro provisório, é intempestiva quando em um espaço se criam conexões que são intensivas, porque advém de campos de exterioridade de uns em relação aos outros, de outros tempos.

O intempestivo articula-se às práticas que não visam a conservar ou “inovar” (noção tão cara ao vocabulário neoliberal), mas criar ou, melhor ainda, destruir para criar, conforme a concepção nietzschiana (Deleuze, 2006). Isto porque é mediante deslizes que um espaço heterotópico pode ser constituído. A escritaCom é uma experiência engendrada com as multiplicidades, pois é deslizando entre sentidos, deslizando entre diferenças, que se pode ir ao encontro com o fora. Nas palavras de Blanchot (2005):

O deserto ainda não é nem o tempo, nem o espaço, mas um espaço sem lugar e um tempo sem engendramento. Nele, pode-se apenas errar, e o tempo que passa nada deixa atrás de si, é um tempo sem passado, sem presente, tempo de uma promessa que só é real no vazio do céu e na esterilidade de uma terra nua, onde o homem nunca está, mas está sempre fora. O deserto é o fora, onde não se pode permanecer, já que estar nele é sempre já estar fora [...] (p. 115).

Errar. Eis uma noção chave para uma escritaCom. Os erros são deslizes, um modo de deslizar. Errar é caminhar pelo deserto, lugar de incertezas e, por isso mesmo, lugar de medo e insegurança. Ao mesmo tempo, é somente errando e deslizando que se torna possível criar e não apenas inovar: “o homem que cavalga longamente por terrenos selváticos sente o desejo de uma cidade” (Calvino, 1990, p. 15). O Marco Polo de Calvino (1990), ao errar de cidade em cidade, de deserto em deserto, faz uma espécie de escritaCom, pois desliza sua narrativa como uma ficção-política. Os exageros de Polo são efeitos de seu encontro com o fora. Assim como o deserto, o fora constitui um espaço onde se pode apenas errar. E a escritaCom não se trata justamente disto?

O intempestivo se faz por um encontro com o fora, o fora de um tempo, mas que se torna um tempo intensivo, portanto, uma raridade destes espaços/superfícies. A raridade se faz justamente porque, como heterotopia, a experiência que se produz não é de codificação, mas de descodificação. Tal é, então, o desafio: a escritaCom como descodificação. O laboratório heterotópico é um espaço para a descodificação, na medida em que elementos são combinados, hibridizados, recolocados, criando novas ontologias.

A descodificação é uma tentativa de operar não em uma superfície de significantes e significados, mas um procedimento metodológico possível em outro espaço - “é isso o estilo como política. De um modo mais geral, em que consiste o esforço de um tal procedimento, que pretende fazer passar seus fluxos por debaixo das leis, recusando-as, por debaixo das relações contratuais, desmentindo-as, por debaixo das instituições, parodiando-as?” (Deleuze, 2006, p. 321). A escritaCom talvez encontre condições de possibilidade, em termos de uma estética-política, em um pensamento do fora. Ou seja, um pensamento em que as linhas não começam nos limites de uma quadratura, mas ao lado, acima, abaixo - “é o estabelecimento de uma relação imediata com o fora” (Deleuze, 2006, p. 323). O fora, na constituição de um espaço heterotópico, é uma força mais exterior, portanto, intensiva.

“É por intensidade que se viaja [...]”, afirmam Deleuze e Guattari (1995, p. 89). Isto equivale a afirmar que uma escritaCom, além de uma experiência centrífuga, pois sobrepõe espaços, implica também deslocamentos centrífugos com velocidades variadas. A escritaCom constitui uma viagem intensiva porque implica correr “com” segurando uma mão diferente a cada movimento, de modo a viajarmos sempre, de algum modo, acompanhados. Ao se constituir como um viajar acompanhado, a escritaCom exige sinergia, pois é preciso ter fôlego para continuar: rápidos e cambiantes, os passos precisam ter certa cadência, certo ritmo, mesmo que estes se descodifiquem.

A consistência da descodificação ou mesmo de seu objeto é aquilo que, na leitura que Deleuze (2006) faz do modo como Nietzsche escreve algo, tem a ver com os nomes próprios. Os nomes próprios são aqueles outros que passam não apenas a falar nas nossas escritas, mas a torná-las possíveis; são aqueles elementos dos laboratórios com os quais nos misturamos e que misturamos. Os nomes próprios, tanto coletivos quanto individuais, são designações de intensidades, são os Com que compõem e tornam a escrita possível, pois passam como linhas do fora, retirando o autor de uma experiência de interioridade expressa, apresentada em um texto. Neste sentido, os nomes próprios assumem a condição, no laboratório, da experiência do espaço outro, de um contraespaço. Mesmo que haja uma tentativa de normatização naquilo que produzimos nos laboratórios, o espaço “entre” que se produz nesse encontro artificial de diferentes intensidades é uma contestação da norma e ao mesmo tempo a invenção de outras normas. Os nomes próprios, como intensidades nos laboratórios, saem de uma dimensão do inabalável/imutável para compor um espaço do inesperado, do abalável.

Para Deleuze e Guattari (1995), o nome próprio nunca se refere a um indivíduo isolado, mas a uma “apreensão instantânea de uma multiplicidade” (p. 66). Um corte no rizoma que engendra novos fluxos. Neste sentido, o laboratório asséptico e neutro sonhado pelo projeto moderno de fato nunca existiu, exceto como uma ficção científica. Enquanto a neutralidade científica constitui uma forma de utopia, o laboratório é a realização da utopia: sua heterotopia. O laboratório adapta-se bem ao terceiro princípio da heterotopia estabelecido por Foucault (2009), que trata da capacidade que certos lugares possuem de justapor vários posicionamentos incompatíveis num lugar real. A escritaCom vai além do laboratório: rejeita a neutralidade, mas, assim como este, busca experimentações e criações de nomes próprios.

Os nomes próprios são linhas intensivas que permitem uma descodificação da própria autoria, criam superfícies que permitem o riso e a ironia, já que são intensidades, são intempestivas. O riso e a ironia porque, em um espaço heterotópico, não se trata, no caso de uma escritaCom, de expressão da tragicidade de uma interioridade, já que o plano, mesmo que nos sulque, não encontra um interior, mas uma rede de conexões, de linhas que compõem um pensamento ao ar livre. A escritaCom talvez seja esse espaço heterotópico do ar livre, pois as intensidades se atravessam, ou os nomes próprios passam de formas descodificadas.

Em termos metodológicos, o pensamento do fora para a constituição de uma escritaCom seria um pensamento nômade, por isso, um espaço heterotópico do ar livre. As intensidades da escritaCom produzem o riso de encontros engraçados, interessantes, que se opõem a uma máquina administrativa e despótica, quando um pensamento torna os nomes próprios significados e significantes. As intensidades da escritaCom podem, então, tornar-se uma mudança de respiração para que se pense diferente.

Como criar algo novo sem pensar diferentemente? A escritaCom possibilita escapar das aderências comuns no campo da metodologia: o tão buscado ineditismo nada mais seria que um efeito destes deslocamentos criativos. O encontro com linhas heterogêneas constitui parte do efeito da experiência da escritaCom. Assim, a invenção pode deixar de ser vista como algo meritocrático ou inerente a sujeitos especiais/individuais, para ser compreendida como apenas um dos efeitos de percorrer espaços outros.

A escritaCom, como uma política de pesquisa, torna-se ela mesma a condição mediante a qual a pesquisa se encontra com a vida. Um vetor afetivo que permite perseguir desdobramentos éticos e políticos na pesquisa, a partir do qual se tornaria possível conciliar política e afetos. Os nomes próprios que compõem um espaço heterotópico de escrita não são conceitos, mas vida, afetos, estados de alma, de modo a tornar a escritaCom um dispositivo de interrogação, no processo de pesquisa, sobre o que é feito do conceito na vida (Foucault, 2000). Se a tomarmos como um dispositivo, a escritaCom não seria mais, como sugere Deleuze (2006), uma luta no nível do próprio texto. É preciso que a escritaCom permita encontros de forças exteriores que dão uma possibilidade de liberdade no próprio ato de escrever. Deste modo, não o texto, mas o método é que tornaria a escrita um campo de exterioridade em que se encontram, se defrontam os nomes próprios.

Considerações de uma EscritaCom

A escritaCom torna-se um processo do próprio pesquisar, e não a finalização do pesquisar. A escritaCom, como estratégia de uma política de pesquisa, vai apresentar sempre um componente de fuga, um componente que se furta à formalização, na medida em que vai encontrar zonas de avizinhamento, de indiscernibilidade, de gagueira, nas quais se apresentam impossibilidades de precisão: quem fala, de quem é, o que é. A escritaCom é aquela que permite a experiência de um impessoal, não como uma generalidade dos sem nomes, mas como uma singularidade. A escritaCom como trajetória, e não descrição de trajetória na pesquisa, assume aquilo que Deleuze (1997, p. 14) considera como “inventar um povo que falta. Compete à função fabuladora inventar um povo. É um povo menor, eternamente menor, tomado num devir-revolucionário”. A política, assim, apresenta-se não como meta a ser atingida, e sim como o tracejo do próprio pesquisar que desliza pelas heterotopias dos encontros. Neste caso, a escritaCom é uma das paragens do pesquisar, por isso heterotópica, que aparece pelo movimento, uma passagem da vida na linguagem.

A política reside na condição de construção de um espaço outro, ou seja, de uma heterotopia. As vidas que atravessam o texto permitem um pensar Com que se faz por intercessões, articulações, agenciamentos não conceituais que se transformam em conceitos. Deste modo, a escritaCom se tornaria possível quando o conceito rouba o não-conceito para tornar a si mesmo outro conceito ou inventar outro conceito ou uma passagem da vida. Os nomes próprios, como figuras intensivas e intempestivas, tiram a sobriedade do conceito de uma região circunscrita, justamente porque, ao roubar os nomes próprios, o conceito cria outra composição para si mesmo. A escritaCom “significa desembaraçar, desemaranhar os conceitos de seus sistemas de origem para criar um novo sistema” (Machado, 2009, p. 30), como uma experiência do conceito na vida, como uma heterotopia, que permite que o próprio conceito seja uma superfície de experiência da vida:

Não é apenas para comprar e vender que se vem a Eufêmia, mas também porque à noite, ao redor das fogueiras em torno do mercado, sentados em sacos ou em barris ou deitados em montes de tapetes, para cada palavra que se diz – como lobo, irmã, tesouro escondido, batalha, sarna, amantes – os outros contam uma história de lobos, de irmãs, de tesouros, de sarna, de amantes, de batalhas. E sabem que na longa viagem de retorno, quando para permanecerem acordados bambaleando no camelo ou no junco, puserem-se a pensar nas próprias recordações, o lobo terá se transformado num outro lobo, a irmã numa outra irmã diferente, a batalha em outras batalhas, ao retornar de Eufêmia, a cidade em que se troca de memória em todos os solstícios e equinócios (Calvino, 1990, p.38).



Referências

Blanchot, M. (2005). O livro por vir. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Calvino, I. (1990).  As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

Czerkinsky, S. (2006). Faces e Superfícies. Em G. Deleuze (Org.), A Ilha Deserta. São Paulo: Iluminuras.         [ Links ]

Deleuze, G. (1997). Crítica e clínica. São Paulo: Ed. 34.         [ Links ]

________. (2006). A Ilha Deserta. São Paulo: Iluminuras.         [ Links ]

Deleuze, G., & Guattari, F. (1995). Mil Platôs I: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Ed. 34.         [ Links ]

Foucault, M. (2000). A vida: a experiência e a ciência. Em M. Foucault (Org.), Ditos & Escritos II (pp. 352-366). Rio de Janeiro: Forense Universitária.         [ Links ]

________. (2009). Outros espaços. Em M. Foucault (Org.), Ditos & Escritos III (pp. 411-422). Rio de Janeiro: Forense Universitária.         [ Links ]

________. (2010). O governo de si e dos outros. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

________. (2013). O corpo utópico, as heterotopias. São Paulo: n-1 Edições.         [ Links ]

Machado, R. (2009). Deleuze, a arte e a filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]


Data de submissão: 30/07/2015
Data de aceite: 15/09/2015

I Doutora em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Psicóloga. Docente e Pesquisadora do Programa de Pós-graduação em Psicologia da  Universidade Católica Dom Bosco. Pesquisadora do CNPq – bolsista produtividade. E-mail: anitabernardes1909@gmail.com

II Mestre em Psicologia pela Universidade Católica Dom Bosco (UCDB). Docente do Curso de Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. E-mail: j.taborda@hotmail.com

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons