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Revista Polis e Psique

versão On-line ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.6 no.2 Porto Alegre jul. 2016

 

ARTIGOS

 

Dançar a visualidade de um poema e a eclosão de propriedades corporais

 

Dancing the visuality of a poem and the emergence of bodily properties

Danzar la visualidad de un poema y la eclosión de propriedades corporales

   

 

Danielle MilioliI e Dolores GalindoII

I Univesidade Estadual Paulista (UNESP), Presidente Prudente, SP, Brasil.

II Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Cuiabá, MT, Brasil.

 

 


RESUMO

Por meio do processo de invenção de um trabalho de dança-pesquisa narramos como foram se produzindo as propriedades do corpo em dança, procurando tornar visíveis arranjos mínimos e talvez desprezíveis se vistos num plano panorâmico. Trata-se, portanto, de uma narrativa que se insere numa problemática mais ampla, enunciada por Latour (2008a) como dizendo respeito às conversas sobre o corpo, ou seja, aos modos como os corpos são mobilizados nos relatos daquilo que fazem. Trabalhamos uma narrativa do mínimo que é diversa da oposição entre micro e macro, procurando dar conta da eclosão das propriedades corporais vistas como acontecimentos dos quais podemos rastrear a emergência nas diferenças que fazem o corpo sensível e que, por sua vez, co-constituem esse corpo que não está dado de antemão. Discorre-se sobre as propriedades corporais que foram produzidas num experimento de dança-pesquisa, intitulado De Conceitos criado a partir de um poema visual escrito por Silva Freire.

Palavras-chave: Corpos; Visualidades; Dança.


ABSTRACT

This paper discusses the bodily properties produced in a dance-research experiment titled De Conceitos (On Concepts) created from a visual poem written by Silva Freire. Through the process of invention within this dance-research project, we offer an account of how bodily properties in dance come to be produced and try to render visible the minimal—and possibly dismissible—gestures which are lost when dance is viewed on a panoramic scale. Thus, it is a matter of a narrative imbricated into a broader problematisation, as put forward by Latour (2008a), with respect to the on-going conversation on the body and the modes by which these are mobilised in narrative accounts of what they do. We work a narrative of the minimal, which is transversal to the polar opposition of micro and macro, in an attempt to relate the emergence of bodily properties as events through which we can trace the effusion of difference which makes the body sensitive and in turn co-constitutes a body which is not given a priori.

Keywords: Bodies; Visualities; Dance.


RESUMEN

Partiendo del proceso de creación de una danza-investigación, en este artículo narramos la producción de atributos corporales en la danza por medio de movimientos mínimos y quizá insignificantes desde una mirada panorámica. Para ello, escribimos una narrativa que se inscribe en una problemática más amplia que corresponde a las conversaciones a respecto de las formas por la cuales los cuerpos son movilizados en los informes que de ellos son escritos. Trabajamos una narrativa de lo mínimo que se aleja de la oposición entre micro y macro, trabajamos una narrativa que habla de la aparición de las propiedades corporales definidas como acontecimientos – eclosiones - que se pueden rastrear su aparición en las diferencias que producen un cuerpo sensible y que, a su vez, co-constituyen este cuerpo que no recibe su conformación de antemano. Abordamos, en específico, las propiedades corporales que se produjeron en el experimento de danza-investigación, titulado De Conceptos, creado con base en un poema visual de Silva Freire.

Palabras-clave: Cuerpos; Visualidade; Danza.


 

 

[...] Criar: não se dedicar se não
a isso, da aurora à agonia.
(Serres, 1993, p.106).

Neste artigo versamos sobre propriedades corporais que foram produzidas num experimento de dança-pesquisa, intitulado De Conceitos, inspirado pelo poema homônimo escrito pelo poeta cuiabano Silva Freire. O processo de criação da obra De Conceitos se efetivou a partir de um convite do Circuito Cultural Setembro Freire, realizado em Cuiabá, Mato Grosso. Junto com artistas de diferentes áreas, convidaram-nos a criar uma obra de dança inédita a partir da interpretação dos poemas do artista. Foram realizadas oficinas preparatórias que tinham por objetivo apresentar Silva Freire, sua obra, os objetivos do evento e como este iria acontecer. Cada artista teria dois meses até a data da abertura do evento, onde seriam apresentadas as criações.

Por meio do processo de invenção do trabalho de dança narramos como foram se produzindo as propriedades do corpo em dança, procurando tornar visíveis arranjos mínimos e talvez desprezíveis se vistos num plano panorâmico. Trata-se, portanto, de uma narrativa que se insere numa problemática mais ampla, enunciada por Latour (2008a), como dizendo respeito às conversas sobre o corpo, ou seja, aos modos como os corpos são mobilizados nos relatos daquilo que fazem.  Trabalhamos uma narrativa do mínimo que é diversa da oposição entre micro e macro, procurando dar conta da eclosão das propriedades corporais vistas como acontecimentos dos quais podemos rastrear a emergência nas diferenças que fazem do corpo sensível a afetações e que, por sua vez, co-constituem esse corpo que não está dado de antemão.

 Falamos, então, de uma narrativa que não é senão trajetória de aprendizagem construída a partir dos traços das ações, o que implica em ocupar uma posição mestiça distante das margens epistêmicas e ontológicas das certezas sobre o que é corpo. Certezas que cedem às articulações, pois deixam entrever os componentes materiais-artificiais que permitem a eclosão daquilo que é tido como próprio do corpo, componentes estes que estão à mostra porque medeiam e não são meros intermediários num quádruplo sujeito-corpo-linguagem-mundo onde cada um dos vórtices é pré-definido. Para Latour (2008a), articulações são ainda interessantes contrapontos às referências uma vez que estas últimas se encerram enquanto as primeiras são abertas e indeterminadas. Em decorrência, o autor vê necessário falar sobre o que é articulado e aqui reside uma saída ao quádruplo do qual já falamos, pois aquilo que é articulado são proposições que denotam “uma obstinação (posição), que b) não tem uma autoridade definitiva (é apenas uma pro-posição) e c) pode aceitar negociar-se a si própria para formar uma com-posição sem perder solidez (Latour, 2008a, p. 43)”.

O processo de invenção da dança-pesquisa iniciou quando, depois do convite para realizar o trabalho, durante uma oficina preparatória, nós recebemos um conjunto de folhas com os poemas. A proposta era que cada um escolhesse um poema com o qual sua obra deveria dialogar. Como regra, visto que o evento visa fomentar o conhecimento da literatura de Mato Grosso representada na obra de Silva Freire, os artistas deveriam apresentar uma relação direta com a obra do poeta, como por exemplo, colocando em sua criação o mesmo nome do poema escolhido ou introduzindo esse poema ou fragmentos desse de algum modo na criação: escrito, recitado, cantado. Esperava-se que o conteúdo dos poemas inspirasse o processo de criação, os papéis seriam apenas o suporte de idéias. Numa inversão de arranjos, invés de buscar inspiração no poema como texto, a atenção se deslocou para as possibilidades do papel se constituir em matéria para o trabalho de invenção. Destacou-se a visualidade do poema entendida como matéria sensível da qual o papel não é mero suporte. Em certa medida, trata-se de levar a poética neoconcreta ao limite, ampliando a proposta neoconcreta na qual o entre as palavras existe como matéria do poema que é não apenas conteúdo, mas forma. Silva Freire foi um dos representantes do movimento neoconcreto em Cuiabá e o poema em questão se insere nesta matriz jogando os sinais de pontuação e com o espaço entre as palavras – espaço da página. Foram as páginas que se tornaram traduzíveis à dança, disso decorrendo uma tradução do visual aos movimentos, dos movimentos na dança ao papel onde se dá a escrita sobre a dança.

A folha com o poema impresso poderia nos arrastar ao regime panóptico de dominá-la na posição de leitores capazes de decodificar textos. Como resistir? Cedendo, cedendo à afetação. Optamos por relacionarmo-nos com a materialidade do papel: deixar-se afetar pelo papel, conferindo-lhe actância ao sermos afetadas por ele e, logo, parte de proposições em com-posição. A recalcitrância do papel, produzindo um olho que não se restringiu ao aparato sensório que é, entre os videntes, assimilado ao olhar. Tratou-se de fazer do corpo todo olho e do olho uma parte do corpo que já era outro no contato com os papéis. Expropriar do corpo visto como organismo com aparatos sensoriais pré-definidos para relacionar-se com os papéis, cinza, fogo. Deve-se dizer que foi a recalcitrância do papel que nos interpelou a dançar com ele, nesse sentido a dança é também uma maneira política de com-por atentas à proposta latouriana, inspirada em Despret e Stengers, de “proporcionar ocasiões para diferir” (Latour, 2008a: p. 51).

Passemos à narrativa. A criação do espetáculo começou com a ação intensiva de manusear as folhas de papel. Afetados pelos papéis, a dança passou a existir. A invenção acontece sem que seja possível uma determinação, a priori, de quem ou o que inventou algo. Os papéis inventam a dançarina? A dançarina inventa os papéis? Estas perguntas deixam de fazer sentido se abandonamos a consistência ontológica não relacional de ambos. Não deixa ser um contrassenso porque desloca as funções sujeito e objeto habituais! Dançarina e papéis se constituem mutuamente, produzindo capacidades sensoriais e movimentos. Em De Conceitos, a invenção foi um processo de estabelecer arranjos entre dançarina e artefatos e de registrar efeitos produzidos nesta relação. Diferentemente dos estudos psicológicos sobre criatividade entendida como faculdade interna, optamos pela noção de invenção como processo de mediação constante de si e do mundo (Kastrup, 1999; 2006). Inventar, do latim invenire, quer dizer encontrar relíquias ou restos arqueológicos. Inventar é chocar-se com a matéria. E neste choque não há um sujeito ou um objeto que responda pela invenção. Só há o choque. Inventar não é separação entre sujeito e objeto. Como afirma Kastrup (199), a invenção não é obra de um sujeito que seria o centro gerador, nem tampouco de um objeto que cujas propriedades estão definidas de antemão. As posições de sujeito e objeto dão-se de maneira relacional. Na invenção, sujeito e objeto “encontram-se abalados em seu caráter apriorístico, embora subsistam como efeitos da inventividade que opera em seu avesso” (Kastrup, 1999, p.24).

Na literatura sobre dança, o processo de invenção em De Conceitos pode ser assimilado à tradição das improvisações. Por improvisação entende-se aquilo que serve para produzir um vocabulário novo ou para produzir novas conexões entre vocabulários já existentes (Katz, 1999). Ao invés da dança de repertório, repertórios que são criados enquanto dançamos. Os improvisos resultam de séries, algumas vezes, extenuantes, de exercícios afetivos e físicos. No espetáculo que criamos, os movimentos improvisados foram surgindo do próprio ato de tocar, amassar, manipular. Ações que, segundo Artaud (1999), realizam um transporte ao acontecimento, ao regime de escoamento de energia. Exercícios de repetição - como experimentos - foram extremamente importantes. Experimentos que se dão na vida, sem interrupção de seus fluxos, exercício de repetição.

Não se queria a melhor forma para a cena ou gesto ideal, queria-se o corpo exaurido para ser atravessado pelas afetações provocadas pelo contato com a matéria. Fomos adquirindo e registrando diferentes efeitos produzidos pelas experiências sensório-motoras e de constituição e transformação de materialidades. A repetição foi apontando as variações do corpo e também dos objetos. Depois das experiências na oficina de abertura do evento, passamos a um tempo de experimentações realizadas fora de um ambiente formal de dança.

Os papéis adquiriram diversas propriedades nestas ações. Os papéis que manuseamos eram finos e leves, levantamos com muita facilidade, até um sopro os movimenta. Eram maleáveis, podíamos dobrá-los de muitas maneiras. Eram frágeis, movimentos mais bruscos faziam com que se rasgassem. Foram os restos de papéis já usados, acumulados e com destino incerto que nos apontaram as possibilidades inventivas do resto. Em casa, no escritório, no laboratório-sala de dança improvisada começamos a explorar possibilidades para ampliação da dança com os papéis, das multiplicidades corporais produzidas nesta relacionalidade, sendo estes os resultados que apresentamos a seguir.

O que estamos falando se diferencia de construções sociais sobre o corpo que variam ao longo da história e em diferentes contextos. Quando ensaiamos pensar a noção de multiplicidades corporais, buscamos focalizar as multiplicidades corporais que emergem nas relações com a materialidade dos papéis. Queremos estudar como se produzem os pés, as mãos, a viscosidade, a aderência enquanto efeitos transitórios de um dado processo de criação. Com isto, ao invés das características biológicas, nos referimos às potências produzidas na dança; potências que se traduzem na formação não apenas de exterioridades, mas do corpo mesmo, isto é, o corpo não está dado: está em constante refazer-se. A pesquisa produz (e é produzida por) corporalidades que partem do aparato físico, mas não se esgotam nele, nem tampouco numa pessoalidade que o precede.

Mesmo aquelas propriedades que poderiam ser consideradas naturais tem lugar no contato entre corpo e materialidades outras, e exemplo dos efeitos de uma substância química ou mesmo a capacidade de sentir odores. Latour (2008a) dedica-se aos meandros da capacidade olfativa proveniente dos tipos de perfumes numa análise sociotécnica de um kit de odores, chamando por uma definição pato-lógica de corpo, que possibilita ao autor falar do corpo sem definir uma essência, uma substância, ou seja, sem definir o que o corpo é por natureza. Um corpo que não é a morada de algo superior, universal, mas aquilo que, de maneira mais ou menos estável, resulta e possibilita adquirir potência de afetação. Portanto, não há razão para definir o corpo diretamente; só faz sentido descrever suas conexões. Aqueles que aprendem a dançar se deparam com a imperativa necessidade de construir seus pés, seus braços, distribuir a força para que o movimento aconteça. As corporalidades produzidas na dança envolvem o aparato físico, mas não se esgotam nele, nem tampouco numa pessoalidade que o precede.

Para seguir os rastros do corpo que ia se produzindo, escrevíamos em um diário de campo/trabalho o cotidiano da prática artístico-científica de criação. Os cadernos já costumavam acompanhar nossas práticas artísticas. Sua atuação se fazia como um lugar de saída para as ideias que aparecem ao azar, como um lugar de hieróglifos, de desenhos de posições e movimentações, de imagens e objetos que aparecem ao acaso no processo, de rasuras. Escritura sem ordem cronológica ou ordenações categóricas. Os cadernos se fizeram como um lugar onde colocávamos, aleatoriamente, aquilo que atravessava o processo de criação. Às vezes no caderno ensaiavam-se propostas metodológicas, em outras, registravam-se devaneios que aparentemente não se articulavam no ato da escrita vindo a ser articulados posteriormente já na dança.

No nosso experimento de dança-pesquisa, a escrita de um diário foi se fazendo, como diria Latour (2008b), não a respeito de ou sobre coisas, mas de dentro de ou a partir de práticas vinculadas aos modos como se escreve sobre ela. Podemos pensar que escrever de dentro da dança nos conduz a um percurso que passou, como “uma linha que desenhamos atrás de nós como quando esquiamos. Isto está no passado, enquanto que nosso percurso na dança já está sempre no futuro” (Fernandes, 2006, p.4). A análise de Fernandes (2006) é interessante, pois foge a leitura imediata de que escrever viria depois da dança. O que ela pontua é que a dança estaria sempre à frente da escrita – no futuro.

Sem negar o hiato entre a escrita e dança apontado por Fernandes (2006), podemos pensar, também, que a escrita faz parte da dança, principalmente, quando falamos de experimentos da dança-pesquisa. Nessa segunda acepção, enquanto escrevemos, dançamos de um modo diferente de quando estamos no palco e quando dançamos, estamos escrevendo, também, distintamente dos movimentos feitos nos cadernos e computador. Dançar o poema visual, experimento de dança-pesquisa que se aproxima da artesania atenta à produção de um corpo sensível sem preocupação com a distância entre observador e observado, entre arte e ciência; atenta, de outro lado, ao que se torna existente antes e depois da pesquisa, ou melhor, ao que acontece e à potência de narrar de maneira que proposições estejam em cena e também versões outras não sejam eliminadas (Latour, 2008a).

Durante o processo de pesquisa, os papéis foram se transformando em chão, tecido, em solo e em parceria para a dança. Os movimentos surgiram da recalcitrância do papel. Falemos do chão composto por folhas que cobriram a sala de ensaios. Era um chão artesanal. Um chão que não comporta a firmeza das rochas ou dos chãos fabricados pelas técnicas de pavimentação. Há uma curiosidade em relação ao chão própria dos pés que vem do seu constante contato com o solo, coisa que nossos outros membros fazem menos. Em alguns pontos, pés e papéis se grudam. Esse grudar é decorrente do peso do corpo depositado em alguns pontos dos pés que pressionando os papéis geram um encontro atrator: o chão de papéis requer pés próprios para dançar sobre ele.

Os pés deformam o papel, dão forma ao papel. Aumentando a intensidade das caminhadas para pequenas corridas, os papéis rasgavam. Outras possibilidades de movimento foram experimentadas como giros que rasgaram ainda mais e com mais intensidade, desfazendo o chão e espalhando os papéis pelo espaço. Era possível ocupar de modos diferentes os espaços do papel e, logo, andar, correr, girar - sempre de pé sobre o papel – provocavam uma acomodação do movimento. Momento tenso onde o experimento parecia não poder acontecer, pois a estabilidade o daria por encerrado, afinal ali de pé sobre o chão de papéis o que estava por compor?

Fui para o chão, passei a rolar em cima dos papéis e eles vieram parar em cima de mim. Era uma sensação paradoxal, pois os papéis tão leves adquiriram um peso que, por um instante, me senti soterrada. Ao inverter a posição, corpo no chão e papéis em cima dele - modificando o corpo, sugerindo formas - instaurou-se um estado de negociação, a ação de fazer o corpo dançar foi se materializando com o peso-leve dos papéis e também estes se fizeram dançar. Como movimentar sem rasgar os papéis? Sem excluí-los, jogá-los fora, perdendo assim as possibilidades deste encontro? (Diário, 13/08/10).

Assim, mudou-se a postura e ao invés de estar de pé sobre o chão de papel, estava-se sob ele. Embaixo dos papéis: ficar e movimentar-se sob eles. Movimento de contenção. Conseguir movimentar sem expulsar os papéis de cima do corpo. Fomos experimentando, lentamente, movimentos simples como deitar ou sentar. É preciso muita atenção para se movimentar embaixo de papéis, pois, mesmo ações simples produzem muito movimento nos papéis que assumiram novas propriedades.  

Papéis que no chão se grudam ao corpo, sob o corpo adquirem leveza e, a todo o momento, se desvencilham. Foi então sendo produzida aderência corporal no intuito de segurar o papel, de mantê-lo próximo para continuar a relação. É bom também manter pernas e braços junto ao corpo para não rasgar o embrulho. Nos experimentos, repetições a exaustão para conseguir não rasgar o chão. Quase a cada improviso, um novo chão era montado. A ação de montar as folha era uma constante. E as montagens diferiram entre si. Ao final, resultou um chão com fendas, mais instável que permitia mais movimentações sem que rasgasse ao primeiro mover de pés ou braços. “Desta vez, ao juntar os papéis deixei espaços, não coloquei fita nas laterais e erigiu-se um chão com fendas, mais instável, com outro movimento (...) (Diário de processo, 15/08/10)”.

O chão de papéis com fendas é pouco firme e suas falhas inscrevem uma dança desengonçada. Os espaços criados foram possibilitando o corpo entrar, atravessar o chão. Mãos, pés, nariz, olhos vão descobrindo e abrindo espaços para entrar nas fendas, para chegar ao outro lado. Nem tudo conseguia entrar nas fendas sem rasgá-la: pés, mas não pernas; nariz, olhos, boca, mas não a cabeça. Além dos pés, as mãos, o nariz, tudo que podia atravessar o papel entrou na dança, produziu a dança. Durante a travessia pelos papéis, os membros passaram a se movimentar independentes do resto corpo. Da contenção do estar sob os papéis à expansão de rasgá-los. As fendas no chão de papéis possibilitavam ainda o constante contato com aquilo que estava do outro lado: pessoas, luzes, tetos, portas. Diferente do bicho fechado no casulo sem contato com o mundo, esperando o momento de sair, o corpo, em função das fendas, adquire outras propriedades.

Na apresentação final do espetáculo, as fendas possibilitaram para aqueles que assistiram a visualização de fragmentos de corpo, de corpo se ajeitando embaixo dos papéis, de membros sem corpo, de um arranjo que cria outra fenda, uma fenda de entrada de luz que diz “venha, nessa fenda iluminada é possível criar, é possível jogar, é possível se relacionar” (Ferracine, 2006, p.14). Especialistas em cálculo se aprimoram no ofício das proporções. Se no experimento anterior, a imagem era de uma artesania tateante, aqui o improviso permanece, mas surge uma espécie de cálculo necessária para quem lida com fogo. O primeiro experimento com o fazer fogo surgiu como um fragmento. Visualizada a possibilidade de modificar ainda mais o papel, de transformá-lo em substância possível de passar na pele. Já não era suficiente que mãos, pernas e nariz atravessassem fendas, o papel precisava ser desfeito: “peguei todos aqueles papéis e amassei-os, até virarem uma bola de papéis. Fui até a cozinha, procurei uma panela grande, que coubesse a bola. Coloquei-a na panela e queimei (Diário de processo, 18/08/10)”.

A preparação dos papéis para sua transformação. A ardência que a fumaça acarretava nos olhos e o forte calor do fogo próximo à pele gerava movimentos de aproximação e distanciamento. Quando a pele não suporta o calor, ela empurra o agressor, o fogo. Assim que fogo diminuía, criamos desvios para chegar às cinzas, artifícios, inventamos estratégias, maneiras de nos aproximar da panela com as cinzas, desviando das pequenas chamas e da fumaça. Exercício de cautela para calcular o tempo exato de contato possível com as cinzas. Desviar-se do fogo. Com as chamas altas, impossível qualquer toque sem que a pele seja ferida. O limite do suportável; o exercício do limite. Para coletar as cinzas só quando o fogo estava contido na brasa, e para coletar as cinzas quando só restavam brasas, botamos a mão na brasa. Estabeleceu-se um duelo entre mão e brasa.

Com as cinzas veio o prazer do objeto morno aderindo na pele sugeriam que pele e cinza iriam adquirir maciez. As cinzas foram esfriando e secando, e como uma roupa impermeável foi vestindo a pele. Impregnação epidérmica. Pele-cinza, pele-metal. A cinza, aquilo que resta depois da queimada transformada agora em segunda pele. Na pele do rosto ela encontra aberturas e entra. Ao respirar, as cinzas entram pelo nariz, ao movimentar os lábios cobertos de cinzas é possível sentir o gosto delas. As cinzas produzem uma pele que reage diferentemente da pele desnuda e um sentido de urgência: aprender a respirar em meio à fumaça. Para dançar, negociamos com o ar e com o chão e com eles constituímos corporalidades em meio aos tapetes de folhas de ofício.

Serres (2004) argumenta que para a dança acontecer o corpo precisa, constantemente, se aparelhar, multiplicar-se. Basta-nos pensar nas famosas sapatilhas de ponta, equipamento para os pés criado para que bailarinas estabelecessem um mínimo contato com o chão, ação que, sem sapatilhas, era dificultada pela fragilidade e instabilidade dos dedos frente ao peso do resto do corpo. Nos movimentos que acabamos de descrever, aparelhamo-nos das cinzas e já não cabia identificar o ponto onde cinzas e corpos se diferenciavam.

Estávamos sem os papéis, nossos parceiros resistiram à dança também se traduzindo ao limiar do desaparecimento. Terminara o experimento de dança-pesquisa com uma corporalidade que se produzira para fazer frente a materialidades que já não estavam ali: um experimento cujos registros estavam articulados na visualidade da letra na escrita sobre a dança e na incorporação dos movimentos que se tornaram dança compartilhável com o público.

A visualidade do poema foi traduzida em movimentos cuja coreografia ontológica, na dimensão conferida por Mol (2008) ao propor a indissociabilidade entre ontologias e política, redunda na eclosão de propriedades que, neste caso, convivem com o paradoxal desaparecimento das materialidades elevadas ao limite da potência e afecção.

Uma dança tão paradoxalmente material e efêmera, como no experimento De Conceitos, nos leva a imagem de Badiou (2002), um corpo-eclosão com o qual a dançarina-pesquisadora esquece todo seu saber de dançarina em prol da criação de um corpo também subtraído de todo saber de um corpo:

A dançarina é esquecimento milagroso de todo seu saber de dançarina, ela não executa qualquer dança, é essa intensidade retida que manifesta o indecidido do gesto. Na verdade, a dançarina suprime toda dança que sabe por que dispõe de seu corpo como se ele fosse inventado. De modo que o espetáculo da dança é o corpo subtraído a todo saber de um corpo, o corpo como eclosão (badiou, 2002, p. 90).



Referências

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Badiou, A. (2002). Pequeno manual de inestética. São Paulo: Estação Liberdade.         [ Links ]

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Data de submissão: 05/09/2014
Data de aceite: 05/02/2015


I Doutoranda em Psicologia e Sociedade UNESP. Mestre em Estudos de Cultura Contemporânea - Universidade Federal de Mato Grosso (ECCO/UFMT), Artista da Dança, criadora dos grupos Experimento (SC/ 2000-2003) e Casa- Artes do Corpo (MT/ 2009), este último contemplado com Prêmio FUNARTE Klaus Vianna de Dança (2009) e espetáculos apresentados em circuito regional e nacional, pesquisadora do Grupo de Pesquisa Tecnologias, Ciências e Criação (Lab.TECC/UFMT). E-mail: daniellemilioli@gmail.com

II Doutora em Psicologia Social PUCSP, Docente Permanente do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea - Universidade Federal de Mato Grosso (ECCO/UFMT). Líder do Grupo de Pesquisa Tecnologias, Ciências e Criação (Lab.TECC/UFMT). E-mail: dolorescristinagomesgalindo@gmail.com

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