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Revista Polis e Psique

versão On-line ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.8 no.1 Porto Alegre jan./abr. 2018

https://doi.org/10.22456/2238-152X.80426 

ARTIGOS

 

Atenção psicossocial e atenção básica: a vida como ela é no território

 

Psychosocial care and primary care: life as territory in the field

 

Atención psicosocial y atención básica: la vida como ella es en el território

 

 

Silvio YasuiI, Cristina Amélia LuzioII, Paulo AmaranteIII

I Universidade Estadual Paulista (UNESP), Assis, SP, Brasil.

II Universidade Estadual Paulista (UNESP), Assis, SP, Brasil.

III Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

 

 


RESUMO

O presente ensaio tem por objetivo refletir sobre os termos Atenção Psicossocial e Atenção Básica como proposições que se apresentam como uma mudança de paradigma, articulando com o conceito de território que surge aqui como elemento comum aos dois campos, especialmente no que concerne a produção de cuidado que nele se faz e em rede. Esta perspectiva implica em um olhar para a diversidade social e cultural dos diferentes locais como um aspecto essencial para articular as ações de saúde e de saúde mental, no espaço onde a vida acontece como ela é, em sua plenitude. Implica, também, no caso da Atenção Psicossocial, em superar lógicas de exclusão e aniquilamento das diferenças que incidem sobre os nomeados “loucos”, e também, sobre todos que explicitam modos diversos de existir.

Palavras-chave: Atenção Psicossocial; Atenção Básica; Território: Reforma Psiquiátrica; Reforma Sanitária.


ABSTRACT

This paper aims to reflect on Psychosocial Care and Primary Care as propositions that offer themselves as a paradigm shift, articulating together with the concept of territory emerging as a common element to both fields, especially in terms of the production of care within it and in networks. This perspective requires an outlook on social and cultural diversity of the different regions, in the space where life happens in all its plenitude, as an essential point in the discussions on delivery of health and mental health care. In the case of Psychosocial Care, this also involves overcoming the rationale of exclusion and the erasure of difference which befalls the so-called “mad” and of all who express different ways of existing.

Keywords: Psychosocial Care; Primary Care; Territory: Psychiatric Reform; Health Reform.


RESUMEN

El presente ensayo tiene por objetivo reflexionar sobre los términos Atención Psicosocial y Atención Básica como proposiciones que se presentan como un cambio de paradigma, articulando con el concepto de territorio que surge aquí como elemento común a los dos campos, especialmente en lo que concierne a la producción de cuidado que en él se hace y en red. Esta perspectiva implica una mirada a la diversidad social y cultural de los diferentes lugares como un aspecto esencial para articular las acciones de salud y de salud mental, en el espacio donde la vida sucede como ella es, en su plenitud. En el caso de la Atención Psicosocial, implica en superar lógicas de exclusión y aniquilamiento de las diferencias que inciden sobre los nombrados "locos", y también, sobre todos los que explicitan modos diversos de existir.

Palabras-clave: Atención Psicosocial; Atención Básica; Territorio: Reforma Psiquiátrica; Reforma Sanitaria.


 

 

Introdução

Atenção psicossocial, atenção básica e território são termos que se articulam e expressam fazeres e saberes presentes na Política Pública de Saúde. Trata-se aqui da construção de uma rede diferenciada e complexa de serviços, uma aposta em práticas de cuidado que buscam um deslocamento da atenção à doença e a doença mental para a produção da saúde e da defesa da vida (Campos, 1991). Embora partam de distintos marcos teóricos, esses termos são utilizados por diferentes autores na perspectiva de construir outros sentidos e significados de saúde e de saúde mental. Os autores do presente artigo têm desenvolvido pesquisas e produções acadêmicas que se debruçam sobre esses termos e, com o apoio de outros pensadores, nesse breve ensaio tem por objetivo apresentar alguns dos sentidos presentes ao se enunciar esses termos e contribuir para a reflexão sobre os elementos que compõe as práticas dos serviços de saúde, aproximando-as da complexidade da vida.

 

Atenção Psicossocial: Objeto Complexo, Olhar Interdisciplinar

A Atenção Psicossocial como proposta paradigmática do processo da Reforma Psiquiátrica, aponta para uma importante ruptura com o modo de olhar e compreender a experiência humana que podemos genericamente nomear de loucura ou de sofrimento psíquico. Trata-se de uma ruptura em relação à racionalidade psiquiátrica, que reduz o funcionamento psíquico exclusivamente a processos cerebrais e, portanto, totalmente explicáveis em uma linguagem neurobioquímica e os seus desvios nomeados como transtorno mental. Busca-se, ao contrário, olhar para o sofrimento humano em articulação com o plano da vida. Muda-se o objeto que deixa de ser a doença e passa a ser a complexidade da vida. Parafraseando o título da série de crônicas Nelson Rodrigues, considerar a “vida como ela é”.

Vida em suas infinitas manifestações: dor, sofrimento, medo, desamparo, desigualdades, iniquidades, nascimento, morte. Tal objeto impõe uma humildade epistêmica a quem deseja fazer dele um percurso de trabalho e pesquisa, pois não há disciplina ou campo de saber que isoladamente seja suficiente e necessário para contemplar essa complexidade. O objeto exige um tratamento teórico e metodológico só alcançável em uma perspectiva que prioriza um profundo e intenso diálogo entre as diferentes e diversas disciplinas e conhecimentos que nos falam do humano, possibilitando a criação de outros modos de olhar, de escutar, de cuidar.  Diálogo que produz um borramento entre os limites e fronteiras, constituindo possibilidades diversas para pensar e fazer. Esta perspectiva Passos e Barros (2000) nomeiam como transdisciplinaridade que: “subverte o eixo de sustentação dos campos epistemológicos, graças ao efeito de desestabilização tanto da dicotomia sujeito/objeto quanto da unidade das disciplinas e dos especialismos” (Passos & Barros, 2000, p.76).

As palavras desestabilização, incerteza, desafios, riscos, curiosidade estão presentes ao se falar em complexidade. A Atenção Psicossocial é um ensaio que encarna diferentes planos: práticas diversas construídas em diálogo entre distintos núcleos de saberes, ferramentas teórico-conceituais a partir da desconstrução e desnaturalização dos fundamentos do modo hegemônico médico, formulação de política, apostas em modos diversos de fazer andar a vida.

Para Rotelli, Leonardis e Mauri (2001), se o objeto não é mais simples (a doença), a tarefa é criar, inventar instituições. Vale destacar aqui que se utiliza nesse trecho a palavra instituição, tal como utilizada pelos autores citados, pois, na perspectiva da Análise Institucional, seria mais adequado utilizar redes, serviços ou práticas de cuidado. As instituições que, segundo os autores, se inventam e se renovam a cada novo encontro com os usuários, pois cada história singular nos apresenta a complexidade da vida. O cuidado deixa de ser o do isolamento terapêutico ou do tratamento moral pinelianos para tornar-se criação de possibilidades, produção de sociabilidades e subjetividades. O sujeito da experiência da loucura, antes excluído do mundo da cidadania, antes incapaz de obra ou de voz, torna-se sujeito, e não objeto de saber.

Para Basaglia (2005), a psiquiatria clássica retirou o doente de seu contexto social, restringiu sua existência aos diagnósticos naturalizados e abstratos. No fim das contas, colocou o sujeito entre parênteses, para ocupar-se da doença como fenômeno da natureza. Com esta inversão, este autor propõe uma importante demarcação epistemológica que diz respeito ao saber psiquiátrico que se construiu em torno das definições abstratas de doença que reduzem o sujeito a uma coleção de sintomas e sinais, a uma espécie catalogável e categorizável e que tem consequências éticas e políticas.

A Atenção Psicossocial compartilha da proposta do autor de que é preciso uma inversão, na qual se coloca a doença entre parênteses, para entrar em contato com a existência-sofrimento do sujeito. Nesse movimento, colocar entre parênteses a doença supõe desnaturalizar os pré-conceitos, os pré-juizos, as verdades estabelecidas da vida cotidiana, construídas a partir da percepção de que a realidade é anterior e independente da consciência. No entanto, é importante enfatizar:

O colocar entre parênteses a doença mental não significa a sua negação, no sentido de negação de que exista algo que produza dor, sofrimento, mal-estar, mas a recusa à aceitação da completa capacidade do saber psiquiátrico em explicar e compreender o fenômeno loucura/sofrimento psíquico, assim reduzido ao conceito de doença. (Amarante, 2004, p. 65)

Como consequência, Amarante, em outro texto, destaca uma característica marcante e cotidiana do processo da Reforma Psiquiátrica brasileira, a possibilidade de:

 [...] construir e inventar novas perspectivas de vida e subjetividade para aqueles mesmos sujeitos, e não apenas ‘evoluções’ e ‘prognósticos’ da doença mental [...] A complexidade, enfim, reporta ao problema ético das relações entre os homens e para com a natureza, porque coloca o problema do pensar e agir em termos de relações e não de objetos. (Amarante, 1996, p. 33)

Tratam-se de fazeres e saberes artesanais, cotidianos,  tecidos com múltiplos fios de diferentes e diversas disciplinas e de experiências concretas que nos falam do sofrimento, da dor, do corpo, da angústia de viver, das dificuldades, impasses e alegrias da vida, atravessada por múltiplos planos: do capitalismo globalizado; das iniquidades e desigualdades sociais; do extermínio nas periferias de jovens pobres e negros; do gênero e das sexualidades; dos modos de trabalhar e andar pela cidade; da comida e de sua falta; do futebol e da cerveja; da novela da Globo; do político conservador e sua baba fascista que escorre no canto da boca; dos rolês nas quebradas;  da azaração no shopping; da aula tediosa na escola feita de lata; da pichação e do grafite; das contas que vencem no final do mês; do salário que termina no começo do mês; do pai, da mãe, do filho,  do vô e da vô; dos vizinhos; dos amigos; da solidão.

Singularidades habitadas por multidões que se constituem/constroem/tecem em/nas relações, nos encontros. Adaptando-se, reinventando-se.  Cuidando de habitar o mundo e dar conta da complexidade da vida. Só podemos pensar em estratégias de cuidado que se fazem nos encontros nesta diversidade e multiplicidade. Não há como pensar a construção do cuidado em saúde mental, sem pensar no tempo e no lugar em que este cuidado se constitui, tecido como estratégia em rede. Ou seja, o cuidado se faz em rede e em um lugar.

Podemos entrever na discussão acima descrita, elementos que estão presentes quando debatemos as questões pertinentes a proposta de mudança do modelo assistencial que se expressa fundamentalmente na VIII Conferência Nacional de 1986, na qual o conceito de saúde passou a ser entendido não como ausência de doença, mas como resultado das condições sociais e de vida, tendo ainda o tema do direito à saúde e de acesso aos serviços de saúde, reconhecidos como direitos de cidadania. Com a consagração do Sistema Único de Saúde (SUS), na constituição de 1988, seus princípios passaram a ser um eixo de orientação para as práticas assistenciais, contemplando o acesso universal e igualitário, a regionalização, a hierarquização e a descentralização dos serviços de saúde, o atendimento na perspectiva da integralidade e a participação popular. Gostaríamos de destacar aqui exatamente que há uma crítica ao modelo biomédico, entre outros aspectos, por sua centralidade na doença e nas atividades curativas, em detrimento das ações de promoção e prevenção. Exatamente essas ações que passaram, especialmente com a Política da Atenção Básica a serem objeto de uma maior atenção da política pública de saúde.

Neste sentido a estratégia de saúde da família tornou-se um elemento essencial para a implementação dessa mudança do modelo. Da composição da equipe, destacamos a presença e a importante participação dos agentes comunitários de saúde, que são os responsáveis em fazer uma ponte entre o cotidiano de cada casa, de um determinado lugar, e a equipe de saúde da família. São esses profissionais que por serem também moradores dos territórios (ao menos em tese), sabem identificar as necessidades daquela população especifica, de cada quarteirão, de cada casa. Dos diferentes planos que sinalizamos acima, são esses profissionais que têm a potencialidade de colocar no cenário dos serviços de saúde a vida como ela é, em sua dimensão trágica e complexa.

Importante destacar e ressaltar que há uma potência, mas que temos os conflitos e as contradições da formação dos trabalhadores, ainda norteadas pelo modelo biomédico, além de uma relação de forças micropolíticas que se interessam apenas em manter as iniquidades e desigualdades. É no plano do cotidiano que as apostas nos processos de mudança encontram seus desafios a serem enfrentados: na rotina de trabalho na unidade de saúde que impõe um ritmo que não permite espaços na agenda para reuniões; nas reuniões que são tomadas por pautas burocráticas e a reflexão sobre o cuidado não aparece como prioritária; nas pressões que em certos municípios os trabalhadores sofrem da gestão e que transformam o cuidado em moeda de favores.

Na vida como ela é dos serviços da saúde e da saúde mental, o desejo de mudar o processo de trabalho, de criar grupalidades ou coletivos, de rever e repensar os conceitos e fundamentos que sustentam as ofertas de produção de saúde, de propor redes e parcerias, sustenta-se como uma esperança equilibrista na implicação de diferentes atores sociais que fazem de seu cotidiano um constante e adicional esforço de enfrentar ou desviar-se dessas armadilhas que trazem sempre de volta modos prescritivos e alienantes de produzir cuidado.

Antes de prosseguirmos, vale apresentar algumas reflexões sobre a íntima relação entre loucura, doença mental, o viver urbano e suas interfaces com a atenção básica.

 

Loucura e o Viver Urbano

A relação da psiquiatria/saúde mental com o espaço urbano, sempre foi íntima e próxima e cumpre determinadas funções. Para Foucault (1979) é o mais bem acabado exemplo do dispositivo da sociedade disciplinar que investe na normalização dos corpos e para Deleuze (1992) da sociedade de controle. Para Machado, Loureiro, Luz e Muricy (1978) e Cunha (1986) o movimento de criação do hospício participa do projeto de organização do espaço urbano, da manutenção da ordem social e da construção da sociedade brasileira do século XIX e do início do século XX. Cumpre, também, uma função de orientador das condutas e comportamentos morais socialmente adequados (Costa, 1981). Assim, a psiquiatria participa como poderoso dispositivo de articulação de práticas disciplinares, que investem na normalização dos corpos e de práticas de controle que se capilarizam nos territórios dos espaços urbanos. Produção de corpos e modos de vida: do corpo dócil ao corpo útil, cúmplice, aparentemente participativo, ajustado, consumidor.

Já Milton Santos (2002) nos fala de um território relacional, que se constrói e transforma entre os cenários naturais e a história social que os homens inscrevem e produzem: memória dos acontecimentos inscrita nas paisagens, nos modos de viver, nas manifestações que modulam as percepções e a compreensão sobre o lugar; relações que surgem dos modos de apropriação e de alienação deste espaço e os valores sociais, econômicos políticos e culturais ali produzidos; modos múltiplos, contíguos, contraditórios de construção do espaço, de produção de sentidos ao lugar que se habita.

 [...] o território não é um dado neutro nem um ator passivo. Produz-se uma verdadeira esquizofrenia, já que os lugares escolhidos acolhem e beneficiam os vetores da racionalidade dominante mas também permitem a emergência de outras formas de vida. Essa esquizofrenia do território e do lugar tem um papel ativo na formação da consciência. O espaço geográfico não apenas revela o transcurso da história como indica a seus atores o modo de nela intervir de maneira consciente. (Santos, 2002, p. 80)

Os espaços urbanos também são marcados por uma divisão, setorização e hierarquização que estabelece fronteiras invisíveis, delimitando quem pode ou não circular. Um exemplo disto é o que tem sido nomeado como gentrificação, processo resultante da chamada revitalização ou reurbanização de determinados espaços urbanos degradados. Tais alterações do espaço valorizam a região e expulsam a população de baixa renda local para outras áreas, geralmente mais distantes. Para Gaffney (2013), as gentrificações estabelecem padrões socioespaciais que podem ser entendidos como uma característica do neocolonialismo: adequação espacial para estimular fluxos globais do capital, ou seja, uma “limpeza” do espaço urbano para uma recolocação no mercado. A consequência é a homogeneização de paisagens ao redor do mundo, de modo a reproduzir um processo de familiaridades psicoespaciais. Assim, as Docas de Edimburgo, de Dublin, e de Puerto Madero, em Buenos Aires, parecem com a paisagem da orla residencial de Barcelona.

O termo gentrificação, tem sido utilizado por muitos autores e, para o presente texto, nos referenciamos, além do texto de Gaffney citado, no artigo de Bataller (2012) no qual a autora discute conceitualmente o termo, seus significados, quais processos são assim conceituados e suas diferentes abordagens e perspectivas teóricas.

Os modos de ocupar a cidade, os modos de habitar, têm efeitos na produção das subjetividades. Félix Guattari (1992), analisa a sociedade contemporânea, como o mundo da técnica e da desterritorialização com a consequente produção de uma homogênese capitalística que impõe uma equivalência generalizada dos valores e uma padronização dos comportamentos. Como exemplo dessa padronização, podemos citar Rolnik (1997) que nos fala de “identidades prêt-à-porter” referindo-se a oferta para consumo, tal como uma droga, de figuras que chamaríamos hoje de “celebridades” que não sofrem, vivem felizes sempre e são imunes as forças do tempo. Mas, quando estas são consumidas como próteses de identidade, seu efeito dura pouco, pois os indivíduos-clones que então se produzem, com seus falsos-self estereotipados, são vulneráveis a qualquer ventania de forças um pouco mais intensa. Os viciados nesta droga vivem dispostos a mitificar e consumir toda imagem que se apresente de uma forma minimamente sedutora, na esperança de assegurar seu reconhecimento em alguma órbita do mercado.

Assim, podemos pensar que o território é espaço de inscrição da racionalidade dominante, exercício do controle e da captura, operando na produção de homogeneização da vida e de subjetividades. Deslocar o eixo do cuidado do hospital aos serviços territoriais não é garantia que se estará rompendo com as formas de poder que se exercem sobre a vida, pois isso pode significar apenas passar de uma prática disciplinar para uma prática de controle. Deleuze (1992) chamou a atenção para esse risco ao afirmar que, se a crise do hospital, os hospitais-dia e os serviços comunitários marcaram inicialmente novas liberdades, eles também passaram a integrar mecanismos de controle que rivalizam com as mais duras formas de confinamento. Ao pensarmos nos desafios cotidianos que se colocam nos serviços territoriais da Atenção Psicossocial, essa reflexão é mais do que pertinente.

O poder que incide sobre a vida e se atualiza em práticas médicas e de saúde tende a passar cada vez menos pelo manicômio (Martins, 2009).  A Atenção Psicossocial com seus serviços, constrói-se em um campo de tensão que atravessa a vida no contemporâneo, na qual práticas de resistência - que afirmam a potência da vida de reinventar-se permanentemente - estão em embate com linhas que tendem para a vigilância e o controle. Pois, se o território é o lugar por excelência do controle também é o lugar possível de emergência de formas e processos de resistência, engendrando novas territorialidades (Deleuze, 1992).

Assim, trata-se aqui de pensar a relação entre produção de cuidado e território como construção de ações e percursos nesse espaço que compõem as vidas cotidianas das pessoas, espaço relacional no qual a vida pulsa. Isto sem esquecer o território como espaço no qual se produzem modos de ser, de se relacionar, de amar, de consumir, alguns engajados na grande máquina capitalista, outros que resistem a sua captura. Não se trata apenas de pensar os deslocamentos no espaço físico, mas de problematizar o olhar sobre o território, para pensar quais os modos de vida que estão sendo produzidos e que cuidado é possível aí realizar.

Trata-se de apostar no que Deleuze e Guattari (1997) nos provocam com a noção de heterogênese. É por meio dela que se produz algo novo e inusitado. Podemos pensá-la como busca permanente no âmbito da vida cotidiana, de subjetivação pelo cultivo do dissenso, processo contínuo de produção singular da existência. Heterogênese diz respeito à produção de diferença, daquilo que escapa da homogeneidade e do já instituído. Recomposição de territórios existenciais, que se segue ao desfazimento de outros. Reconstituir uma relação particular com o cosmos e com a vida, na composição de uma singularidade individual e coletiva.

Na perspectiva da Atenção Psicossocial, trata-se, então, de acompanhar, cuidar e investir em movimentos de resistência, de produção singular da existência para que estes possam operar a criação de uma nova terra na qual seja possível traçar linhas de vida. É preciso sustentar a construção de territórios existenciais, mesmo que efêmeros e nômades, que possam se abrir, estabelecendo relações com outras vidas e com outros mundos. Trata-se de olhar e ouvir a vida que pulsa neste lugar naquilo que ela repete, naquilo que ela difere.

Pensar o território como espaço, como processo, como relação e como composição rompe com a noção de esquadrinhamento da sociedade, delimitando áreas de abrangência, considerando apenas o frio mapa de uma cidade. Trata-se aqui de construir/inventar um espaço possível de subjetivação. Para cada proposta das práticas da Atenção Psicossocial haverá um território com sua singularidade e uma multidão de territórios existenciais.

Aqui também podemos avançar e pensar em termos semelhantes para o contexto da Atenção Básica. Trata-se do mesmo território, dos mesmos lugares, dos mesmos processos.

No Brasil, a Atenção Básica é desenvolvida com o mais alto grau de descentralização e capilaridade, ocorrendo no local mais próximo da vida das pessoas. Ela deve ser o contato preferencial dos usuários, a principal porta de entrada e centro de comunicação com toda a Rede de Atenção à Saúde. (Brasil, 2012, p. 09)

Considerar como território apenas o frio esquadrinhamento das áreas de adstrição das equipes das ESF não é suficiente para contemplar a multiplicidade dos fluxos da vida das pessoas que habitam os lugares. Moram aqui, trabalham acolá, transitam por vários espaços urbanos. Para a Política Nacional de Atenção Básica, é fundamental que a Rede de Atenção à Saúde oriente seu o trabalho pelos princípios da universalidade e da acessibilidade; atenta aos vínculos e a continuidade do cuidado sustentando a integralidade da atenção e da responsabilização; com equidade e participação social. A questão que se apresenta no cotidiano dos serviços de saúde é como efetivar essa tarefa complexa. Isso exige considerar os determinantes econômicos e sociais presentes nos territórios e que revelam as imensas iniquidades e desigualdades que subjazem ao nosso viver urbano. Desafio que se coloca de produzir saúde nas distantes periferias, nas comunidades com suas casas que se equilibram nos morros, nas estreitas vielas com esgoto que escorre pelo chão, nas tensões dos tiroteios gerados pela violência sem e com fardamento, nos corpos assassinados largados nas ruas, no denso ar com cheiro de óleo diesel.

Na perspectiva que Atenção Psicossocial e Atenção Básica compartilham, não basta aqui olhar para um corpo que adoece e buscar em suas entranhas as causas da entidade mórbida que dele se apoderou. Este corpo está atravessado por múltiplos planos (históricos, sociais, econômicos) e pelas múltiplas histórias que compõe a singularidade de cada situação.

Em certo sentido, o que se modula no território pode ter efeitos de produção de subjetividades heterônomas, ajustadas, adaptadas, mas, também, podem ter efeitos de produção de resistências. Nas quebradas das vilas, das comunidades dos morros e das periferias, modos de desterritorialização e reterritorialização se fazem presentes em manifestações e expressões culturais que expressam a vida cotidiana em letras, músicas e danças; na construção de laços de solidariedade que teimam em sobreviver mesmo em ambientes tensos e violentos. Produzir saúde é, em certo sentido, sustentar a construção ou talvez a invenção de territórios existenciais, que se conectem e se articulem para se abrir a esses outros modos de fazer andar a vida. Merhy (2002) nos lembra que o ato de produzir saúde é sempre um trabalho vivo em ato, processo de produção que opera com altos graus de incerteza e que é marcado pela ação territorial dos atores em cena, no ato intercessor do agir em saúde. Produzir saúde é produção de modos de fazer andar a vida (Canguilhem, 1966/2009).

 

Lógica Manicomial

Apresentamos a seguir algumas reflexões sobre um termo muito utilizado pelos trabalhadores e usuários da Reforma Psiquiátrica brasileira, para definir certo modo de operar que mantem e sustenta a necessidade dos manicômios em nossa sociedade: a lógica manicomial. Trata-se aqui de uma das inúmeras armadilhas que se apresentam no cotidiano dos serviços da Atenção Psicossocial e que, de uma outra maneira, também está presente nos serviços da Atenção Básica.

Ousamos arriscar uma definição para pensar que a “lógica manicomial” caracteriza-se por um modo de exercício do biopoder que institui saberes e fazeres produzindo uma interdição dos espaços urbanos e a determinação de lugares e modos de se relacionar com certos grupos marcados pela exclusão e, em muitos casos, pelo confinamento. Não apenas como um poder que exclui e reprime, antes, um poder que produz normatizações, controle, assujeitamento, vigilância. Concretiza-se no policiamento da cidade e no controle dos indivíduos pela análise pormenorizada do território e de seus elementos e pelo exercício de um poder contínuo.

Falamos aqui especificamente de um poder que incide sobre todos aqueles que evidenciam ou expressam um modo diverso de viver ou de levar a vida que não aquele pautado pelas normas da “boa conduta”. Portanto, não apenas os loucos, mas também homossexuais, transexuais, mendigos, dependentes químicos que habitam as ruas e muitos outros personagens que a cada local, cada território, são os “alvos” desta “lógica manicomial” que vigia, controla e age sobre todos e, especialmente ou mais enfaticamente, sobre aqueles que transgridem, transbordam os contornos da boa conduta.

Poder que se capilariza e captura a todos. Por exemplo, quando movimentos de moradores solicitam a intervenção nos espaços urbanos ocupados pelos “craqueiros” exigindo a internação compulsória. Ou quando casais homoafetivos são atacados e agredidos nas ruas por caminharem de mãos dadas. Ou são criticados pelos meios de comunicação por manifestarem publicamente o seu afeto e sua escolha. Ou quando há uma comoção nacional exigindo mudanças na constituição para reduzir a maioridade penal.

Especificamente nos espaços e serviços da saúde mental, este poder se evidencia quando profissionais não conseguem operar um cuidado efetivo, especialmente nas crises, e têm como única solução a intervenção medicamentosa e a internação. Ou, mais sutilmente ainda, quando as intervenções dos profissionais são pautadas por julgamentos morais que prescrevem aos usuários modos de corretos de se comportar ou de agir frente as contingências que a vida apresenta.

Cabe aqui ressaltar que o uso extensivo e indiscriminado dos medicamentos psicotrópicos é prática naturalizada nos serviços de saúde e, em especial, na Atenção Básica. Como afirmamos anteriormente, há uma produção de subjetividade neste contemporâneo que é intolerante as demandas e aos impasses da vida. A busca por um ideal inalcançável de felicidade plena e constante impõe-se a todos. O que não se enquadra ou escapa sob a forma de angustia ou tristeza não são mais sentimentos em relação às vicissitudes ou aos impasses subjetivos: tornam-se diagnósticos psiquiátricos. Assim, temos uma “epidemia” de depressivos, ansiosos, hiperativos.

Como afirmamos, a lógica manicomial não está apenas na exclusão, mas antes, na produção de subjetividades capturadas e ansiosas pelo consumo de diferentes mercadorias: objetos e modos de ser. Neste sentido, a produção de saúde na Atenção Psicossocial e na Atenção Básica podem cair facilmente nas armadilhas desse modo hegemônico que se apresenta cotidianamente nos serviços nos pedidos dos usuários pelo diagnóstico médico de seu sofrer e pela medicação que “rapidamente” eliminará a dor. Ou pelo pedido de conselhos, de receitas do bem-viver, do bem-cuidar dos filhos, do bem-amar. Receitas, modelos, padrões de uma suposta normalidade que não consegue disfarçar o mal-estar de viver a vida (Birman, 2001).

Armadilha presente quando, por exemplo, reduzimos toda esta potência a um serviço, ao CAPS. Isolado e desconectado de seu território, há o risco do retorno à reprodução da hierarquização de práticas e saberes. O saber médico preponderando sobre outros que cumprem apenas um papel secundário. Esta divisão produz uma compartimentalização de atividades e tarefas com pouca ou nenhuma relação entre si. Um exemplo desta divisão pode ser dado pela situação em que a consulta do psiquiatra é tomada como a atividade prioritária e essencial, isso gera uma agenda repleta, atendimentos de curtíssima duração e com grandes intervalos de tempo entre uma consulta e outra, visando uma alta produtividade, medida pelo número de consultas; depois há a consulta do psicólogo, geralmente individual com longa lista de espera, repetindo o modelo da prática liberal típica de parte do trabalho desse profissional; depois os grupos de orientação coordenados pela enfermeira ou pela assistente social, sempre pedagógicos e geralmente à margem das demandas subjetivas específicas daqueles indivíduos. Os encaminhamentos de um profissional para outro se efetivam com o preenchimento de uma guia entregue na recepção, que agenda as consultas. Os diversos profissionais que trabalham em um mesmo lugar se reúnem (com dificuldade), uma vez por mês, e discutem questões administrativas. Nos cinco minutos finais, um ou outro caso mais grave merecerá a atenção da pequena parte da equipe que ficou até o final da reunião.

A lógica presente nesse modo de produção submete os sujeitos do sofrimento e os próprios trabalhadores a um lugar de sujeição, de produção e reprodução de subjetividades enquadradas, conformadas e bem-comportadas. Produção de afetos tristes. Renúncia à potencialidade criativa, ao desejo, à autonomia. Não há CAPS aqui, apenas mais uma instituição de Saúde Mental, na qual há a persistência micropolítica da lógica paradigmática hegemônica.

A produção de saúde não se reduz, se limita ou se esgota na sua implantação como um serviço. É um trabalho que se faz e refaz como efeito de um coletivo. Atenção Psicossocial e, em certa medida a Atenção Básica, são estratégias, artimanhas, tramadas nas bordas e desvios, urdidas na tessitura de uma rede de serviços, de ações de cuidado, de pessoas, provocando encontros, acontecimentos e apostando na saúde como produção da vida.

 

Lógica do Território: Permanência e Transformação

Operar pela lógica do território implica em pensar o território como cenário de encontros, como lugar e tempo dos processos de subjetivação e de autonomização. Como lócus da produção de ações e provocações dos atos de cuidado articulados em rede. Trata-se de um grande esforço para construir uma outra lógica que se contraponha a uma racionalidade hegemônica e à lógica do capitalismo globalizado. Isso implica em enfrentar desafios de múltiplas e distintas ordens.

Como produzir transformações nas relações em territórios e locais nos quais a vida acontece cada vez mais regida a partir de interesses econômicos que determinam os usos e, portanto, os modos de se habitar ou não habitar a cidade? Como enfrentar a máquina de produzir subjetividades tristes, solitárias e, pensando nos nossos dias atuais, fascistas e eliminadoras da diferença, encontrando possibilidades de modos de viver e conviver no urbano com solidariedade e cooperação (experiências de arte, de produção cooperada, de resistências)?

E de outra parte, como produzir uma outra lógica que não pasteurize e homogeneíze aquilo que é do plano do diverso, do diferente, domesticando-o e retirando a potencialidade de disrupção, de produção de heterogênese. A exposição de movimentos sociais identitários como temas na imprensa e nos meios de comunicação (como por exemplo em novelas) podem produzir um efeito adverso: diferenças toleradas, absorvidas, adaptadas, transmutadas em objetos de consumo, em “identidades pret-a-porter” (Rolnik, 1997).

É preciso estar atento aos infinitos planos e riscos que se corre ao apostar nas forças que emergem nos territórios, nos lugares. Construir um lócus no qual a experiência radical diferença possa emergir e habitar em toda a sua plenitude provocativa, produzindo estranhamentos com a nossa racionalidade “careta” implica em nos reinventarmos na relação com os lugares que habitamos. Repetindo, implica em ver e ouvir a vida que pulsa em cada território.

Assim, o conceito de território é um objeto complexo que deve ser abordado também na perspectiva de se libertar o conhecimento local, advindo das necessidades locais, das realidades locais. Para Boaventura de Souza Santos, o conhecimento é local, pois deve se constituir ao redor de temas que:

 [...] em um dado momento são adotados por grupos sociais concretos como projetos de vida locais, sejam eles reconstituir a história de um lugar, manter um espaço verde, construir um computador adequado às necessidades locais, fazer baixar a taxa de mortalidade infantil, inventar um novo instrumento musical, erradicar uma doença [...] (Santos, 1987, p. 47-48).

Atuar segundo a lógica do território, como preconizam as portarias da Atenção Psicossocial e da Atenção Básica é pensá-lo como campo de interações e relações, reprodução dos modos hegemônicos e pasteurizados de viver e, também, lugar de resistências, apostas naquilo que difere. Uma potente rede de saúde no território pode propiciar a produção de outros modos de fazer andar a vida, aumentar a contratualidade social e o coeficiente de autonomia, bem como possibilitar o reposicionamento subjetivo, diante de si e do mundo.

Podemos pensar aqui, como Venturini (2003), que se trata de um processo de emancipação, entendido como a capacidade de libertar-se de uma alienação, historicamente produzida pelas contradições sociais, culturais, econômicas, que no usuário se revela com mais intensidade, mas que implica a todos.

 

Conclusão

A ousada proposta que se enuncia, tanto da Atenção Psicossocial quanto da Atenção Básica, pressupõe mudanças que afetam diretamente em como os diferentes sujeitos envolvidos se posicionam e se organizam os processos de trabalho, na participação nos serviços, na defesa de suas necessidades, etc. Isso significa: considerar as múltiplas dimensões presentes nos modos como cada um faz caminhar a vida; considerar e ativar os dispositivos existentes no território; responsabilizar-se pela demanda especialmente nos momentos de crise; a criação de múltiplas e diversas estratégias de cuidado. Aumentar a responsabilidade de cada um, não apenas nas decisões e nas competências para o projeto de cuidados, mas também em sua gestão.

Por outro lado, conectar-se com os horizontes teóricos, técnicos e éticos da Atenção Psicossocial e aos princípios da Atenção Básica e do SUS, implica em estar sempre atento aos riscos de cair nas contradições e paradoxos que este processo coloca a todos. Há que se estar sempre atento para que nas finas teias do cotidiano não sejamos capturados pela lógica do conformismo, da repetição do mesmo, pois este é um processo que se constrói em um movimento contínuo de desfazimento e fazimento, desconstrução e construção.

Saúde como produção da vida e potencializando a vida como obra de arte. Obrando vidas e fazendo artes.

 

 

Referências

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Data de submissão: 20/08/2017
Data de aceite: 31/10/2017

 

 

I Silvio Yasui: Graduação em Psicologia pela Universidade de Mogi das Cruzes (1979), mestrado em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (1999), doutorado em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz (2006) e livre-docente em Psicologia e Atenção Psicossocial pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2017). Atualmente é professor-adjunto da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. E-mail: silvioyasui@gmail.com

II Cristina Amélia Luzio: Graduação em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho-UNESP (1975), mestrado em Psicologia (Psicologia Clínica) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1989), doutorado em Saúde Coletiva pela Universidade Estadual de Campinas (2003) e Livre-Docência em Saúde Mental e Saúde Coletiva na UNESP de Assis (2010). Atualmente é professor adjunto aposentada e da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. E-mail: crisamelia@uol.com.br

III Paulo Amarante: Graduação em Medicina pela Escola de Medicina da Santa Casa de Misericórdia (1976), Especialização em Psiquiatria pelo Instituto de Psiquiatria da UFRJ (1978). Mestrado em Medicina Social pelo Instituto de Medicina Social da UERJ (1982) e doutorado em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz (1994), quando fêz estágio de doutoramento em Trieste/Itália (Centro Studi i Riserche per la Salute Mental, 1992) e Pós doutorado na AUSL Imola/Itália em 1996. Tem título de especialista em Psiquiatria pela Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP). Atualmente é Professor e Pesquisador Titular do Departamento de Direitos Humanos, Saúde e Diversidade Cultural da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz. E-mail: pauloamarante@ensp.fiocruz.br

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