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Revista Polis e Psique

versão On-line ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.9 no.3 Porto Alegre set./dez. 2019

 

RELATO DE EXPERIÊNCIA

 

Psicologia social comunitária na escola: grêmio estudantil e pertencimento

 

Social community psychology in school: students union and belonging

 

Psicología social comunitaria en la escuela: grêmio estudiantil y pertenencia

 

 

Ana Carolina Maurício; Gabriel Bueno

Faculdade Cesusc, Florianópolis, SC, Brasil

 

 


RESUMO

O artigo apresenta um relato de experiência que, a partir de uma atividade de extensão desenvolvida em uma escola pública de ensino médio noturno, visa articular três temáticas: psicologia social comunitária, espaço escolar e atuação política. Um grupo de estudantes de graduação em psicologia acompanhou, ao longo de nove meses, o processo de constituição de um grêmio estudantil, passando pela organização da chapa, elaboração do regimento, convocação da assembleia estudantil, processo eleitoral e implementação das propostas da chapa vencedora. Tais acontecimentos foram analisados a partir de referenciais teóricos da psicologia social comunitária e da psicologia social crítica, com enfoque na constituição da identidade de estudante, sua relação de pertencimento ao espaço escolar e os movimentos possíveis do político nesse contexto. Por fim, conclui-se pela potência das experiências vividas na constituição do grêmio devido às possibilidades de novas elaborações em relação aos sentidos do que é ser estudante.

Palavras-chave: psicologia social comunitária; escola; política; grêmio estudantil; pertencimento.


ABSTRACT

This article is based on the report of an extra-curricular experience in a public-high school. It focuses on tree major themes: community psychology, educational environment and political action. During nine months, a group of psychology students monitored and observed the working process of a students' union, including its creation, the formulation of its rules and standards, the call for a student assembly, the electoral process and the implementation of the winning proposals. These events were analyzed using the theoretical frameworks of community psychology and critical social psychology, with special emphasis on the development of students' identities, their sense of belonging in the school and their engagement in political actions in the school context. The findings suggest that students' experiences in the process lead to valuable insights and reflections on the meaning of being a student.

Keywords: community psychology; educational environment; political action; students' union; belonging.


RESUMEN

El artículo presenta un informe de experiencia que tiene como objetivo articular tres temas basados en una actividad de extensión desarrollada en una escuela secundaria en el período nocturno: psicología comunitaria, escuela y acción política. Un grupo de estudiantes de psicología siguió el proceso de organización de una asociación de estudiantes, la redacción de un regimiento, la convocatoria de una asamblea estudiantil, el proceso electoral y la implementación de las propuestas de los ganadores. Estos eventos se analizaron desde marcos teóricos de la psicología comunitaria y la psicología social crítica, centrándose en la constitución de la identidad de los estudiantes, su relación de pertenencia con el espacio escolar y los movimientos de los actos políticos en ese contexto. Se concluyó como valiosas las experiencias vividas por los estudiantes en este proceso porque fue posible realizar nuevas elaboraciones que se refieran a los sentidos de lo que es ser estudiante.

Palabras clave: Psicología comunitaria; escuela; política; asociación de Estudiantes; pertenencia


 

 

Introdução

Esse texto se caracteriza como um relato de experiência, com as posteriores reflexões acerca da intervenção psicossocial realizada pelo Grupo de Pesquisa e Extensão em Psicologia Social Comunitária da Faculdade Cesusc (GPSC), de Florianópolis (SC), junto a um grupo de jovens estudantes de uma escola pública estadual situada na comunidade onde o campus universitário está inserido. As experiências aqui descritas tiveram início no primeiro semestre de 2017, quando foram estabelecidos alguns diálogos com lideranças comunitárias com a finalidade de propiciar uma aproximação entre a formação do(a) profissional em psicologia e as questões psicossociais presentes na comunidade. Importante destacar que a comunidade na qual foi realizada a intervenção se constitui como um pequeno distrito de características residenciais e com forte apelo turístico, composto por três bairros que se correlacionam e interagem no cotidiano.

O processo de territorialização do GPSC na comunidade envolveu a reflexão sobre: a história dessa comunidade, marcada pela colonização açoriana; as suas dinâmicas próprias e também em perspectiva com as demais localidades da cidade, sempre atravessadas por um forte desejo de preservar as tradições; e as suas potencialidades e fragilidades, a fim de estabelecer um diálogo com moradores e lideranças locais. Após o contato inicial com organizações comunitárias do distrito, constatou-se uma pluralidade de articulações possíveis à psicologia social comunitária, fato que se conecta à singularidade da dinâmica dos bairros que compõem a comunidade. Com isso, buscou-se realizar uma aproximação com as instituições escolares a partir das demandas trazidas pelos próprios moradores, no intuito de compreender e dar lugar às problemáticas contidas nas falas dos nossos interlocutores.

Inicialmente, a partir das reuniões realizadas pelo GPSC, percebeu-se uma preocupação evidente dos moradores locais com o que eles caracterizaram como falta de interesse dos estudantes em relação ao contexto escolar - e, segundo alguns relatos, esse aparente desinteresse era causa de problemas entre a comunidade e os estudantes. O contato também revelou a presença de uma lógica compartilhada por algumas lideranças locais, em que o desinteresse era o que levava os jovens a não frequentarem as aulas e, durante o período noturno, utilizar os espaços públicos do bairro para praticar atos de vandalismo, pichações, brigas e para fazer uso de drogas, tornando-se, dessa forma, parte do problema multifatorial da violência presente no bairro. Importa salientar, desde já, a diferença na percepção dos moradores sobre os estudantes e destes últimos em relação ao bairro, à escola e aos demais membros da comunidade, uma vez que tal divergência veio a tornar-se elemento substancial para a elaboração, em conjunto, de uma intervenção psicossocial.

A partir da parceria estabelecida entre o GPSC e uma escola pública estadual, foram planejados encontros semanais com os estudantes, cada encontro com duração de uma hora e meia, os quais inicialmente tinham como proposta a realização de debates, dinâmicas de grupo e mediação de conflitos. Como tema central dos encontros, foram sugeridos dois conteúdos norteadores: 1) o processo de término do período escolar, a passagem para o ensino superior e o mundo do trabalho, incluindo as formas de viabilizar as escolhas profissionais dos jovens a partir das possibilidades de estudo e de qualificação profissional existentes na cidade, situando a importância da escola no processo de construção de projetos de vida dos estudantes; 2) a criação de um grêmio estudantil para que fosse possível, desde o espaço escolar, o exercício da atuação política, compreendendo o político como espaço de debate, negociação e reivindicação da garantia de direitos. Por iniciativa dos próprios jovens, os encontros acabaram por se concentrar na segundo proposta: a constituição do grêmio.

O "pertencimento escolar'' de um grupo de estudantes foi tomado como foco da análise e da experiência aqui comentada, nas quais se buscou discutir as formas de (trans)formação de uma relação de pertencimento à escola, bem como as diversas maneiras de ocupar esse espaço, suscitando experiências que favoreçam a formação de um senso crítico sobre a constituição da comunidade escolar.

O objetivo da intervenção foi, primeiramente, a construção de um território existencial de atuação. Essa perspectiva é trazida por Lima e Yasui (2014) ao comentarem o entendimento de Deleuze e Guattari acerca do que é o território. A partir dessa leitura, o território é compreendido para além da instância geográfica, caracterizando-se como "espaços construídos com elementos materiais e afetivos do meio, que, apropriados e agenciados de forma expressiva, findam por constituir lugares para viver. " (Lima & Yasui, 2014, p. 599).

Sob essa perspectiva, procurou-se verificar neste trabalho os sentidos e significados atribuídos pelos estudantes ao espaço escolar, como também analisar o processo de (re)significação dos "sentidos de pertencimento" nesse cenário que passa a tornar-se território. Para isso, serão discutidos temas que se mostraram fundamentais para a realização das atividades, tais como: identidade, sentidos, pertencimento, espaço escolar, participação política e autonomia.

 

A Potencialidade de (Trans)Formar Sentidos

Sob a perspectiva da Psicologia Social, entende-se que o psiquismo é constituído em um duplo processo que o ser humano estabelece com a realidade, sendo caracterizado pela apropriação e pela produção de sentidos e de significados no meio em que habita, operações que ocorrem em conjunto e a partir das quais a subjetividade se constitui (Zanella, 2004).

Dessa forma, o sujeito é tido ao mesmo tempo como ator e autor da história do meio que o cerca, possuindo a capacidade de modificar o contexto que habita a partir das interações sociais que estabelece com esse espaço. As interações estão mediadas pela linguagem que, por sua vez, garantem ao ser humano o caráter ativo no processo de atribuir sentidos aos espaços e às experiências que vivencia. Tal característica atribui um caráter singular à existência humana, pois garante a possibilidade de o ser humano vir a estabelecer, a partir das interações estabelecidas, novos sentidos em relação ao seu contexto.

O conceito de "sentido" aqui utilizado refere-se ao entendimento de Barros, Paula, Pascual, Colaço e Ximenes (2009, p.179), que o definem como "um acontecimento semântico particular, constituído através das relações sociais, nas quais uma gama de signos é posta em jogo". Sob esta perspectiva, o sentido caracterizase por ser produzido nas práticas sociais e por estar atrelado à capacidade de criação e à experiência subjetiva, sendo constitutivamente dinâmico, contextualizado e passível de modificações, permitindo a singularização da relação sujeito-realidade. Os significados, entretanto, são fixos e dizem respeito a uma das zonas em que o sentido pode agir: o significado fica imóvel diante das mudanças de contexto, diferente dos sentidos (Barros e cols., 2009). Assim, a experiência aqui relatada procurou atuar na zona de significação dos sentidos, na perspectiva de propiciar ressignificações das redes afetivas estabelecidas na escola.

Para analisar e potencializar as relações de pertencimento e autonomia possíveis no espaço escolar, foram investigados os significados cristalizados que permeiam a identidade daquele que torna-se estudante. Acerca desses significados e da sua consequência na dinâmica relacional, Zanella (2003) afirma que este deve ser o principal objeto de análise em uma intervenção no contexto escolar, e justifica que

(...) no entanto, [escolas] têm assumido e cristalizado determinados sentidos para sua própria existência que as distanciam dessa possibilidade de virem a se constituir em lugares de luta, de instrumentalização teórica que permita a leitura crítica da realidade, o que se objetiva de diferentes formas: nas práticas pedagógicas promotoras de fracasso escolar, nos mecanismos de disciplinamento, na assunção dos conhecimentos veiculados enquanto verdades absolutas e negação de outros saberes que ali transitam, entre outras. (p.70).

No contexto escolar encontra-se um campo de formação de sentidos que irão se refletir não apenas na experiência pessoal da passagem pela escola e as potencialidades do estudante diante desse contexto ético, social e político, mas também na constituição enquanto sujeito-cidadão. A escola apresenta-se como um lugar relevante para se pensar em estratégias de intervenções que visem suscitar o posicionamento crítico dos estudantes, favorecer experiências de pertencimento, e criar possibilidades de atuação comunitária nos espaços em que se está inserida.

 

Identidade, pertencimento e reconhecimento

Ao entender a constituição psíquica enquanto um processo inexoravelmente social, depreende-se a importância do papel do outro na constituição do eu. Partindo desse ponto, do entendimento do processo de constituição subjetiva como produtor de um sujeito ativo no social, a constituição identitária emerge como instância intrínseca ao processo de tornar-se estudante. Da demanda de tornar-se sujeito ativo no espaço em que se atua, a compreensão da tríade identidade, pertencimento e reconhecimento torna-se, então, elemento fundamental para a intervenção aqui comentada.

Partimos do pensamento de Ciampa (2004) sobre identidade, ao evidenciar o caráter social da constituição desse conceito e estabelecer ao outro papel fundamental para a compreensão daquilo que se é, a partir dos movimentos dialéticos de aceitação-negação ao que é vivenciado. Identidade é pensada não apenas como uma representação do sujeito, mas como um processo de identificação que torna possível a constatação de estruturas que compõem a dinâmica de vir-a-ser nos referidos estudantes. Aqui, pensa-se nas possibilidades de atuação no meio a partir dos modos de identificação que acompanham as transformações da realidade (Ciampa, 2004).

Na esteira desse pensamento, a perspectiva de Castro, Costa e Viana (2013) sobre o pertencimento surge para ratificar a estreita relação identidade-pertencimento. Concebida como uma instância fundamental para legitimar identidades, o pertencimento está atrelado ao compartilhamento de experiências com outros membros de um mesmo grupo social. O pertencimento torna-se relevante nas interações sociais por possibilitar o desenvolvimento de um vínculo e reconhecimento no contexto em que se é pertencente, a partir da criação de elementos simbólicos, referências e da distribuição de poderes. Em termos de afetividade, atua como elemento do processo de participação em grupos e espaços pelos quais se circula, na medida em que o sujeito, ao entender que é pertencente a determinado lugar e que este também lhe pertence, acredita que pode interferir no contexto (Amaral, 2006), abrindo a possibilidade da transformação social.

Ao falar sobre o processo de aceitação-negação da identidade-aluno, torna-se importante salientar que, embora participe na constituição de uma identidade-estudante, a escola tem sido historicamente concebida como instituição disciplinar, produto de uma estrutura social vigente pautada na norma e no controle, que busca a constituição de indivíduos disciplinados (Foucault, 1987). Assim, a escola enquanto instituição fornece elementos identificatórios e cabe ao estudante acatar - ou não - as possibilidades limitadas de ação e de identificação, que visam torná-lo não apenas sujeito passivo, mas também obediente. Com isso, obtém-se muitas vezes na escola um local institucionalizado de aprisionamento e exclusão de identidades, onde algumas são validadas e outras negadas, conforme a adequação à norma e à ideologia dominante.

O espaço escolar não foi concebido historicamente de maneira neutra do ponto de vista ideológico. Tal instituição é um locus político que pode estancar movimentos de trocas e processos identificatórios legitimados (Coimbra, 1989). Por ser um local com função social e ideologia pré-determinadas, acabou por construir uma rede fixa de signos que, com o passar do tempo, não alterou seus objetivos principais, tornando-os cristalizados e frequentemente produzindo relações de não-identificação, de não-pertencimento.

Com isso, entende-se a partir dos pressupostos teóricos de Michel Foucault (1987) que essa rede fixa de signos, historicamente posicionada, também atua como instrumento do poder nos processos de subjetivação e na manutenção de alguns discursos de cerceamento e controle. Entretanto, o autor considera que "lá onde há poder há resistência" (Foucault, 1979, p.91), por ser a resistência a própria possibilidade de ação diante do poder. Assim, resistência é também possibilidade de transformação dos espaços de convívio e dos discursos dominantes.

Dessa forma, a escola surge como espelho da sociedade de controle (Deleuze, 1992) em que vivemos: composta por signos e sentidos construídos historicamente, relações de poder e processos de normatização dos sujeitos, tornando-se muitas vezes um espaço de exclusão e de silenciamento, mas que, diante do exercício do poder, também tornase espaço possível para a resistência. Assim, da possibilidade de desestabilização de papéis e da quebra de posições de poder realizou-se a constituição do Grêmio Estudantil, almejando romper com fronteiras enclausurantes que cristalizam não apenas identidades, mas também potencialidades de ação.

 

Método

A partir da inserção no espaço escolar, o GPSC decidiu pela realização de um trabalho em grupo com os estudantes, com o intuito de compreender a realidade daquele contexto, suas necessidades enquanto coletividade e suas potencialidades. Para atender a esses objetivos, montou-se um grupo caracteristicamente aberto e reflexivo: aberto no sentido de atender à totalidade dos que estudavam naquela escola, sem condicionar a participação à obrigatoriedade do comparecimento em todos os encontros, ou seja, evitando repercutir a lógica disciplinar da instituição; e reflexivo na busca por elaborar questões concernentes ao cotidiano dos estudantes.

A questão norteadora - "Qual o papel da escola no meu futuro profissional?" - lançada nos cartazes de divulgação do GPSC, foi uma indagação propulsora para viabilizar um primeiro encontro com os estudantes e, a partir disso, elaborar um projeto de atuação coerente com a principal demanda dos jovens: a de se tornarem sujeitos ativos no espaço escolar. Com isso, reflexões acerca do processo de tornar-se estudante foram elencadas como alicerces de um trabalho construído em conjunto com os próprios jovens participantes. Essa postura metodológica alinha-se aos preceitos éticos e epistemológicos da Psicologia Social Comunitária, que se propõe a uma prática pertinente à realidade do sujeito possuidor de saberes sobre si e sobre sua comunidade ao situá-lo como um aliado para o direcionamento das ações, apostando em seu próprio comprometimento para com a possibilidade de mudança social no cotidiano (Freitas, 1998).

O projeto foi realizado entre abril e dezembro de 2017 e participaram dos encontros e atividades um total de 12 estudantes. A perspectiva do grupo de extensão era entrar em contato com o universo de significados, sentidos, crenças e expectativas desses estudantes no espaço escolar - suas relações, angústias e modos de enfrentamento - bem como de trabalhar os temas que surgissem a partir das discussões do grupo, de modo a enfatizar a necessidade da participação dos jovens.

Sob esse prisma, trabalhou-se na criação de um grupo-dispositivo no espaço escolar, a fim de estabelecer as análises e elaborações das questões trazidas pelos estudantes. Entende-se aqui o dispositivo a partir da leitura de Deleuze (1990) sobre Foucault, que o considera de início um novelo, um conjunto multilinear composto por linhas de naturezas distintas. Como uma máquina, possui linhas que produzem regimes de visibilidade e de enunciação que procuram tensionar e desfazer códigos que objetivam dar um mesmo sentido a tudo, tomado como universal e naturalizado. O dispositivo atua, portanto, produzindo deslocamentos, tensionamentos e novos agenciamentos subjetivos; tal deslocamento, na prática, é gerado a partir da possibilidade do encontro com o outro (Benevides, 1996).

A elaboração do grupo-dispositivo foi realizada no intuito de provocar a desindividualização e o deslocamento do eu de seu lugar emanador a partir da escuta do outro, possibilitando novos fluxos subjetivos e formas de enfrentamento e resistência frente às situações vividas no espaço escolar. Entende-se que, ao trabalhar com a potencialidade da escuta desse outro, não apenas se motiva novos estudantes a participarem do grupo, como se produz um movimento de desterritorialização-reterritorialização - a desconstrução de um território e a reconstrução de outro, que finda por constituir um novo território existencial (Lima & Yasui, 2014).

Os encontros com os estudantes foram pensados inicialmente de modo a suscitar reflexões e discussões que levassem o grupo a propor seu próprio ritmo, temas e metodologia de trabalho. A imprevisibilidade fez parte constitutiva do projeto, em que a cada semana o tema e os participantes revelavam novas possibilidades, abrindo-se a devires permanentes. Desse processo de experienciar-se sujeito ativo sob novas posturas e novos lugares, o caos (Deleuze & Guattari, 2010) fez-se constante como metodologia de trabalho. Da aparente "perda de controle", suscitava-se a abertura para o encontro do eterno movimento de vir-a-ser, do imprevisível, que foge dos regimes disciplinares. Neste sentido, o caos como elemento constitutivo da intervenção teve sua razão de ser: do caos não se almejou o consenso, o apaziguamento das forças de um coletivo, mas sim o tensionamento das dinâmicas e fluxos de devires como não esvaziamento do político - constituído nos e pelos conflitos, como espaço de reivindicação das demandas próprios do grupo (Deleuze & Guattari, 2010).

Ao dispor-se a trabalhar com os deslocamentos que surgiam nos encontros, o grupo-dispositivo permitiu a irrupção da participação política no contexto escolar, resultando em ações a serem empreendidas pelo próprio grupo a partir dos desejos que circulavam entre os estudantes. Deste modo, a perspectiva de Rancière (1996) sobre a importância da atuação política alinha-se à proposta do grupo, ao afirmar que

A atividade política é a que desloca um corpo do lugar que lhe era designado ou muda a destinação de um lugar; ela faz ver o que não cabia ser visto, faz ouvir como discurso o que só era ouvido como barulho. (p. 42).

Ao provocar deslocamentos, procurou-se proporcionar reconfigurações dos regimes de significação e de posicionamento dos sujeitos envolvidos. O grupo-dispositivo almejava modificações no pensar, no agir e principalmente na esfera do sensível, diante das relações de si com o próprio espaço de que se é pertencente. Da participação política, buscou-se o deslocamento de um lugar outrora passivo, para outro - o da transformação social.

 

Relato de Experiência

Diante da pergunta lançada no início do primeiro encontro - "Qual o papel da escola no meu futuro profissional?" - as respostas do grupo revelaram a necessidade de uma nova trajetória a ser percorrida. Percebeu-se que o papel da instituição escolar na construção de um projeto social-profissional estava concebido, porém as angústias giravam em torno da não participação dos estudantes nesse processo. A fala "a escola é feita só por eles, os professores, a gente não faz nada aqui" permitiu a abertura para queixas referentes à falta de diálogo entre estudantes, professores e diretores.

Partindo da constatação da falta de diálogo entre os membros da comunidade escolar, buscou-se compreender o modo como os jovens caracterizavam a relação com essa comunidade, revelando um embate entre os significados e sentidos referentes ao que é ser estudante. Para os jovens, professores e diretores tinham uma compreensão cristalizada do lugar social estudante, como sujeito passivo e desinteressado. No entanto, os jovens negavam a conduta disciplinar que lhes era exigida e promoviam gestos cotidianos de resistência e enfrentamento.

 

Do Desejo à Ação

Três encontros foram, então, destinados à elaboração de um projeto de atuação coerente com a necessidade emergente de participar de modo ativo do contexto escolar. O acolhimento das demandas oriundas dos estudantes realizou uma abertura para a dinamização de papéis e identidades tidas como fixas e estáveis, prática que se aproxima da proposta de deslocamento de posições do sujeito e a não hierarquização de saberes.

Após a realização desses três encontros, em que ocorreu a apresentação dos participantes e uma conversa acerca das expectativas dos adolescentes em relação ao GPSC, percebeu-se o jogo de contradições que envolviam a significação do espaço escolar e das expectativas sobre ser estudante. Constatou-se, a partir das falas, que os jovens compreendiam não apenas a importância da escola para o futuro profissional, como também que o processo de tornar-se estudante envolvia a identificação enquanto ser social. Com isso, notou-se que o cerne da questão talvez não fosse a negação da identificação enquanto estudante, mas da identidade cristalizada de estudante enquanto ser passivo e apolítico.

A partir de uma caminhada na qual os jovens apresentaram os espaços da escola ao GPSC, aconteceu um debate acerca das possibilidades de melhorias e de atuação nesse cenário, momento em que a criação de um Grêmio Estudantil surgiu como um desejo para o grupo. Com isso, os estudantes passaram a se mobilizar para a formulação de um Grêmio Estudantil, pensando em propostas de intervenção para melhorias do espaço físico e das relações entre alunos e entre alunos e professores. Nesse momento iniciou-se um processo de relacionar-se com novos lugares na instituição escolar, e produzir novos sentidos referentes ao que é ser estudante.

 

Do Espaço Político como Potencial de Ação

Torna-se necessário enfatizar que a compreensão de espaço político trabalhada nos encontros semanais refere-se ao espaço de debate, negociação e reivindicação de um lugar de fala, atuando como forma de revelar aos jovens as suas possibilidades de ação como agentes pertencentes a uma comunidade.

A composição de um espaço político está atravessada por um campo de forças e vetores que se inter-relacionam e resultam não apenas no instituído, fixo e hegemônico, como também em práticas de resistências que antagonizam aquilo que lhes é (im)posto (Foucault,1987). Da subversão do instituído surgem tensões que retroalimentam a presença do político e do dissenso (Rancière, 2010), assim como impelem a mudanças sociais possíveis no espaço em questão. Sobre o tema, Laclau e Mouffe (2015, citado por Costa & Prado, 2016) afirmam:

O processo de mudança social nesta perspectiva, portanto, depende da subversão da formação social hegemônica e da reconstrução das relações sociais, estabelecendo outras relações hegemônicas. O problema do político é, deste modo, "o problema da instituição do social, isto é, da definição e articulação das relações sociais num campo atravessado por antagonismos". (p. 222).

Na caminhada pelo espaço físico da escola e a partir das reflexões sobre o cotidiano e as relações estabelecidas naquele local, os jovens indagaram-se sobre seus papéis no processo de mudança social e seus comprometimentos com essa comunidade. Com estes elementos em jogo, apostou-se que um grupo de debates e a formação do grêmio estudantil poderiam (res)significar os simbolismos que mediavam - e, em certos aspectos, até obstaculizavam - o pertencimento no contexto escolar. Entendeu-se, então, que a participação comunitária poderia ser um dos principais elementos capazes de ressignificar sujeitos e realidade: da não submissão ao discurso hegemônico do que é ser estudante adveio o engajamento social e a possibilidade de reconstrução de relações de pertencimento no contexto escolar.

Acerca das reflexões trazidas acima, Costa e Prado (2016) nos auxiliam a compreender a importância da participação política em um contexto no qual se deseja trabalhar não apenas com sentidos e significados, mas também com posições cristalizadas:

(...) o político refere-se à disputa pela significação da realidade, mas não a partir da revelação de uma consciência verdadeira (conscientização) ou do desenvolvimento da consciência dos indivíduos (consciência política), e sim da construção de um discurso antagônico ao discurso hegemônico no campo de abertura possibilitado pelos princípios democráticos da igualdade e da liberdade. (p. 222).

Portanto, a criação de um grêmio estudantil surgiu como contraponto ao discurso da instituição escolar. Sua instauração, legitimada democraticamente pelo corpo discente, possibilitou também a responsabilização referente às próprias reivindicações. A partir da criação do grêmio, que pautou a ação política como modo de participar da comunidade, tornou-se possível outra relação com o espaço, ressignificando sua realidade ao tornar-se atuante nela.

Com base nas falas acerca da vontade de exercer uma legítima participação no espaço escolar, percebeu-se a circulação do desejo de produzir uma outra posição em relação àquela que lhes era esperada, buscando outros regimes simbólicos e afetivos. Neste sentido, o entendimento acerca do que é o processo democrático, a necessidade da responsabilização e o amadurecimento em relação ao compromisso social com o projeto que fora apresentado aos demais estudantes do colégio, tornaram-se elementos fundamentais para que fossem colocados em prática os processos de ressignificação, os quais ocorreram a partir de dinâmicas, debates e grupos de conversa.

Com isso, promoveu-se o dissenso (Rancière, 2010) - ruptura com os significados cristalizados ao reconfigurar as relações de poder engendradas no ambiente escolar, promovendo outras formas de circulação da palavra. Do exercício proposto a partir do quarto encontro com os jovens - o de imaginarem, em conjunto, possibilidades de projetos para o coletivo estudantil - foi possível trazer para o plano concreto o que antes pairava nas falas individuais apenas como idealização. Os estudantes destacaram também a pluralidade de propostas e desejos de circulam naquele espaço, elementos que muitas vezes entravam em choque de interesses, mas que coincidiam com o desejo comum de mudança.

O grupo passou a articular o que eles gostariam de ter no espaço escolar e o que precisariam fazer para colocar em prática seus planos. Assim, foram propostos pelo grupo a realização de cine-debates, oficinas de graffiti e a revitalização do espaço físico, tendo como objetivo final a aproximação de docentes e discentes na construção de uma nova forma de pensar a escola, visando modificar a maneira como esta apresentava-se naquele momento: instituída e cristalizada.

 

Da Consolidação de um Grêmio Estudantil

Ao todo foram quatro meses de encontros semanais com a finalidade de verificar quais seriam as principais atividades de um coletivo estudantil: redigir um estatuto, convocar uma assembleia geral, organizar uma chapa e realizar as eleições. Ao se constatar a falta de vínculo que havia entre os estudantes de séries diferentes, trabalhou-se com o objetivo de aproximar as turmas do Ensino Médio, ressaltando a importância do papel ativo do estudante na busca de uma escola melhor para todos.

No sentido de promover a autonomia e o protagonismo estudantil, os estudantes comandaram a assembleia geral, durante a qual foi apresentada uma definição de grêmio estudantil, incluindo sua composição, funcionamento e a importância de cada cargo que compõe uma chapa. Professores estiveram presentes acompanhando a articulação dos jovens e percebeu-se que, se inicialmente havia certa relutância por parte do corpo docente, temendo que o coletivo se tornasse uma oposição à ordem pedagógica, no decorrer do processo eleitoral ficou evidente que as propostas se apresentavam de forma dialógica, onde professores e estudantes estariam implicados em objetivos comuns a todos.

Um ponto importante a ser considerado é o fato de que a constituição identitária dos sujeitos que participaram desse projeto é marcada por dois elementos centrais: o espaço social - a escola - e o grupo a que pertencem - estudantes; ou seja, suas relações são marcadas tanto por um conflito geracional (adultos e adolescentes) quanto por um conflito hierárquico (professores e estudantes). Passando por um momento de construção da autonomia e reivindicação por espaço de fala e de escuta, momentos como o da assembleia geral atuaram como elementos importantes para o desenvolvimento de um território de atuação.

Após a assembleia geral, sugeriu-se a criação de um calendário para o período de inscrição das chapas, bem como a data da votação. Após esse período, uma chapa composta por estudantes de todas as séries do ensino médio foi montada. Posteriormente, essa mesma chapa - única inscrita para o processo eleitoral - foi eleita, com o apoio da maior parte dos estudantes e do corpo docente. Importante enfatizar que os professores não participaram do processo de votação, mas se posicionaram favoravelmente à iniciativa dos estudantes.

Nesse cenário de criação do grêmio, percebeu-se mudanças no que diz respeito à relação entre professores e estudantes, bem como na postura dos jovens diante da falta de diálogo com o corpo docente. Se inicialmente havia silenciamento e desmotivação por parte dos estudantes acerca dos problemas enfrentados diariamente, o exercício de planejamento de ações como um coletivo, com o desejo de modificar a forma com que eram vistos pelos professores, trouxe aos jovens o momento de trabalhar com a insegurança relativa à queixa de "não ser levado a sério", ressignificando o lugar do estudante na instituição.

A primeira ação do grêmio foi organizar a venda de alimentos na festa junina da escola para arrecadar fundos para os projetos idealizados pelos estudantes. Posteriormente, foi realizada a compra de material para a realização de uma oficina de graffiti e pintura de um mural na escola. Paralelamente, foi organizada a realização de um cine-debate com a participação de grafiteiros, professores e estudantes, os quais se propuseram a discutir acerca da arte urbana e as possibilidades de expressão desta linguagem artística. Dois dias após o cine-debate, foi realizada a pintura na quadra esportiva da escola, com a participação de grafiteiros convidados e dos estudantes presentes.

O desejo dos jovens era de que, ao demonstrar uma postura ativa, crítica e responsável diante do corpo docente, ocorresse a aprovação da participação estudantil a partir do olhar do outro, do professor. Os estudantes buscaram transformar a percepção que o corpo docente tinha dos discentes através da atuação política, constituindo outros sentidos para caracterizar o sujeito estudante. O espaço político surgiu, então, como possibilidade de provar ao outro o seu lugar no social, colocando outros signos e sentidos em jogo.

Com a implementação do grêmio, percebeu-se a preocupação em mudar a postura em sala de aula, como forma de melhorar a relação com alguns professores: atendendo a algumas regras e pressupostos exigidos pela instituição, seria possível estabelecer uma aproximação com o corpo docente para possíveis projetos, permitindo também que os professores os vissem de outra forma. Além disso, a responsabilização surgiu como outra preocupação, tendo em vista que, ao assumir um cargo no grêmio estudantil, havia a preocupação dos próprios participantes em "dar exemplo" para outros estudantes, conforme relatado por alguns deles.

Entretanto, torna-se necessário enfatizar o olhar atento que foi destinado às redes de captura que poderiam deslocar o coletivo estudantil para um outro lugar de norma, controle e silenciamento, enquanto a ideia era justamente estabelecer a legitimidade na troca de aprendizado e informações entre professores e estudantes. A partir daí, os próprios estudantes, ao redigirem o estatuto da chapa que iria concorrer ao cargo, delimitaram as fronteiras entre a intervenção discente na composição do coletivo e nas suas ações, baseando-se em um compromisso ético-político de poder atuar livremente no espaço escolar.

Desse modo, em um espaço destinado outrora ao silenciamento e à norma, reformulou-se um campo de diálogo e possibilidades de ações na rotina escolar, permitindo ao estudante a experimentação de uma outra relação com o espaço. Ao se experienciar como sujeito ativo, não apenas o espaço foi modificado, mas as relações ali estabelecidas também, a partir de um novo olhar sobre si e sobre os outros, configurando novas relações de identificação, reconhecimento e pertencimento.

A mudança percebida na postura dos jovens em relação à afetividade com o espaço escolar evidenciou o caráter transformador da experiência no coletivo estudantil. Entendeu-se que, a partir do deslocamento subjetivo ocorrido - ao trazer ao debate e a um espaço privilegiado demandas dos próprios jovens para as melhorias no espaço escolar - foi possível localizar-se sob outra perspectiva. Com isso, questões como responsabilização e autonomia puderam ser abordadas e elaboradas, considerando as relações de pertencimento possíveis na escola e também no contexto comunitário em que se está inserido.

 

Considerações Finais

A partir dos pressupostos teóricos e das análises trazidas neste trabalho, a problemática do sentido de pertencimento no contexto escolar surge envolta por uma série de questões: o papel da escola, a dinâmica dos sentidos, o lugar do estudante, a ideia de identidade e os processos de identificação nos diferentes contextos, assim como as possibilidades de ação dos jovens. Dessa questão multifatorial, poderíamos nos perguntar como, de fato, se daria a atuação da psicologia nesse espaço.

A experiência aqui relatada, em conjunto com os aspectos teóricos, demonstra que ao considerar a identidade como metamorfose, instância aberta e multifacetada que não se fecha e nem se fixa a um padrão único (Ciampa, 2005), e o sujeito como produtor e reprodutor da cultura, atuando na transformação do seu espaço (Zanella, 2004), a identidade humana surge como caracteristicamente política.

A participação política, portanto, acaba por possibilitar uma mudança nos processos identificatórios fixados e limitantes no espaço aqui citado, a partir de sua atuação na constituição dos sujeitos. Porém, a verificação de uma dualidade na (im)possibilidade de ação efetiva dos jovens na esfera política (Rabello, 2008; 2011) acaba por evidenciar a dificuldade não apenas de se trabalhar em um espaço disciplinador, mas principalmente de não cair na armadilha de capturar e apropriar-se do desejo político de mudança dos estudantes com finalidades de controle, passível de retirar a autonomia destes a qualquer momento - preocupação que evidencia a intrínseca relação entre poder e resistência.

Entre os principais desafios observados, elencou-se o trabalho de elaborar a potencialidade de os estudantes atuarem politicamente na escola. Como os jovens traziam em seus discursos a percepção de que não eram "ouvidos" naquele espaço, a própria legitimação do grêmio ocorreu como um processo gradual. Além disso, ao se trabalhar com o protagonismo estudantil em um cenário de significados cristalizados, observou-se uma relutância por parte do corpo docente e também do corpo discente, que em alguns momentos desacreditava do seu potencial de ação. Neste sentido, conclui-se pela importância do espaço escolar na formação de sujeitos políticos ao conscientizar os estudantes do papel que o corpo discente tem na constituição da comunidade escolar da qual faz parte.

Por fim, reitera-se que trabalhar com potenciais de ação a partir da participação política no contexto escolar mostra-se um processo que enfrenta dificuldades, porém de extrema relevância no que se refere ao exercício da participação política. Para a psicologia, o contexto escolar se apresenta como um relevante espaço para a manutenção de relações comunitárias advertidas das relações de poder que as constituem e dispostas a movimentarem-se por outras configurações discursivas.

 

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Enviado em: 27/03/19
Aceito em: 12/12/19

 

 

Ana Carolina Maurício é graduanda do curso de Psicologia da Faculdade Cesusc, e participou do Grupo de Pesquisa e Extensão em Psicologia Social Comunitária.
E-mail: anacarolm95@gmail.com
Gabriel Bueno é Mestre em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil, e professor na Faculdade Cesusc.
E-mail: gbapsi@gmail.com

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