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Revista Polis e Psique
versão On-line ISSN 2238-152X
Rev. Polis Psique vol.10 no.1 Porto Alegre jan./abr. 2020
https://doi.org/10.22456/2238-152X.84713
ARTIGOS
Versões de usuários sobre a internação psiquiátrica involuntária
Versions of users about involuntary psychiatric hospitalization
Versiones de usuarios sobre la internación psiquiátrica involuntaria
Nayane Keilla MessiasI; Cássia Bezerra de CastroI; Mário Henrique da Mata MartinsII
IUniversidade Federal de Alagoas (UFAL), Maceió, AL, Brasil
IIUniversidade Paulista (UNIP) - Campus Marquês, São Paulo, SP, Brasil
RESUMO
O estudo analisa versões de usuários de serviços de saúde mental sobre a internação psiquiátrica involuntária. Para alcançar esse objetivo, faz uma revisão crítica da literatura em base de dados especializada, observação do cotidiano de instituições de atendimento a pessoas com transtorno mental que passaram ou se encontram em situação de internação psiquiátrica involuntária e entrevistas semiestruturadas com essas pessoas. A análise se pauta no princípio genealógico e no conceito de versões. Os resultados mostram que alguns estudos em saúde mental têm privilegiado o discurso de autores e profissionais da rede de saúde sobre o assunto em detrimento dos usuários. Nas entrevistas que realizamos, os usuários denunciam práticas manicomiais geradoras de exclusão e violação de direitos, seja nos serviços psiquiátrico-hospitalares ou nos de atenção psicossocial. Conclui-se pela necessidade de retomar o discurso dos usuários nos estudos científicos e no cotidiano dos serviços para orientar práticas em saúde mental.
Palavras chave: Internação Psiquiátrica Involuntária; Saúde Mental; Usuários; Versões.
ABSTRACT
The study analyzes versions of users of mental health services on involuntary psychiatric hospitalization. In order to reach this goal, it reviews the literature in a specialized database, observes the daily life of care institutions for people with mental disorders who have passed or are in the situation of involuntary psychiatric hospitalization and, performs semi-structured interviews with these people. Analysis is based on the genealogic principle and the concept of versions. Results show that mental health studies have privileged the discourse of authors and health network professionals on the subj ect to the detriment of users. Users interviewed reported practices that generate exclusion and violation of rights, whether in psychiatric-hospital services or psychosocial care services. It concludes that is necessary to recover the discourse of the users in scientific studies and psychosocial care services in order to guide mental health practices.
Keywords: Involuntary Psychiatric Hospitalization, Mental Health, Users, Versions;
RESUMEN
El estudio analiza versiones de usuarios de servicios de salud mental sobre internación psiquiátrica involuntaria. Para eso, hace una revisión crítica de la literatura en base de datos especializada, observación del cotidiano de instituciones de atención a personas con trastorno mental que pasaron o están en situación de internación psiquiátrica involuntaria y entrevistas semiestructuradas con esas personas. El análisis enfoca el principio genealógico y el concepto de versiones. Los resultados muestran que los estudios en salud mental han privilegiado discursos de autores y profesionales de la red de salud sobre el tema en detrimento de los usuarios. Los usuarios entrevistados denunciaran prácticas manicomiales generadoras de exclusión y violación de derechos, sea en los servicios psiquiátrico-hospitalarios o en la atención psicosocial. Se concluye por la necesidad de retomar el discurso de los usuarios en los estudios científicos y en el cotidiano de los servicios para orientar prácticas en salud mental.
Palabras clave: Internación Psiquiátrica Involuntaria; Salud mental; Usuarios; Versiones
Introdução
A associação da loucura à falta de razão e ao perigo, leva à produção de dispositivos de saber-poder, que restringem o campo de existência do louco a um espaço a parte das interações sociais cotidianas, onde se processa a docilização e disciplinarização dos corpos através de mecanismos de controle (Foucault, 1984). O principal dispositivo para essa segregação é a internação psiquiátrica, que é justificada pela necessidade de manutenção da ordem social dos padrões burgueses e opera por meio da clausura e tratamento de pessoas classificadas como loucas. (Foucault, 1987). Segundo o autor, esta prática é compreendida como um fenômeno que assume funções e significados diferentes, de acordo com diferentes períodos históricos, seu contexto social e suas condições econômicas. Todavia, como relatado por Foucault (2010), há na internação uma função que se perpetua: a função de instrumento de repressão e controle social.
Este modelo passou a ser contestado após a Segunda Guerra Mundial, por movimentos políticos e sociais voltados à denúncia das práticas opressoras e de violência, realizadas em diversas instituições psiquiátricas, o que fomentou a busca por um novo sistema de assistência em saúde mental, regido pelos ideais de Reforma Psiquiátrica (Delacampagne, 2004).
No contexto histórico brasileiro, esses movimentos surgiram no final da década de 1970, com a reforma sanitária e psiquiátrica e consequentemente o fechamento gradativo de hospitais psiquiátricos e redução de leitos nessas instituições. Todavia, a Reforma Psiquiátrica só foi firmada na conjuntura da redemocratização da sociedade brasileira em 1988 (Amarante, 1995). Seu marco adveio mais de uma década depois, com a promulgação da Política Nacional de Saúde Mental em 2001, que dispõe sobre o redirecionamento do modelo assistencial tradicional, para práticas de promoção da autonomia e proteção dos direitos das pessoas que convivem com transtornos mentais, buscando restituir-lhes o direito à cidadania (Lei n. 10.216, 2011).
Embora tenham existido diversos avanços a partir da promulgação dessa lei, é importante salientar que algumas instituições continuam reproduzindo práticas manicomiais, baseadas no paradigma de que o sofrimento psíquico deve ser eliminado com medicação ou internação: na maioria das vezes, a internação é realizada de forma involuntária, assumindo um caráter desumano que viola direitos, autonomia e liberdade dos indivíduos que convivem com transtornos mentais (Feitosa, Silva, Silveira & Júnior, 2012).
De acordo com a lei 10.216/2011, em seu artigo 6°, a internação psiquiátrica involuntária é definida como:
II- aquela que se dá sem o consentimento do usuário ou a pedido de terceiro;
Devendo esta, ser informada ao Ministério Público em período de setenta e duas horas, por assistente técnico da instituição, tendo o mesmo prazo para comunicação do processo de alta. Além dessas informações, é importante ressaltar que é determinado na respectiva lei, a responsabilidade de decisão sobre o término da internação involuntária, através de solicitação escrita do familiar, ou responsável legal, ou quando estabelecido pelo especialista responsável pelo tratamento.
Desse modo, é importante ressaltar que a internação psiquiátrica involuntária, se difere da internação psiquiátrica compulsória em termos técnicos e jurídicos, pois esta última é realizada por determinação jurídica, com o uso de meios legais para concretizá-la, enquanto que na internação psiquiátrica involuntária, o usuário encontra-se muitas vezes sujeito às decisões de familiares e profissionais de saúde. Por este motivo, é preciso que se levantem discussões acerca desse modelo de internação, suas particularidades e possíveis consequências na vida dos usuários desses serviços.
Por esses fatores, este estudo coloca no plano dos discursos científicos sobre a loucura, versões dos que sempre foram expurgados e marginalizados pela lógica racional da ciência e da sociedade, versões de atores excluídos sobre um assunto controverso que é a internação involuntária deles mesmos.
Para explorar essa questão, partimos do princípio da genealogia, conforme foi apropriado e desenvolvido por Michel Foucault. Esse princípio foi fundamental para que pudéssemos efetuar uma análise crítica, sobre a produção do conhecimento a respeito da internação psiquiátrica involuntária. De acordo com esse princípio, deve-se levar em conta o condicionamento dos discursos científicos aos regimes de verdade que produzem e legitimam determinado saber em certo contexto social, econômico e cultural e os conteúdos históricos marginalizados por esses mesmos regimes (Foucault, 1979). Ao resgatar, compreender e difundir esses conteúdos obliterados, eles passam a ganhar legitimidade na arena discursiva científica, sendo possível desconstruir verdades cristalizadas e evidenciar a força política envolvida na produção dos saberes (Hook & Hüning, 2009). Dessa forma, buscamos entender como as práticas científicas legitimam e deslegitimam determinados discursos sobre a internação psiquiátrica involuntária e propomos uma intervenção nesse processo. Essa intervenção se pauta no conceito de versões.
O conceito de versões, conforme o utilizamos neste trabalho, foi originalmente cunhado por Annemarie Mol (2007), filosofa da medicina cujos pressupostos dialogam com os trabalhos de Foucault. Para a autora, há versões de um mesmo objeto que coexistem no mundo real e estão arregimentadas por relações de poder que fazem com que, eventualmente, uma ou outra versão se sobressaia, mas não necessariamente anule as demais. Este pressuposto chama a atenção para o fato de que considerar a existência de múltiplas realidades que constituem um problema como a internação psiquiátrica involuntária não significa dizer que todas exerçam igual força na construção do real e que, logo, há implicações políticas para cada versão.
Em um aprimoramento recente do termo para os estudos sobre o discurso, Martins (2018) propõe que, ao invés de abordar as práticas como produtoras de versões da realidade, abordemos as versões como práticas produtoras de realidade; como práticas discursivas que produzem realidades múltiplas. Desse modo, se incorpora a dimensão dos efeitos políticos de cada versão na construção da realidade como pressuposto do processo analítico. Essa inversão é fundamental por considerarmos que a hegemonia de determinadas versões reincide sobre as práticas que as produzem, operando de forma cíclica. Uma forma de causar um curto-circuito nesse sistema seria, a partir de um posicionamento pautado no princípio da genealogia, recuperar as versões subalternas e excluídas pelo sistema e corroborar para garantir sua legitimidade na arena discursiva.
No presente artigo, utilizamos as versões daquelas pessoas que foram e são excluídas pelo regime de verdade que delimita quem e como se pode falar de internação psiquiátrica involuntária. Como as versões são modos linguísticos de produzir realidades e como sua exposição ou obliteração falam de um exercício de poder sobre os discursos, trazer para o centro da discussão as versões de internos psiquiátricos sobre a internação psiquiátrica involuntária é, portanto, uma estratégia de desestabilizar versões hegemônicas sobre o assunto, apontando para a existência de realidades marginalizadas (Mol, 2007).
Tais pressupostos orientam nossa compreensão sobre o modo de fazer pesquisa, pois possibilitam a compreensão das realidades múltiplas e que por terem esse caráter implicam a desconstrução da ideia de verdade absoluta e própria do conhecimento hegemônico, inserindo discursos excluídos no âmbito da legitimidade científica. Não visamos, entretanto, defendê-lo como único discurso possível, mas abrir espaço para a possibilidade de diálogo e embate entre esses saberes institucionalizados e os saberes excluídos, tomando como ponto de partida a pesquisa científica (Spink, 1999).
Tendo em vista essas questões, o objetivo desse artigo foi analisar versões de usuários dos serviços de saúde mental sobre a internação psiquiátrica involuntária, a fim trazer ao campo científico os enunciados marginalizados dessas pessoas que passaram e passam por situações de internação e contrapô-los aos discursos hegemônicos que buscam obliterá-las.
Materiais e métodos
O método da pesquisa foi dividido em três etapas: análise crítica da literatura; análise dos equipamentos nos quais os usuários de saúde mental foram selecionados e entrevistas com usuários que passaram ou se encontravam, no momento da pesquisa, em situação de internação psiquiátrica involuntária.
A primeira etapa desta pesquisa foi uma análise crítica da literatura científica sobre o assunto. Nosso objetivo com essa etapa foi mapear as versões emergentes no campo científico a respeito da internação psiquiátrica involuntária, os principais interlocutores e qual o discurso das pessoas internas nesses documentos. Para a realização dessa revisão, utilizamos a Biblioteca Virtual de Saúde (BVS). A BVS é coordenada pela BIREME (Biblioteca Regional de Medicina), que é um centro especializado orientado pela Organização Pan-Americana de Saúde/Organização Mundial da Saúde (OP AS/OMS).
A seleção dos descritores para busca foi realizada no Descritores em Ciências da Saúde (DeCS). Os descritores selecionados na base que mais se aproximavam ao tema foram Hospitalização e Internação compulsória do doente mental. Reconhecemos que, embora esses descritores não tratem diretamente do tema, a ausência de descritores específicos para referenciar a escolha de palavras-chave implicaria na adoção de um deles pelos autores dos artigos a fim de que a indexação fosse possível. Como critérios de seleção dos artigos, escolhemos utilizar os períodos entre 2004 a 2014, o período foi escolhido com o intuito de compreensão de como o fenômeno da internação psiquiátrica foi abordada nos últimos dez anos, sendo este último, o ano de realização da pesquisa, como também a escolha de palavras-chave e relação com o objetivo da pesquisa a partir dos títulos e resumos.
Após essa etapa, analisamos as instituições nas quais foram escolhidos os participantes deste estudo, por meio da produção de diários de campo das visitas feitas a esses locais. Os diários de campo nesse contexto de pesquisa, podem ser compreendidos para além de relatos íntimos e impressões de experiências subjetivas, são instrumentos metodológicos essenciais para a compreensão das práticas discursivas, pois também produzem efeitos, tornam-se fluidos na pesquisa e atuantes ao ponto de romper com o binarismo sujeito-objeto, instrumento grande importância de detalhes para a compreensão da realidade abordada. (Medrado, Spink & Melo, 2014). Suas produções foram realizadas durante duas semanas, logo após as primeiras visitas às duas instituições de saúde mental do município, sendo elas um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), voltado ao atendimento de pessoas com transtorno mental, e um hospital psiquiátrico, instituição privada que tem convênio com o Sistema Único de Saúde (SUS), no qual é reservado cerca de 100 leitos psiquiátricos. O uso dos diários como recurso, em primeiro momento teve o intuito de ilustrar o contexto de funcionamento institucional.
A terceira etapa foi constituída pela realização de seis entrevistas semiestruturadas, dispositivo que promove interação entre entrevistador e entrevistado, onde ambos se posicionam de diferentes formas na produção de versões sobre a realidade (Pinheiro, 1999). As entrevistas foram registradas com o uso de gravador, observações da pesquisadora e anotações de todo o processo. Foram organizadas na forma de estudos de casos, de modo a abordar aspectos da internação psiquiátrica involuntária vivenciados pelos entrevistados. Os casos serão discutidos a partir dos pressupostos teóricos que fundamentam essa pesquisa e dos artigos selecionados na revisão da literatura. Essas entrevistas foram organizadas por blocos nos quais se buscou evidenciar a relação dos usuários com as instituições em que foram atendidos, bem como suas histórias de internação psiquiátrica involuntária e produções de sentidos sobre o processo.
Por fim, foi realizada a análise do material produzido por meio da construção de estudos de caso, com o objetivo de compreender as múltiplas dimensões desse objeto complexo que é experiência de internação psiquiátrica involuntária (Yin, 2001). Para essa análise, primeiramente foram realizadas as transcrições das entrevistas, realizadas breves narrativas de apresentação da história de vida de cada entrevistado com nomes fictícios inspirados em suas identidades e histórias de vida, em seguida foi feita análise dos conteúdos e temáticas mais recorrentes nas versões dos entrevistados sobre suas experiências de internação involuntária por meio da quantificação de repertórios e discutidos a partir dos pressupostos teóricos que fundamentam essa pesquisa e dos artigos selecionados na revisão da literatura.
A pesquisa que permitiu a produção deste artigo, obteve aprovação do comitê de ética da Universidade Federal de Alagoas, sob o número de processo 39342414.7.0000.5013, via Plataforma Brasil.
Análise crítica da literatura
Descrição dos artigos analisados
Após o processo de seleção e exclusão dos artigos, obteve-se um total de sete textos de 296 originalmente catalogados. A maior parte dos artigos eliminados falava do processo de hospitalização de uma forma geral e abordavam algumas patologias como: hospitalizações por causas respiratórias ou cardiovasculares (Golveia et al., 2006), asma e pneumonia na infância (Gonzalez, Victória & Gonçalves, 2008), e que abordavam a internação na prática do aleitamento materno (Souza et.al. 2008). Foram excluídos, justamente, por não referir a internação psiquiátrica involuntária.
Os sete artigos catalogados foram então organizados por ano. O primeiro artigo é de autoria de Prandoni e Padilha (2004) e faz uma reflexão histórica sobre o conceito de loucura. Estes discorrem a partir da relação entre loucura, exclusão social e confinamento e explicitam as respostas da sociedade diante desse fenômeno e os principais fatores determinantes para o processo de reforma psiquiátrica. O método é constituído por revisão bibliográfica e os principais resultados foram de que ainda existem hospitais psiquiátricos no país e milhares de pessoas que sofrem com as práticas de repressão e enclausuramento camufladas com o rótulo de tratamento, sendo necessário manter a mobilização social “por uma sociedade sem manicômios” com a efetivação de novas formas de cuidado pautadas na humanização e na ética do cuidado.
O segundo artigo catalogado é de autoria de Parente e colaboradores (2007) e faz um levantamento quantitativo estimando a ocorrência de reinternações nos hospitais psiquiátricos de um estado brasileiro em 2004. É estudo quantitativo, desenvolvido em duas instituições hospitalares psiquiátricas (uma pública e uma privada) e os dados foram extraídos de uma amostra de 280 prontuários e fichas de identificação. Como principais resultados os autores identificaram que 55,7% dos pacientes apresentaram reinternações, um fenômeno que ocorre frequentemente nos serviços de internação integral em hospitais psiquiátricos. Como conclusão, afirmam que a tão necessária efetivação do processo de desinstitucionalização não está ocorrendo conforme o previsto.
No terceiro artigo, Ferreira e colaboradores (2007) verificam variações quanto a sexo, idade, número e tempo de internação de pacientes com esquizofrenia em um hospital psiquiátrico. O método é um estudo observacional descritivo
retrospectivo no período de 1999 a 2005. O principal resultado identificado foi a redução do número e do tempo de internações no período. Essas reduções podem ter ocorrido em consequência tanto da introdução de antipsicóticos atípicos no Brasil a partir da década de 1990, quanto da reforma sanitária iniciada na década de 70, que impulsionou um movimento de reforma psiquiátrica no país. Por fim, ressaltam a importância da interação entre sociedade, governo e serviços de saúde para o fornecimento de um tratamento integral e melhoria da qualidade de vida do paciente psiquiátrico.
O quarto artigo catalogado é de autoria de Kilsztajn e colaboradores (2008) que estimaram o número de leitos psiquiátricos ocupados por Unidade da Federação e a magnitude do valor pago pelo Sistema Único de Saúde (SUS) nas internações por transtornos mentais por serviços hospitalares, serviços profissionais, exames e medicamentos no Brasil. Os resultados do estudo mostram que o custo de leitos psiquiátricos ocupados pelo SUS era de 45 mil reais, o valor total pago pelo SUS para internações de pacientes com transtornos mentais atingiu R$ 487 milhões e que os hospitais privados eram responsáveis por 78,8% do total de leitos ocupados pelo SUS. Mesmo com a possibilidade de desativação de 15 mil leitos asilares, podendo gerar R$ 162 milhões para serem direcionados e de serviços psiquiátricos fora de instituições hospitalares, a execução desse investimento, segundo os autores, não tem ocorrido de forma satisfatória o que mostra uma falha na efetivação da reforma psiquiátrica.
O quinto artigo, de autoria de Moreira e Loyola (2010), discute o impacto da Internação Psiquiátrica Involuntária (IPI) na clínica de enfermagem. A pesquisa é embasada no paradigma qualitativo e é desenvolvida de forma descritiva através da técnica de grupo focal e utilizando entrevista não estruturada. Os resultados dos autores mostram que a equipe de enfermagem desse estudo não considera a IPI isoladamente como um fator gerador de impacto assistencial, e sim, todos os aspectos que envolvem essa prática e reforçam a prioridade desse modelo de assistência quando o quadro clínico do paciente é grave e ele pode colocar em risco a própria integridade física e a de outros. A equipe também ressalta que independentemente da prática e do estado psicológico do paciente, deve existir o cuidado.
O sexto artigo, de autoria de Mello e Schneider (2011), se propôs a identificar os motivos da internação psiquiátrica em um hospital geral na ótica dos familiares. Para isso, utilizaram a entrevista fenomenológica com 14 pessoas que tiveram algum integrante da família internado no período entre agosto e outubro de 2009. As entrevistas revelaram três categorias que remeteram aos motivos da internação: orientação e continuidade no tratamento; perspectivas de melhora e projeções sobre normalidade. Concluem expondo que o modelo asilar de tratamento ainda é muito presente na lógica familiar de cuidado, que ainda existe resistência em recorrer a serviços interdisciplinares fora dos hospitais psiquiátricos e que esses familiares sofrem com as inúmeras dificuldades como cuidadores, principalmente em situações de crise, e que por isso enxergam a internação como solução.
O sétimo e último artigo, de Pinheiro (2012), fomenta uma discussão sobre o devido processo legal acerca da Internação Psiquiátrica involuntária. O autor argumenta que a loucura no âmbito constitucional, tem sido expressão de privação de direitos, principalmente dos direitos de escolha e liberdade e que o devido processo legal é a garantia das pessoas que vivem um sofrimento psíquico e que necessitam ter sua liberdade privada, serem submetidas a essa prática de forma justa. A partir de uma revisão bibliográfica, o autor constatou que muitos profissionais do âmbito jurídico e da saúde mental não reconhecem que a solução para inúmeros problemas que envolvem a garantia de direitos e mudanças no processo de reforma psiquiátrica está na constituição federal de 1988, já que é dessa constituição que deriva o devido processo legal de internação psiquiátrica involuntária e suas garantias e consequências. Portanto, para ele, é imprescindível que a saúde mental seja pensada de forma conjunta à constituição, ou como coloca, uma “saúde mental constitucional”.
Na pesquisa realizada, foi possível observar como resultado uma carência de artigos sobre o tema nessa base de dados especializada, campo de pesquisa que deveria representar as produções da área, o que pode indicar a necessidade de produção de estudos sobre internação psiquiátrica involuntária, sob a ótica dos próprios usuários internados, na literatura científica especializada. Embora possa ser um viés da pesquisa, tendo em vista que foi utilizada apenas uma plataforma, é importante ressaltar a relevância dessa plataforma no âmbito dos estudos em saúde pública e coletiva e sua incorporação de outros bancos de dados como o LILACS.
Com relação aos artigos catalogados, é importante denotar que todos expressam uma preocupação com a necessidade de fomentar um modelo assistencial alternativo às práticas psiquiátricas internistas ou, em casos extremos, garantir o cumprimento dos direitos das pessoas que são submetidas a esse tipo de prática. Há um predomínio do discurso sobre o fortalecimento da reforma psiquiátrica, seja por vias legais ou das próprias práticas institucionais e um reconhecimento dos limites da reforma até o momento.
Com relação às versões dos usuários, é importante ressaltar que em nenhum trabalho essas versões aparecem de maneira direta. Dos artigos catalogados, quatro se limitam a dissertar sobre a prática da internação, sem questionar o bem-estar das pessoas internadas, o que elas pensam ou sentem diante dessa experiência. Esses artigos são pautados em metodologias de cunho quantitativo e suas discussões não aprofundam as problemáticas de caráter político e social intrínsecas ao processo de internação dessas pessoas (Prandoni & Padilha, 2004; Moreira & Loyola, 2010).
Outros dois artigos (Mello & Schneider, 2011; Pinheiro, 2012), são estudos teóricos, que apresentam discussões e dão ênfase à garantia de direitos dessas pessoas submetidas à prática da internação, assim como a possibilidade de mudança através do processo de reforma psiquiátrica. Nesses artigos, predominam versões de pesquisadores (profissionais da área da saúde e da área jurídica), teóricos de referência e, em apenas um artigo, de familiares de indivíduos que estavam vivendo o processo de internação (Mello & Schneider, 2011).
Nenhum dos artigos apresentou as versões dos usuários dos serviços de saúde mental sobre sua experiência e falam sobre o processo sempre de um ponto de vista idealizado pela política ou legislação. Embora estes sejam discursos fundamentais à efetivação de direitos, carece do pressuposto de conhecimento conjunto, que valoriza a experiência dos usuários em saúde mental e é preconizado pela política. Isso denota a importância de promover estudos que os incluam para falar dessa questão.
Análise do cotidiano dos equipamentos de saúde mental
Os diários referentes à experiência no hospital psiquiátrico registraram sua localização estrategicamente afastada do centro urbano, o confinamento dos usuários atrás de grandes muros e grades e a presença de práticas repressoras entre profissionais e usuários, como evidenciado no trecho a seguir:
Enquanto eu aguardava o psicólogo, presenciei uma discussão entre um dos funcionários da recepção e uma enfermeira. Não prestei atenção no início da discussão, mas o que deu para perceber foi que o motivo era banal. Ela o acusava de ter sido grosso e afirmava que respeito era algo muito importante, enquanto ele ria ironicamente e desdenhava as falas da senhora que aparentava ter cinquenta e poucos anos. Ela entrou em uma pequena sala e saiu minutos depois, olhou para mim, se desculpou e deu uma justificativa muito interessante: “É assim mesmo moça, hospital psiquiátrico tem dessas coisas.” E seguiu pelo corredor estreito que a levava para dentro da instituição (Diário de Campo).
Além das dificuldades de ordem estrutural e relacional, os diários também apontam para a permanência de performances manicomiais nas falas dos profissionais da instituição, como evidencia o trecho a seguir, quando um psicólogo expressa à pesquisadora sua opinião a respeito da desinstitucionalização:
Ele disse: “Esses hospitais não vão deixar de existir nunca!” (o que fez eu me sentir muito incomodada...), e argumentou, explicando todas as problemáticas que para ele, envolvem a necessidade de manutenção desses serviços. [...] Então falei que isso poderia ser falha dos serviços comunitários de nossa região, ressaltei a importância do fortalecimento dos serviços como as equipes de estratégia de saúde da família. Expliquei que estagiei no NASF e trabalhei a demanda sobre saúde mental porque vi a necessidade de orientar a comunidade e as famílias de pessoas com transtorno mental e que os próprios profissionais demonstravam desinteresse ou despreparo diante da demanda, o que fazia com que os familiares não soubessem o que fazer e procurassem o hospital Psiquiátrico. Ele discordou e afirmou que a saúde mental é especialidade da Psiquiatria e que o “PSF” não tinha essa função a não ser a de realizar encaminhamentos. Eu fiquei indignada com a falta de informação daquele senhor e me calei, pois ele era o profissional naquele momento e eu era uma estudante enxerida e utópica que, para ele, nada sabia (Diário de campo).
Os diários que relatam as visitas ao CAPS descrevem impressões sobre o funcionamento da instituição em relação ao hospital psiquiátrico: no CAPS havia um maior fluxo de usuários e familiares, a localização era mais acessível, havia mais autonomia e escolha dos usuários na participação de atividades. Com relação à maior liberdade dos usuários na instituição o trecho a seguir evidencia esse fato:
Percebi que os usuários circulavam muito por lá. Entravam, sentavam e logo levantavam e saíam em direção aos fundos ou à frente da instituição. Sempre passavam me olhando. Uns acenavam, outros apenas olhavam curiosos, outros que passavam lentamente, tinham um olhar paralisado como se não estivessem conseguindo enxergar, mas sempre circulando. Achei muito interessante ver esse fluxo de pessoas entrando e saindo e o quanto era diferente de um hospital (Diário de campo).
Apesar dessas diferenças e de ser uma instituição antimanicomial e com proposta substitutiva, foi possível também observar que esse CAPS ainda possuía alguns elementos que remetem à herança manicomial, como por exemplo a presença de um cômodo fechado destinado a usuários em crise, a presença de monitores vigiando os usuários e a reprodução de alguns discursos e práticas que podem ser consideradas consequências de um modelo de atenção manicomial como é exposto no trecho a seguir:
Percebi que logo atrás da mesinha de medicamentos onde a técnica estava sentada tinha uma área recuada, escura e coberta em telhas e piso vermelho e uma pequena porta de madeira bem desgastada com uma frase pintada em tinta vermelha: “Não entre!” Era a salinha de descanso que a Psicóloga havia comentado e chamado de “salinha feia”. Segundo comentários de outros visitantes do local, essa porta um dia foi um pequeno portão de grades. Atualmente, a porta mudou, mas sua existência, localização nos fundos, assim como a frase sugestiva escrita nela, me fez refletir sobre a existência dessas salinhas de “descanso” e sobre como sua presença pode ter sido constante na história das instituições de saúde mental (Diário de campo).
Essas observações do cotidiano de ambos os serviços chamam a atenção para as diferenças e para o fato de que a existência de uma instituição com proposta substitutiva e antimanicomial não garante que não existam resquícios de práticas arcaicas a serem superadas, e que a luta por mudança e pelos direitos dos usuários deve ser constante.
Análise discursiva das versões de usuários
Durante as entrevistas os usuários eventualmente citaram nomes das instituições localizadas fora de seus municípios de origem, onde viveram as experiências de internação e de profissionais de saúde que atuavam nesses locais. Por esse motivo, fez-se necessária a preservação de suas identidades através da criação de um código de identificação. Desse modo, utilizaram-se as letras (A), (B) e (C) para identificar os hospitais psiquiátricos e (X), (Y), (Z) para identificar os profissionais e pseudônimos para identificar os entrevistados.
A partir de uma leitura das entrevistas e análise discursiva sobre suas histórias de vida, buscamos pontos comuns presentes em seus discursos a respeito das experiências vividas no momento da internação involuntária, que serviram de fio condutor para a organização das versões. Os dois pontos comuns identificados foram: 1) A relação do usuário com a família e a violência intrafamiliar no processo de internação psiquiátrica involuntária, 2) o caráter performativo das práticas de assistência à saúde dos usuários nas instituições. Esses pontos comuns não esgotam as versões, apenas orientam a escrita do texto. Pronunciam-se a partir da frequência de referências à família e violência como palavra e tema de narrativas de histórias de vida dos usuários bem como a referência frequente às práticas de assistência à saúde dos usuários nas instituições. Não foram consideradas apenas as semelhanças, mas também as diferentes versões. Desse modo, pudemos organizar uma narrativa que contemplasse de alguma maneira a heterogeneidade dos casos.
A relação do usuário com a família no processo de internação psiquiátrica involuntária e a violência intrafamiliar
Durante as entrevistas foram apresentadas pelos usuários as seguintes versões sobre suas relações com seus familiares e cuidadores e a presença de violência intrafamiliar sofrida por esses usuários diante da prática da internação psiquiátrica involuntária:
Eu me sentia... Como é que é? Manipulada pela família... Me sentia manipulada e... Eu ficava lá mais de três meses, o tempo da internação era 45 dias e eu ficava mais tempo, a minha família não se interessava muito, falava que eu dava muito trabalho em casa e foi uma experiência pessoal, não foi uma das melhores... Eu acho que deveria ter um acompanhamento em casa, observar mais o comportamento do paciente, as atitudes, pra poder internar. Meu tio era tão ignorante que ele me internava, e eu tomando a medicação. E não chegava pra conversar, só chegava com o taxi e me jogava dentro do taxi e me levava, sem saber se eu estava disponível, se eu estava em condições, se eu estava realmente necessitando internação. Me abandonava lá! (Entrevista com a usuária Princesa da praia).
Fazia muito tempo! Ela trouxe eu enganado, pra fazer... Ela trouxe eu pra fazer umas compras em A. Que compra foi essa que quando chegamos aqui, os meninos me pegaram e trancaram eu aí dentro. Não sabia! Se tivesse sabendo eu não tinha vindo não, teria curado a ressaca em casa mesmo. Foi! Ela... Me tapiou! (Entrevista com o usuário Sr. Boiadeiro)
Certo que não é fácil né? Pra família cuidar de pessoas assim, mas no meu, no meu ponto de vista, se o paciente se contém com remédio em casa, e tudo... Que a família cuidasse deles até morrer em casa, sabe? (Entrevista com a usuária Flor)
Esses discursos são comuns a todos os usuários entrevistados nessa pesquisa, que viveram a internação involuntária e colocam em destaque algumas questões importantes a serem discutidas: as necessidades e dificuldades da família diante da internação; a violência intrafamiliar presente na prática da internação involuntária; e a falta de serviços eficientes de assistência à saúde mental, que possam dar suporte aos familiares, cuidadores de pessoas com sofrimento psíquico.
Refletir sobre a necessidade da família diante da prática da internação, como fenômeno que perdurou até os dias atuais, nos remete, dentre alguns aspectos, ao papel da família como sendo a primeira instituição de disciplinamento, responsável por corrigir determinados comportamentos e que quando colocada diante de situações insustentáveis, recorre a um poder maior, como o poder médico e a estratégia de internação (Foucault, 1987). Tais questões apontam que por um longo período de tempo a gestão do cuidado foi realizada sobre o usuário e não com ele. Esse papel exercido pela família, resultou, e resulta até hoje, na influência de suas relações com o usuário em saúde mental, fazendo com que em muitas situações permaneça, quase que exclusivamente, com a responsabilidade de cuidado, tomando, inclusive, decisões por este.
A reestruturação da assistência aos usuários em saúde mental, promulgada principalmente pela Política Nacional de Saúde Mental (PNSM), fruto da Reforma Psiquiátrica Brasileira, redirecionou os modos de produção de cuidado em saúde mental no país, buscando romper a lógica que arregimenta a institucionalização psiquiátrica como principal modelo de cuidado (Brasil, 2011). De acordo com a política de atenção à saúde mental, os cuidados aqueles que buscam este serviço devem ser realizados em uma rede de assistência que envolva os serviços de atenção psicossocial, a família e a comunidade (Mello & Schneider, 2011).
Tomando esta perspectiva, a família passa a assumir um papel de co-responsável pelo cuidado e promoção de saúde de seus familiares juntamente com os serviços de saúde, de maneira que a integralidade da assistência envolve também a família do usuário, uma vez que esta traz em si suas experiências e modos de conceber e viver a vida, e, por conseguinte, influencia na forma de lidar com os processos de sofrimento de seus membros.
Compreendemos, a partir dos relatos acima, que o sofrimento dos usuários pela internação psiquiátrica involuntária estende-se aos seus familiares também, os quais nos relatos acima realizavam o internamento, na maioria das vezes, com quase nenhum diálogo e negociação, o que suscitou sentimentos como angústia, tristeza, abandono e indignação. Diante disso, alguns pesquisadores já anunciam a importância de pensar o cuidado familiar como um todo, e não apenas de forma individualizada aos usuários; reconhecendo a família como espaço que cuida e precisa de cuidados (Ferreira, et.al, 2019). Desse modo, além de ser considerada na produção do cuidado aos usuários de saúde mental, a família deve fazer parte das ações deste cuidado pelos serviços de saúde.
As políticas em saúde mental trazem a necessidade de reconhecer o ambiente familiar como parte da vida social dos sujeitos, considerando, assim, uma rede de apoio importante na promoção de saúde mental. Contudo, o trabalho com famílias no cenário da saúde mental ainda é um desafio nas práticas destes serviços, suscitando dificuldades nas relações familiares, as quais podem perpassar pela interdição e/ou invisibilidade dos direitos e autonomia dos usuários (Assad & Pedrão, 2011; Ferreira, et.al, 2019). Essa falta de suporte gera estresse, muitos conflitos e a necessidade de internação involuntária relacionada a episódios de violência intrafamiliar (Mello & Schneider, 2011).
A violência intrafamiliar pode ser caracterizada como uma modalidade de violência que possa gerar algum dano à vítima dentro das relações familiares seja ele físico, psicológico, verbal ou emocional. Esse tipo de violência em pacientes psiquiátricos pode ter consequências ainda maiores, podendo agravar o sofrimento psíquico, pois ajuda a intensificar ou a desenvolver sintomas como: baixa autoestima, vitimização contínua, insegurança, isolamento, depressão, ansiedade, embotamento afetivo e tentativas de suicídio (Padovani & Williams, 2008). Desse modo, os relatos acima, assim como em todos os relatos dos participantes da pesquisa, a violência intrafamiliar se fez presente, pois todos relataram terem sido enganados com mentiras a respeito do hospital que seriam levados, como também sofreram e revidaram agressões verbais ou físicas de seus cuidadores.
O caráter performativo das práticas de assistência à saúde dos usuários nas instituições
Sobre a ambiguidade das práticas produzidas durante a assistência à saúde desses usuários nas instituições, foi possível perceber através de seus discursos nas entrevistas, como diferentes práticas produziram diferentes versões de realidade acerca da experiência de internação, como exemplificado abaixo pelas falas da usuária Anarcolinda:
No CAPS, eu sou feliz aqui no CAPS, porque aqui as pessoas sabem tratar bem e tudo, dá o remédio na hora certa, dá a comida, nós vamos embora pra casa e vem no outro dia, e aqui eu acho muito bom, nós participa de tudo isso, acho muito bom aqui, gosto muito das meninas, vocês...Gosto muito, também oro por vocês também(...) É... aí eu gosto muito de vocês e queria passar um mês aqui, e com um mês vou embora pra casa, que eu tô bem que a doutora disse. Já tô recuperada! (Entrevista com a usuária Anarcolinda)
No trecho acima, a usuária Anarcolinda expressa um discurso de que o CAPS é um lugar que ela considera acolhedor, que permite que ela faça algumas escolhas sobre sua vida e seus cuidados dentro da instituição, o que possivelmente gera sentimentos de autonomia e bem-estar. Porém, quando a usuária percebe a produção de práticas abusivas dentro do CAPS, que remetem à realidade manicomial, sua versão sobre seus cuidados dentro da instituição muda:
O que eu tenho pra dizer é que eu nunca gostei do CAPS, desde que eu me internei aqui eu, eu nunca gostei porque eu, aah... me internei aqui (CAPS), com meus 15 anos de idade, e a primeira vez que eu me internei a Dr. X mandou me amarrar, e aplicar oito injeção, quando acabar, me mandou pra o A. (Hospital Psiquiátrico). Eu nunca gostei daqui, nem dos funcionários nem de ninguém. Por mais dificuldade que eu passe em casa, mas eu nunca gostei de nenhum! (Referindo-se ao CAPS e ao Hospital Psiquiátrico). Sempre gostei mais da minha casa. (Entrevista com a usuária Anarcolinda).
Nessa última versão, o discurso de Anarcolinda apresenta contradições em relação ao Caps, apontando elementos que não correspondem ao cotidiano dos serviços substitutivos, uma vez que estes buscam romper com lógica manicomial a qual se recorria, geralmente, práticas de violência, repressão e desumanização para lidar com os usuários internos. Desse modo, é importante salientar que a usuária usou esse argumento como uma estratégia discursiva para apontar sua insatisfação com o serviço. Logo, é possível perceber que as versões podem ser performadas pelas diferentes experiências pelo qual o usuário vivenciou, inclusive, sendo composta, de maneira contraditória e conflitante em seus discursos, uma vez que são performados por práticas e características dos diferentes serviços que compõe a rede de assistência que apresentam diferentes realidades. Outro exemplo de como essas práticas podem performar realidades, é a versão dos usuários D. Romeu e Sr. Repente, quando expõem as diferenças entre estar internado e a vida fora do hospital.
Já! Duas vezes fui internado a força e eu fugi. Só vivia fugindo... Ó tomei tanta injeção, eu só vivia amarrado! Tomei tanta injeção que minha boca ficou dura. Serviço da gota! Fugi um bocado de vez! (Risos). Agora tô gostando daqui, acredita? Achando melhor do que em casa! Sabe por que está melhor do que em casa? Porque em casa eu só vivia comendo, dormindo e tomando remédio e aqui não, aqui eu... Quando venho embora pra cá, ajudo uma pessoa, ajudo outra, ajudo ali... E assim vai! (D. Romeu).
Quero dizer a diferença porque aqui (CAPS) aqui a gente vai pra casa né? Vai pra casa de tardezinha, aí dorme em casa com a família, aí fica se unindo, e quando a gente... E lá no (A) não, no (A) você só vê a família toda semana quando a família quer ir, quando a família não quer ir vai de mês em mês e fica ruim pra gente. (Sr. Repente)
É possível perceber acima, diferentes versões acerca da internação, na qual o primeiro usuário (D. Romeu) menciona a internação psiquiátrica involuntária e episódios de fuga, porém posteriormente, afirma gostar do convívio dentro do hospital psiquiátrico por encontrar condições de construir outros modos de relacionamento, que proporcionaram sentimentos como os de igualdade, importância e utilidade ao realizar tarefas, algo que lhe é negado fora da instituição, enquanto o segundo entrevistado (Sr. Repente), ressalta a valorização do CAPS por se sentir livre, acolhido e mais próximo de seus familiares ao utilizar esse serviço, algo inexistente durante suas experiências de internação manicomial. Essas versões expõem como diferentes condições de vida, necessidades de acolhimento e socialização são produzidas, e como performam diferentes realidades nos serviços.
Conclusões
Este artigo analisou versões de usuários dos serviços de saúde mental sobre a internação psiquiátrica involuntária. O resgate desses discursos, as visitas às instituições e as práticas de alguns profissionais mostraram como é possível performar diferentes versões dos usuários e produções de sentidos sobre suas realidades, realidades heterogêneas e que buscam produzir rupturas que se relacionam ao lugar dos usuários como sujeitos de direito de fala na política pública, como também no âmbito científico de alto impacto como os artigos da área da saúde não circulavam. Essas mesmas falas são falas de denúncia, apelo, insatisfação e também de necessidade de mudança e avanço.
Desse modo, produzir rupturas em modos cristalizados e tradicionais de produção de conhecimento é um desafio necessário para os que almejam mudanças, sejam elas culturais, políticas ou sociais. É aspirando à produção dessas possíveis mudanças, que esse estudo pretende contribuir com desdobramentos de futuras pesquisas que produzam práticas performadoras de transformação no campo da saúde mental, através da produção de novas práticas, baseadas na humanização, solidariedade, cidadania e garantia de direitos.
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Enviado em: 10/07/18
Aceito em: 19/02/20
Nayane Keilla Messias possui graduação em Psicologia pela Universidade Federal de Alagoas (2016), especialização em Psicopatologias lato-sensu pela Faculdade de Ensino Regional Alternativa (2016) e cursa especialização em educação em gênero e direitos humanos pela Universidade Federal da Bahia (2017).
E-mail:naypearl@hotmail.com
Mário Henrique da Mata Martins é doutor em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/PUC-SP (2018), fez estágio doutoral sanduíche na Universidade Autónoma de Barcelona (2017). Atualmente, trabalha como Professor da Universidade Paulista, Campus Marquês.
E-mail:mario.martins@docente.unip.br
ORCID:orcid.org/0000-0002-1370-300X
Cássia de Castro Bezerra é doutoranda em Psicologia pela Universidade Federal de Pernambuco, Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (2008) e graduada em psicologia pela Universidade Federal de Alagoas (2004). Atualmente é professora da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), no curso de Psicologia - Campus Arapiraca/Unidade Educacional Palmeira dos Índios.
E-mail:cassiacastro@yahoo.com.br
ORCID:orcid.org/0000-0002-0757-0845