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Revista Polis e Psique

versão On-line ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.11 no.2 Porto Alegre maio/ago. 2021

 

ARTIGOS

 

Bicicletas e liberdade: dialética, limiar e as dimensões subjetivas e políticas de duas obras de Ai Weiwei

 

Bicycles and freedom: dialetics, threshold and the subjectibe and political dimensions of two works by Ai Weiwei

 

Bicicletas y libertad: dialética, umbral y las dimensiones subjetivas y políticas de dos trabajos de Ai Weiwei

 

 

Lucas Oliveira Alves; Ana Lúcia Mandelli Marsillac

Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, SC, Brasil

 

 


RESUMO

Este artigo analisa duas obras do artista contemporâneo Ai Weiwei: "Bicicletas Forever" e "Flores pela Liberdade". Partindo dos conceitos de imagem dialética e de limiar de Walter Benjamin,bem como seus desdobramentos na teoria de Didi-Hubermanem interlocução com a psicanálise freudo-lacaniana, este artigo reflete, por meio do método psicanalítico da atenção flutuante, sobre as obras como sintomas de um tempo, analisando suas dimensões subjetivas e políticas.Colocam-se em discussão as imagens e significantes das obras, falas e contingências do artista, assim como aspectos políticos da arte contemporânea presente em suas criações. As obrasde Ai Weiwei estãoem interlocução com diferentes tempos e espaços,contextos artísticos e políticos,proporcionando experiências dialéticas, liminares, anacrônicas e críticas, abrindo brechas no autoritarismo e passagens para o desejo de liberdade e criação em um enlace singular entre artista e público.

Palavras-chave: psicanálise; arte; política; dialética; limiar.


ABSTRACT

This article analyzes two works by the contemporary artist Ai Weiwei: "Bicycles Forever" and "Flowers for Freedom". Starting from the concepts of dialectical image and threshold of Walter Benjamin, as well as its developments in Didi-Huberman's theory in interlocution with the Freudo-Lacanian psychoanalysis, this article reflects, through the psychoanalytic method of floating attention, on works as symptoms of a time, analyzing its subjective and political dimensions. The images and signifiers of the works, speeches and contingencies of the artist, as well as political aspects of contemporary art present in his creations are discussed. Ai Weiwei's works are in dialogue with different times and spaces, artistic and political contexts, providing dialectical, threshold, anachronistic and critical experiences, opening loopholes in authoritarianism and passages for the desire for freedom and creation in a unique link between artist and audience.

Keywords: psychoanalysis; art; politics, dialectic; thereshold.


RESUMEN

Este artículo analiza dos obras del artista contemporáneo Ai Weiwei: "Bicycles Forever" y "Flores pela Liberdade". Partiendo de los conceptos de imagen dialéctico y umbral de Walter Benjamin, así como sus desarrollos en la teoría de Didi-Huberman en la interlocución con el psicoanálisis freudolacaniano, este artículo refleja, a través del método psicoanalítico de atenciónflotante, sobre los trabajos como sintomas de um tiempo, analizando sus dimensiones subjetivas y políticas. Se cuestionan las imágenes y los significantes de las obras, los discursos y las contingencias del artista, así como los aspectos políticos del arte contemporáneo presentes en sus creaciones. Las obras de Ai Weiwei se interrelacionan con diferentes tiempos y espacios, contextos artísticos y políticos, proporcionando experiencias dialécticas, liminales, anacrónicas y críticas, abriendo brechas en el autoritarismo y pasajes al deseo de libertad y creación en un vínculo singular entre el artista y el público.

Palabras clave: psicoanálisis; arte; política; dialéctico; umbral.


 

 

Introdução e Aspectos do Método

Neste artigo refletimos sobre duas criações do artista contemporâneo Ai Weiwei:Bicicletas Forever (2003) e a campanha Flores pela Liberdade(#flowersforfreedom) (2013-2015).A primeira obra, composta por um agrupamento de bicicletas de aço inoxidável, possui dimensões e número de bicicletas variáveis, modificadas a cada instalação. A instalação realizada no Museu Oscar Niemeyer - Curitiba,por exemplo, foi composta por aproximadamente mil bicicletas (Figura 1). A segunda obraé desenvolvidaem um contexto de restrição de liberdade do artista. Em protesto à apreensão do seu passaporte, diariamente, durante 600 dias, Ai Weiwei coloca flores frescas no cesto de uma bicicleta estacionada em frente ao seu ateliê, fotografando e postando as fotos em suas contas nas redes sociais. (Raiz Weiwei, 2018).

Perscrutando o universo simbólico dessas duas obras, indissociáveis das experiências e influências de Ai Weiwei, ressaltamos elementos da vida do artista que se relacionam à produção das obras em análise, buscando discutir e evidenciar as obras de outros artistas e pressupostos teóricos que influenciaram na composição das mesmas. Para tanto, partimos de entrevistas de Ai Weiwei e de materiais já produzidos sobre suas obras.

Desse modo, tem-se como objetivos nesse artigo: apresentar e analisar as contingências e influências do artista relacionadas às obras Bicicletas Forevere Flores pela Liberdade;refletir sobre o conceito de imagem dialética, limiar e suas intersecções com a psicanálise; assim como colocar em discussão as dimensões subjetivas e políticas dessas obras à luz dos conceitos benjaminianos supracitados.

O método de análise que direciona a discussão promove a articulação de conceitos clínicos da psicanálise a conceitos da estética e da política, possibilitando ler as obras em sua complexidade subjetiva e política. Ao nos referirmos ao clínico, tratamos de conceitos que orientam a leitura psicanalítica para além do espaço do consultório. Como afirma Freud (1921/1996): "a psicologia individual é também uma psicologia social." Conceitos clínicos são, portanto, aqueles se embasam na escuta do inconsciente, no consultório e além dele, para pensar a cultura (a estética, a política, os fenômenos sociais) em articulação com outros campos do saber.

Abordamos as obras em analogia aos sintomas de um tempo, imagens anacrônicas que condensam passados, presentes e antecipam futuros(Didi-Huberman, 2008, 2010). Materialidades e imagens que insistem, expõem e questionam sua época, abrindo significados. Enigmas interpostos pelo artista que paradoxalmente ultrapassam e não alcançam de pleno suas intencionalidades, justamente por envolverem uma dimensão inconsciente que habita o ato criativo e permite o enlace com o público (Marsillac, 2018).

Destacamos que o sintoma do qual tratamos não se coaduna a uma perspectiva nosográfica, mas na direção do pensamento lacaniano, aponta para uma formação do inconsciente, que como os sonhos, os atos falhos e chistes, são arranjos de significantes, permitindo-nos vislumbrar elementos da cultura (Lacan, 1999). Desse modo, partimos das imagens e significantes que emergem nas duas obras, analisando suas contingências, seus diálogos com outros artistas, bem como o que o artista e a crítica refletem sobre elas. Nossa costura se dá a partir da atenção flutuante, método psicanalítico baseado em uma escuta que não busca ordenar fatos ou delimitar sentidos, mas abrir possibilidades de compreensão das obras e de seu tempo, de modo a analisar seus efeitos no laço social (Marsillac, 2018).

No que concerne à aplicação do método da atenção flutuante, faz-se necessário destacar que esta é uma técnica complementar à associação livre, condição sine qua nona todo processo analítico comumente expressa ao paciente pela solicitação: "Fale o que lhe vier à mente! Sem reservas e sem julgamento". Ante essa fala do analisando, Freud recomenda ao psicanalista que mantenha uma atenção parcialmente suspensa, visando ao estabelecimento de uma comunicação de inconsciente para inconsciente(Freud, 1912/1996).Na pesquisa psicanalítica na cultura ou, mais especificamente, na análise de obras de arte, a atenção flutuante não se apresenta como par complementar a fala de um sujeito em análise que associa livremente, contudo, como ressaltam psicanalistas como Aguiar (2006), Mezan (2018) e Rosa (2004), a escuta do sujeito do inconsciente pode ocorrer em qualquer espaço da pólis tecido pelo simbólico, logo exterior às condições que configuram a análise no consultório. Onde houver amarração de significantes que tanto estabilizam, como mobilizam sentidos e realidades, a atenção flutuante pode se apresentar como instrumento de escuta e compreensão de aspectos relativos ao campo sociopolítico e às subjetividades que o compõem.

 

Tabla 1

 

Ai Weiwei: Arte Política e Desejo de Liberdade

Ai Weiwei passou a infância e a adolescência acompanhando seu pai, um poeta acusado de subversão pelo governo maoísta e condenado a trabalhar em campos de detenção no interior da China. Em diversas entrevistas, Ai Weiwei comenta como os acontecimentos sociais e políticos da infância, bem como o contato com o pensamento artístico de seu pai,influenciaram seu pensamento e a tessitura de suas obras (Raiz Weiwei, 2018). Compreendemos que a experiência de estrangeiridade em seu próprio país, no sentido de que ele e sua família eram tratados como inimigos do governo (o outro radical e estranho aos valores ideológicos dominantes), associada ao desejo de liberdade criativa,em meio a um contexto de repressão,compuseram as contingências das obras do artista.

Ai Weiwei começou a se dedicar à arte contemporânea como curador. Retornando de Nova York para China em 1993, ele passou a desenvolver seus primeiros trabalhos e a investir no reconhecimento e divulgação de artistas contemporâneos, organizando exposições. O artista fez isso no momento em que a arte contemporânea ainda era classificada na China como conspiração do Ocidente (Raiz Weiwei, 2018), dando a primeira mostra do que caracterizaria seu trajeto nos próximos anos: o fomento de uma arte crítica às políticas autoritárias.

A obra Bicicletas Forever, uma instalação monumental que se caracteriza pela sua unicidade em cada montagem, remonta à infância do artista. No exílio com seu pai, a bicicleta assumiu um símbolo de liberdade. Naquele período, onde os automóveis ainda não dominavam as estradas chinesas, ter uma bicicleta tinha uma função de acessibilidade e liberdade. Forever remete a uma marca de bicicleta fabricada desde os anos 40 (Dantas, 2019).

Forte influência nas criações do artista, os ready-mades do dadaísta Marcel Duchamp (1887-1968) inspiram muitas obras de Ai Weiwei. Bicicletas Forever remete à "roda de bicicleta" (1913) exposta por Duchamp em sua série de ready-mades. No período que lecionava arquitetura, Ai Weiwei usava a bicicleta para demonstrar que era possível construir com materiais distintos daqueles habitualmente utilizados nas construções, tais como tijolo e concreto (Dantas, 2019).

A outra obra analisada no presente artigo: Flores pela Liberdade emergiu como uma campanha estendida por 600 dias (2013 - 2015),parte do período em que o artista teve seu passaporte apreendido pelo governo chinês. Após uma série de embates com autoridades do Estado decorrente da postura crítica de suas criações, Ai Weiwei sofreu prisão domiciliar no ano de 2011. No mesmo período, o artista viu seu estúdio ser destruído e foi impedido de viajar (Raiz Weiwei, 2018). Preso em sua terra natal, Ai Weiwei resistiu com sua arte publicizada nas redes sociais, buscando abrir brechas no regime autoritário de seu país.

Partindo da concepção de Walter Benjamin (1982/2007), defendemos que a imagem - uma das faces da obra de arte - descortina uma constelação de outras imagens. Como o conceito de significante, proposto por Jacques Lacan, a imagem articula-se em rede, remetendo sempre a outro significante (Lacan, 1985a) - compondo, repetindo e questionando formas de ver e viver. Propomos, assim, refletir sobre as duas criações de Ai Weiwei e suas possibilidades de interlocução com outros artistas, imagens, tempos e espaços. Nesta reflexão, orientada pelo método da atenção flutuante, o universo simbólico das obras será escutado a partir de alguns de seus significantes, destacando, assim, aquilo que de inextrincavelmente subjetivo e político emerge e é relançado na cultura pelas criações do artista.

Na esteira dessa proposta, em consonância com a influência artística dos ready-mades de Marcel Duchamp nas obras de Ai Weiwei, e considerando a relevância do dadaísta, já antes dos anos 20, para a arte contemporânea emergente na década de 60, iremos, no início desse percurso analítico e reflexivo, discorrer sobre os vínculos artístico-políticos entre os dois artistas em suas obras e proposições.

Duchamp é central na discussão da arte moderna e contemporânea por modificar a tônica do processo criativo, expondo objetos manufaturados (a já citada roda de bicicleta, dentre outros como o "porta-garrafas" (1914), a "pá de neve" (1915) e o "urinol" (1917)) em espaços de arte. Para ele, a arte não poderia ser reduzida a um produto criado manualmente pelo artista, mas deveria ser concebido como objeto de arte a partir do olhar seletivo deste, redimensionando enredos como o personagem em uma narrativa (Bourriaud, 2009a).Além disso, com esses atos, Duchamp dava visibilidade ao sistema das artes e tensionava as funções de artista, obra e público. Para o teórico Octavio Paz (2004): "Os ready-mades são objetos anônimos que o gesto do gratuito do artista, pelo único fato de escolhê-los, converte em obra de arte. Ao mesmo tempo esse gesto dissolve a noção de obra." (p. 23).

Inserindo-se em espaços estranhos aos cânones da arte, problematizando as divisões entre público e privado, artista e espectador, o artista contemporâneo passou a problematizar sua arte em suas relações com o político. Na concepção de Rancière (2005/2010) a arte possui uma dimensão política por atuar no embaralhamento de papéis previamente definidos. Ela engendra jogos avessos aos mecanismos de poder, possibilitando-nos circular entre o visível e o invisível, o dito e o não-dito. Essa concepção vai ao encontro da leitura de Nicolas Bourriaud (2009a), que aponta nas novas inserções do objeto artístico e, inextrincavelmente, nas relações humanas por ele ensejadas, vias de redimensionar narrativas.

Na campanha Flores pela Liberdade, midiatizada e repercutida em fotos do Instagram retiradas tanto por Ai Weiwei, quanto pelo público, vemos como são endossados dois aspectos atribuídos à arte contemporânea. Primeiramente, temos, na direção da discussão de Bourriaud (2009b), a utilização dos canais de informação como ferramenta para produção e pós-produção da obra. Valendo-se de meios como sua conta no Instagram, Twiter e seu blog, o gesto do artista interroga o controle hegemônico das redes virtuais pelas instâncias governamentais. Em entrevista concedida em Porto Alegre acerca da repressão estatal na China, Ai Weiwei comenta:

Temos cem mil pessoas que são uma espécie de polícia da internet e que, com a desculpa de tomar um chá, podem bater na sua porta para te intimidar. Meu advogado está cumprindo pena de cinco anos por algo que postou na internet. As pessoas têm muito medo e há muita censura.(Piffero, 2018).

Outrossim,no processo construtivo das obras, Ai Weiwei cria um estreitamento na relação artista-espectador1. As fotos retiradas pelo artista são um convite para que o público divulgue sua arte, disseminando-a em redes, ação que podemos caracterizar como tática de guerrilha.

Ai Weiwei cria dicotomias e contradições para provocar estranhamentos e múltiplos sentidos em suas obras. Transmitindo mensagens que ora são mais bem compreendidas no Ocidente, ora no Oriente, como quando divulgou uma série de fotos em que aponta o dedo do meio para pontos turísticos (gesto que tem um sentido obsceno para os ocidentais, mas não para grande parte dos orientais), ele desestabiliza as fantasmagóricas barreiras entre os dois polos (Raiz Weiwei, 2018). Encontramos nesses elementos ressonâncias da vida do artista. Aspectos contingenciais de sua história eda de seu pai, homem que procurou burlar a censura com a poesia. Ai Weiwei traz em sua arte questões do Ocidente e do Oriente, pois sua formação artística e política é transcontinental. Traz, da mesma forma, as marcas da estrangeiridade, pois elas sempre o acompanharam, mesmo dentro de seu país.

 

Imagem Dialética e Limiar

Para "Duchamp: 'A arte é um jogo entre todos os homens de todas as épocas'." (Bourriaud, 2009b, p. 26). Essa afirmação do dadaísta nos permite uma aproximação ao conceito de imagem dialética, proposto por Benjamin. Conceito pulsante e fragmentário nos escritos do autor alemão, a imagem dialética revela as relações anacrônicas inscritas nos acontecimentos de diferentes tempos, convidando-nos a ler as imagens do passado (o ocorrido) em uma relação dialética com as imagens do presente (o agora), em uma espécie de síntese fugaz, pujante e autêntica. Textualmente, Benjamin expõe (1982/2007):

Não é que o passado lança luz sobre o presente ou que o presente lança luz sobre o passado; mas a imagem é aquilo em que o ocorrido encontra o agora num lampejo, formando uma constelação. Em outras palavras, a imagem é dialética na imobilidade. Pois, enquanto a relação do presente com o passado é puramente temporal e contínua, a relação do ocorrido com o agora é dialética - não é uma progressão, e sim uma imagem, que salta. - Somente as imagens dialéticas são imagens autênticas (isto é: não-arcaicas), e o lugar onde as encontramos é a linguagem (p. 504).

A autora Jeanne-Marie Gagnebin (2012) comenta que o conceito benjaminiano situa-se na tradição críticaa uma historiografia oficial;historiografia sustentada por "narrativas legítimas" e ancorada no pressuposto de uma memória neutra, capaz de resgatar imagens cristalizadas do passado - imagens que representariam os fatos do passado em uma perspectiva linear do tempo. Em "Teses sobre o conceito de história" (1940/1987), Benjamin comenta que o passado traz consigo um índice misterioso, uma imagem que a história busca chamar de sua, questionando: "Pois não somos tocados por um sopro de ar que foi respirado antes? Não existem, nas vozes que escutamos, ecos de vozes que emudeceram?" (p. 223).Aversão hegemônica da história, compreendida pelo autor como a história forjada pelos vencedores, imobiliza a imagem do acontecido, desconsidera seu caráter vivo,sobreposto, obliterando a emergência de tempos constituídos por imagens e narrativas contra-hegemônicas.

"Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo 'como ele de fato foi'. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo." (Benjamin, 1940/1987, p. 224).Nessa sentença, Benjamin nos abre a possibilidade de tecer articulações com a teoria psicanalítica. Para Benjamin, assim como para Sigmund Freud (1914/1996), o valor da memória não está em seu suposto caráter de reserva de palavras e imagens passíveis de serem resgatadas, mas em sua capacidade plástica. É por meio de reminiscências que acessamos uma autêntica possibilidade de construção histórica (individual e coletiva). E aqui, autêntico, para Benjamin e, em certa medida, para Freud, não se coaduna ao fato, mas àquilo que emerge (relampeja) enquanto força criativa e crítica.

"O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer." (Benjamin, 1940/1987, p. 224-225).A afirmação "os mortos não estarão em segurança" nos aponta para um passado que pode ser retroativamente modificado. Desse modo, mais uma vez, propomos uma aproximação entre Benjamin e a psicanálise, pois ambas operam com a possibilidade de uma invenção tanto do passado, quanto do futuro. As ações do agora incidem sobre o acontecido, o reinventando. Para que os mortos estejam em segurança, faz-se necessário firmar um compromisso histórico com aquilo que nos antecede, engendrando "futuros dos pretéritos". Aí, mais uma vez, reside o valor da imagem dialética, pois ela suspende a linearidade, criando a imagem de uma constelação, onde os tempos se fundem e as centelhas de esperanças dos mortos tornam-se, inelutavelmente, as esperanças dos vivos.

Georges Didi-Huberman (2010), procura aproximar o conceito de imagem dialética à teoria psicanalítica. Retomando o clássico exemplo da brincadeira do neto de Freud com o carretel, descrita pelo psicanalista em "Além do princípio do prazer" (1920/1996), o autor se detém a analisar ressonâncias e convergências de concepções de Freud e Benjamin. Germe do conceito de pulsão de morte, desdobrado na concepção lacaniana de gozo, a brincadeira do neto do Freud é paradigmática ao revelar aquilo que há de ambiguamente prazeroso-desprazeroso na repetição. De modo a simbolizar a ausência da mãe, a criança de um ano e meio lançava um carretel e exprimia um som, que na escuta de Freud equivaleria ao Fort ("ir embora" em alemão). Puxando o carretel de volta, o menino exprimia um Da (designando um "aqui está", "voltou" em alemão) como representação do retorno da mãe. Nesse jogo de presença-ausência, próprio às regras da linguagem, Jacques Lacan (1985a) identificará a possibilidade de emergência do sujeito, pois é em um jogo, no qual as regras já estão dadas - a cadeia significante - que o sujeito se constitui.

De maneira semelhante à assunção do sujeito na perspectiva freudo-lacaniana, a imagem dialética em Benjamin manifesta-se transitoriamente, se dá em um jogo de ser e não-ser, presença-ausência, interminável Fort-da!, marcado por uma impossibilidade de apreensão. O sujeito e a imagem não se fundem a um espaço no tempo, mas se apresentam em um jogo que se perpetua em repetições paradoxalmente autênticas, uma vez que minimamente sempre portam alguma diferença.

Didi-Huberman nos fala (2010, p. 82-83): "É que o carretel só é vivo e dançante ao figurar a ausência, e só 'joga' ao eternizar o desejo" e, adiante, complementa:

É talvez no momento mesmo em que se torna capaz de desaparecer ritmicamente, enquanto objeto visível, que o carretel se torna uma imagem visual. O símbolo, certamente, o 'substituirá', o assassinará - segundo a ideia de que 'o símbolo se manifesta primeiro enquanto assassinato da coisa' -, mas ele subsistirá num canto, esse carretel: num canto da alma ou num canto da casa. Subsistirá como resto assassinado do desejo da criança. (p. 83).

Refletindo sobre o desejo como um jogo infinito de perdas e reposições, Didi-Huberman (2008, 2010) analisa o anacronismo das imagens dialéticas. Para o autor, a imagem dialética está fora do tempo, pois transcende a ideia de um tempo linear. Fruto de uma reminiscência, fabricada por uma memória que retém e perde, essa imagem se furta de ser ela mesma, sendo sempre outra(s), de outro(s) tempo(s).

O autor (1992/2010) chama ainda a atenção para a noção de que a imagem dialética não se cristaliza como em uma síntese hegeliana - reconciliação de tese e antítese - mas como ressalta Benjamin (1982/2007): é imagem fulgurante. Uma "interpenetração 'crítica' do passado e do presente, sintoma da memória - é exatamente aquilo que produz a história" (Didi-Huberman, 2010, p. 177). Desse modo, a materialidade de uma obra artísticanão se coaduna à imagem dialética, mas a cria por meio da memória que se produz no enlace entre espectador, obra e artista, aproximando tempos e subjetividades.

Ressaltados esses aspectos concernentes à discussão da imagem dialética em suas possibilidades de articulação com a teoria psicanalítica, nos deteremos a discutir o conceito de limiar. Jeane Marie Gagnebin (2014) em "Limiar, aura e rememoração" argumenta que o limiar na língua alemã possui uma conotação diferente da fronteira. O limiar pertence a uma zona de transição e indeterminação: o equivalente na arquitetura às passagens das galerias de Paris descritas por Benjamin. Limiar (Shwelle) é mudança, transição, fluxo e sua raiz etimológica possui ligação com schwellen (inchar, intumescer). É aquilo que transborda, ultrapassando limites de espaços e pensamentos totalizantes. "Ele lembra fluxos e contrafluxos, viagens e desejos." (p. 36). "Ele pertence à ordem do espaço, mas também, essencialmente, à do tempo. Assim como sua extensão espacial, sua duração temporal é flexível, e depende tanto do tamanho do limiar quanto da rapidez ou da lentidão, da agilidade, da indiferença ou do respeito do transeunte." (Gagnebin, 2014, p. 36).

Retomando a parábola de Kafka na obra "O processo", também discutida por Walter Benjamin, Didi-Huberman (2010) falará do limiar da imagem. No livro de Kafka, o personagem principal, Josej K., permanece diante de uma porta aberta durante anos, esperando a autorização do guarda para poder lá entrar. Ao transpor a porta, Josef espera encontrar a lei e descobrir o enigma do crime do qual o acusam. Diante da imagem, estamos como o personagem na frente de uma porta aberta, um limiar que não conseguimos transpor.

(...) a imagem é estruturada como um limiar - um quadro de porta aberta, por exemplo. Uma trama singular de espaço aberto e fechado ao mesmo tempo. Uma brecha num muro, ou uma rasgadura, mas trabalhada, construída, como se fosse preciso um arquiteto ou um escultor para dar formar as nossas feridas mais íntimas. (Didi-Huberman, 2010, p. 243).

O limiar nos permite refletir sobre o estranhamento que a obra nos provoca. O infamiliar (Das Unheimliche), conceito de Freud (1919/2019) que nos direciona a pensar na alteridade que nos habita e nos interroga. O infamiliar revela o que é paradoxalmente estranho e familiar, sublinha uma fragilidade nas fronteiras do eu, mostrando que ela possui rachaduras, brechas. A imagem porta uma inquietante estranheza, pois assim como o outro pode refletir a imagem daquele que o olha, a verdadeira imagem refletida pode revelar uma alteridade, como quando Freud, após um solavanco do trem, depara-se com sua imagem refletida no espelho e não se reconhece.

As passagens, que no campo da arquitetura, evidenciam esse limiar, demonstram o paradoxo do que está aberto e fechado, é íntimo e externo, do que sempre se desloca na constituição do tempo, do espaço e do sujeito, impossibilitando completudes e abrindo brechas nosprincípios da identidade e da linearidade.

O artista, por meio de imagens, nos apresenta o instransponível da obra e de nós mesmos - imagem impossível de cristalizar, sentido que não se inscreve permanentemente. Nas imagens, vemos e somos olhados de fora para dentro (Didi-Huberman, 2010; Lacan, 1985b), pois o Outro2, esse suposto ente que representa a cultura, retorna nosso ver, sublinhando que o eu não é mais senhor em nossa própria morada (Freud, 1917/1996). Vendo, somos olhados em uma tessitura espaço-temporal que nos ultrapassa, transborda, evocando imagens anacrônicas.

 

Bicicletas e Liberdade: Dimensões Subjetivas e Políticas das Obras de Weiwei

Operacionalizando os conceitos de imagem dialética e limiar, refletimos sobre as dimensões subjetivas e políticas das obras de Ai Weiwei em seus elementos imagéticos e significantes. Por subjetivo, compreendemos aquilo que está no artista, mas o excede, permitindo analisar experiências que o ultrapassam e refletir sobre os sintomas de tempos que enlaçam sujeitos em repetições e diferenças, dando-nos a ver contextos artísticos, políticos e históricos em constelação.

Orientando-nos por uma perspectiva psicanalítica de subjetividade, compreendemos que tal noção não se confunde com uma interioridade circunscrita, mas, partindo da proposição lacaniana da banda de Moebius, figura topológica que rompe com o binarismo dentro-fora, apresentando-se como uma fita torcida que não perde a continuidade de sua superfície (Lacan, 2005), destacamos que o subjetivo é constituído por e imanente aos processos sociais, políticos e históricos. O subjetivo diferencia-se do individual, noção que busca prescindir da incidência do Outro em sua constituição. Como Lacan assevera em diferentes momentos: "o inconsciente é a parte do discurso concreto, como transindividual" (1953/1998, p. 260) e o "inconsciente é a política" (1967, p. 236), negritando, deste modo, que o inconsciente não pode ser depreendido do "indivíduo" que fala, mas daquilo que no discurso (contemplando enunciados, atos e materialidades) fala. Assim, sublinhamos que o sujeito do inconsciente, o qual procuramos escutar a partir dos significantes que pululam na cultura, abarca moebianamente (ou seja, em relação de continuidade e mútua composição)dimensões subjetivas e políticas.

O comentário de Ai Weiwei no tocante às perseguições que seu pai sofreu: "Os totalitários não podiam tolerar a dissidência" (Raiz Weiwei, 2018, p. 111), denota o caráter político de suas obras, traduzindo, também, a herança artístico-política de seu pai em uma dimensão da repetição do gesto crítico e criativo. Em suas bicicletas, alegorias de seu desejo de liberdade que remontam às memórias da infância com seu pai (Biciletas Forever), assim como suporte de sua campanha pela liberdade (Flores pela Liberdade), sublinhamos sua postura dissidente frente ao autoritarismo,expressão de resistência à imposição de imagens e sentidos do passado e do presente.

Nas obras, uma pelo excesso de bicicletas agrupadas e, outra, pela repetição do ato de pôr flores no cesto, bem como pela disseminação de suas fotos em redes sociais, há tautologias que negam a si mesma. Remetendo-nos às imagens e sentidos da Pop Art, em trabalhos de artistas como Andy Warhol (1928-1987) e Roy Lichtenstein (1923-1997), que reproduziam à exaustão figuras e símbolos dos meios de produção e alienação em massa de modo a criticar o sistema produtivista do mercado, Ai Weiwei cria pelo excesso de materiais, assim como pela repetição prolongada de atos, um automatismo que visa criticar o próprio automatismo das relações imposta pelas ideologias massificantes.

Em Flores pela Liberdade, campanha de 600 dias, da qual várias pessoas pelo mundo participaram, tanto fotografando, quanto compartilhando as imagens da bicicleta com seus ramos de flores, temos uma obra que se estende no tempo e nas redes, se servindo das ferramentas de vigilância e controle ideológico para criticá-las. Podemos encontrar semelhanças desse gesto na proposta do artista brasileiro Cildo Meirelles em "Inserções em Circuitos Ideológicos". Em 1970, período da ditadura civil-militar brasileira, Cildo desenvolveu dois projetos famosos denominados "Projeto Coca-Cola" (1970) e "Projeto Cédula" (1975). O artista valeu-se de objetos em circulação como garrafas de vidro de Coca-Cola e cédulas de dinheiro para grafar mensagens políticas, burlando a censura instaurada pelo governo. São famosas as frases "Go home, Yankes!" nas garrafas de Coca e a pergunta "Quem matou Herzog?", carimbada em cédulas de dinheiro. (Marsillac, 2018)

Nas obras de Cildo e na campanha de Weiwei, evidencia-se o modo como os circuitos ideológicos, ferramentas de um sistema de controle social, são utilizados pelos artistas para contornar e criticar o próprio sistema. Contra o anestesiamento subjetivo e a apatia imperante nas imagens do Instagram, Weiwei utiliza sua conta como material artístico e político, convocando outras pessoas a se engajarem em sua causa. Além dos elementos políticos da arte contemporânea descritos por Bourriaud (2009a, 2009b) e Rancière (2005/2010), ressaltamos nesses gestos experiências liminares (Gagnebin, 2014), tensionamentos das lógicas do público e do privado, do artista e do espectador em tentativas de abrir passagens, zonas de indiferenciação e liberdade.

Em diálogo com Didi-Huberman (2010), podemos refletir sobre o modo como a bicicleta com flores está como presença, paradoxalmente imóvel (em frente ao ateliê) e em circulação (nas redes sociais), denotando a ausência de liberdade do artista. No que essa obra materializa e evoca enquanto falta, escutamos o sujeito do desejo - desejo de liberdade poética (Ai Weiwei, declara que assim como Duchamp, sente-se mais influenciado pelos poetas), desdobrado, como em um deslocamento metonímico, em um desejo de liberdade política.

As flores nessa obra dialogam diretamente com um marcante acontecimento que antecede a Revolução Cultural Chinesa - período em que Ai Weiwei foi enviado com seu pai para campos de trabalhos compulsórios. Em 1957, ano de nascimento do artista, o governo de Mao Tsé-Tung lançou a "Campanha das Cem Flores", cujo slogan era "Que desabrochem cem flores, que disputem cem escolas de pensamento", que tinha como premissa a liberdade de pensamento e o estímulo à diversidade artística. No entanto, a campanha se mostrou uma forma de identificar e perseguir artistas cujas obras não se coadunavam aos interesses e projetos do governo. (Hobsbawm, 1994/2007).

Ai Weiwei, com sua campanha, repete a premissa de liberdade, fomentando um espaço de criação e desejo, análogo ao período da "Campanha das Cem Flores". Aqui, a campanha é reeditada de modo a resgatar a memória de um período cujas intenções foram frustradas pela censura, mas que agora, em imagens dialéticas, apontam para um caminho possível de redenção (Benjamin) ou elaboração (psicanálise).

Ao pensarmos no que Benjamin (1940/1987) nos fala em "Sobre o conceito de história" sobre a "segurança dos mortos", podemos analisar como o seu contexto, assim como o de Freud, e da mesma maneira, de todos os artistas elencados, se articulam no campo da morte e da política. Na Europa de Freud e Benjamin,os mortos das duas grandes guerras e do nazi-fascismo. Em Cildo e Ai Weiwei, respectivamente, os mortos da ditadura militar e da era maoísta.Essas formas de autoritarismo político em distintos períodos, bem como as resistências artísticas que emergem em resposta, nos fazem perceber que as esperanças dos mortos, necessariamente, precisam ser as esperanças dos vivos. Esperanças que precisam ser materializadas em ações políticas de afirmação da palavra e do desejo.

Flores pela Liberdade propagam-se nas redes virtuais, colocando em trânsito uma mensagem política, cujos efeitos são, em certa medida, incontroláveis, "transbordam". Após 600 dias, as imagens que circularam o mundo, concomitantemente a uma campanha de arrecadação financeira com o objetivo de mover o processo legal de recuperação do passaporte, permitiram ao artista transitar (Raiz Weiwei, 2018).Ao recuperar seu passaporte, Ai Weiwei passa a viajar pelo mundo para se dedicar às questões dos refugiados, estrangeiros que de alguma forma dialogam com a marca da estrangeiridade em sua vida pública, bem como com a universal condição estrangeira (Freud, 1919/2019) do sujeito do inconsciente.

Pensando no caráter intransponível que Didi-Huberman (2010) aponta no limiar - paradoxo da passagem aberta que impõe certa distância, uma barreira - é interessante refletirmos sobre como após reconquistar seu passaporte e sua liberdade, Ai Weiwei decide dedicar-se a abrir brechas nos muros impostos ao outro (estrangeiro) deparando-se com as insistentes barreiras - as fronteiras nacionais, os interditos ao que escapa da ideologia identitária e nacionalista.

Como nos aponta Gagnebein (2014), o limiar não se circunscreve em posições dicotômicas, mas apresenta-se "entre", escapando a qualquer lógica binária e sectarista. As obras de Ai Weiwei proporcionam experiências liminares por interrogarem as delimitações do público/privado, Oriente/Ocidente, as fronteiras nacionais, bem como outras lógicas instituídas de poder.Nas cercas presentes nos campos de refugiados, locus onde o artista passa a criar grande parte de suas obras após Flores pela Liberdade, alegoricamente, identificamos seu limiar:mostra do desejo de liberdade que se afirma diante das fronteiras, buscando abrir brechas e passagens.

Retomando as elucubrações de Walter Benjamin (1982/2007) sobre a imagem dialética, podemos observar como novamente ele se aproxima de elementos da teoria freudiana:

Na imagem dialética, o ocorrido de uma determinada época é sempre, simultaneamente, o "ocorrido desde sempre". Como tal, porém, revela-se somente a uma época bem determinada - a saber, aquela na qual a humanidade, esfregando os olhos, percebe como tal justamente esta imagem onírica. É nesse instante que o historiador assume a tarefa da interpretação dos sonhos. (p. 506).

A imagem das bicicletas, em Biciletas Forever, agrupadas de maneira surreal como em um sonho (uma verdadeira constelação de bicicletas), são capazes de despertar sensibilidades, bem como desejos singulares e compartilhados. O despertar não se contrapõe ao sonho, mas nos instiga a investigar suas metonímias e metáforas, mecanismos de formação do inconsciente constituintes das imagens oníricas e dos sintomas (Lacan, 1999). Convoca-nos a refletir sobre as alegorias das bicicletas de Weiwei, no que elas abarcam de novo e velho, síntese autêntica e fugaz do arcaico e do moderno.

O "ocorrido desde sempre" do enunciado de Benjamin, aponta para a eternidade de um passado. Eterno porque não cessa de se repetir. Desde sempre e para sempre (forever). Retomando Freud (1914), observamos que no significante "sempre", presente na obra de Ai Weiwei e no escrito benjaminiano, há a marca inelutável da repetição. A história é constituída por sintomas que se repetem, algo do passado invariavelmente interpela o presente, impelindo uma re-ação. Nesse sentido, cabe ao trabalho da memória - resgate e abertura de imagens e sentidos - atuar sobre o paradoxo da repetição, a saber, que ela não é idêntica e, portanto, contém sementes de mudanças.

Deixarmo-nos capturar pela dimensão onírica das bicicletas, não como escape da realidade, mas como algo que lhe é constituinte,permite-nos engendrar uma dialética, pois como destaca Benjamin (1982/2007, p. 506): "a utilização dos elementos do sonho ao despertar é o cânone da dialética".Sustentamos que sonhos e obras de arte são produções do inconsciente e da memória e, portanto, inseparáveis da realidade (subjetiva e política), assim como do Real (Lacan, 1985a), aquilo que não se inscreve nessa realidade, impulsionando-nos a ir além dela.

Além de representar a resistência do artista à realidade de censura e restrição imposta desde sua tenra infância (desde sempre), a constelação de bicicletas da marca Forever nos dá a ver um tempo onde o uso de bicicletas como meio de locomoção não havia sucumbido ao brusco processo de industrialização chinesa e à hegemonia dos veículos de quatro rodas - totalitarismo dos veículos na contemporaneidade. Forever carrega a marca do infinito, algo do campo do Real (aquilo que na teoria lacaniana é insimbolizável e não cessa de não se escrever), pois nos articula ao impossível do infinito e ao real da morte - a finitude, que se presentifica de maneira incontornável quando a palavra falta ou é censurada.

Em "O nascimento da tragédia", Nietzsche nos fala dos impulsos apolíneos e dionisíacos na criação artística, articulando vida e arte, estética e existência. O movimento apolíneo é associado à faculdade de sonhar: projetar imagens, incorporar formas e cenários, já o dionisíaco associa-se à embriaguez: estado de destruição, diluição das formas, do tempo e do indivíduo (Dias, 2015). Esses dois movimentos antagônicos convergem na vida e na arte, de maneira similar à dialética benjaminiana, ensejando movimentos de criação e destruição, forma e informe. No arranjo, montagem e formas das obras analisadas, há o resgate da história e a representação das marcas subjetivas e políticas de um artista que não se restringem a ele, posto que nos permitem perscrutar outras histórias e criações, escutar vozes de outros tempos, bem como fomentar limiares: experiências de transição, passagens entre sonhos e realidades.

 

Considerações Finais

As duas obras analisadas, em seu caráter anacrônico, crítico e dialético, cuja análise trilhamos a partir de alguns significantes e campos contingenciais, abriram possibilidades de articulação aos efeitos políticos dos ready-mades, da arte de Cildo Meireles eda Pop art, evocando imagens e sentidos capazes de refletir sobre subjetividades e contextos políticos que atravessam a história do artista e enlaçam sujeitos em um campo de criação e desejo.

Bicicletas Forever foram instaladas em quatro cidades brasileiras entre 2018 e 2019, momento em que o autoritarismo e a censura tomaram contornos pujantes nas relações sociais e políticas brasileiras. No mesmo período, Cildo Mirelles renova a crítica do "Projeto Cédula" carimbando em cédulas de R$ 2,00 e R$ 5,00 o rosto de Marielle Franco, vereadora carioca pelo PSOL, mulher negra, militante dos direitos humanos, assassinada em 2018 (Balbi, 2019). Crime não solucionado, ferida aberta que nos interpela em tempos de violência, como destacaria Benjamin (1940/1987): onde o inimigo não tem cessado de vencer.

Tempos e espaços se intercruzam nas obras de artistas que buscam sublinhar um cunho político às suas obras, visibilizando o que se repete na história por meio do resgate e da reinvenção da memória. Ai Weiwei desacomoda ao promover a reflexão sobre uma liberdade que nunca está dada, mas que precisa ser reafirmada, propagada em redes como projeto coletivo, abrangendo e articulando moebianamente dimensões subjetivas e políticas.

Levando em consideração o atual contexto pandêmico causado pelo vírus da COVID-19, bem como os discursos que emergiram em resposta a esta situação, o significante liberdade tornou-se alvo de disputa. Sob o argumento de que "a economia não pode parar", axioma pautado no âmbito de uma perspectiva neoliberal, uma concepção individualista de liberdade tem sido mobilizada contra as medidas de restrição de circulação de pessoas nas vias públicas - medidas essenciais, de acordo com a os principais cientistas e órgãos de saúde do mundo, para prevenir o contágio e o aumento exponencial de mortes (BBC, 2021). Ante este cenário, uma compreensão ética de liberdade precisa ser acionada. A liberdade presumida em uma ética do sujeito do desejo necessita, incontornavelmente, implicar o outro na teia dos dilemas e atos que o enredam na pólis. Não há liberdade que se conquiste individualmente, e isto as criações de Ai Weiwei bem demonstram; e em última instância, não há vida possível sem que o outro entre na equação do desejo.

 

Notas

1 Relação na qual incluímo-nos na dupla função de espectadores e pesquisadores. Nesta duplicidade, buscamos manter a atenção flutuante dirigida aos significantes das obras, mas, na medida em que também somos espectadores e cocriadores de suas significações, participamos de uma heterodoxa associação livre que atravessa artista, obra, público e crítica. Assim, na relação com a criação, uma dança de inconscientes é promovida, e o pesquisador/espectador, deslizando entre as posições de analista e analisando, pode escutar e criar sentidos no enlace com a obra.

2 Este conceito desenvolvido por Lacan representa o tesouro dos significantes. Trata-se de um ente abstrato que pode ser representado pelos pais, a família, as instituições, a história, a sociedade e a política. É na busca pelo reconhecimento do Outro que o sujeito se insere na linguagem, tornando-se constituinte e sendo constituído pela cultura.

 

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Submissão: 08/06/2020
1° avaliação: 13/04/2021
Aceite: 09/06/2021

 

 

Lucas Oliveira Alves é graduado em Psicologia pela Universidade do Sul de Santa Catarina. Possui mestrado em Psicologia Social e Cultura na Universidade Federal de Santa Catarina. É também psicanalista em formação pela Maiêutica - Florianópolis.
E-mail: lukass.oliveira@hotmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7226-9960
Ana Lúcia Mandelli Marsillac é psicóloga, psicanalista e pós-doutora pela Universidade Nova de Lisboa. Além disso, é professora adjunta do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina e professora do PPG em Psicologia UFSC.
E-mail: 2206ana@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2716-510X

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