Introdução
Este ensaio, de natureza teórica, aborda a objetividade e o feminismo na constituição da ciência. Argumentamos sobre a importância de reativar práticas de atenção e políticas de afetos que se abrem para o maravilhamento, o espanto e outras afetações acionadas na produção do conhecimento científico. Após a publicação, em 1986, do trabalho The Science Question in Feminism, a objetividade adquiriu, na pesquisa feminista, o sentido mais amplo de uma responsabilidade epistêmica, desde posições localizadas (Kuala, 2008). Ainda na década de 1990, Donna Haraway via a necessidade de mudar as metáforas para pensar sobre as versões de uma objetividade feminista baseada em conexões e conversações compartilhadas.
Referimos às amadoras ou amantes da ciência para aludir a um certo modo de nos colocarmos em relação com o mundo e as ciências. Desta maneira, uma cientista profissional pode ocupar, também, a posição de amadora. É bonito como Isabelle Stengers narra o encontro com Prigogine, em uma entrevista com Dias, et al. (2016). A autora se autodescreve naquele trabalho como uma amadora e se vale dos efeitos, dos deslocamentos que este lugar produz, ao permitir, de acordo com ela, sentir, apreciar medos, sonhos e esperanças de cientistas. De modo similar, Bruno Latour (1993) pontua que amadoras, ou amantes das ciências, não negam as ciências.
Nesta proposição, entendemos que o maravilhamento nas ciências aciona práticas de atenção voltadas às políticas de afetos em intensidades, que se abrem à multiplicidade e à construção de variados corpos, subjetivações e saberes. A objetividade nos estudos feministas em vez de oferecer uma imagem espelhada não distorcida do mundo como pensam os considerados modernos, convoca à responsabilidade para com as marcas nos corpos pesquisadores e para com os emaranhados dos quais fazemos parte.
Isabelle Stengers e Vincianne Despret Escrevem um E-mail para Mulheres que Fazem Ciência
Despret e Stengers (2012) buscam conversar com primatólogas que se recusam a conferir um lugar singular à observação realizada por elas e por outras mulheres, quando comparada às observações realizadas por homens. Dos diálogos, as autoras depreendem que se as antropólogas afirmassem que seus animais são interessantes porque estudados por mulheres, correriam o risco de deslegitimar o que as suas pesquisas buscavam evidenciar, qual seja: esses animais são interessantes. Como estratégia, negar a singularidade de gênero na prática de observação para validá-la. Estão interessadas em “aprender com” os primatas que observam. É como se a mulher tivesse que se aproximar da imagem viril do caçador para galgar a legitimidade que, de outro modo, ver-se-ia em risco. Negar a singularidade de quem observa não resolve a vida das mulheres nas ciências, tampouco descreve o seu cotidiano.
Diferentes pesquisadoras responderam uma mensagem encaminhada por Despret e Stengers (2012) a respeito da vida das mulheres na universidade. São muitas as peripécias para permanecer nas ciências. Uma das entrevistadas, a filósofa Barbara Cassin, ao referir-se a um dos seus livros, mobiliza a beleza e o encantamento que a conduziram a empreender a pesquisa, que derivou no livro Ver Helena em todas as mulheres. Também assinala percalços, a raiva diante de algumas afirmações sobre o seu trabalho e a importância do riso:
Quando ela escreve Voir Hélène en toute femme, o que a faz trabalhar, diz ela, é a beleza dos vestidos de Hélène e reúne deliberadamente os textos que a afetam. Para mim, ser mulher é não acreditar ou não querer incorporar a diferença de gêneros literários. Eu não posso acreditar quando eu escrevo que há uma diferença entre a poesia, o romance, a filosofia. Assim como não há diferença com a pintura, com o amor, com a maternidade, é um conjunto que se desenha sem limites (Despret & Stengers, 2012, p. s/p, tradução nossa, [grifo das autoras]).
Barbara Cassin conta que sentiu raiva diante das afirmações de que ela não seria filósofa ou não estaria fazendo Filosofia ao mostrar alguns textos escritos no gênero poesia. Ao que ela retrucou, em pensamento: Não é Filosofia! Verão que faço Filosofia melhor do que vocês! (Despret & Stengers, 2012). Barbara buscava a permeabilidade ao invés da fixação em um gênero e assim,
Ela havia proposto um trabalho de história na filosofia, um trabalho de literatura na história. Eu tinha feito tudo errado, felizmente, porque eu não conseguia me ver vivendo em este lugar. Precisamente porque este lugar não autoriza qualquer permeabilidade (Despret & Stengers, 2012, p. s/p, tradução nossa [grifo das autoras]).
Nota Sobre Regimes de Objetividade
Na história das ciências, a objetividade foi atribuída ao conhecimento produzido por homens, brancos e ocidentais, assim como sua ausência às mulheres, negros, indígenas, acusados de desrazoáveis e incapazes de produzir um conhecimento confiável (Harding, 2019). O conceito de objetividade é bastante controverso, dificultando o estabelecimento de um sentido único e fixo para o termo. Inequivocamente, o conceito nos conduz à dimensão política das ontologias e das epistemologias que conferem realidade e maximizam a neutralidade metodológica, como bem aponta Harding (1995; 2007).
Daston (1999, 2017) mostra que nem sempre se atribuiu um sentido único à objetividade como se esta tivesse uma relação com “o real em si”, que nos soa tão familiar contemporaneamente. Existem diversas objetividades científicas que “não são apenas distintas umas das outras, mas que se encontram, por vezes, em conflito recíproco” (Daston, 1999, p. 79). Considerando essa multiplicidade, Daston (2017) argumenta que a objetividade “se refere a um só tempo à metafísica, métodos e morais” (p. 15). Sobre a origem da objetividade, relata:
Os seus cognatos nas línguas europeias derivam da forma adverbial ou adjectival do latim objectives/objective, introduzida por filósofos escolásticos do século XIV como Duns Scot e William Occam. (A forma substantiva só aparece muito depois, por volta dos princípios do século XIX). Desde o princípio, ela emparelha com subjectives/subjective, mas os termos significam originalmente, precisamente, o oposto daquilo que significam agora. “Objectivo” referia-se às coisas tal como elas se apresentam à consciência, enquanto que “subjectivo” se referia as coisas em si (Daston, 1999, p. 79-80, [grifo da autora]).
Tratava-se do aspecto ontológico da objetividade que diz do mundo e busca a estrutura última da realidade. Durante os séculos XVII e XVIII, observa-se um desuso dos termos objetivo e subjetivo nos estudos sobre ciência. Quando evocados esporadicamente o eram como termos técnicos por metafísicos e lógicos. Foi Kant que, ao se apropriar dos termos “objetivo” e “subjetivo” dos filósofos escolásticos, os retomou e conferiu um novo significado à objetividade, que passou a dizer respeito às categorias relacionais, tais como tempo, espaço e causalidade, que são precondições da experiência (Daston, 1999, 2017).
Apenas nos anos 20 e 30 do século XIX as entradas dos dicionários – primeiro em alemão, depois em francês, e mais tarde em inglês – começaram a definir as palavras “objectividade” e “subjectividade” num sentindo aproximado àquele que nos é familiar, muitas vezes com um aceno em direção à filosofia kantiana. Em 1820, por exemplo, um dicionário alemão definia objektiv como uma “relação a um objecto exterior”, e subjektiv como “pessoal, interno, que nos é inerente, por oposição a objectivo”; ainda em 1863 um dicionário francês tratava este como o “novo sentido” (diretamente oposto ao antigo sentido, o escolástico) da palavra objectif e creditava “a filosofia de Kant” pela novidade (Daston, 2017, p. 80, [grifo da autora]).
Nessa proposição sobre objetividade e sua relação com subjetividade, Daston (1999) apresenta o desenvolvimento de dois regimes de objetividade: mecânica e comunitária, que respondem a diferentes problemas epistemológicos da ciência. A objetividade mecânica é “nominalista na sua metafisica, mecânica nos seus métodos e autocontida na sua moral” (p. 88). Procura incluir um juízo científico e uma idealização estética a partir da expressão fidedigna de elementos da natureza por meio registros imagéticos (pinturas e, posteriormente, fotografias). Intenta contrariar a subjetividade da projeção do sujeito na natureza, como a intervenção e a interpretação humana podem distorcer os fenômenos naturais.
A objetividade comunitária, contrária à subjetividade das idiossincrasias e do paroquialismo, surge como uma colaboração permanente, um modo coletivo de fazer ciência que se consolida no século XIX. Impulsionada pelos meios de transportes e comunicação em avanço, a objetividade comunitária preconiza “uma nova consciência dos fenômenos naturais, que tolhia as escalas meramente humanas do tempo e do espaço, levou à organização de vastos sistemas de observação com métodos e instrumentos estandardizados” (Daston, 1999, p. 91). Considera que as escalas antropocêntricas do tempo e do espaço não são capazes de registrar de forma completa os fenômenos naturais. Nessa direção, o símbolo da objetividade é o mapa global da terra ou da inteira cúpula dos céus que, com a colaboração científica e fragmentada de cada colaborador, pode ser constituído como um mosaico. Fragmentada porque cada pesquisador, cientista do seu observatório pode produzir um pedaço do céu e compartilhar na constituição de um mapa global maior (Daston, 1999, 2017).
A objetividade, nessas perspectivas, se produz da factualidade de uma clivagem entre uma instância denominada objetiva e outra subjetiva (Daston & Galison, 2010). Quando partimos das considerações sobre ontologias em Teoria Ator-Rede, visualizamos que todos – objetos, sujeitos, corpos, materialidades etc. – são efeitos de agenciamentos coletivos e ajudam a produzir uma rede múltipla e heterogênea, ou melhor, variados modos de ordenações possíveis sem clivagens entre interioridade e exterioridade (Law, 2000).
Por exemplo, um navio pode ser imaginado como uma rede: uma rede de casco, mastros, velas, cordas, armas, depósitos de alimentos, dormitórios - sem falar na tripulação humana. Por outro lado, se aumentarmos a ampliação para, então, o sistema de navegação - suas efemérides, seu astrolábio ou quadrante, sua lousa para cálculos, seus mapas, seu navegador treinado, sem falar em suas estrelas, recrutadas para o sistema e suas funções - também podem ser tratadas como uma rede (Law, 2000, p. 03, tradução nossa).
Law (2000) traz para ao centro do debate sobre objetividade não apenas a rede de relações, mas também a topologia e a alteridade. O espaço na/da rede define seus objetos de uma maneira particular e tende a estabelecer os limites espaciais que habitam e performam nessa rede. Ao pensar os objetos topologicamente e se debruçar sobre o debate da alteridade, questiona: “o que é um objeto se começarmos a pensar seriamente na alteridade?” (p. 02, tradução nossa, grifo do autor).
Em outro trabalho, a partir dos estudos de Donna Haraway, Law (2004), convoca a uma política ontológica da multiplicidade e das conexões parciais. Quando fazemos ciência e falamos em objetividade, argumentando que os objetos são topologicamente múltiplos e desnaturalizando as noções espaço-rede e objetos-rede como estáveis, desfazemos qualquer substância apriorística àquilo que pretensamente se observaria, isto é, o objeto. Para o autor,
a identidade dos objetos pode ser entendida como uma interseção entre diferentes versões da invariância de forma. Objetos como formas coordenadas euclidianas. Objetos como gramáticas ou sintaxes constantes. E objetos como reconfigurações mutantes (mas não ilimitadas) das relações (Law, 2000, p. 11, tradução nossa).
Maravilhamento no Regime de Objetividade
Participar da ciência, desde a herança moderna da objetividade, corresponde à observação de regularidades e, por conseguinte, a uma observação regular. Daston (2017) nos lembra algo curioso. Nos séculos XVI e XVII, a Filosofia Natural e parte da Matemática se voltavam, justamente, aos fenômenos anômalos que, segundo a autora, eram nomeados praecter naturam (além da natureza). Entravam nessa categoria o monstro, o aberrante, o errante. Desse modo, a regularidade não era a guia para observar e para o observável. É importante delimitar que o preternatural (praecter naturam) difere do miraculoso e do sobrenatural. Por mais estranhas, as maravilhas poderiam ser explicadas por causas naturais. Conforme descreve Daston (2017),
...a categoria do preternatural envolvia a aparição de três sóis no céu; o nascimento de gêmeos siameses; o pequeno peixe capaz de parar um navio de vela hasteada; uma cabeça de Medusa encontrada num ovo de galinha...’ Tudo que acontece extraordinariamente (quanto ao curso ordinário da natureza), embora não menos natural’ (p. 80).
Dentre os objetos da ciência preternatural estavam os meteoros, que ocuparam a ciência preternatural dos séculos XVI e XVII, vindo a ser ignorados pelas ciências modernas no século XVIII. Para Daston (2017), a ontologia, a epistemologia e a sensibilidade mantinham os meteoros como objetos dignos de atenção científica. Descartes via a perplexidade que orientava parte da sensibilidade preternatural como algo ruim, ainda que admitisse as virtudes do maravilhoso, e tão somente se permitisse uma observação atenta. Sob a égide das ciências modernas, passa a ser recomendável a diligência no lugar da maravilha; a utilidade substituindo a curiosidade. O que entra em xeque é, justamente, o maravilhamento como sensibilidade:
O que uma ovelha de três cabeças tem a ver com pedras caindo do céu? O que esses estranhos fenômenos tinham em comum, no contexto das primeiras investigações naturalistas modernas, era que eles desafiavam as explicações tradicionais -, e, portanto, suscitavam maravilhamento (Daston, 2017, p. 90)
A sensibilidade orientada ao/pelo maravilhamento e pela curiosidade migra das ciências para as suas margens. Em especial, o maravilhamento parece guardar um resíduo dessa sensibilidade que, com sua depreciação gradativa, migra à poesia e às mulheres e, no século XIX, integra o arsenal que as tornaria, a partir de um viés masculinista, mais débeis ao ofício científico. Os meteoros e demais corpos celestes, quando ligados pelo maravilhamento e curiosidade, habitam os livros de literatura, não mais os de ciência, a não ser que sejam depurados pela ontologia moderna da observação.
Vale pontuar que a passagem do maravilhamento à observação herdeira da objetividade moderna traz, em seu bojo, uma certa relação com o mundo marcada por uma descontinuidade ontológica que hierarquiza os seres, e por um descuido que delega alguns viventes ao estatuto de fontes ou recursos. Tudo aquilo que deriva do maravilhamento pode ser tornado científico a partir de uma observação detalhada a ser realizada posteriormente a partir da entrada em cena do corte do regime moderno de objetividade.
O processo de imunização que fez surgir as Ciências Modernas é herdeiro e algoz das práticas demarcatórias e da objetividade como sinônimo de neutralidade corresponde a uma tentativa de isolar as ciências de toda objeção, interferência e recalcitrância, advindas do mundo “lá fora”. Para Sloterdijk (2003), as demarcações científicas, independentemente dos critérios, criam “esferas perfeitas” que, ao atingirem certo grau de imunização, produzem a diferenciação entre o ser-no-espaço e o ser fora do espaço demarcado. Estas provocam, ao mesmo tempo, questões políticas e ontológicas a respeito dos atuantes que interagem com o céu. Os termos bolhas, espumas e globos, frutos do pensamento esferológico do autor, nos ajudam a delinear algumas questões sobre amadoras. Esferas podem, posteriormente, estourar ao modo das bolhas.
Esse processo de imunização próprio às ciências conduziu à exclusão das mulheres e a sua colocação em suspeita. Haraway (2004, p. 18), no livro “Testigo_Modesto@Segundo_Milenio.HombreHembra©_Conoce_Oncoratón®: feminismo y tecnociencia”, ao questionar “se o gênero, com todos os seus nós e emaranhados, estavam em jogo na reconfiguração do conhecimento e na prática que constituíram a ciência moderna”, mostra que as experimentações modernas desenvolveram um tipo de testemunho modesto que somente se tornava objetivo se fosse feito a partir de uma racionalidade moderna, europeia e masculinista, articulando poder econômico, poder efetivo e gênero masculino.
No livro supramencionado, Haraway (2004) mostra como se desenvolveu o experimento da bomba de vácuo de Boyle, trabalhada por Shapin e Schaffer (1985), em “Leviathan and the Air-Pump: Hobbes, Boyle, and the Experimental Life”. O testemunho modesto que produziu a bomba de vácuo foi público e coletivo, um “laboratório aberto” formado por sujeitos e objetos. Neste, os cientistas estavam ao lado dos objetos, atuando como porta-vozes transparentes e puros que transmitiam a palavra objetiva encarnada em fatos. A subjetividade do testemunho modesto converteu-se em objetividade.
Os laboratórios eram lugares epistemologicamente públicos, porém com restrições sobre quem estava legitimado a ocupá-lo. Nas convenções da sinceridade modesta, as mulheres e os técnicos podiam ver uma demonstração, mas não podiam ser seu testemunho. Essa exclusão de mulheres e de homens técnicos, segundo Haraway (2004), foi fundamental para a construção de uma fronteira crítica entre quem é um cientista e quem não é, e entre cultura popular e fato científico. Os técnicos se tornaram pessoas epistemologicamente invisíveis e fisicamente presentes no modo de vida experimental. Já as mulheres eram invisíveis tanto no sentido físico, quanto epistemológico. Privadas e invisíveis na produção de conhecimento científico laboratorial, pois entendia-se que o testemunho das mulheres era “subjetivo”.
Maravilhamento e Interobjetividade, Deslocamentos no Regime Moderno da Objetividade
As reflexões sobre interobjetividade derivam das conversações entre Bruno Latour e a primatóloga Shirley Strum (Latour, 1996). Bruno Latour (1996) definiu a noção de interobjetividade a fim de escapar às armadilhas da pressuposição de uma estruturação da vida social, bem como para fugir a uma centralidade dos humanos e humanas nas interações. Trata- se de dar vida aos objetos, descentrando um loci interacionista concentrado em humanos e sem conferir substância per si aos objetos. Escreve Latour (1996):
É sempre difícil apelar para as coisas a fim de explicar durabilidade, extensão, solidez, estruturas ou localização, redução, o enquadramento das interações. Na verdade, para as ciências humanas, as coisas teriam que permanecer intocáveis, pois, com as ciências exatas, elas se tornaram '' objetivas". Após esta separação, operando no período moderno, entre um mundo objetivo e um mundo político, as coisas não podiam servir como camaradas, colegas, parceiros, cúmplices ou associados na trama da vida social. Os objetos só poderiam aparecer de três modos: como ferramentas invisíveis e fiéis, como a superestrutura determinante e como uma tela de projeção (Latour, 1996, s/p. tradução nossa).
A interobjetividade traz consigo a fuga de qualquer ética monodirecional, baseada no princípio de “pôr-se no lugar de outrem”. Ela não se reduz às relações entre objetos, diz respeito ao modo como concebemos objetividade em ciências que, conforme argumentam Daston e Galison (2010), trazem muitas camadas de sentidos sociais, éticos e ontoepistemológicos. Interobjetividade remete, sobretudo, às práticas de olhar que foram construídas historicamente, nas quais os modos de ver correspondem a modos de conhecer, dar existência ou negá-la.
Ao encontro desta proposição, a noção de intra-ação, em Barad (2020, p. 315), “marca um deslocamento importante, reabrindo e reconfigurando noções fundacionais de ontologia clássica como causalidade, agência, espaço, tempo, matéria, discurso, responsabilidade e consideração”. Uma intra-ação específica encena um corte agencial que possibilita distinguir atuantes singulares. Os cortes agenciais nos permitem pensar em meio aos fluxos sem conferir substância a entes que fluem e atentas aos efeitos ao redor do que decidimos acompanhar, ou ao que nossos corpos e afetações nos levaram a seguir. Segundo Barad (2020),
o corte agencial encena uma resolução “local” por dentro do fenômeno de indeterminação ontológica inerente. De forma crucial, intra-ações encenam separação agencial – a condição local de exterioridade-dentro-do- fenômeno. Assim, a diferenciação não é uma relação de exterioridade radical, mas de separabilidade agencial, de exterioridade-dentro. Intra-ações cortam coisas juntoseparadas (em um único movimento). Identidade é matéria fenomênica; não é uma questão individual. Identidade é múltipla em si mesma; ou, posto de outro modo, identidade é difratada através de si – identidade é difração/différance/diferir/deferir/diferenciação (p. 315, [grifo da autora]).
A autora argumenta que o objeto é um fator agente em sua materialização interativa e que, portanto, identidade e diferença devem ser retrabalhadas. Nessa perspectiva, as entidades individuais “são (‘partes’ emaranhadas de) fenômenos (intra-ações materiais-discursivas) que se estendem atravessando (o que comumente tomamos como lugares e momentos separados no) espaço e tempo” (Barad, 2020, p. 314). Citando Barad (2011):
Não existe uma relação inerentemente determinada entre passado, presente e futuro. Ao repensar a causalidade como intra- atividade e não como esse tipo de causalidade do bilhar - causa seguida de um efeito - a fantasia de apagamento não é possível, mas existem possibilidades de reparação. Que “mudar o passado” no sentido de desfazer certos momentos distintos no tempo é uma ilusão. O passado, como o futuro, porém, não está fechado. Mas “apagamento” não é o que está em questão. Em um sentido importante, o “passado” está aberto a mudanças (Barad, 2011, s/p., tradução nossa).
Tempo, espaço e matéria não preexistem às intra-ações. Epistemologia e Ontologia não podem ser tratadas separadamente, de modo que a discussão sobre objetividade nas ciências é de ordem Ontoéticoepistemológica, ou seja, diz respeito às práticas de conhecer e aos modos de viver. Segundo Barad (2017, p. 32):
A separação entre epistemologia e ontologia é a reverberação de uma metafísica que supõe uma diferença inerente entre humano e não humano, sujeito e objeto, mente e corpo, matéria e discurso. Onto- epistemologia — o estudo de práticas de conhecer o ser — é provavelmente um caminho mais profícuo para pensar sobre os entendimentos que são necessários para admitirmos como intra-ações específicas chegam à matéria/importam.
Shotter (2013), em diálogo com as contribuições de Bruno Latour sobre interobjetividade e de Karen Barad a respeito das intra-ações, alude às situações de perplexidade quando estamos desorientados. Aí, dá-se um acontecimento, e nos colocamos em meio ou dentro dos emaranhados convivendo com a instabilidade das coisas, em diferenciação. Na objetividade intra-activa, a distração difere da dispersão: trata-se de um regime de atenção que permite o maravilhamento, o espanto e outros afetos corporificados acionados por encontros, admite saltos e desvios.
O maravilhamento atua como uma força centrípeta nas ciências baseadas no princípio da objetividade. Instaura a abertura ao inusitado, fugindo à repetição do mesmo, lidando com a metaestabilidade de objetos acontecimentos. O que está em jogo é a produção de desvios e a abertura a vetores de sentidos para reconfigurar o que conta como conhecimento e quem conta. Nas experiências de produção de saberes que não podem ser antecipados, eixos de dominação perdem força de organização das narrativas que contamos. O maravilhamento e a afetação emergem de composições, do cultivo. Narrar, desde posições situadas, corresponde a um processo que não se concebe autonomamente, pois uma localização é um território espaço-temporal concebido coletivamente, coabitado por amantes e amadoras da ciência.
A fim de diferenciar cientistas e amadoras, Latour (1996) destaca que as primeiras enfatizam os resultados e as últimas os processos, sem necessariamente reivindicar a cientificidade do que pesquisam, como o fazem as primeiras. Em outro trabalho, Latour (1993) mostra que a expressão amateurs, em francês, dá conta, justamente, da ambiguidade que é amar as ciências e ao mesmo tempo não estar inteiramente capturada por sua institucionalidade. Em inglês, amador, hobbyist, tem o sentido de jogo, de passar o tempo que se sobressai à deriva amorosa que é acentuada nas acepções da palavra em francês, espanhol e português. A dimensão da relação despretensiosa com o tempo é importante e não a percamos de vista. Digamos que o amadorismo em ciências joga com o tempo de modo menos governado pelo imperativo das agendas, da institucionalidade científica e da objetividade moderna, deixando sobressair uma dimensão lúdica.
Como assinala Stengers (2011), as amantes das ciências atuam por uma lentificação do fazer científico, à revelia da voracidade por tudo saber ou mesmo do afã por descobertas amplamente reconhecidas como o fazem os cientistas amadores. Às amantes das ciências interessa, especialmente, a dimensão do processo, do percurso mais do que os resultados: “Os cientistas amadores apreciam aqueles resultados científicos que tentam produzir em suas fazendas, oficinas, celeiros e cozinhas em menor escala. Os amantes da ciência apreciam [...] o movimento, o trabalho, a pasta que obtêm” (Latour, 1993, p. 9, tradução nossa).
Como amantes das ciências, abrirmo-nos ao que vem de fora, ao intempestivo minoritário, atentamos aos afetos mobilizados e a como eles aumentam nossa potência de ação na relação com o mundo no sentido ético espinosano, criando condições para o exercício de uma objetividade amorosa, por meio da qual nos responsabilizamos e somos afetadas por aquilo que aprendemos a ver, pelas práticas visuais que produzimos. Como propõe Latour (2009), vamos aprendendo a ter um corpo a partir das proliferações de afetações. Estamos tratando de localização, não de transcendência ou da divisão entre sujeito e objeto característica da objetividade moderna. A objetividade amorosa, numa perspectiva feminista, aciona práticas de atenção guiadas por uma política de afetos intempestiva. Convida-nos a operarmos como amantes ou amadoras das ciências sem nos deixarmos capturar pela institucionalidade científica, considerando a constituição de saberes que importam mais do que aos desígnios das agendas que orientam a dotação de verbas para a pesquisa com sua vocação anestésica. Nesta proposição, o maravilhamento, que contemporaneamente poderia ser avizinhando das distrações, se configura como uma potente prática de atenção para a produção do conhecimento científico.
Considerações Finais
Tudo aquilo que não é admitido como objetivo recebe a alcunha de distração a ser combatida. Isto ocorre, mesmo mais de vinte anos após as publicações que visam repensar a objetividade sob um viés feminista. Neste artigo, argumentamos pela reativação das práticas de atenção e políticas de afeto que perdemos com a ênfase na objetividade baseada em regularidades, protocolos, na autocontenção, separação subjetivo/objetivo e tudo que dela deriva (Daston & Galison, 2010). Esperamos convidar a narrativas, a pistas que permitam escapar a uma mirada que, com base em uma política de afetos masculinista e universalista, dá lugar à marginalização das mulheres nas ciências.
Mulheres cientistas hesitam, e isso não é qualquer falta ou falha (Despret & Stengers, 2012). Não há inocência, lembram Despret e Stengers (2012) e, ao citarem Haraway sobre a necessária localização e parcialidade dos saberes, as autoras nos convidam a cultivarmos juntas a potência de fazer barulho - produzir ruídos nos modos de fazer ciências -, habilidade tão usada contra nós, mulheres, para desqualificar as nossas práticas.
Mais do que a uma oposição às pretensamente duras e frias ciências, as reflexões de Latour (1993) e Stengers (2011) sobre amadorismo e amor nas ciências convidam a desfazer um olhar binário que segrega cientistas, como se esta atividade fosse desprovida de afetos, aproximando-a da cultura e da arte, às quais costumamos atribuir amor ao ofício, beleza e criação. Não excluamos a dimensão amorosa do cotidiano das mulheres cientistas profissionais, pois isto nos conduziria a falsas dicotomias. Alteremos o modo de descrição das práticas científicas. Mulheres cientistas profissionais criam frestas nas duras arestas da objetividade moderna.
Haraway (1991, p. 329, tradução nossa), na esteira da epistemes feministas dos pontos de vista, defende uma “objetividade apaixonada, as conexões entrelaçadas e que trate de transformar os sistemas de conhecimento e os modos de ver”. Inspira-se fortemente em Glória Anzaldúa e Sandra Harding, desta última, especificamente, no projeto de uma objetividade forte. Para esta objetividade apaixonada, o aparato corporal e as próteses visuais são valiosas - importa desde onde, como e com quem vemos.
Estamos propondo dar relevo às políticas afetivas e de atenção por meio das quais a objetividade deixa de ser um entrave às epistemes feministas e, em diálogo com a história da objetividade nas chamadas ciências duras, realçamos o maravilhamento e as irregularidades. Por meio de uma objetividade apaixonada podemos constituir ciências implicadas com um social fervilhante e em constante transformação, criando condições para que as diversas pessoas e atuantes que dela participam falem, a partir de diferentes regimes de objetividade e de atenção, incluindo aí o maravilhamento e as irregularidades, ao invés de serem “descritas e analisadas” pela figura de um cientista “objetivo e neutro”.