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Analytica: Revista de Psicanálise

versão On-line ISSN 2316-5197

Analytica vol.3 no.5 São João del Rei dez. 2014

 

RESENHA

 

O passo inaugural da psicanálise freudiana finalmente em português

 

Resenha de Sobre a concepção das afasias: um estudo crítico, de Sigmund Freud. Tradução, notas e posfácio de Emiliano de Brito Rossi, Editora Autêntica, Belo Horizonte, 2013, 170 p.

 

 

Richard Theisen Simanke*; Daniele Costa Rachid Lacerda**Isabela Souza Conti***

Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF - Brasil

Endereço para correspondência

 

 

Embora Freud seja muito mais conhecido como o fundador da psicanálise, alguns ignoram que ele iniciou sua carreira como neurologista, dedicando-se inicialmente a estudos de laboratório sobre fisiologia, anatomia e embriologia do sistema nervoso e, depois, à neuropatologia clínica, desenvolvendo uma prática tanto hospitalar quanto privada que haveria, ao fim e ao cabo, de conduzi-lo à criação do método psicanalítico e da própria psicanálise. Durante esse período inicial, publicou mais de uma centena de trabalhos científicos, artigos e livros, abordando uma vasta variedade de tópicos, desde a estrutura da célula nervosa à anatomia geral do cérebro, da paralisia cerebral infantil aos distúrbios da linguagem, assim como àquelas perturbações funcionais da atividade nervosa que a medicina da época chamava de neuroses e às quais ele acabaria por conferir o tipo de explicação psicológica que ainda hoje se pratica na elucidação da etiologia desses quadros clínicos.

Entre esses trabalhos de sua obra neurológica - que, de resto, permanecem ainda, em sua maior parte, pouco estudados e de difícil acesso - destaca-se, sem dúvida, sua monografia crítica de 1891 intitulada Sobre a concepção das afasias: um estudo crítico (Zur Auffassung der Aphasien: eine kritische Studie). Trata-se de seu primeiro trabalho em formato de livro, assim como de seu primeiro estudo de feição mais teórica, em comparação com as pesquisas predominantemente empíricas a que se dedicara até então. Esse estudo foi publicado pela então recentemente fundada editora científica de Franz Deuticke, sediada em Viena e em Leipzig e que já havia publicado as traduções de Charcot e Bernheim realizadas por Freud e haveria ainda de editar as obras clássicas fundadoras da psicanálise, como os Estudos sobre a histeria (1895), de Freud e Breuer, e A interpretação dos sonhos (1900), de Freud, além de arriscar-se na publicação do primeiro periódico originado pela nova ciência, o Jahrbuch für psychoanalytische und psychopathologische Forschungen (Anuário de Pesquisas Psicanalíticas e Psicopatológicas), editado regularmente entre 1904 e 1914.

Essa monografia de Freud consiste numa análise crítica interna das teorias então predominantes sobre os distúrbios da linguagem causados por lesão cerebral - as afasias - e, num sentido mais amplo, numa crítica da doutrina geral, também hegemônica naquele momento, sobre a relação entre a anatomia do sistema nervoso e as suas funções, aí incluídas aquelas que se podem designar como mentais. Essa doutrina - a teoria das localizações cerebrais ou o assim chamado "localizacionismo" - tinha como princípio a tese de que as diferentes regiões do cérebro e, sobretudo, do córtex cerebral, desempenham autonomamente diferentes funções, de tal maneira que cada função seria executada por uma região cerebral específica e apenas por ela, cuja atividade seria, então, suficiente para o desempenho daquela função.

Desse princípio da autonomia funcional dos centros nervosos resultava que o principal objetivo da investigação neurocientífica fosse concebido como o de localizar anatomicamente essas funções, tendo como método principal a correlação entre os déficits funcionais clinicamente observáveis (decorrentes de lesões e de outros processos patológicos) e as lesões constatáveis pelo exame anatômico post mortem. Essa doutrina ganhara força a partir dos trabalhos de Paul Broca na década de 1860 que levaram à localização do centro motor da linguagem falada na terceira circunvolução temporal esquerda do cérebro, dando início a um programa de pesquisa visando estabelecer uma localização igualmente precisa para as demais funções da linguagem e para as funções psíquicas em geral.

O principal nome no prosseguimento desse trabalho fora o neurologista berlinense Carl Wernicke. Wernicke estudara com o psiquiatra Theodor Meynert em Viena, que desenvolvera uma detalhada teoria organicista dos distúrbios psiquiátricos, considerando-os como nada mais do que patologias do "cérebro anterior" (lobos frontais e pré-frontais do cérebro) e aplicando, assim, os princípios do localizacionismo ao estudo das doenças mentais. Wernicke, então, declaradamente aplicando a doutrina de Meynert aos distúrbios da linguagem, identificara, em 1874, numa monografia teórico-clínica intitulada O complexo sintomático da afasia (ou a "síndrome afásica", Der aphasische Symptomenkomplex), o que considerara como o centro sensorial da fala, localizado na primeira circunvolução temporal esquerda e cuja lesão levaria a uma afasia sensorial (perda da capacidade de compreender a linguagem falada), assim como a lesão na área descoberta por Broca levaria a uma afasia motora (perda da capacidade de falar intencionalmente e com sentido). Seu trabalho foi amplamente aceito e, depois, desenvolvido e complementado por outros, como o neurologista alemão Ludwig Lichtheim.

É da crítica das posições de Meynert, Wernicke e Lichtheim, assim como de seus seguidores, que Freud parte, aliando-se aos principais críticos do localizacionismo da época, como Kussmaul, Ross e, principalmente, Hughlings Jackson. Dessa crítica resultou uma concepção que afirmava a relativa independência da função com relação ao substrato anatômico que abriu caminho para uma caracterização funcional das relações entre o mental e o cerebral, que seria aquela com a qual a psicanálise viria a operar na continuidade.

Diversos elementos das teorias psicanalíticas aparecem ali formulados pela primeira vez: a importância da linguagem na estruturação dos processos psíquicos, sobretudo daqueles acessíveis à elaboração consciente; uma primeira referência à importância conceitual dos lapsos de linguagem; e, acima de tudo, os conceitos de representação de palavra e de representação de objeto (depois, "representação de coisa") que se tornariam parte permanente do instrumental metapsicológico, sendo utilizados, a partir de 1915, para a caracterização diferencial dos processos psíquicos e dos sistemas inconsciente e pré-consciente/consciente. O texto também inscreveu Freud na história da neurologia e das neurociências, não apenas como um dos críticos históricos do localizacionismo do século XIX (a crítica dos "diagram makers", como se exprimiu Henry Head em 1926), mas, também, por exemplo, como o criador do termo e do conceito de agnosia (distúrbio no reconhecimento perceptual dos objetos), que aparece ali pela primeira vez, tornando-se depois de uso corrente na neurologia, condição em que permanece até hoje.

Não obstante sua importância - e do interesse que Freud por ele manifesta em sua correspondência, ao contrário de outras produções de sua obra neurológica -, o texto permaneceu na obscuridade por mais de meio século. Ernest Jones menciona em sua biografia de Freud que, dos 850 exemplares impressos, apenas 257 foram vendidos em nove anos, tendo sido os demais então destruídos, e que nenhuma biblioteca britânica dispunha de um exemplar naquele momento. Curiosamente, no momento em que Jones publica o primeiro volume de sua biografia (1953), em que essa observação aparece, essa situação estava começando a mudar. Nesse ano, aparece nos EUA, publicada pela International University Press, a tradução inglesa do livro, realizada pelo psiquiatra e psicanalista vienense radicado na Inglaterra Erwin Stengel, provavelmente na esteira do interesse sobre as origens da psicanálise e o pensamento inicial de Freud despertado pela recente publicação (1950) da correspondência Freud-Fliess, assim como dos manuscritos que a acompanharam, (com destaque para o texto do Projeto de uma psicologia), que tinham tornado visível a importância do pensamento neurológico de Freud para a compreensão das origens históricas da psicanálise.

Apesar de certa imprecisão terminológica, a tradução de Stengel teve, certamente, o mérito de recolocar em circulação o livro e fomentar a discussão sobre ele, o que se manifesta na literatura secundária consideravelmente volumosa que se tem acumulado desde então, incluindo múltiplos artigos acadêmicos e livros inteiros. Mesmo assim, apenas vinte anos depois surge uma nova tradução: a edição em espanhol, traduzida por Ramón Alcade e publicada em 1973 pelas Ediciones Nueva Visión na Argentina. Dez anos depois, em 1983, é publicada a edição francesa (tradução de Claude van Reeth) pela Presses Universitaires de France em Paris. O texto, não obstante, só recebe uma nova edição em sua língua original alemã em 1992, numa publicação preparada por iniciativa do Professor Paul Vogel, um dos primeiros estudiosos do mundo germânico a tornar a se interessar e a escrever sobre o livro de Freud. A edição estava sendo preparada há tempos, mas acabou se atrasando devido à morte de Vogel, tendo sido o projeto assumido por Ingeborg Meyer-Palmedo, que já havia antes se encarregado da nova edição do Projeto de uma psicologia (Entwurf einer Psychologie), preparada para o Nachtragsband (volume suplementar) das obras completas de Freud em alemão publicado em 1987. A nova edição acabou sendo publicada, com ligeiro atraso, para a comemoração do centenário da obra, que se deu em 1991. Com isso, o livro tornava-se outra vez amplamente disponível, na sua língua original e em traduções competentes, fomentando e fornecendo material para estudos a seu respeito, dentro e fora do campo psicanalítico.

A exceção nesse panorama, infelizmente, era a língua portuguesa. Uma tradução para o português, de fato, aparecera bastante cedo, tendo sido publicada em Lisboa, pelas Edições 70 em 1979. Tratava-se, contudo, de uma edição parcial e de uma tradução indireta, tendo sido realizada a partir de uma edição italiana surgida dois anos antes, em 1977, pela editora veneziana Marsilio Editori (a edição portuguesa informa o título do "original" como L'Interpretazione delle Afasie: Uno Studio Crítico). Ela tinha sido realizada pelo psicanalista italiano de orientação lacaniana Armando Verdiglione, que não julgara necessário traduzir o texto na sua integridade, deixando de fora, principalmente, as passagens em que Freud expunha as teorias dos outros autores com quem dialogava. O resultado, algo bizarro, foi a edição de um "estudo crítico" que deixava de fora aquilo que se tratava de criticar. A tradução de segunda mão certamente não contribuiu para melhorar esse panorama, de modo que essa edição portuguesa se apresenta como um produto praticamente inutilizável para a pesquisa psicanalítica, histórica e acadêmica e, mesmo, para uma familiarização preliminar com essa importante obra de Freud. No entanto, isso era tudo que o leitor português dispunha até agora, com exceção das duas breves passagens da monografia sobre as afasias traduzidas por James Strachey (e retraduzidas, também indiretamente, pelo tradutor da edição brasileira da Imago) e publicadas como apêndices ao artigo O inconsciente no volume XIV da Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud.

Essa situação lamentável só veio a ser remediada pela publicação, no final de 2013, pela Editora Autêntica de Belo Horizonte, da primeira tradução completa e realizada diretamente a partir do original alemão de Sobre a concepção das afasias: um estudo crítico em português. O cenário traçado acima basta para evidenciar que uma edição com essas características é, por si só, um acontecimento editorial de considerável envergadura. O tradutor, Emiliano de Brito Rossi, realizou o trabalho como parte de uma tese de doutorado em Letras, defendida na USP em 2012, trabalho que foi orientado pelo Professor João Azenha Jr., também ele doutor em Língua e Literatura Alemã pela USP, especialista em estudos sobre tradução e com experiência prévia em consultoria de traduções de Freud do original alemão para o português. As qualificações de tal equipe são, por si só, uma garantia razoável da qualidade e rigor do produto final. A edição é, de fato, muito bem cuidada, tendo o tradutor explicitado os princípios que orientaram o trabalho em seu posfácio, acrescentado ao volume. Por exemplo, teve-se o cuidado de preservar nas margens do texto os cabeçalhos colocados por Freud na edição original, importantes para a identificação do que o autor considerava o ponto mais importante de cada seção de sua obra. A omissão desse cuidado na reedição alemã de 1992 foi notada e criticada pela especialista em língua e literatura germânica Valerie Greenberg em seu extenso estudo de 1997, Freud and his aphasia book: language and the sources of psychoanalysis.

Algumas opções criticáveis podem, no entanto, ser apontadas, como a decisão de apresentar juntas, ao final, as notas do tradutor e as notas de rodapé originais de Freud, o que pode confundir o leitor e dificultar a consulta. Mas, seja como for, trata-se de uma publicação indispensável que vem preencher uma indesculpável lacuna nas edições de Freud em português. Sua disponibilidade convida para que novos estudos históricos e críticos em solo nacional venham a se acrescentar à já vasta literatura existente sobre a obra. A dificuldade de acesso já não mais pode ser invocada como desculpa para o desconhecimento e a omissão, e um número maior de leitores poderá agora constatar por si só que a visão que se tem da obra freudiana como um todo se altera substancialmente quando se leva em conta esse seu trabalho de primeira hora.

 

 

Endereço para correspondência
Richard Theisen Simanke
E-mail: richardsimanke@uol.com.br

Daniele Costa Rachid Lacerda
E-mail: danielelaaacerda@gmail.com

Isabela Souza Conti
E-mail: isabelaconti@yahoo.com.br

Artigo recebido em: 26.8.2014/8.26.2014
Aprovado para publicação em: 1.9.2014/9.1.2014

 

 

* Professor Associado do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Este trabalho foi realizado como parte das atividades de pesquisa ligadas aos Programas de Iniciação Científica PIBIC-CNPq/UFJF e BIC-UFJF, cujo apoio os autores agradecem.
** Acadêmica do 4º ano de Medicina da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), bolsista do Programa PIBIC-CNPq\UFJF.
*** Acadêmica do 5º ano de Psicologia da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), bolsista do Programa BIC-UFJF.