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Analytica: Revista de Psicanálise
versão On-line ISSN 2316-5197
Analytica vol.9 no.16 São João del Rei jan./jun. 2020
ARTIGOS
Da metáfora à subversão do Nome-do-Pai: a relação entre a lei e o desejo na teoria de Lacan
From the Metaphor to the Subversion of the Name-of-the-Father: The Relation between Law and Desire in Lacan's Theory
De la métaphore à la subversion du Nom-du-Père: La relation entre la loi et le désir dans la théorie de Lacan
De la metáfora a la subversión del Nombre del Padre: La relación entre la ley y el deseo en la teoría de Lacan
André Fernando Gil Alcon Cabral*
Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG - Brasil
RESUMO
Este texto explora, na obra de Lacan, os inúmeros desdobramentos do conceito de Nome-do-Pai. Primeiramente, retomamos o conceito de metáfora paterna para demonstrar que essa operação produz a declinação de das Ding à dignidade de um objeto empírico, o que pode ser compreendido como uma saturação da falta transcendente pela falta de um objeto fenomênico. Isso porque a centelha criadora da metáfora permite, além de engendrar um novo sentido na cadeia significante, produzir, igualmente, uma inversão do uso do termo de sublimação. Diante da sutura da falta transcendente pelo objeto empírico, foi preciso ir além das operações de metáfora e metonímia, o que conduziu o psicanalista a ressignificar a função do pai. A partir da subversão do significante, o Nome-do-Pai permite que se reconheça o vazio de das Ding na opacidade de sua lei. Assim, a verdadeira função do pai deve corresponder à união entre a lei e o desejo puro. E mais, com a invenção do objeto a, constata-se que o pai se torna não apenas um significante capaz de reconhecer o desejo puro no interior da lei, mas também um operador necessário para se produzir a elevação do objeto empírico à dignidade da Coisa.
Palavras-chave: Nome-do-Pai, Das Ding, Objeto a, Metáfora paterna.
ABSTRACT
The present text explores the countless results from the "Name-of-the-Father" concept in Lacan's work. Firstly, we go back to the paternal metaphor concept to show that this operation leads to the declension of das Ding to the dignity of an empirical object, which can be understood as the transcendent-missing saturation caused by the lack of a phenomenal object. It happens because the Creative spark of the metaphor, besides giving a new sense to the signifying chain, equally leads to the inverted application of the term sublimation. It was necessary going beyond the metaphor and metonymy operations because the transcendent-missing is sewn by the empirical object, and it made the Psychoanalyst re-signify the father's function. The "Name-of-the-Father" allows acknowledging the emptiness of das Ding within the opacity of its law, based on the subversion of the signifier. Thus, the father's real function must correspond to the union between law and pure desire. Moreover, after the creation of object a, it was possible finding that the father became not just a signifier able to acknowledge the pure desire inside the law, but also a necessary operator to produce the ascension of the empirical object to the dignity of the Thing.
Keywords: Name-of-the-Father, Das Ding, Object a, Paternal metaphor.
RÉSUMÉ
Ce texte explore les innombrables développements du concept du Nom-du-Père dans l'œuvre de Lacan. Premièrement, nous revenons au concept de métaphore paternelle pour démontrer que cette opération produit le déclin de das Ding à la dignité d'un objet empirique, ce qui peut être compris comme la saturation du manque transcendant par l'absence d'un objet phénoménal. En effet, l'étincelle créatrice de la métaphore permet de produire une inversion de l'usage du terme de sublimation, en plus d'engendrer une nouvelle signification dans la chaîne signifiante. Devant la suture du manque transcendant par l'objet empirique, il a été nécessaire de dépasser les opérations de la métaphore et de la métonymie, ce qui a amené le psychanalyste à resignifier la fonction du père. À partir de la subversion du signifiant, le Nom-du-Père nous permet de reconnaître le vide du das Ding dans l'opacité de sa loi. Ainsi, la vraie fonction du père doit correspondre à l'union entre la loi et le pur désir. En outre, l'invention de l'objet a nous permet de constater que le père devient non seulement un signifiant capable de reconnaître le pur désir dans la loi, mais il devient aussi un opérateur nécessaire pour produire l'élévation de l'objet empirique à la dignité de la Chose.
Mots-clés: Le Nom-du-Père, Das Ding, L'objet a, La métaphore paternelle.
RESUMEN
Este texto explora, en la obra de Lacan, los innúmeros desdoblamientos del concepto de Nombre del Padre. Primeramente, retomamos el concepto de metáfora paterna para demostrar que esa operación produce la declinación de das Ding a la dignidad de un objeto empírico, lo que puede ser comprendido como una saturación de la falta transcendente por la falta de un objeto fenoménico. Ello porque la centella creadora de la metáfora permite, además de engendrar un nuevo sentido en la cadena significante, producir, igualmente, una inversión del empleo del término de sublimación. Ante la sutura de falta transcendente por el objeto empírico, fue preciso ir más allá de las operaciones de metáfora y metonimia, lo que condujo el psicoanalista a replantear la función del padre. A partir de la subversión del significante, el Nombre del Padre permite que se reconozca el vacío de das Ding en la opacidad de su ley. De esta manera, la verdadera función del padre debe corresponder a la unión entre la ley y el deseo puro. Y además, con la invención del objeto a, se constata que el padre se vuelve no sólo un significante capaz de reconocer el deseo puro en el interior de la ley, sino un operador necesario para producir la elevación del objeto empírico a la dignidad de la Cosa.
Palabras claves: Nombre del Padre, Das Ding, Objeto a, Metáfora paterna.
Introdução
Para pesquisar um conceito na obra de Jacques Lacan, sobretudo um conceito como o Nome-do-Pai, é imprescindível que observemos a existência de inovações teóricas realizadas pelo psicanalista. Tais inovações não devem ser compreendidas como uma ruptura absoluta de sua posição inicial, mas como reelaborações e reabsorções consequentes de seu percurso teórico. Em nossa compreensão, Lacan redefine, inúmeras vezes, a função do pai para a Psicanálise, o que exige que acompanhemos o desenvolvimento desse conceito no decorrer de sua obra. Neste trabalho, concentraremos nossa leitura em torno dos textos e seminários que correspondem ao período de publicação dos Escritos, isto é, até o ano de 1966.
Partiremos da conceituação do pai, a partir da metáfora paterna, e elucidaremos os efeitos engendrados por essa operação no processo de estruturação do inconsciente. Veremos que a centelha criadora da metáfora significante permite não apenas engendrar um novo sentido, mas também vivificar o registro imaginário, o que em nosso entender corresponde à própria vivificação da falta nas formulações teóricas do psicanalista nos anos 1950. Todavia, acreditamos que a falta, tomada a partir da operação de metáfora significante, seja substancializada pela presença empírica de um objeto perdido. Assim, a metáfora significante corresponde a uma operação em que ocorre a "inversão do emprego do termo sublimação" (Lacan, 1960-1961[2010], p. 263), o que abordaremos a partir da declinação de das Ding à dignidade do objeto fenomênico.
Assim sendo, somente a partir do seminário A ética da Psicanálise que Lacan (1959-1960[2008]) pôde redefinir não apenas a causa do desejo, mas, principalmente, a função do Nome-do-Pai para a Psicanálise. Isso porque repensar das Ding, segundo a purificação do desejo (desejo puro), significa postular não mais a perda empírica de um objeto, mas a perda advinda da pura falta, sem objeto. Assim, a lei paterna passa a ser aquela que permite que o vazio da Coisa seja reconhecido no interior da lei, sem que nenhum objeto decline a falta transcendente à condição de uma falta empírica. Veremos o psicanalista enfatizar, no escrito Subversão do sujeito e dialética do desejo, que a verdadeira função do pai "é, essencialmente, unir (e não opor) um desejo à Lei" (Lacan, 1960[1966], p. 839), o que se explicita quando Lacan menciona que "(- φ) é o vazio do vaso" (Lacan, 1962-1963[2005], p. 224).
E, por fim, ao término deste trabalho, elucidaremos que, com as inovações conceituais do psicanalista francês, o Nome-do-Pai passa a representar mais do que a simples condição de reconhecimento do vazio de das Ding no interior da lei. Ele permite, principalmente, elevar o objeto empírico à dignidade da Coisa. No escrito Kant com Sade, Lacan chega a dizer que a lei paterna "não tem outro princípio" senão a abertura da "fenda do sujeito" (Lacan, 1963[1966], p. 781), o que acreditamos ser explicitado pela extração do objeto êxtimo - objeto a.
A metáfora e a metonímia: do falo inacessível ao proibido
Não é novidade que o pai, para a teoria de Lacan, tenha sido concebido como uma metáfora significante. "[...] É na medida em que o pai substitui a mãe como significante que vem a se produzir o resultado comum da metáfora [...]" (Lacan, 1957-1958[1999], p. 181). Todavia, para que possamos elucidar os efeitos engendrados por essa operação linguística, faz-se crucial demonstrar que, antes mesmo que ocorra a inscrição dos objetos no registro simbólico, há a presença de uma inscrição mínima, o que, neste escrito, denominaremos a partir do falo no registro imaginário.
No seminário As formações do inconsciente, o psicanalista esclarece que encontramos, no primeiro tempo do Édipo, uma primeira simbolização, um primeiro significante engendrado pelas ausências e presenças do corpo materno. Essas idas e vindas (Fort-Da) do Outro permitem dizer que a criança encontra, na saída do estágio do espelho, a presença de um terceiro elemento para além de sua relação dual com a mãe. Para essa primeira simbolização, cabe mencionar a operação metonímica, já que o falo é extraído como sentido da cadeia significante do Outro materno.
A criança, porém, se identifica com o sentido fálico transferido na língua materna, mas trata-se de uma identificação que é sempre muito precária e, por isso, passa a perfazê-la no nível imaginário. Essa complementarização do falo ocorre devido à imaturidade simbólica da criança, que ainda não realizou a operação de metáfora. "Trata-se de saber como ela poderá ir ao encontro desse objeto, posto que este seja constituído de maneira infinitamente mais elaborada no nível da mãe, a qual já avançou um pouco mais na vida do que a criança" (Lacan, 1957-1958[1999], p. 206).
Em vista disso, o significante fálico para a criança é aquele que tem duas facetas, condição que se explicita a partir da imprecisão entre o objeto de desejo e o desejo como objeto. O objeto de desejo é o que se apresenta como um objeto reencontrado para a própria mãe no nível do simbólico. Já o desejo, como objeto, mantém-se sempre como perdido, na medida em que o significante, causa do desejo, encontra-se recalcado para o Outro materno. "Tive a oportunidade de me dar conta de que essa não era uma fórmula muito usual, e de que algumas pessoas tinham certa dificuldade de se acertar com a ideia de que é diferente desejar alguma coisa ou desejar o desejo de um sujeito" (Lacan, 1957-1958[1999], p. 205).
A extração do sentido da cadeia significante da mãe anuncia que a mãe deseja algo. Entretanto, mais importante do que o objeto "identificado" - ou complementarizado no registro imaginário pela criança - como sentido provindo da cadeia significante da mãe, é desejar o desejo da mãe, o que, evidentemente, mantém-se na ordem do impossível. Logo, a criança, ao captar algo desse sentido na cadeia significante, não faz mais do que alcançar o objeto reencontrado do desejo materno e, por isso, insuficiente.
Essa primeira inscrição, a partir do falo imaginário, foi nomeada por Lacan como um pseudossignificante, isto é, um significante cujo sentido é dado por uma relação direta entre o significante e o significado, o que o psicanalista mencionou como uma anterioridade lógica ao despertar do significado propriamente simbólico. "Se isso fala no Outro, quer o sujeito o ouça ou não com seu ouvido, é porque é ali que o sujeito, por uma anterioridade lógica a qualquer despertar do significado, encontra seu lugar significante" (Lacan, 1958[1966], p. 696).
O exemplo que Lacan oferece para exemplificar o momento primordial da falta parte do princípio comparativo entre o rio e uma usina hidrelétrica. A usina, como condição simbólica, é aquela que possibilita pensar o rio como energia potencial. Na opinião do psicanalista, pouco adiantaria mencionar que o rio já se encontrava em determinado local, como realidade primeira à usina. É só no momento em que se passa a calcular o fluxo de água, a mensurar os níveis necessários de represamento, que somos propriamente habilitados a mencionar a existência do rio como fonte de energia. "Dizem-me que, no caso da usina, o que existe antes é a energia. Jamais disse outra coisa. Mas entre a energia e a realidade natural, existe um mundo. A energia só começa a ser levada em conta a partir do momento em que vocês a medem" (Lacan, 1956-1957[1995], p. 42).
Lacan não nega a materialidade do pseudossignificante, mas o descreve como uma potência de sentido, ou seja, sem o estatuto de uma realidade propriamente dita. Assim sendo, a criança, em suas complementarizações imaginárias do falo, não consegue localizar o suposto objeto de desejo do Outro. Evidentemente, a entrada no mundo simbólico permite uma localização que é apenas suposta, já que o objeto simbólico estará sempre marcado por um negativo. No entanto, ainda que na condição de um simulacro, esse objeto permite uma interpretação mínima do desejo do Outro. É porque a criança não acessa o simbólico que o falo, como objeto imaginário com o qual a criança tem de se identificar para satisfazer o desejo materno, "ainda não pode situar-se em seu lugar" (Lacan, 1957-1958[1999], p. 234).
E como ocorre, afinal, a passagem para o registro simbólico, momento em que os objetos se deslocam de uma potência à condição da realidade simbólica? A partir do que, famigeradamente, reconhecemos na Psicanálise como operação de castração. A castração deve ser compreendida como a possibilidade de inscrever uma barra entre o significante e o significado imaginarizado, permitindo que o significante estabeleça uma relação diferencial com outro significante. Não é para menos que Freud (1912[2012]) tenha insistido em apresentar o assassinato do pai primevo (ainda que puramente fantasioso), nos primórdios da civilização. Esse assassinato representa, para a condição linguística, o momento em que se introjeta, efetivamente, uma barra entre significante e significado, passando o significante a operar segundo as relações algorítmicas da estrutura.
É no escrito A instância da Letra no inconsciente que Lacan (1957[1966]) enfatiza que, para que o sujeito esteja no campo simbólico, não se trata de sustentar uma relação direta entre significante e significado, conforme relação estabelecida pelo linguista Saussure. Há a barra da castração que delimita o signo a partir de uma relação diferencial. A exemplificação mais contundente de Lacan consistiu em estabelecer os significantes (Homens-Mulheres) sobre duas portas idênticas. Se tomássemos a mesma representação desse par significante (Homens-Mulheres), seguindo a obra de Saussure, seria possível supor que encontraríamos, no lugar do significado, as figuras de silhuetas masculina e feminina. Contudo, ao produzir uma barra entre significante e significado, Lacan nos apresenta um par de portas iguais. Ele cala o significado imaginário do signo. Trata-se, nessa perspectiva, de manter o "olhar pestanejante de um míope" (Lacan, 1957[1966], p. 503) sobre o significante, isto é, um olhar que não atribua significado a priori à relação diferencial.
Por meio desse esquema (duas portas), pode-se visualizar a constatação freudiana de que há, para a estrutura inconsciente, o pênis e sua ausência. Tal oposição significante só foi possível porque, ao destituir o significado outorgado pelo pseudossignificante, fazendo do significante uma estrutura oposicional, algoritizamos o signo. Portanto, se a operação de castração permite a divisão do signo é, mais precisamente, a partir da metáfora paterna que ocorre a inscrição de um novo sentido. No entanto, para essa substituição significante, não se trata de postular uma espécie de reservatório de sentido no significante substituto, como se existisse aí uma "injeção de sentido" (Lacan, 1957-1958[1999], p. 37). Afinal, significante substituto não se comporta como uma espécie de reservatório a priori à própria operação de metáfora.
O novo sentido é dado apenas quando o significante substitui o pseudossignificante e inscreve, por uma relação puramente fonética e homonímica, o significado no nível simbólico. Vale lembrar que, para Lacan, a operação de substituição parte, inicialmente, como possibilidade de sustentar o sentido metonímico com a cadeia do Outro materno. Contudo, por uma relação combinatória (de homofonia), engendra um novo sentido "genitalizando" o inconsciente. Eis a razão que levou o psicanalista a dizer que não há metáfora se não houver metonímia.
É somente quando o falo passa ao registro simbólico, momento em que se ultrapassa a barra do sentido metonímico com a cadeia significante da mãe, que o objeto de desejo do Outro passa a ser localizado na realidade. A interdição do Nome-do-Pai sobre o desejo da mãe compreende a passagem de um tempo em que teríamos a criança como um assujeitado, identificado ao falo imaginário, para um momento em que a criança se identifica, simbolicamente, com o pai simbólico. Lembremo-nos do questionamento de Lacan: "Qual é a via simbólica? É a via metafórica" (Lacan, 1957-1958[1999], p. 181). Ora, mas o que isso quer dizer?
Na perspectiva antropológica, por exemplo, a interdição do incesto conduz ao registro simbólico, isto é, ao momento em que ocorre a troca das mulheres entre as tribos, uma permutação que permite que as linhagens obtenham vantagens em suas alianças. Para Lévi-Strauss (2003), o objetivo antropológico da interdição do incesto seria evitar a coincidência entre as relações de parentesco e as relações de aliança. Evitando a coincidência, com essa interdição, as tribos permutariam suas mulheres de modo a produzir relações de contribuição mútua entre diferentes povos. Afinal, casar-se com a irmã é se privar de ter cunhados, e, sem cunhados, com quem caçar ou pescar? Percebemos que o incesto é, socialmente, desvantajoso para as tribos, o que nos conduz a ter a universalização de sua interdição.
Contudo, será que a interdição da lei metafórica tem, para a Psicanálise, a mesma valia para a Antropologia? Retomaremos a descrição de Lacan (1957-1658[1999], p. 204) em seu quinto seminário público: "A existência mesma do complexo de Édipo é socialmente injustificável, isto é, não pode ser fundamentada em nenhuma finalidade social". Por meio dessa sentença, o autor deseja interpretar a lei paterna não por sua condição antropológica, mas pelo valor dessa interdição na constituição simbólica do sujeito. Portanto, é uma lei que está para além de qualquer utilidade cultural, ainda que não se trate de afirmar a contradição entre lei e cultura, muito pelo contrário, devemos reafirmá-las.
A interdição do Nome-do-Pai tem como ênfase, para Lacan, não a troca de mulheres, mas a obtenção de um objeto (na realidade) "capaz" de localizar o desejo do Outro que, somente por consequência, instituiria o significante fálico como aquele que precedesse a troca das mulheres entre as tribos. Na realidade, a permuta de mulheres ocorre a partir da permuta fálica. É mais exatamente como objeto social (e por isso contingencial) que o falo reencontrado preside as relações entre as linhagens. Isto é, sob a condição de que ocorra, no primeiro plano, a restituição fálica por meio do cunhado, do sogro ou de figuras necessárias para a manutenção cultural (pesca, caça e/ou guerra) do poder. Só se trocam as mulheres sob a condição de que o falo preceda essa troca, seja o falo a força da caça, seja o saber na universidade, seja o pênis, seja o clitóris. "Trata-se de que a criança assuma o falo como significante, e de uma maneira que faça dele instrumento da ordem simbólica das trocas, na medida em que ele preside à constituição das linhagens" (Lacan, 1957-1958[1999], p. 204).
Mas, por qual razão necessitaríamos do falo no nível simbólico? Responderemos a essa pergunta utilizando as próprias palavras do autor: "Para começar, convém assinalar que ele é, fora do sujeito, constituído como símbolo. Isso porque, se assim não for, ninguém poderá intervir realmente como revestido desse símbolo" (Lacan, 1957-1958[1999], p. 193). Assim sendo, é somente na dimensão simbólica do falo que o pai real, na condição de revestido desse significante, passa à suposta condição de portá-lo. É quando ocorre a metáfora paterna que se observa o pai como aquele que "pode dar à mãe o que ela deseja, e pode dar porque o possui. Aqui intervém, portanto, a existência da potência no sentido genital da palavra - digamos que o pai seja um pai potente" (Lacan, 1957-1958[1999], p. 200).
O genital deve ser tomado como um simulacro ou, seguindo as elucidações de Lacan, como o reencontro do falo - é só por isso que o pênis pode assumir essa condição. Assim, a partir da inscrição do Nome-do-Pai, o falo passa à condição de ser reencontrado, assumindo a condição simbólica do pênis que identifica o menino ao pai (aquele quem tem o pênis) e, por isso, mantém o significante sob sua reserva. Por sua vez, a menina, sem se identificar como portadora desse objeto, sabe onde encontrá-lo. Afinal, as mulheres aceitam ser trocadas entre as tribos, na medida em que podem ser restituídas com um filho ou um marido.
Portanto, se o pai é descrito como aquele que tem, no nível simbólico, o simulacro do falo, isso ocorre, unicamente, na condição de tê-lo em seu reencontro, o que equivale a não encontrá-lo efetivamente. Acreditamos que a inscrição do Nome-do-Pai, permitindo que o pai da realidade venha a ser o portador desse objeto como marca de um reencontro, ocorre porque, na operação de metáfora, o novo sentido, engendrado pela relação homonímica, deixa um resto de sentido, decorrente da identificação metonímica da criança com o falo imaginário na relação com o primeiro Outro. "São as ruínas metonímicas do objeto de que se trata" (Lacan, 1957-1958[1999], p. 42), ou o que denominaremos como a marca de um negativo.
Com a metáfora paterna, o falo imaginário permanece como uma potência de sentido na materialidade da cadeia significante. Ele não é apagado, mas permanece como um significante oculto ou uma potência de sentido, que só adviria à condição patente por meio de uma interpretação que trouxesse a operação reversa da homonímia significante.
A centelha criadora da metáfora não brota da presentificação de duas imagens, isto é, de dois significantes igualmente atualizados. Ela brota entre dois significantes dos quais um substituiu o outro, assumindo seu lugar na cadeia significante, enquanto o significante oculto permanece presente em sua conexão (metonímica) com o resto da cadeia. (Lacan, 1957[1966], p. 510)
Esse significante oculto, presente por sua conexão metonímica, é o que Lacan elucidou, como um efeito de vivificação do registro imaginário, a partir da inscrição da centelha criadora da metáfora paterna. O Nome-do-Pai "[...] é algo que não intervém em momento algum da dialética senão por intermédio do pai real que vem, num momento qualquer, preencher esse papel e função, e permite vivificar a relação imaginária e dar a esta sua nova dimensão" (Lacan, 1956-1957[1995], p. 215). Esse efeito de vivificação do imaginário é igualmente demonstrado por Lacan no escrito A instância da letra no inconsciente - "ƒ (S...S') S ͠= S (- ) s" (Lacan, 1957[1966], p. 519). A passagem de S (falo inacessível) ao S' (falo proibido) corresponde ao efeito de significantização do desejo, que passa a se articular conforme uma metonímia ou um significante ex-sistente à própria cadeia significante. Notemos que S' é aquilo que da operação de metáfora foi antecedido por uma substituição metonímica, contudo, mesmo assim, não se apagou diante da polarização significante engendrada pelo novo sentido metafórico. Por isso, Lacan o representa por um sinal negativo entre o parêntese, já que se trata de um sentido que não ultrapassa a barra, isto é, permanece em metonímia com o desejo da mãe.
Esse S' vivificado pela centelha criadora é, inclusive, segundo a própria leitura do psicanalista, o significante do Nome-do-Pai. "O pai é, no Outro, o significante que representa a existência do lugar da cadeia significante como lei. Ele se coloca, por assim dizer, acima desta" (Lacan, 1957-1958[1999], p. 202). Assim sendo, observemos que encontramos, no cerne da proposta lacaniana, a presença de um paradoxo fundamental a ser pensado: como pode o pai ser uma metáfora e, por isso, estar na cadeia significante como novo sentido (significante algorítmico) e, ao mesmo tempo, ser aquele que está acima da cadeia, referente ao desejo metonímico?
Para responder à questão, veremos, nos próximos tópicos, que foi necessário descrever a inscrição do Nome-do-Pai a partir da subversão do significante, e não mais como uma operação metafórica. Obviamente, isso não significa que a metáfora e a metonímia não ocorram, mas o que Lacan deseja é mesmo inserir uma operação a mais, o que permite alternar de "S e S' por 1" (Lacan, 1961-1962 - Lição de 6 de dezembro de 1961).
Obviamente, o psicanalista não pôde apresentar a passagem do S' para o 1 sem que tivesse reestruturado o conceito de falta. Veremos nos tópicos seguintes que, apenas com o conceito de das Ding, Lacan esvazia o desejo de toda e qualquer qualidade empírica, o que permite que pensemos no desejo não mais a partir de um objeto proibido (sentido metonímico), conforme descrevemos em relação à potência de sentido ex-sistente na cadeia significante, mas como desejo puro, isto é, faculdade de desejar anterior a toda e qualquer apresentação fenomênica dos objetos.
O Nome-do-Pai e das Ding
No tópico anterior, descrevemos que a metáfora paterna seria responsável pela inscrição metonímica do desejo, o que permitiu inferirmos que o desejo é tomado a partir de um significante predicativo (potência de sentido ex-sistente), que sustentaria a falta de um objeto empírico. No entanto, o psicanalista francês observa que tomar a falta a partir de um significante predicativo significa declinar das Ding à dignidade de um objeto. Veremos que com o seminário A ética da Psicanálise, Lacan (1959-1960[2008], p. 137) descreve que deveríamos elevar o objeto "à dignidade da Coisa", e não declinar a Coisa à dignidade do objeto. Não devemos transformá-la, travesti-la, saturá-la com objetos empíricos. É preciso conservá-la em sua dimensão real.
É bem verdade que o psicanalista sempre enfatizou o caráter negativo do significante da falta. Basta observar que, com a metáfora paterna, temos a passagem de um objeto inacessível a um objeto proibido, o que poderia demonstrar uma espécie de concepção embrionária sobre o que veremos a partir de das Ding. Todavia, o fato é que, apenas a partir do conceito de Coisa, veremos, efetivamente, o desejo ser esvaziado de qualquer materialidade empírica.
Em outros termos, não se trata de postular o negativo de um significante qualitativo, já que este, ainda que proibido, é correlato a um significante que declinaria a causa do desejo à dimensão empírica. Afinal, mesmo que Lacan mencionasse o falo inacessível como uma potência de objeto, ele nunca escondera o caráter material desse significante. "Este entrave é ir buscar a realidade em algo que teria o caráter de ser mais material" (Lacan, 1956-1957[1995], p. 42). Materialidade que, em nosso entender, traz o significante à condição empírica de uma falta.
Portanto, essa depuração da falta, a partir do conceito de das Ding, faz com que a verdadeira causa do desejo seja concebida como um "in-mundo", isto é, a pura negatividade diante dos objetos empíricos. Baas (2001) interpreta que esse "in-mundo" deve ser compreendido como uma faculdade de desejar anterior a qualquer perda de objetos mundanos, o que elucidaremos a partir do conceito de desejo puro. Uma descrição idêntica é encontrada em Safatle (2006), já que, para o filósofo, das Ding deve ser compreendido como um transcendente negativo, isto é, uma espécie de negatividade que conservaria a causa do desejo para além de qualquer dimensão mundana.
Em resumo, a partir do Seminário da Ética, não mais poderemos afirmar que o desejo tem como causa a falta de um objeto, uma vez que, com a apropriação do conceito de Coisa, o desejo passa a ter como causa a própria falta, podendo ela mesma se colocar como originária, sem que se tenha como razão a perda de um objeto primordial causada pela metáfora significante. Portanto, ressaltamos que a falta não deve mais ser tomada como a falta de um objeto, ou a falta disso ou daquilo, mas da constituição a priori do indivíduo. A falta é dada por um transcendente e não pela negatividade de um significante predicativo.
Porém, dizer que é transcendente não significa dizer que a experiência sensível seja dispensável. Afinal, como demonstrar que existe uma inadequação do desejo puro às coisas sensíveis se não houver uma presença positiva para ser negativada? Esse transcendente negativo do desejo é exemplificado quando o autor menciona a construção de um vaso pelo oleiro. Criamos um vaso em torno do vazio, ou seja, um transcendente que se apresente apenas na condição de sua negatividade. A falta é aí "anterior" ao vaso e não depende de uma perda empírica do objeto, mas depende do empírico para demarcar sua negatividade.
Na realidade, a falta só se apresenta demarcando um reencontro desse objeto quando uma positividade do saber significante. Entendamos por saber o modo predicativo de conceber o significante, isto é, sua percepção qualitativa. Esse saber é sempre reencontrado, desde que ganhe, é claro, um vazio, uma negatividade em seu interior. A Coisa "não é outra coisa senão o que o saber só pode aprender que sabe ao pôr em ação sua ignorância" (Lacan, 1960[1966], p. 812).
Esse ponto de não saber é acentuado por Lacan quando ele retoma as estruturas elementares de parentesco e observa que a interdição do incesto entre o pai e a filha seria perfeitamente explicável segundo as estruturas elementares de Lévi-Strauss - na medida em que a mulher é permutada entre as tribos (na condição de que essa permuta seja presidida pelo falo). Contudo, o psicanalista levanta como questionamento um ponto nevrálgico e imprescindível para o esclarecimento das estruturas: "por que o filho não dorme com a mãe? Aí, algo permanece velado" (Lacan, 1959-1960[2008], p. 85). Nada impede que o filho receba uma mulher de outra tribo e mantenha relações sexuais com a mãe. No entender do psicanalista, não conseguiríamos explicar a interdição do incesto entre o filho e a mãe seguindo as determinações predicativas da linguagem, de modo que esse ponto irredutível estaria além da articulação do saber.
Esse ponto de negatividade em relação ao saber teria sido referenciado pelo autor como sendo uma "inspeção metafísica" (Lacan, 1959-1960[2008], p. 85). Retiramos o termo "inspeção metafísica" porque, em nosso entender, Lacan estaria, no seminário A ética da Psicanálise, elucidando que se tratava de uma interpretação cuja razoabilidade não poderia ser explicitada segundo as razões predicativas da linguagem, conforme descrevemos em relação à metáfora e à metonímia. Ao contrário de ser uma confirmação positiva, segundo o que temos a respeito da circulação do falo e suas implicações para a cultura, postular a Coisa como o que falta ao saber remete ao transcendente negativo, ou seja, só pode ser constatado quando impossibilita a totalização de uma verdade sobre o inconsciente.
Há também aquilo a que nos referimos tão frequentemente aqui com o termo de estruturas elementares de parentesco - da propriedade igualmente e da troca dos bens - que faz com que, nas sociedades ditas primitivas - entendam por isto todas as sociedades em seu nível de base -, o homem constitua-se, ele mesmo, signo, elemento, objeto da troca regulada, de que o estudo de um Claude Lévi-Strauss mostra-lhes o caráter seguro em sua relativa inconsciência. O que, através das gerações, preside a essa nova ordem sobrenatural das estruturas é exatamente o que dá a razão da submissão do homem à lei do inconsciente. Mas a ética começa, todavia, para além disso. (Lacan, 1959-1960[2008], p. 94)
Notemos que a Coisa é aquilo que demarca o desejo como uma negatividade além das leis operatórias de metáfora e metonímia. Isso demonstra que o desejo puro não pode vir a ser reconhecido pela simples operação de metáfora e metonímia. É preciso introduzir um corte a mais, de modo que não tenhamos a declinação de das Ding à dignidade do objeto empírico. Afinal, conforme demonstramos no tópico anterior, a metáfora apenas seria responsável pela passagem de S a S', mas a falta é aí substancializada pelo objeto empírico/predicativo.
E como, afinal, das Ding pode vir a ser reconhecida para além das leis operatórias de metáfora e metonímia? A partir do que Freud formulou, assim que tão logo formulou o mito de Édipo: o complexo de castração. A castração não é um mito, mas uma operação que representa a subversão do significante, de modo que nenhum objeto empírico (S') venha a declinar o desejo puro à dimensão da falta mundana. Eis que Freud teria construído um mito do impossível, isto é, declinando a falta transcendental à perda de um objeto totêmico (pai da horda). Portanto, a castração simbólica não deve ser entendida como a possibilidade de vivificação do registro imaginário, conforme demonstramos no primeiro tópico deste trabalho, mas como uma operação capaz de produzir a subversão de todo e qualquer objeto empírico que decline o desejo puro à dimensão mundana.
A operação de castração simbólica permite passar de S e S' ao 1 do traço unário. Em resumo, "este 1 como tal, enquanto marca da diferença pura, é a ele que vamos nos referir para colocar à prova, em nossa próxima reunião, as relações do sujeito com o significante" (Lacan, 1961-1962, Lição de 6 de dezembro de 1961). Em vista disso, o traço unário deve ser tomado como a marca de uma inscrição que permite ir além da relação "apenas homonímica" (Lacan, 1961-1962, Lição de 24 de janeiro de 1962) que mantínhamos com o rejeito metonímico S', a fim de inscrever a marca da pura diferença, sem que exista qualquer potência de sentido que sustente a materialidade empírica de uma falta. "Quando falei da instância da letra no inconsciente, alguns anos mais tarde, pus, ali, através de metáforas e metonímias, um acento bem mais preciso. Chegamos agora, com essa largada que fizemos a partir da função do traço unário, a algo que vai permitir-nos ir mais longe" (Lacan, 1961-1962, Lição de 20 de dezembro de 1961, p. 89).
O referido 1 não é um pouco de sentido (rejeito metonímico) conservado no nível da metáfora significante. O corte efetuado pela castração simbólica desempenha o papel de subverter o conteúdo da lei, e não a manutenção de um conteúdo como potência ex-sistente à relação diferencial dos significantes. Substituir S e S' por 1 é, em nossa compreensão, inscrever a rejeição radical do mundo fenomênico, o que permite que o desejo puro seja reconhecido no vazio da lei.
Em vista disso, ainda que o desejo puro esteja articulado à lei, ele não é articulável, ou seja, não é declinado à condição de um objeto empírico, conforme descrevemos ao mencionar o rejeito metonímico na operação de metáfora. Não é para menos que o psicanalista tenha descrito que "(- φ) é o vazio do vaso" (Lacan, 1962-1963[2005], p. 224), ou seja, a lei fálica, quando examinada de perto, "não é outra coisa senão o desejo em estado puro" (Lacan, 1964[2008], p. 266).
Evidentemente, ainda que estejamos mencionando a lei fálica como uma matriz sociolinguística capaz de subjetivar o desejo puro, o mesmo funcionamento descreveremos com relação à lei paterna. Observemos o que diz o psicanalista, no escrito Subversão do sujeito e dialética do desejo: "Mediante o que fica ainda mais acentuada do que revelada a verdadeira função do Pai, que é, essencialmente, unir (e não opor) um desejo à Lei" (Lacan, 1960[1966], p. 839). Fica evidente, por meio dessa passagem, que o Nome-do-Pai, em sua união com o desejo puro, apenas pode ser acentuado em sua função, mas jamais elucidado conforme a positividade de um saber, ou seja, jamais encontrado de modo predicativo, o que descrevemos anteriormente a respeito de uma inspeção metafísica.
Assim, constatamos que, a partir da apropriação do conceito de Coisa, Lacan confere um deslocamento sobre a função do Nome-do-Pai para a teoria psicanalítica. Trata-se de dar um passo a mais, além da metáfora e da metonímia, propondo a inscrição do pai como possibilidade de reconhecer o desejo puro no interior da lei paterna, ou seja, uma lei sem nenhum conteúdo denotativo. A falta, dada a partir de um transcendente, permite que Lacan reformule o Nome-do-Pai como aquele que pode vir a reconhecer o desejo puro, sem decliná-lo à dimensão empírica de um objeto.
As duas negativas: da metáfora oral à subversão do Nome-do-Pai
No tópico anterior, descrevemos que, com a apropriação do conceito de Coisa, Lacan ressignificou a função do Nome-do-Pai, conferindo à lei paterna a possibilidade de subjetivar o desejo puro no interior da matriz simbólica e não produzir uma falta empírica. Todavia, se a inscrição do Nome-do-Pai passa a ser compreendida a partir da subversão do significante, o que diremos em relação às operações de metáfora e metonímia? Vemos que, com a apropriação do conceito de das Ding, as operações de metáfora e metonímia também são ressignificadas pelo autor. Neste tópico, pretendemos melhor elucidar como Lacan distingue a metáfora significante da subversão significante propiciada pela castração simbólica.
No seminário A ética da Psicanálise, Lacan compreende que nenhuma causa empírica pode vir a ocupar o lugar da verdadeira falta, ou seja, nem mesmo os primeiros significantes, na mais prematura idade, seriam capazes de significar o sexual. O autor insiste em demonstrar que não há significante que representaria uma raiz, já que a verdade estaria apenas do lado do Real. "O que há em das Ding é o verdadeiro segredo" (Lacan, 1959-1960[2008], p. 60). Assim, devemos questionar como se inicia a formalização dos primeiros significantes para a criança e quais seriam suas consequências para o aparelho psíquico.
É bem verdade que o psicanalista, no seminário As formações do inconsciente, postulou um x como causa do desejo, mas a teorização da falta ainda não se baseava na condição de uma transcendência de das Ding, de modo que, naquele período, o falo corresponderia ao x. "Há outra coisa que mexe com ela - é o x, o significado. E o significado das idas e vindas da mãe é o falo" (Lacan, 1957-1958[1999], p. 181).
Assim, no seminário A ética da Psicanálise, Lacan retira a sincronia Fort-Da (falo imaginário como condensador do gozo na saída do estágio do espelho) da condição de sentido primitivo da falta, refutando a existência de qualquer significado último, capaz de representar uma experiência empírica da gênese do desejo. Isso significa que nenhuma raiz ou radical da linguagem poderia assegurar a verdade do sexual. No seminário citado, o autor acredita ter conseguido, de uma vez por todas, libertar-se da concepção de que a criança seria "o pai do homem" (Lacan, 1959-1960[2008], p. 35).
Nem por isso temos a estrutura significante - nada aqui implica que o elemento de oposição que constitui a estrutura do emprego do significante, já inteiramente desenvolvido no Fort-Da, do qual tiramos o exemplo original, seja dado no apelo sexual natural. Se o apelo sexual pode referir-se a uma modulação temporal de um ato, cuja repetição pode comportar a fixação de certos elementos da atividade vocal, ainda assim ele não nos pode fornecer o elemento estruturador, nem mesmo o mais primitivo da linguagem. Existe aí uma hiância. (Lacan, 1959-1960[2008], p. 203)
Safatle (2006) propõe que, para uma primeira inscrição simbólica, teríamos uma espécie de naturalização da imagem como realidade sensível. Isso significa que, para que um objeto seja possível (percepção da realidade), é necessário prescrever o sensível a partir de uma imagem do conceito. Essa imagem prévia é aquilo que organiza a realidade e confere, por meio de um "conceito", a possibilidade de um objeto existir dentro de suas potencialidades. Ao fazê-lo, o imaginário constitui uma espécie de Gestalt do mundo percebido.
É essa Gestalt que impede que tenhamos uma percepção fracionada, o que seria natural para a "percepção pura" (o que é impossível), de modo que a imagem conceitual forneça aquilo que a percepção não pode nos dar. O cubo, por exemplo, em suas propriedades naturais, é observado apenas por alguns ângulos, o que dificultaria sua identificação. Já a imagem torna possível a organização do campo visível, tornando dessa visão fracionada a percepção de um cubo. Veremos essa exemplificação na lição de 7 de março de 1962, no seminário A identificação, de Jacques Lacan (1961-1962).
Logo, Lacan especificou a naturalização do signo como um momento anterior ao significante, o que poderemos associar à saída do estágio do espelho. Entretanto, no texto A metáfora do sujeito, datado de 1961, encontraremos, nas elucidações de Lacan, uma operação de simbolização nomeada pelo autor como "metáfora radical" (Lacan, 1961[1966], p. 905). Vejamos o exemplo apresentado pelo psicanalista: "o gato faz au-au, o cachorro faz miau-miau. Eis como a criança soletra os poderes do discurso e inaugura o pensamento" (Lacan, 1961[1966], p. 905).
É importante perceber que, quando mencionamos uma negação do cachorro, devemos nos ater em algo sutil. Afinal, o que é um cachorro? Se compreendermos que a realidade é dada pela imagem naturalizada, isso significa que o negativado é dado por um referente imaginário. Todavia, não se trata apenas de propor um referente imaginário como o negativado, mas sim de negar uma construção imaginária naturalizada. Quando negamos o cachorro, não negamos o natural, mas aquilo que é naturalizado. O verdadeiro referente, isto é, a causa do desejo, é sempre real. Isso significa que devemos dar ênfase à metáfora radical mais pelo fato de seu efeito de desvelamento - "nadificação do real" (Safatle, 2006, p. 105) - do que, propriamente, pelo que é negado como referente imaginário.
Podemos compreender a afirmação de Lacan ao dizer que o real é o que, na referência, apresenta-se como uma espécie de abertura da simbolização. Abre-se como hiância, por meio da negação da metáfora radical, esse furo que até então permanecia ignorado na realidade naturalizada do signo quando na inscrição da imagem o desejo puro foi "bloqueado". Assim, as distinções entre "real e realidade devem ser amenizadas" (Safatle, 2006, p. 55). Isso porque o real seria aquilo que não foi passado ao registro imaginário/simbólico e permaneceu bloqueado sob a identidade do signo na saída do estágio do espelho.
É a metáfora como aquilo em que se constitui a atribuição primária, aquela que promulga o 'cachorro faz miau, o gato faz au-au' com que a criança, de um só golpe, desvinculando a coisa de seu grito, eleva o signo à função do significante e eleva a realidade à sofística da significação, e, através do desprezo pela verossimilhança, descortina a diversidade das objetivações a serem verificadas de uma mesma coisa. (Lacan, 1960[1966], p. 820)
Veremos, no seminário A transferência, a mesma negativa ser aplicada por Lacan, mas, desta vez, ao mencionar a metáfora oral. O psicanalista demonstra que, se não houvesse um primeiro momento de rejeição do alimento, não teríamos a abertura para o campo da falta. É preciso que se efetive um verdadeiro trabalho do negativo, a partir da negação do objeto (seio), para que se descortine aquilo que está bloqueado no signo. "A primeira coisa que recusa disso é que esta boca pode dizer: esse não. A negação, o afastamento, o eu gozo disso e não de outra coisa do desejo, já entra aqui, e aqui explode a especificidade da dimensão do desejo" (Lacan, 1960-1961[2010], p. 253).
Ora, é impossível não observarmos a semelhança dessa explosão, mencionada a respeito da metáfora oral, e o que citamos em relação à abertura da "diversidade de objetivações" (Lacan, 1960[1966], p. 820), a ser verificada na desvinculação do cão e de seu grito. Todavia, não se trata de tomar ao pé da letra a percepção de que teríamos a migração pura e simples da fome ao erotismo, como se o objeto perdido fosse aí, a causa do desejo. Afinal, conforme explicitamos há pouco, o sexual não se esgota no referente negativado. "O éros que o habita vem nachtraglich, por retroação, e não apenas só-depois" (Lacan, 1960-1961[2010], p. 263).
Assim, não se trata apenas de eleger um objeto preterido a posteriori da negação, como se ele alcançasse, como referente, o lugar de causa da falta. Na realidade, ao negar o referente, a metáfora oral abre como possibilidade a nadificação do real, isto é, funda o desejo puro por retroação, ainda que este seja declinado à condição de um objeto preterido, o que mencionamos em relação ao S'. "A transição se faz da fome ao erotismo pela via daquilo a que eu chamava há pouco um preferência" (Lacan, 1960-1961[2010], p. 269). Consiste em passarmos do que seria a demanda simples de fome para a demanda de uma gulodice.
Em outros termos, à medida que elejo um objeto preterido por meio da negação, busco reencontrar no objeto amado a satisfação perdida, mas que, na realidade, nunca existiu como marca de satisfação, uma vez que a verdadeira falta deve ser dada pelo real. Não é para menos que Lacan (1960-1961[2010], p. 269) situe a negação na fase oral como a personificação do pecado original: "Eis-nos reintroduzidos ao registro dos pecados originais." No mito de Adão e Eva, a maçã não é um alimento qualquer, é o alimento preterido, é o alimento que conduz ao despertar sexual; isso se evidencia na manifestação de Adão e Eva de sentirem-se envergonhados ao serem olhados, sentimento de vergonha que só acontece depois da ingestão da fruta.
Portanto, com a metáfora oral, veremos a falta ser engendrada, mas o desejo puro escapa à matriz simbólica, não podendo vir a ser reconhecido no interior da lei, pois "É justamente porque nos foge e nos escapa que se revelará fecundo para nós" (Lacan, 1961-1962 - Lição de 11 de abril de 1962). Portanto, é possível dizer que, ao negar o signo, engendramos um referente que enuncia a falta, mas, ao fazê-lo, ele declina o desejo puro à dignidade do objeto, o que Lacan (1960-1961[2010], p. 263) pôde elucidar como a "inversão do emprego do termo sublimação".
É ainda pela metáfora oral que Lacan demonstra a passagem do signo (naturalizado) ao significante (referente imaginário), momento em que o efeito de vivificação do registro imaginário na passagem de S a S'. A metáfora oral inscreveria uma vivificação do registro imaginário por meio da eleição de um objeto preterido, mas o sexual é aí apenas metafórico, isto é, não pode vir a ser reconhecido.
Assim, é apenas com a castração simbólica que o significante, que até então declinava a Coisa à dignificada de um objeto empírico, pode vir a dar corpo ao desejo puro. Afinal, quando Lacan (1960[1966], p. 836) menciona que o falo "[...] é negativado em seu lugar na imagem especular", trata-se de reconhecer o desejo puro que, até a operação de castração, tinha sido bloqueado (S) ou escapado (S') à dimensão simbólica. Eis a falta do desejo do Outro. Não se trata de um significante negativo, conforme observamos em relação à significantização do desejo: "A falta de que se trata aqui é a falta do desejo do Outro. A função assumida pelo falo, enquanto reencontrado no campo imaginário, não é a de ser idêntico ao Outro como designado pela falta de um significante" (Lacan, 1960-1961[2010], p. 274).
É apenas com a castração simbólica que teremos a possibilidade de que a falta não esteja metaforizada, segundo o que observamos, anteriormente, em relação à metáfora oral, mas que ela possa vir a ser reconhecida em sua "consistência real" (Lacan, 1960-1961[2010], p. 284). A criança aceita a castração porque encontra nela a possibilidade de um saber sobre o gozo no futuro, já que haveria, no momento atual, uma condição desfavorável à satisfação do desejo - "Eu transarei mais tarde" (Lacan, 1960-1961[2010], p. 273).
Antes da castração simbólica, é possível dizer que o pênis seria avaliado de modo ambivalente, ora tido como objeto apreciado, ora tido como objeto depreciado. Essa ambivalência seria decorrente de uma posição enigmática por parte do outro materno que, por um lado, demonstraria apreciar o órgão masculino, dizendo que o menino seria muito bem-dotado, que se tornaria um grande reprodutor, ao mesmo tempo em que a criança teria, na medida em que agita seu órgão, no despertar da sexualidade infantil, seu membro desvalorizado e depreciado, obtendo como resposta do Outro, a insuficiência desse objeto - "É uma grande porcaria" (Lacan, 1960-1961[2010], p. 272).
A criança, uma vez que passa a agitar esse órgão, já está marcada por uma insatisfação correlativa ao desejo, o que demonstramos ser relativa à negatividade na metáfora radical. Então, o que faria a castração simbólica? Essa operação faz uma divisão com a qual a criança recebe em suas mãos uma promissória de gozo. Por meio dessa promessa, o sujeito reconhece não ter o objeto capaz de satisfazer o desejo, ainda que no futuro venha a tê-lo de modo fantasmático. "Este habeo é a introdução da dívida simbólica a um habeo destituído" (Lacan, 1960-1961[2010], p. 273). Em outras palavras, é na tentativa de assegurar um porvir da verdade sobre o sexual que a criança aceita, momentaneamente, sua castração. No entanto, a única coisa que pode ser afirmada é que, no aqui e agora da castração, nenhum objeto pode vir a saturar o desejo.
É imprescindível notar que, a partir da castração simbólica, Lacan (1960-1961[2010], p. 283) observa que "deveria poder se distinguir" a demanda e o desejo, embora isso nem sempre seja possível. Ora, o que isso significa? Para o psicanalista, o neurótico prefere o signo do desejo a permanecer com o enigma do desejo do Outro, isto é, ele prefere saturar, novamente, o desejo puro a partir de uma promessa de gozo fálico a reconhecer a verdadeira causa do desejo.
Assim sendo, o falo não é a falta do significante, mas a possibilidade de subjetivação do transcendente negativo. "É isso que predestina o falo a dar corpo ao gozo, na dialética do desejo" (Lacan, 1960[1966], p. 836). Entretanto, ao fazê-lo, incorre-se no risco de projetar uma máscara que se torna o efeito de uma promessa, suposta verdade sobre o gozo que o neurótico guardaria a partir da fantasia (sua promissória). É somente na perspectiva de uma promissória que o falo pode vir a se apresentar como o mais notável daquilo que pode ser apreendido na relação sexual como real, a partir de sua turgidez. É também como aquele que é o mais simbólico, uma vez que é tido como o equivalente da relação sexual. Isso porque, sem a estimulação desse órgão, não poderíamos, sequer, mencionar a "cópula (lógica)" (Lacan, 1958[1966], p. 699) em seu sentido estrito.
Assim é que o órgão eréctil vem a simbolizar o lugar do gozo, não como ele mesmo nem tampouco como imagem, mas como parte faltante na imagem desejada: por isso é que ele é igualável ao √-1 da significação, produzida acima, do gozo que ele restitui, pelo coeficiente de seu enunciado, à função de falta de significante (-1). (Lacan, 1960[1966], p. 837)
Numa espécie de contradição gerada pela alternância entre os sinais √-1 (união da lei ao desejo puro) e -1 (promessa fálica), podemos visualizar a condição de duplicidade em relação à lei fálica. Se houvesse a possibilidade de se postular o falo imaginário como arquétipo da relação sexual, conforme a primazia do pênis ereto, isso só seria possível no nível fantasmático, em que se nega a castração, ou seja, subverte-se a própria subversão da representação fálica. Em outros termos, é só na fantasia que o pênis ereto pode vir a se apresentar como tampão da falta, significante da cópula lógica.
O Nome-do-Pai é a extração do objeto a
No tópico anterior, salientamos que para a primeira inscrição simbólica haveria uma espécie de naturalização do signo, de modo que a Coisa seria bloqueada. Observamos que apenas com a metáfora oral temos, de fato, o anúncio da falta, ainda que o desejo puro esteja aí, declinado à condição empírica do alimento preterido (seio). Contudo, conforme elucidado, é apenas com a castração simbólica que haveria a possibilidade de que a lei fálica ou o Nome-do-Pai viesse a subjetivar o desejo puro, sem decliná-lo à condição de um objeto fenomênico.
Diante da tese de que a castração simbólica permite a união da lei ao desejo puro, cabe-nos questionar: é o Nome-do-Pai a Coisa? Em nossa interpretação, o Nome-do-Pai é mais a inscrição da ausência da Coisa do que sua presença propriamente dita, ainda que, evidentemente, a função paterna se conserve como pura negatividade em relação ao mundo fenomênico. Como descreve Lacan (1961 [2008], p. 286), "mais precioso que o próprio desejo é guardar o seu símbolo, que é o falo". Ora, mas qual a distinção entre a Coisa e falo/ Nome-do-Pai?
Lacan (1959-1960 [2008], p. 102) descreve, no seminário A ética da Psicanálise, acerca do simbólico como uma mentira sobre o Real, que "É justamente aí - na medida em que minto, que recalco, que sou eu, mentiroso, quem fala. " No entanto, ao conceber o mundo fenomênico como uma mentira em relação ao transcendental do desejo puro, outorga-se existência a um saber anterior ao próprio mundo fenomênico, ainda que sob a forma de uma (im)potência. Em outros termos, ao postular o mundo fenomênico como uma aparência mentirosa, Lacan, por consequência, pressupõe que haveria a garantia de uma verdade fixa e acabada de das Ding por trás do véu levantado pela negação.
Com o avançar teórico propiciado pelo escrito Subversão do sujeito e dialética do desejo, Lacan é enfático ao dizer que a opacidade gerada pela castração seria decorrente de uma operação em que não apenas se mente sobre algo, mas que se mente que mente, isto é, "finge fingir" (Lacan, 1960[1966], p. 822). Com a negação da negação, asseguramos ao sujeito apenas o ponto de miragem (Outro vazio), sem garantia alguma para além da aparência do Outro patológico (mundo empírico), de modo que o véu engana não por mentir sobre algo, mas por mentir que não há nada para mentir.
É Zîzêk (1991) quem nos ajuda a compreender os efeitos gerados sobre es s a dupla negativa, já que para o filósofo não se trata de fingir dizer a verdade ao mentir, mas fingir mentir ao dizer a verdade. "Mas o que é que se esconde por trás do fenômeno? Justamente o fato de que não há nada a esconder. O que é dissimulado é o ato de dissimulação que não dissimula nada" (Zîzêk, 1991, p. 107).
Portanto, com o reconhecimento do desejo puro pela lei, não se trata mais de uma verdade postulada atrás do véu fenomênico, mas de um engodo de verdade. É o que descreve Lacan (1961-1962- Lição de 21 de março de 1962), que acredita haver "nesse nó com o Outro, tal como ele é aqui representado, uma relação de engodo". Vemos, a partir dessa dupla negativa, que foi possível ao psicanalista não mais assegurar uma verdade como causa anterior à própria estrutura, mas assegurar um engodo a partir da opacidade da lei paterna/lei fálica.
Em nosso entender, ao esvaziar o desejo puro de uma potência de saber a priori, postulando um engodo de verdade, Lacan teria como objetivo principal dar um passo a mais, um passo em direção à verdadeira causa do desejo. Não se trata de uma verdade a priori que demarcaria uma espécie de descontinuidade do inconsciente. No seminário Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise, o psicanalista questiona: "Será que o um é anterior à descontinuidade?" (Lacan, 1964[2008], p. 33). A resposta dada pelo psicanalista é, portanto, negativa. A partir da produção de um engodo do Nome-do-Pai, Lacan pretende que a verdadeira causa do desejo seja tomada na própria estrutura do inconsciente, e não de uma potência de saber fixa, acabada e totalizadora, anterior à própria experiência do inconsciente.
Assim, ainda que estejamos interpretando a castração simbólica como possibilidade de que o desejo puro possa se evidenciar como pura falta, sem que o desejo seja declinado à condição da demanda, acreditamos que Lacan, mesmo no escrito Subversão do sujeito e dialética do desejo, estivesse propondo algo mais, aquilo que demarcaria a verdadeira descontinuidade para a psicanálise, isto é, o paradoxo matemático ou o objeto a.
Por ser justamente o que expomos aqui: estrutural no sujeito, o complexo de castração constitui neste essencialmente a margem que todo pensamento evitou, saltou, contornou ou encobriu, todas as vezes em que aparentemente conseguiu apoiar-se num círculo, fosse ele dialético ou matemático. (Lacan, 1960 [1966], p. 835)
Evidentemente, mesmo que estejamos retomando o paradoxo matemático, como aquilo que o pensamento matemático evitou, o psicanalista ainda não tinha formalizado o conceito de objeto a como pôde fazê-lo no escrito A Ciência e a verdade. Todavia, fica evidente o que viria nos anos que se seguiram. Certamente, o pai permanecia como possibilidade de reconhecer o desejo puro no interior da lei simbólica, mas, com a introdução do conceito de objeto a, veremos o psicanalista dar um passo adiante. Lacan (1963[1966], p. 781) chega, inclusive, a dizer que a Lei "não tem outro princípio" senão a abertura da "fenda do sujeito", o que se explicitaria a partir de sua enigmática sentença no escrito Kant com Sade: "viva a Polônia, pois, se não houvesse a Polônia, não haveria poloneses" (Lacan, 1963[1966], p. 779).
Assim sendo, introduzir o objeto a significa ir além da simples união da lei ao desejo puro, significa postular que a castração deva não apenas subverter o conteúdo de um significante, gerando sua opacidade, mas também sacrificar um objeto, permitindo que esse objeto sustente em seu interior a impossibilidade de saber diante da totalização do conhecimento promovida pela matemática. Ora, e que objeto é esse? Mais precisamente aquele objeto que mantinha o suposto lugar da falta empírica na metáfora oral, isto é, o objeto preterido S'. Assim, compreendemos que uma das formas de objeto a teria sido elucidada a partir do seio.
A castração permite que o objeto, do qual declinava o desejo puro à dignidade do objeto empírico, seja sacrificado de modo que se eleve à dignidade da lei transcendent e. Essa elevação do objeto empírico à dignidade do transcendente é explicitada por Lacan quando, no escrito Kant com Sade, o autor define o objeto a como "não sendo sem eira nem beira, nem sem tempo na intuição, nem sem modo que se situe no irreal, nem sem efeito na realidade [...]" (Lacan, 1963 [1966], p. 783). Portanto, ele é um objeto que apresenta duas dimensões, que produz efeitos na realidade, afinal, sua gênese é empírica, mas se situa no irreal, na medida em que é elevado à função transcendent e.
Como nos esclarece Soller (2012), é um objeto, por um lado, sem nome, sem imagem, nem significante, ou seja, ele permite que o entendamos a partir do paradoxo matemático, o que nomearemos a partir do real do objeto (a). Mas, por outro lado, ele tem nomes (seio, fezes, voz, olhar, pênis), o que nos coloca em uma relação com o mundo empírico, o que distinguiremos a partir do plural (as). Por ser esse objeto concebido tanto do ponto de vista irreal quanto do ponto de vista real, é que se permite seu funcionamento como um objeto que capture o desejo pela realidade empírica, mas sem que sua função transcendente seja saturada.
Assim, quando Lacan introduz o objeto a, ele o faz numa conjuntura muito próxima do que víamos com relação à sublimação no seminário A ética da Psicanálise - elevar um objeto à dignificada do transcendente. Todavia, e nquanto das Ding (ou o real - conceitos similares no seminário 7) seria visto como o vazio do vaso, para o real do objeto a, devemos considerar o paradoxo matemático. É o que vemos na assimilação do psicanalista ao retomar o paradoxo matemático a partir do número "um". Para a Matemática, por exemplo, existem duas formas de se escrever o número "um": ou o escrevemos a partir da grafia 1, ou o escrevemos a partir da grafia 0,9999... (número infinito). Ora, não se trata de uma invenção, mas de uma afirmativa facilmente comprovável. Suponhamos que tenhamos (x = 0,9999...), agora, multipliquemos os dois membros da igualdade por 10. Logo, cada membro será dez vezes maior, isto é, (10x = 9,999...). Depois dessa multiplicação, façamos a subtração do segundo pelo primeiro ; veremos que o resultado é (9x = 9). Deste modo, x = 9 dividido por 9, logo, x=1. O que permite dizermos que (1= 0,999...).
Pois bem, suponhamos que tenhamos o número 0,999... correspondente ao objeto assassinado e o número 1 ao traço unário. É imprescindível observar que, ainda que possamos, matematicamente, escrever o "um" com duas grafias, é sempre possível acrescermos um 9 (nove) décimos a mais ao objeto a, o que nos permite dizer que é executável a infinita adição de números noves a essa operação. Esse nove decimal representa um excesso que não se pode eliminar e que, ao mesmo tempo, jamais faz 1. Eis a introdução de um paradoxo matemático: como algo pode ser e não ser ao mesmo tempo, representado por uma igualdade? Veremos a exposição desse paradoxo na lição de 21 de março, do seminário A identificação. Notemos que esses nove décimos de excesso são ignorad os pelo traço unário, aqui equivalente a Deus.
[...] a fonte de toda fé, e da fé em Deus eminentemente, é bem o fato de nós nos deslocarmos dentro da própria dimensão daquilo que, embora o milagre do fato de que ele deva saber tudo lhe dê, em suma, toda sua subsistência, nos agimos como se sempre os nove décimos de nossas intenções fossem por ele ignorados, ele não sabia de dada disso. (Lacan, 1961-1962 - Lição de 21 de março de 1962)
E de onde, afinal, Lacan teria retirado es s e terceiro elemento, que aqui atribuímos ao objeto a? A resposta nos é dada diretamente pelo psicanalista: "Se nos leram até este ponto, sabem que o desejo, mais exatamente, apoia-se numa fantasia da qual pelo menos um pé está no Outro, e justamente o pé que importa, mesmo e sobretudo se vier a claudicar" (Lacan, 1966 [1998], p. 792). Logo, é a partir da explicitação de Lévi-Strauss, sobre o mito de Édipo, que Lacan retira o objeto a.
Como todos sabem, é, primeiramente, Lévi-Strauss (2003), no escrito Antropologia estrutural, quem confere maior ênfase à ideia de que toda a linhagem de Édipo teria os pés defeituosos. E mais, é ainda o antropólogo quem organiza a linhagem de Édipo em correlação com o sacrifício da esfinge e do dragão em seu quadro estrutural. Evidentemente, Lévi-Strauss teria tomado essas duas colunas conforme a relação algorítmica do significante (diferencial), o que também foi demonstrado pelo antropólogo ao algoritmizar as relações positivas e negativas de parentesco.
Todavia, o que ensejamos demonstrar é que, para além das relações algorítmicas (que continuamos a sustentar a partir das relações positivas e negativas de parentesco), a castração, nos anos 1960, permite dar um passo além da metáfora e da metonímia, de modo que o quadro estrutural de Lévi-Strauss possa ser reinterpretado. Assim, a castração representa não apenas a união da lei ao desejo puro (imolar a esfinge ou matar o dragão), mas também a extração do objeto a como causa do desejo (linhagem manca de Édipo), Afinal, "só existe causa para o que manca" (Lacan, 1964 [2008], p. 29).
Notemos que toda a linhagem de Édipo tem os pés defeituosos. Labdaco, pai de Laio, significa coxo ; Laio, pai de Édipo, remete ao significado de torto e, por fim, Édipo refere-se ao pé inchado. É mesmo da transmissão desse objeto torto, ou seja, da transmissão do paradoxo matemático, que o pai mantém sua função. Por isso, "o pai, o Nome-do-Pai, sustenta a estrutura do desejo com a da lei - mas a herança do pai é [...] seu pecado" (Lacan, 1964 [2008], p. 41).
Assim, a causa do desejo, para a Psicanálise, deve portar a marca de um acaso, o que se explicita muito bem a partir do paradoxo matemático. Lembremos que o paradoxo é dado no desenvolvimento da própria cadeia significante, não sendo uma espécie de reservatório que marcaria a negatividade em relação à cadeia. Ele surge do próprio discurso concreto, como seu tropeço. Nisso consiste toda a ênfase dada por Lacan ao tentar distinguir a causa do desejo de uma simples reminiscência da verdade trazida pelo desejo puro, ou seja, como se a causa do desejo estivesse a priori e dependesse de um vaso para que, assim, viesse à condição de causar. Eis que encontramos uma mudança fundamental sobre a concepção de causa do desejo na passagem do "in-mundo" ao tropeço da estrutura.
Assim sendo, Lacan ressignifica a causa da Psicanálise a partir do objeto a, de modo que não se trata de inserir a dimensão de um não saber momentâneo - hipótese sempre presente na relação dos discursos com o transcendente negativo, como se no futuro pudesse vir a ser desvelado -, mas de incluir o próprio inacabamento do saber. A extração do objeto a permite que postulemos uma espécie de impossibilidade lógica a todo e qualquer saber, ainda que a promessa de um saber futuro seja sustent ada, em certa medida, pelo gozo fálico. Afinal, conforme descrevemos a pouco, trata-se de um Deus que nada sabe dos nove décimos. Eis que o verdadeiro impossível deve ser dado pelo objeto a, esse objeto que sustenta, em si mesmo, a marca de um excesso inapreensível ao saber: "Cada vez que falamos de causa, há sempre algo de anticonceitual, de indefinido" (Lacan, 1964 [2008], p. 29).
Referências
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Endereço para correspondência
André Fernando Gil Alcon Cabral
E-mail: cabral.afga@gmail.com
*Doutorando em Psicologia com ênfase em Estudos Psicanalíticos pelo programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Mestre em Psicologia pela UFMG. Especialista em Teoria Psicanalítica e em Temas Filosóficos pela UFMG. Graduado em Psicologia pelo Centro Universitário Newton Paiva.