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Desidades
versão On-line ISSN 2318-9282
Desidades vol.12 Rio de Janeiro set. 2016
ESPAÇO ABERTO
Infância e cinema
Infancia y Cine
Entrevista de Conceição SeixasI com Sandra KogutII
I Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.
II Cineasta, documentarista e roteirista.
Palavras-chave: infância, cinema brasileiro, representações da infância, Mutum, Campo Grande.
Palabras clave: infancia, cine brasileño, representaciones de la infancia, Mutum, Campo Grande.
Conceição Seixas – Nos conte um pouco sobre a sua trajetória de vida e de que forma essa temática da infância entrou na sua produção audiovisual.
Sandra Kogut – É engraçado, eu nunca achei que fosse falar da infância, fazer filmes sobre a infância, porque a minha lembrança da infância não é assim um paraíso perdido, como é pra muita gente. Para mim a infância é uma época um pouco sombria, tenho lembranças que não são tão felizes. Eu não romantizo a infância. Tive uma infância feliz, uma família feliz, não aconteceu nada de excepcional na minha história, mas a situação de você ser criança e ter que pedir permissão para tudo é uma realidade muito dura na infância.
E aí, eu li o Miguilim , o Campo Geral, há muitos anos, e me emocionei muito com este livro, fiquei encantada! Claro que você pode gostar de um livro e não necessariamente achar que vai dar um filme. Mas o que está dito ali, a infância no sentido de ser um período pré-verbal, de se perceber o mundo pelos sentidos e não tanto pelo raciocínio lógico é uma coisa muito forte pra mim. Eu tenho lembranças muito poderosas da infância, dessa maneira de estar no mundo. Achei que a história era sobre esta questão e o cinema é uma ferramenta maravilhosa para falar, para expressar isto.
O que eu não gosto da infância é a "etiqueta infância", quando se falam coisas do tipo "o mundo infantil", e tudo que está associado à infância em termos de consumo de produtos. Esse mundo é um pesadelo. Mas compreender as emoções é uma coisa que me toca muito.
Percebi que, antes de fazer Mutum, eu fazia filmes sempre com muitos velhos. Eu me interesso por essas pessoas que de alguma maneira estão à margem, é um olhar privilegiado, em que você também é observador: você está trabalhando, mas também observa de onde você está. Então, para mim, eu não estava fazendo o filme sobre a infância.
Quando Mutum ficou pronto, me lembro de um debate com o Thiago , que é o menino protagonista, e alguém perguntou: "Você acha que isto é um filme para crianças"? E ele respondeu: "Eu acho que é um filme para adultos, visto por crianças". Na verdade, o filme Mutum não está se relacionando com o estereótipo da criança. É uma sutileza, uma coisa sensorial, em que você vê a criança representada. A minha maneira de trabalhar com crianças não é muito diferente da minha maneira de trabalhar com adultos. Talvez seja até mais fácil, pois uma coisa que é maravilhosa na infância é que as emoções são muito cruas. Crianças são muito estado bruto, passam muito rapidamente do tudo ao nada. Para mim isso é o motor do trabalho cinema, trabalhar essas emoções.
Conceição Seixas – Embora você não tenha tecido o seu objeto inicialmente, "vou tratar da infância", isto acontece a partir de alguma razão, a leitura do livro. Mas tanto em Mutum quanto em Campo Grande, a infância é retratada de forma pungente. As crianças personagens desses filmes e a infância vivida por elas vão um pouco na contramão de uma visão idealizada e romântica de infância, aquela ligada ao consumismo a que nem toda criança tem acesso, que vai à escola, que não precisa trabalhar. Então eu queria que você falasse sobre a escolha por trabalhar com essas crianças e também sobre a infância que você retratou desses personagens, que é tão diferente de uma ideia normativa de infância.
Sandra Kogut – Essas crianças não têm aquela infância "acolchoada", são crianças que muito cedo na vida já estão lidando com questões que para outras crianças vão aparecer bem mais tarde. Eles têm uma consciência muito grande do sentido da responsabilidade e isso foi muito importante para o trabalho. Na verdade, o ambiente onde as histórias se passam, tanto num filme quanto no outro, me interessa muito. Essas crianças que estão mais jogadas no mundo me comovem muito, mas o grande motor que está por trás de tudo são as relações humanas que atravessam as classes sociais. Essa percepção de infância não é ligada somente à questão de classe social. Eu não acho que uma criança que tenha mais brinquedo não possa ter as questões existenciais que tem o Thiago, naquela família com poucos recursos. Na verdade, o que me guia é a questão humana e das relações. Então é por isso até que eu, que sou uma pessoa urbana, me senti em casa fazendo o filme Mutum, porque no fundo eu entendia o que aquele menino estava sentindo naquelas situações. Eu conseguia me colocar no lugar dele. No filme Campo Grande foi a mesma coisa: eu não fui abandonada, não vim do subúrbio, mas eu consigo entender aquele lugar no mundo, como eles se sentem, e por isso consigo fazer um filme sobre isso. Para fazer um filme eu preciso me sentir emocionalmente em casa, dentro dele.
Conceição Seixas – Na faixa de comentários de Mutum, eu achei tocante, comovente, quando você diz que é como se você conhecesse aquele menino, o Thiago, como se ele representasse uma simbologia da infância. Então você acrescenta que mesmo tendo vivido numa cidade grande, e uma infância diferente, há algo familiar na forma de ele estar no mundo.
Sandra Kogut – Sabe o que é essencialmente isso? É a sensação de inadaptação, de inadequação que esse menino tem. Ele está ali, mas também está sonhando com alguma coisa que ele não conhece, com o que tem depois das montanhas... ele não se sente completamente em casa ali. Isso é interessante! Eu me lembro de quando estava mixando esse filme, na França, e o mixador francês – que tinha visto o meu filme anterior chamado Um passaporte húngaro (em que eu tento virar húngara) – disse "Ah, tem tudo a ver você fazer esse filme, porque é sobre ser estrangeiro". Esse menino, ele se sente estrangeiro em casa e é por isso que eu digo que tem uma questão existencial na vida que é um laço comum entre todas as pessoas.
Conceição Seixas – Você acredita então que haveria uma especificidade, a questão existencial, que ligaria esses personagens, independente do contexto social, geográfico? Por exemplo, Mutum é filmado no sertão, retratando uma infância da zona rural, Campo Grande é filmado no Rio de Janeiro, portanto uma infância no meio urbano, uma grande metrópole. Que distâncias e relações você percebe entre esses personagens, essas crianças?
Sandra Kogut – Eu não quis dizer que o lugar, o contexto social, a geografia não são importantes. Tudo isso é muito importante. Mas os personagens não são tipos, não é uma ilustração. O motor é o fator humano e, claro, como isso se dá naquele lugar, naquele contexto. Por exemplo, a ideia para o filme Campo Grande eu comecei a ter quando estava fazendo Mutum, que tem uma cena em que a mãe dá o filho, uma cena que veio do livro. Eu achava que era um tipo de história que eu conhecia, pois a gente ouve muito falar nisso. Só que, na hora em que fui fazer o filme, percebi como aquilo era complexo, difícil de fazer. Como era difícil me colocar no lugar de cada um, pois quando a mãe dá um filho, isso é um gesto de amor, não é um abandono. Ela acha que está dando para o filho ter a chance de uma vida melhor. Então, fiquei com isso na cabeça e quando acabou Mutum eu só pensava nisso, no que acontecia com as crianças depois da doação. Daí comecei a fazer uma pesquisa, fui a muitos abrigos, conheci muitas histórias e foi daí que nasceu Campo Grande.
Conceição Seixas – Em Campo Grande essa questão é muito forte. A mãe dá o filho por causa das dificuldades que eles estão passando, o pai já tinha saído de casa. A mãe deixa os filhos numa casa em Ipanema.
Sandra Kogut – Durante as pesquisas que fiz nos abrigos, eu achava muito emocionante as histórias de como os filhos sempre viam uma justificativa para os pais. A gente sempre ouve falar do amor incondicional dos pais pelos filhos, mas o que vi nessas histórias foi o amor incondicional dos filhos pelas mães: “a minha mãe vai voltar", "Ela é muito ocupada", "Ela não estava podendo"... É interessante que as pessoas muitas vezes julgam facilmente uma situação como essa, e eu não queria julgar, queria falar da complexidade disso.
No caso de Campo Grande a gente poderia dizer que ela (a mãe) abandonou os filhos. Mas ela pensa muitas coisas, deixa os filhos em um lugar que ela acredita poder buscar depois, onde eles vão estar protegidos, pois tem muitas lembranças daquele lugar, da infância dela, de quando a mãe dela trabalhava ali. É uma relação bastante complexa.
Conceição Seixas – Voltando um pouco a essa ideia das motivações de ter feito Mutum, como se esse personagem (Thiago) lembrasse algo familiar, a forma de ele estar no mundo, a escolha de retratar a infância na sua produção audiovisual teria a ver com sua vida, uma causa, uma ideologia?
Sandra Kogut – Eu me identifico com esses personagens; eu também era uma criança um pouco inadaptada. A minha família, os meus avós imigraram para o Brasil, eu estudava em uma escola francesa, tive uma educação um pouco estrangeira. Então, desde criança eu tinha consciência da diferença. Acho que isso, aliado à sensação de a infância ser um lugar muito nebuloso, sem que saibamos exatamente o que é certo, o que é errado, quando é preciso lutar muito por suas questões, isso tudo sempre me colocou muito perto desse menino.
Tem ainda a questão da miopia, que é um símbolo perfeito da infância, pois quando se é míope (eu sou míope) se vê muito bem de perto, mas de longe é fora de foco, é uma névoa. E a infância é bem assim, o quarto é o mundo inteiro, é gigante, e a partir dali, o que está além é nebuloso. É assim fisicamente, espacialmente, e também nas questões. Por exemplo, você pode levar uma bronca terrível porque derramou um copo e ao mesmo tempo o seu pai achar graça porque um amigo bateu com o carro. É difícil entender o certo e o errado. Tudo isso me interessa muito e me fez me sentir muito dentro dessa história. Campo Grande é uma evolução disto.
Conceição Seixas – Você comentou que durante as gravações do filme Mutum não fazia muita distinção entre crianças e adultos e até recomendava à equipe para não tratar as crianças de forma diferenciada, com mimos. Disse também que ficava impressionada com a disposição do ator, o Thiago (que tem o mesmo nome do personagem), quando todos já demonstravam cansaço, no final do dia. Quando perguntado sobre essa disposição ele disse que estava acostumado a trabalhar, pois assim o fazia desde que era criança. O que será que ele quis dizer com a frase "desde que eu era criança"?
Sandra Kogut – Eu me lembro que falei com ele: "Você ainda é criança, só tem dez anos"! Essa história mostra que ele já estava no mundo que exigia responsabilidade, exigia deveres, que é o que, em geral, se associa ao mundo dos adultos. Então, ele já não se via mais como criança. Isso é muito comovente, porque quando escrevi o Thiago, procurava um menino que fosse muito próximo desse personagem, que tivesse muita coisa em comum com ele, que pudesse se reconhecer naquele personagem. Não que ele tivesse consciência, ele não leu o roteiro, ele não sabia o que ia acontecer, não olhou o personagem de fora e analisou. Mas à medida que as cenas iam acontecendo ele se reconhecia ali, ele entendia aquilo "por dentro". Este personagem luta muito com a questão sobre o que é ser adulto, se quer crescer ou não e, numa vida dura, na qual já tem muitas tarefas e responsabilidades, não se sente muito à altura, pois, quando se é criança, você ainda não sabe fazer as coisas direito, você pode sentir que não está conseguindo as coisas. O Thiago se sente assim, um pouco fracassado.
Conceição Seixas – Na filmografia brasileira e estrangeira temos observado personagens e enredos que retratam a infância em toda a sua diversidade e complexidade. Infância refugiada, infância que conviveu muito com a ditadura... Gostaria que você comentasse sobre o papel do cinema em desvendar outras formas de olhar a infância.
Sandra Kogut – Eu acho que o papel do cinema é desvendar outras formas de olhar. A infância é um momento muito rico e muito cinematográfico, por não ser um período tão verbal. Muitas coisas são percebidas pela sensação, pelo cheiro, pela luz, pelo som... Se percebe mais do que se entende. Acho que o cinema é sempre um olhar. Quando você faz um filme, você está dizendo assim: "Eu fulano, neste momento, sobre este assunto, esta história, vi assim". É por isto que se assina um filme, não é apenas a vaidade, é para dizer que este foi o seu olhar. É uma questão de responsabilidade. Provavelmente, daqui a cinco anos, eu faria diferente. E o cinema é a multiplicidade de olhares, está sempre lembrando que não existe uma verdade absoluta, mas a verdade de cada filme, que é do tamanho daquele filme e não faz dela menos importante ou menos poderosa. Esta consciência de que cada filme é um olhar e que, portanto, existem muitos olhares, é algo muito importante na vida.
Conceição Seixas – Você falou que as crianças têm essa coisa mais crua, espontânea. Você acha que a infância é uma via privilegiada de produção audiovisual?
Sandra Kogut – O cinema está lidando com a representação. O que eu procuro é algo que transcenda aquele ritual. Por exemplo, estou dando essa entrevista. Se eu estiver me ouvindo falar, vai ter uma artificialidade, um cálculo meu em relação à minha persona social que provavelmente tornaria esta entrevista meio chata. Quando você está fazendo um filme, está todo o tempo procurando se afastar disso, mas ao mesmo tempo ali tem um circo armado. Então, como você vai fazer para que aquilo ali seja tão verdadeiro e tão importante para quem está ali, vivendo aquelas cenas, para que aquilo ali ganhe desse circo? Isso porque o cinema que me interessa é aquele que conversa, que se relaciona com a vida. Tem gente que faz cinema, que conversa e se relaciona com o cinema. Eu procuro e me emociono com uma coisa que vai além do que é o cinema, com algo que chega perto da vida.
É claro que tem coisas que trazem uma verdade muito grande para o que você está fazendo. Se você tem um bicho em uma cena, ali tem uma força da natureza, tem um limite do que aquilo pode ter sido planejado. Eu procuro isto com tudo, adultos e crianças. Eu não trabalho com ator mirim, tenho horror a isso. Mas as crianças, e em geral pessoas que nunca fizeram aquilo – não atores, crianças que nunca fizeram cinema, que não têm ainda uma construção da sua imagem – são muito ricas em termos do trabalho cinematográfico, pois estão sempre se relacionando mais com a vida do que com a situação de estar ali. No caso de crianças urbanas, Igor e Rayane , é muito diferente, eles têm Facebook. É diferente daquelas crianças que não sabiam nem o que era cinema, nunca tinham ido a um cinema. Então, fiz um trabalho muito intenso com o Igor e com a Rayane, para chegar neste lugar, e para isso não é preciso estar isolado do mundo, mas é preciso trabalhar. A criança tem uma coisa muito sedutora, que é trazer muito dessa verdade, da presença... O que eu procuro num filme é que eles estejam plenamente lá. Quando o que está acontecendo é importante para quem está vivendo aquilo, nem a luz na sua cara, nem a câmera, nada vai tirar aquilo que está acontecendo... E as crianças têm um potencial muito grande para isso.
Conceição Seixas – As crianças chegam a participar da construção dos seus roteiros?
Sandra Kogut – Ninguém, nem as crianças, nem os adultos leem o roteiro. Eu acho que eles só podem entrar em um momento bem preciso. Se eles lerem antes, vão olhar como se fosse uma história, começar analisar e isso cria uma distância muito grande. Mas não é improviso. Na hora de se fazerem as cenas, se trabalha muito a questão emocional. Nesses filmes, eu falava a cena para eles e na hora de filmar, lia as frases. Claro que não dava para decorar, eu pedia que fechassem os olhos... Então, quando eles falavam, saia de um outro lugar, do jeito deles. As falas saiam assim, condensadas entre o roteiro, o que era construído, e o que era a vivência daquilo ali.
Conceição Seixas – Mas havia mudanças no meio do caminho? Eles participavam dessas mudanças?
Sandra Kogut – Não, eles nunca participavam dessa carpintaria, eles estavam dentro da cena, não tinham esse olhar de fora. Nunca viram o monitor, nunca viram uma cena. Às vezes eu falava, incentivava, mas na cena, nunca em relação ao roteiro. O meu trabalho era levá-los para esse lugar, e não compartilhar as dúvidas, os problemas, as mudanças do roteiro.
Conceição Seixas – Você disse que não gosta de trabalhar com atores mirins. Como foi trabalhar com as crianças? Foi inspirador?
Sandra Kogut – Atores mirins têm muitos tiques, trejeitos. De todo modo, o trabalho com crianças não é fácil, mas é sempre muito inspirador. Muitas vezes eles me comoviam. Eu tinha muito respeito, admiração por eles. Em Mutum, eu chegava no set às 4:30 da manhã, cansada, com muitos problemas a resolver, mas quando olhava pra eles, me animava para ir em frente. O Igor, que está em muitas partes do filme, me emocionou muito!
Conceição Seixas – É impressionante pensar que eles nunca haviam atuado, pois passam muita verdade. E você, teve algum filme que a inspirou para fazer estes filmes?
Sandra Kogut – Olha, certamente fui e sou influenciada por muita gente. Há pessoas que rendem homenagem, que seguem a obra, mas eu, quando vou começar um filme novo, tento começar completamente em branco. Faço um exercício para entrar no filme o mais às cegas possível. É sempre um filme a se descobrir, não existe um método específico, uma praxe da produção. Sei que em mim há muitos filmes e diretores: o francês Maurice Pialat, que dirigiu “L’enfance nue”; um filme do diretor Robert Bresson, “Mouchette”; Jean Eustache, com o filme "Mes Petites Amoureuses"... Então, certamente, fui influenciada por muita coisa, mas não penso nisto quando estou trabalhando.
Conceição Seixas – Eu queria que você nos falasse um pouco da relação entre adultos e crianças, porque me pareceu que, nos seus filmes, não são relações de tutela, de cuidados, essas relações mais convencionais entre adultos e crianças.
Sandra Kogut – No caso do Mutum, há claramente o mundo dos adultos e o mundo das crianças. Há dois mundos, mas só percebemos o mundo dos adultos pelo olhar da criança. Tanto que há várias coisas que não entendemos bem. Por exemplo, será que ele (Thiago) é filho do tio, será que a mãe está tendo um caso com o tio? Temos pedaços de informação e só sabemos o que sabe esse menino, que é quase nada. Ele sente, mas também não sabe direito o que está acontecendo. Então, estamos nesse filme com ele, estamos colados no Thiago, vivemos tudo o que está acontecendo ali pelos olhos dele.
No caso de Campo Grande, é diferente, porque uma coisa que eu achava importante para contar aquela história é que não tivesse apenas um protagonista, um ponto de vista. Como eu estava interessada na complexidade daquelas relações, achava que tinha que entender o lado de todo mundo. Então o filme começa realmente com as crianças, mas aos poucos vai abraçando outros personagens: aquela mulher com quem no início se antipatiza, a Regina, aos poucos se vai entendê-la melhor, entender a filha (Lila), até entender o lado da mãe das crianças. É um filme que exige do espectador, pois não simplifica a história em um protagonista, mas vai mudando de lugar, fugindo da regra de roteiros cinematográficos. É arriscado, mas eu achei importante para contar essa história e assim apresentar bem essa diferença entre o mundo das crianças e o dos adultos. No Campo Grande acontece uma coisa bem distinta, pois o menino e a mulher (os personagens Igor e Regina) são muito diferentes: ele é menino, ela, mulher; ele criança, ela, adulta; ele não tem dinheiro, ela tem. Só que, à medida que a história vai andando, eles vão vendo – e o espectador também – que estão iguais na vida, vivendo a mesma situação, e assim cria-se um laço entre eles.
Conceição Seixas – Ela (Regina) também, de certa forma, está vivendo um abandono, uma separação de vínculos com a filha.
Sandra Kogut – Ambos estão vivendo um momento de incertezas, de mudanças, uma coisa meio brutal. Aqueles momentos em que não somos mais o que éramos, mas ainda não viramos outra coisa.
Conceição Seixas – É tão marcante aquela cena quando, diante de tanta dificuldade, sem saber o que fazer com aquelas crianças (Igor e Rayane), naquela tensão, a filha (Lila) diz para a mãe (Regina): "Você não sabe cuidar de ninguém".
Sandra Kogut – Exatamente! Ela (Regina) resolve ir a Campo Grande, o bairro de origem das crianças. Quando ela toma aquela atitude, é uma chamada, as crianças acabam trazendo à tona as questões da família.
Conceição Seixas – Eu compreendi e estou de acordo, quando você diz que não necessariamente o recorte de classes é um marcador de diferença significativo para as relações interpessoais. Na questão do cuidado, na relação adulto-crianças, o compromisso geracional dos adultos com as crianças, na nossa cultura, não é reproduzido em todos os contextos, pois não são todas as mães que precisam dar os seus filhos, o que não significa dizer que não se abandonem os filhos mesmo estando em classes abastadas, no sentido emocional. Mas na situação do filme há um recorte de classe. Então, eu queria que você nos falasse um pouco sobre como você vê estas relações convencionais de cuidado, a própria tutela entre adultos e crianças. Nos seus filmes isto aparece um pouco diferente, pois você mostra adultos que precisam dar os filhos, dadas as contingências do momento.
Sandra Kogut – Pessoalmente, não consigo imaginar isto. Se ficar alguns dias longe dos meus filhos, eu sofro, não consigo ficar longe deles. Mas não posso julgar essas mães que de alguma forma tiveram que se separar dos seus filhos, pois nessas histórias existem muitas camadas, e ali também tem um gesto de amor. A mãe do filme Mutum sofreu muito pra dar o filho. Ela acha que ele vai morar na cidade, que vai ter óculos, que a vida dele vai ser melhor. Ela mente para ajudá-lo a encarar melhor a situação. Ela diz "Um dia todo mundo se encontra, no fim do ano a gente vai também", e aquilo é um gesto de amor. No caso de Campo Grande, é mais complicado, a mãe é muito nova, já tem dois filhos e está grávida, perde a própria mãe que era um porto seguro, então o que ela vai fazer com as crianças? Ela está numa situação de desespero, mas ela não rejeita os filhos. Com o pouco de opções que tem, ela está tentando dar alguma coisa para eles. Isso eu acho tão impressionante, uma situação tão rica do ponto de vista humano, social, emocional! É o que me faz ter vontade de olhar pra ela, não para julgar, mas para entender os sentimentos.
Conceição Seixas – Os personagens crianças, ao mesmo tempo que têm uma relação difícil com alguns adultos, constroem uma relação de cumplicidade entre eles. Felipe e Thiago, Igor e Rayane fazem promessas uns para os outros, se fortalecem juntos, contam um com o outro. Eu gostaria que você comentasse essas relações entre as crianças.
Sandra Kogut – A fratria é uma relação que não tem igual em termos de conexões, de intimidades, tudo tão absoluto para a vida toda. São relações bem diferentes até de um amigo, de um parente adulto. É alguém que está no mesmo lugar que você, que dividiu com você as coisas mais profundas da vida. E isso é para sempre. A relação deles é linda por isto. Quando Igor deixa a Rayane no abrigo e vai à luta, ele está sempre pensando nela, ele fez a promessa de achar a mãe, está imbuído disto. Quando eu estava trabalhando com os atores, gostava muito de falar além do texto, o subtexto, não do que estão falando, mas do que estão pensando... Muitas vezes existe uma distância grande entre o que estamos falando e o que estamos pensando. Isso me interessa muito.
Conceição Seixas – É uma relação entre pares...
Sandra Kogut – Eles estão colados, os irmãos têm uma coisa que vai além da amizade, uma união muito profunda.
Conceição Seixas – Essa relação entre pares, das crianças entre si, isto se contrapõe à relação das crianças com os adultos.
Sandra Kogut – As crianças estão no mundo delas, e entre elas e o mundo dos adultos há um muro, não tem jeito.
Conceição Seixas – Você tem outros projetos de produzir filmes sobre infância?
Sandra Kogut – Neste momento, estou desenvolvendo alguns projetos, mas outras coisas. Há até um filme em que estou trabalhando, que é adaptado de um conto e se passa na Cisjordânia, e envolve a venda de um bebê. Ou seja, não tem criança, mas tem a relação da maternidade. Então eu diria que esse projeto ainda tem alguma relação com a temática da infância.
Conceição Seixas – Uma última questão, teve alguma situação da vida real que te inspirou nesses filmes?
Sandra Kogut – Sempre tem, mas na verdade a gente nunca sabe o que exatamente vai nos inspirar. Os filmes são trabalhos árduos, então é preciso ficar obcecado por eles para encarar todos os desafios da produção. Quando olho retrospectivamente, sempre encontro uma lógica, mas não necessariamente algo que me tocou muito vai virar um filme.
Conceição Seixas – Eu te agradeço muito pela entrevista. Você quer comentar algo mais, fique à vontade. Eu quero dizer que me emocionei muito com os seus filmes, com a cena dos óculos (o personagem Thiago, que já havia sido diagnosticado com miopia, ao deixar sua família para ir morar com o médico – para quem sua mãe o deu –, pede os óculos do médico para ver o lugar pela última vez). Eu confesso que chorei mesmo neste momento do filme.
Sandra Kogut – A conversa foi ótima, eu agradeço a oportunidade. Estou à disposição para outras questões. Realmente são histórias emocionantes, eu chorei também quando li o livro.
1 Manuelzão e Miguilim, de Guimarães Rosa; livro dividido em duas histórias: Campo Geral e Uma Estória de Amor.
2 Nome do ator e do personagem principal criança que ele interpreta no filme Mutum.
3 Nome dos atores e também dos personagens principais crianças do filme Campo Grande.
4 Nome do ator e do personagem criança que ele interpreta no filme Mutum.
I Doutora em Psicologia, professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), pesquisadora do Nipiac – Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa e Intercâmbio para a Infância e Adolescência Contemporâneas, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil. E-mail: conceicaofseixas@gmail.com
II Cineasta, documentarista e roteirista. Dirigiu vídeos, videoclipes, documentários, curtas e longas-metragens, entre os quais têm destaque Um passaporte húngaro (2001), Mutum (2007) e Campo Grande (2016). E-mail: sandra.kogut@gmail.com