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Desidades

versão On-line ISSN 2318-9282

Desidades  no.25 Rio de Janeiro out./dez. 2019

 

TEMAS EM DESTAQUE

 

É um bebê! Olhares das Ciências Sociais sobre os primeiros anos de vida

 

It’s a baby! Social Science perspectives on early childhood

 

¡Es un bebé! Miradas de las Ciencias Sociales a los primeros años de vida

 

 

Pablo De GrandeI III; Carolina RemoriniII III

I Universidad del Salvador, Argentina.

II Faculdad de Ciencias Naturales y Museo, Universidad Nacional de La Plata, Argentina.

III Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (CONICET), Argentina.

 

 


RESUMO

A presença dos bebês na pesquisa social foi tardia e continua sendo marginal. A sua incorporação seguiu lógicas vinculadas aos atores, aos saberes, aos sentidos e às práticas que por ela ganharam visibilidade. Neste artigo, reconhecemos duas aproximações que emergiram da preocupação por problematizar a primeira infância e os bebês e que transcendem os limites disciplinares: o enfoque antecipatório e o enfoque vivencial. No primeiro, o olhar sobre os bebês está posto no seu futuro, no segundo, no seu presente. Descrevem-se ambos os enfoques, dando conta do seu objeto e alcance, das perspectivas e práticas disciplinares das quais se nutrem, dos âmbitos e dos atores envolvidos. Refletimos sobre os seus contrastes e pontos de articulação, as suas contribuições e limitações, em prol da construção de um campo interdisciplinar que abranja a diversidade, a complexidade e o caráter histórico-cultural das vidas dos bebês.

Palavras-chave: bebês, ciências sociais, abordagens disciplinares.


ABSTRACT

The presence of babies in social research has come late and continues to be marginal. Its incorporation has followed logics linked to the actors, knowledge, senses and practices that by it gained visibility. In this article we recognize two approaches that emerged from the concern to problematize early childhood and babies and that transcend disciplinary boundaries: the anticipatory approach and the experiential approach. In the first, the look on babies is set in their future, in the second, in their present. Both approaches are described, giving account of their subject and scope, the disciplinary perspectives and practices from which they are nurtured, the areas and actors involved. We reflect on their contrasts and points of articulation, their contributions and limitations, in pursuit of the construction of an interdisciplinary field that accounts for the diversity, complexity and historical-cultural nature of babies' lives.

Keywords: babies, social sciences, disciplinary approaches.


RESUMEN

La presencia de los bebés en la investigación social ha sido tardía y continúa siendo marginal. Su incorporación ha seguido lógicas vinculadas a los actores, saberes, sentidos y prácticas que por ella ganaron visibilidad. En este artículo reconocemos dos aproximaciones que emergieron de la preocupación por problematizar la primera infancia y los bebés y que trascienden los límites disciplinares: el enfoque anticipatorio y el enfoque vivencial. En el primero la mirada sobre los bebés está puesta en su futuro, en el segundo, en su presente. Se describen ambos enfoques, dando cuenta de su objeto y alcance, las perspectivas y prácticas disciplinares de las que se nutren, los ámbitos y actores involucrados. Reflexionamos sobre sus contrastes y puntos de articulación, sus aportes y limitaciones, en pos de la construcción de un campo interdisciplinario que dé cuenta de la diversidad, complejidad y del carácter histórico-cultural de las vidas de los bebés.

Palabras-clave: bebés, ciencias sociales, abordajes disciplinares.


 

 

Apresentação1

Guaguas, bebê, bambino, babies, bébé, mitã pytã, pichike che, ‘o’ o,… diferentes formas de denominar que implicam uma diversidade de crenças, práticas, valores e sentimentos com relação aos bebês. Por que as pessoas têm bebês? Os bebês são pessoas? Como um recém nascido da espécie humana se torna um “bebê”? São seres racionais? Os bebês têm cultura? Eles são seres passivos ou ativos? Eles são uma tábula rasa? Por que precisam  de cuidados especiais? Estas são algumas perguntas que têm sido formuladas acerca desse sujeito peculiar e universal e, paradoxalmente, ainda tão pouco compreendido pelas Ciências Sociais e pelas Humanidades.

Embora nas últimas décadas a produção acadêmica em torno da infância e das crianças tenha crescido de manera consistente, cabe recordar, seguindo Gottlieb (2009) e Tebet e Abramowicz (2018), que o fato de enfocar a infância nem sempre significou para as Ciências Sociais ter os bebês como foco. Assim, Tebet e Abramowicz (2018, p. 295) se perguntam: “Um bebê é uma criança?” Com essa pergunta, as autoras colocam um debate lícito e necessário: é possível incluir os bebês nos estudos sociológicos e antropológicos sobre a infância? O que foi produzido até agora nestes e em outros campos disciplinares acerca da vida social dos bebês? São adequados e suficientes os enfoques, as metodologias e as técnicas desses campos para dar conta da especificidade das experiências dos bebês?

Neste artigo, refletimos sobre o modo como a preocupação por problematizar os bebês se desdobrou ao longo do século XX em duas grandes perspectivas de pesquisa, a partir de uma seleção bibliográfica que busca dar conta dos desenvolvimentos disciplinares e interdisciplinares. A reunião desta produção sob duas perspectivas – aqui chamadas enfoque antecipatório e enfoque vivencial – se orienta por perguntas como: “sobre quais bebês foi construída a maior parte da produção científica sobre a primeira infância?”, “sobre quais evidências empíricas definimos o status e os atributos dos bebês e as formas pelas quais nos relacionamos com eles?”

Por um lado, diante de uma ausência de conhecimento sistemático, desde o final do século XIX é possível observar a multiplicação de materiais médicos, psicológicos e jurídicos que procuraram identificar formas ótimas de cuidado e de reconhecimento da “natureza” das crianças. Esses trabalhos se enquadram no enfoque antecipatório (Qvortrup, 2009), no qual os bebês são valorados pelo seu potencial desenvolvimento futuro, e as ações relevantes pesam no sentido de moldar de forma vigorosa esse porvir. O que ocorre na primeira infância é importante pelas suas consequências nas demais etapas do curso vital e no desenvolvimento de uma sociedade, isto é, enquanto capital humano.

Por outro lado, a partir de 1980-90, podemos constatar o surgimento de um segundo olhar acadêmico sobre os bebês, que não tem como preocupação central o seu desenvolvimento e a sua saúde nem o impacto nos níveis de morbi-mortalidade de uma sociedade, mas está interessado em abranger as realidades e os conflitos dos bebês na trama cotidiana, entre as famílias, as comunidades e as instituições. Essas pesquisas, as quais chamaremos de enfoque vivencial, constituem uma produção acadêmica orientada a compreender como as pessoas e os seus entornos sociais desenvolvem a suas estratégias de vida, na qual os bebês são considerados atores nesses contextos culturais complexos. Deste modo, os bebês interessam “em tempo presente”.

Consideramos que essa taxonomia permite organizar e classificar pesquisas transcendendo os limites disciplinares, reconhecendo convergências e diferenças entre elas. Uma forma de contrastar as duas perspectivas propostas neste texto é retomar a distinção introduzida tanto por Uprichard (2008) quanto por Qvortrup (2009) entre being e becoming: os bebês como adultos em construção (becomings) e os bebês como seres capazes, que se envolvem ativamente em compartilhar e construir significados culturais enquanto participam do seu próprio processo de desenvolvimento (beings). Essa distinção é particularmente relevante em todos os cenários nos quais o interesse e o respeito por um bebê “em tempo presente” podem ser opostos a ações baseadas em ideias de desenvolvimento e de futuro promovidas como desejáveis, que partam particularmente da comunidade médica, do Estado ou de qualquer instituição da sociedade civil (Qvortrup, 2009).

Nas seções seguintes, caracterizamos ambas as perspectivas e, no final, refletimos sobre os principais contrastes quanto às origens, aos objetivos, ao alcance e aos quadros teórico-epistemológicos de cada uma, entre outros aspectos (Figura 1), bem como sobre os seus pontos de articulação. Não se trata de produzir uma leitura valorativa nem simplista, já que ambos os conjuntos reúnem estudos diversos, cujo alcance é difícil de ponderar neste espaço, mas de mostrar a necessidade de considerar a suas contribuições e limitações, os possíveis diálogos, no sentido de avançar em direção a abordagens mais compreensivas dos bebês e da sua vida social.

 

Figura 1. Síntese das principais características do enfoque antecipatório e do enfoque vivencial de pesquisa sobre primeira infância.

 

Enfoque antecipatório

Enfoque vivencial

Alcance

Universalista

Relativista

Fundamento

Biológica

Cultural

Disciplinas

Pediatria, Puericultura, Psicologia

Antropologia, História, Sociologia

Início

1880

1980-90

Quadro teórico

Positivismo

Interpretativo - Construtivismo

Métodos

Experimental, Correlacional

Observacional, Hermenêutico

Âmbito

Laboratório

Natural

Sujeitos 

Amostra controlada

Comunidades

Temporalidade

Futuro

Presente

Bem-estar

Objetivo

Subjetivo

Fonte: elaboração própria com base em levantamento bibliográfico.

 

Bebês em tempo futuro: o enfoque antecipatório

A primeira dessas aproximações se organiza em grande medida a partir de uma concepção dos bebês como projeto, como futuro, como seres a “proteger”, “modelar” e/ou “domesticar”2. O conhecimento produzido procura fórmulas universalistas (válidas para todo bebê humano), e as disciplinas que contribuíram principalmente para esta linha foram a pediatria, a puericultura e a psicologia.

A construção da primeira infância como objeto científico coincide com a vontade de regular e de administrar as dinâmicas demográficas das populações governadas, o que acarretou diferentes estratégias para assegurar a sobrevivência, a saúde e a força física dos bebês, entendendo-os como os homens do amanhã, e ao mesmo tempo, como os cimentos sobre os quais se constrói a sociedade (Foucault, 2006). Essas ideias podem ser reconhecidas tanto em pesquisas quanto em produções de divulgação de caráter médico, psicológico, educativo e jurídico, que começam a ganhar volume a partir do final do século XIX e chegam até os nossos dias (Nari, 2004; Costa et al., 2006).

Com uma lógica de maximização econômica, o controle dos perigos que pudessem dizimar as populações ou prejudicar o seu bem-estar entrou, assim, nos horizontes das incumbências estatais, dando base ao surgimento dos sistemas nacionais de saúde e de educação em boa parte das nações de todo o Ocidente ao longo dos séculos XIX e XX. As ações, nesse sentido, confluíram na emergência de profissões e instituições, na criação de hospitais e na expansão de medidas sanitárias como campanhas de imunização, controles periódicos de saúde, “educação para a saúde”, entre outros. Com base nessas evidências, e ecoando a corrente higienista, diversas políticas de governo se orientaram a modificar as condições de vida,  especialmente nos centros urbanos e nos seus setores mais empobrecidos (Armus, 2007). O higienismo propôs a necessidade de intervir mediante o planejamento urbano e da saúde pública nos fatores sócio-residenciais e culturais que viriam a reduzir as taxas de mortalidade e morbidade das populações (Nari, 2004; de Paz Trueba, 2019).

Nesse contexto, a pediatria, como especialidade em processo de construção, informa fundamentalmente sobre o funcionamento fisiológico, as necessidades nutricionais, os ritmos “normais” de crescimento e as patologias que possam comprometer esses fatores (Lima, 2012; Colangelo, 2012). A puericultura, como disciplina de aplicação derivada, tomará esses dados e parâmetros para orientar e/ou sancionar formas de criação e de cuidado dos bebês em consonância, igualmente, com os estudos no campo da psicologia (Bonilha, 2004). Esta última enfocou os bebês e a primeira infância a partir de perspectivas muito diferentes, as quais, com independência da diversidade de enfoques e de metodologias, confluem na construção de classificações de formas “normais” e “saudáveis” de interação entre bebês e adultos, por oposição a outras “patológicas” e/ou potencialmente “prejudiciais” para o desenvolvimento (Lancy, 1996; Bonnet, 1996, 2003; Lima, 2012; Otto; Keller, 2014; LeVine; New, 2008).

De mãos dadas com  as disciplinas emergentes mencionadas, registra-se uma ressignificação, sob diretrizes médicas, dos modos pelos quais as crianças deviam ser atendidas e criadas durante a infância (Colangelo, 2004). Essa perspectiva acerca dos bebês e do seu cuidado se orienta principalmente à sua proteção frente aos riscos que acarretariam as crenças populares e tradicionais do cuidado (Rustoyburu, 2019). Associado a isso, reconhece-se um conjunto de deslocamentos nos arranjos familiares e comunitários com os quais os bebês são introduzidos ao mundo.

Através de regulações e intervenções em diferentes níveis, foi propiciada a desvalorização – em certos casos por meio de proibições e obrigações diretas – de muitos papéis e práticas bem consolidadas. De maneira muito sucinta, pode-se dizer que essa transformação implicou na generalização de um modelo apoiado na centralização das tarefas de cuidado dos bebês e das crianças pelas mães e pelos sistemas estatais de educação e de saúde. As amas de leite, os instrutores privados e informais e as diversas formas de medicina tradicional passaram a ocupar um lugar primeiro subsidiário e depois marginal, até praticamente desaparecerem em alguns lugares em menos de um século (Allemandi, 2012; Pereira, 2006; Soler, 2011).

Os saberes científicos que sustentavam essas regulações, assim como as pautas de criação que foram promovidas como modelos com base na pediatria, na saúde pública e nas revistas para pais, foram criticados por serem, em muitos casos, muito mais meros porta-vozes de valores eurocentrados da infância e da família do que evidência empírica bem fundada das necessidades e experiências dos bebês em diferentes sociedades ao redor do mundo (Henreich et al., 2010). Raramente os povos indígenas ou de comunidades camponesas mestiças latino-americanas ou de outras latitudes foram objeto de estudos de psicologia do desenvolvimento ou de outros campos de pesquisa afins (Rogoff, 2003). Nessas comunidades, de maneira geral, pelo menos no âmbito latino-americano, o foco esteve desde meados até o final do século XX na morbi-mortalidade e no manejo de epidemias e, pouco depois da década de 90, começou a se dar ênfase ao estudo de aspectos mais amplos relativos ao crescimento e ao desenvolvimento (Hirsch, 2015; Remorini, 2013b). Como exceção a essa tendência, cabe mencionar, por exemplo, o estudo de Bazelton, Robey e Collier (1969) sobre o desenvolvimento das crianças menores de um ano em comunidades maya zinancatecas, utilizando uma aproximação multi-metódica que combinou a experimentação com a observação etnográfica.

O escasso interesse por bebês e crianças para além dos âmbitos urbanos e dos setores médios, que se observa até alguns anos atrás na pesquisa médica e psicológica, contrasta com o interesse precoce da antropologia e de algumas vertentes da psicologia por estes bebês (LeVine; New, 2008).

De forma crescente, são registrados avanços na consideração do desenvolvimento infantil em contexto, questionando esses modelos universalistas e disciplinares, para dar passagem a enfoques contextuais inter e transdisciplinares3. Isto supõe transcender as assimetrias que introduzem esses modelos, categorias e classificações sobre as crianças, suas vidas e seus eventuais “problemas de desenvolvimento” (Bonnet, 2003; de Suremain, 2003; Rowensztein; Kremenchuzky, 2019). Implica, além disso, em incorporar os bebês ao seu “aqui e agora”, às suas relações dinâmicas com os entornos nos quais vivem e participam, às formas diversas de cuidado e criação, às suas experiências significativas e às múltiplas leituras que delas existem. Esses aspectos constituem o eixo do que chamamos o enfoque vivencial.

 

Bebês no tempo presente: o enfoque vivencial

A segunda perspectiva reúne um grupo de estudos que vêm para disputar a hegemonia da visão dos bebês como um “ativo a proteger”. Os saberes assim produzidos são locais e eventualmente comparados, e as principais contribuições vieram de pesquisas em antropologia, sociologia e história.

Embora possamos citar alguns estudos paradigmáticos, como os de Ariès (1987 [1962]) sobre as mudanças sócio-históricas da infância nos primórdios da modernidade, tradicionalmente as Ciências Sociais prestaram pouca atenção à infância e aos bebês como população de interesse, com exceção de algumas questões ligadas à educação das crianças (Durkheim, 1975 [1922]) ou de pesquisas específicas em que estas foram consideradas nas explicações sobre as origens da variabilidade humana em termos culturais e biológicos (Boas, 2008 [1911]).

No caso da Antropologia, por sua vez, a observação dos bebês, do que fazem, do que se faz  com eles e do que se pensa sobre eles foi o foco de estudos pioneiros como os de Fortes (1938); Mead (1954, 1961); Linton (1936); Dennis (1940); Bateson e Mead (1942); Whiting e Whiting (1975). Essas pesquisas, embora partam de diferentes ideias teóricas e metodológicas, e com maior ou menor pretensão comparativa transcultural, demonstraram a existência de uma ampla diversidade e, ao mesmo tempo, regularidades em torno de atitudes, disposições, interações, saberes, perguntas e hipóteses que existem em torno dos bebês e de suas experiências em contextos culturais particulares. Assim, vincularam isso a saberes e valores acerca da pessoa, das relações sociais, da saúde, do desenvolvimento, os quais têm efeitos práticos no cuidado e na interação com os bebês (Zelizer, 1985; Conklin; Morgan, 1996; Scheper Hughes, 1992; Morgan, 2008; Lancy, 2014).

Essas iniciativas questionaram a viabilidade de se fazer pesquisa social considerando somente os sujeitos adultos como participantes da vida social, ou mantendo a categoria criança como “tábula rasa” a socializar. Nesse sentido, o trabalho de Mead foi pioneiro, ao ressaltar a importância da observação da vida diária dos bebês e das crianças, nos seus entornos, já que essa observação permite o reconhecimento deles enquanto sujeitos dos quais a Antropologia tem muito que aprender se quiser compreender a vida social de um povo (Remorini, 2009).

No decorrer do século XX, a partir de múltiplas disciplinas, começou a se construir um conhecimento com bases empíricas que explicitam que os bebês e o seu cuidado não podem ser compreendidos adequadamente por uma imagem única e universal do desenvolvimento e da vida infantil (Greenfield, 1972; Super, 1976; Greenfield et al., 1989; Rogoff, 2003; Edwards et al., 2006; Razy, 2007; Chrisholm, 2008 [1978]; LeVine; New, 2008; Karasik et al., 2010).

Como destacamos em outro lugar (De Grande et al., 2016), desde a década de 1990, novas linhas de pesquisa vinculadas à infância se consolidaram em Sociologia (James; Prout, 1998; Jenks, 1996; Carli, 1999; Corsaro, 2011), Antropologia (Toren, 1993; Hirschfeld, 2002; Nunes, 2003; Cohn, 2005; Szulc, 2006; Montgomery, 2009; Scheper Hughes; Sargent, 2011; Pires, 2010; Ospina et al., 2014) e História (Zelizer, 1985; Alcubierre Moya; Carreño King, 1996; Rojas Flores, 2004; 2010; Lobato, 2019). Do mesmo modo, diferentes linhas se consolidaram através da colaboração entre a Antropologia e a Psicologia (Rogoff, 2003; Guidetti, et al., 2004). Essas contribuições analisam e problematizam temas novos e retomam algumas preocupações “clássicas”: agência, subjetividades, emoções, cuidados, aprendizagem, cidadania, direitos, entre outros.

Apesar desse interesse acadêmico voltado para a infância, os bebês receberam inicialmente escassa atenção e só tardiamente começaram a ser incorporados nas agendas de pesquisa social (Gottlieb, 2009; Tebet; Abramowicz, 2014)4. A primeira questão que essas abordagens sociais sobre a primeira infância destacaram foi a necessidade de dar conta dos bebês “em tempo presente”, isto é, da sua vida cotidiana, dos seus vínculos, dos seus modos de expressão e de participação nos entornos dos quais fazem parte (Cervera Montejano, 2009; Lareau, 2011; Gaskins, 2000; Moro, 2002; Razy, 2007).

Desse modo, os estudos sociais da primeira infância reforçam a noção de que ser bebê é uma categoria histórica, classificatória e performativa, enclassada e enclassante interseccionalmente no gênero, na classe, na etnia e na idade (Scheper Hughes; Sargent, 2011; Szulc; Cohn, 2012; Castro, 2007; Hagestad; Uhlenberg, 2005). Neles se destacam as interdependências entre as representações da maternidade, da paternidade e dos recursos sociais e culturais disponíveis. Ressalta-se a necessidade de considerar as expectativas, práticas, tradições e desejos em torno de papéis e relações com os bebês; analisam-se a organização social, as interações e solidariedades intergeracionais a respeito da criação (Morgante; Remorini, 2018), o lugar da domesticidade e do gênero como matrizes históricas organizadoras do cuidado infantil (Gilligan, 1982; Hochschild; Machung, 1989), assim como as transformações nos modos de procriação e criação e as suas consequências sobre a circulação de bebês e crianças (Briggs; Marre, 2009; Marre; Bestard, 2004).

O transitar pelos primeiros meses de vida aparece inserido no extenso arco da trajetória pessoal e da distribuição social do poder, problematizando como cada contexto sociocultural estrutura as suas categorias etárias e a relação entre elas, atribuindo lugares, capacidades, recursos e conexões específicas aos seus ocupantes (Esquivel et al., 2012; Aguirre; Ferrari, 2014). A partir do olhar crítico dos sistemas de papéis pelos quais cada sociedade administra a sua reprodução biológica e social, mas também a partir do olhar do bebê como pessoa, essa perspectiva se propôs a construir saberes que permitissem ampliar as capacidades e o reconhecimento daqueles que transitam por esse momento vital ou daqueles que os acompanham ou sustentam (Faur, 2014; Gherardi et al., 2012).

Reconhecendo como antecedente alguns desses estudos e enfoques, as pesquisas dos autores deste artigo se inserem no sentido de dar aos bebês o lugar de sujeitos de estudo legítimos para a pesquisa social.

Os bebês (mitã pytã) Mbya Guarani (Misiones) e as suas primeiras experiências e interações no contexto das rotinas das unidades domésticas das suas comunidades indígenas foram o foco de uma pesquisa etnográfica que procurou problematizar a noção de ciclo de vida e a sua abordagem a partir das vertentes mais clássicas da Antropologia (Remorini, 2009). Com foco na observação de bebês e crianças e dos seus cuidadores, nas práticas de criação e de cuidado e nas formas pelas quais eles se integram em diversas atividades e espaços, propôs-se articular essas experiências cotidianas aos saberes, valores e expectativas culturais em torno à pessoa Mbya, em um contexto de transformações ambientais, culturais, econômicas e políticas. Assim, também se questionou a adequação de categorias e de modelos acerca do “crescimento”  e do “desenvolvimento” das crianças à diversidade de trajetórias infantis nesses povos indígenas (Remorini, 2010a; 2010b; 2012; Remorini; Rende, 2014). Esse propósito continua orientando a pesquisa mais recente sobre esses aspectos, enfocando nas guaguas de comunidades rurais dos Valles Calchaquíes (Salta) (Remorini, 2013a; Remorini; Palermo, 2016). Em ambos os casos, busca-se contribuir para a produção acadêmica sobre bebês e crianças em cada contexto, muito escassa no primeiro e inexistente no segundo, no momento de iniciar a pesquisa.

Por sua vez, a pesquisa na cidade de Buenos Aires tornou possível rastrear as relações dos bebês com os seus círculos familiares, com os seus espaços urbanos e com a organização do tempo e dos diferentes âmbitos institucionais pelos quais eles circulam (De Grande, 2012; 2015a; 2015b). A configuração de cada uma dessas dimensões supunha estruturas de oportunidades diferenciadas para as crianças nas suas práticas cotidianas, bem como quadros emocionais e valorativos singulares dos quais participar e se iniciar (De Grande, 2016a; 2016b; 2019).

Finalmente, cabe destacar que a maior parte das pesquisas reunidas nesta seção, sejam estudos de caso ou comparativos transculturais, procuram evitar os riscos derivados de tomar sujeitos urbanos e ocidentais como representativos da população mundial. Para tal, deslocam com frequência os seus campos de observação a um espectro mais amplo de países e a contextos mais heterogêneos em termos sociais e culturais, destacando a variabilidade de experiências infantis (Lancy, 1996; De Loache; Gottlieb, 2000). Nesse sentido, essas pesquisas contrapõe às visões positivas e normativas da “boa criação” ao estudo das criações, dos cuidados, dos jogos, das emoções e das demais experiências em torno dos bebês.

 

Palavras finais

No livro In a different voice, Carol Gilligan (1982) percebeu que, nos discursos cotidianos das mulheres, era possível reconhecer formas de compromisso e de responsabilidade pelos outros que eram singulares dessa posição de gênero, que essas formas só podiam ser vistas e compreendidas ao se escutarem as vozes que usualmente não eram ouvidas. Essa chave interpretativa, acreditamos, pode ajudar a dar sentido ao que foi apresentado até aqui.

A perspectiva antecipatória, baseada principalmente em contribuições das disciplinas médicas, psicológicas e jurídicas, mostrou uma enorme capacidade instrumental, enquanto contribuiu para delimitar e resolver problemas que afetaram e afetam as vidas dos bebês com uma efetividade inédita antes do século XX. O foco no crescimento e no desenvolvimento fez dos bebês um potencial a proteger, acompanhar, modelar, regular e assistir. As disciplinas “psi” ofereceram modelos e conceitos que iniciaram e expandiram a nossa compreensão sobre os aspectos subjetivos do desenvolvimento do bebê, com efeitos práticos no cuidado e na criação. Embora ambos os tipos de saberes venham principalmente de pesquisa e prática em âmbitos delimitados (consultórios, laboratórios, gabinetes), estes tentaram estender o seu alcance para além desses limites. Esses saberes e os valores e critérios aos quais deram lugar foram construídos e legitimados sobre a base do estudo de bebês, na verdade, bem mais atípicos, em termos de sua representatividade da variabilidade humana. O reconhecimento das contribuições dessas pesquisas não impede destacar que essa abordagem teve dificuldades para compor com maior pluralismo a construção dos seus saberes. Apesar de seu destaque,   outras vozes precisam ser ouvidas.

As práticas, as metodologias, os espaços e os objetivos das pesquisas em Ciências Sociais, de maneira crescente e consistente nos últimos 30 anos, fizeram emergir e circular novos discursos sobre os bebês. Os bebês queridos e perdidos; os bebês próprios e os apropriados; os bebês que vivem à margem; os bebês que crescem em qualquer lugar. As suas mães, os seus pais, os seus irmãos, os seus outros; os seus choros, os seus balbucios, são “vozes diferentes” que dão conta do fato de que os bebês não ficam só doentes, eles comem, dormem ou morrem. Que também (se) alegram, maravilham, desorganizam, desejam, abraçam, reclamam, desconcertam.

É assim que falar sobre os bebês em Ciências Sociais conduziu, entre muitas outras coisas, a falar das pessoas ao seu redor, a problematizar a distribuição do trabalho, de papéis e de recursos para o cuidado, do peso relativo entre biologia e cultura nas trajetórias dos bebês, das desigualdades de gênero e de idade, dos vínculos, do jogo, das emoções e da sua história. Isso não é produto de um mero discorrer por temas a partir dos bebês: aquela frase "é preciso uma aldeia para criar uma criança” destaca os múltiplos aspectos que atravessam as vidas dos bebês, e como a pesquisa disciplinar e interdisciplinar deve ecoar esta multidimensionalidade.

Os enfoques apresentados tensionam a compreensão desta etapa vital, partindo de pólos que parecem antagônicos: universalidade e particularidade, objetividade e subjetividade, biologia e cultura, indivíduo e sociedade, presente e futuro. Esses pares, no entanto, não devem ser vistos sob um ponto de vista reducionista como opostos. Ao contrário, em prol de reconhecer a complexidade desse campo de conhecimento ainda em consolidação, eles podem ser repensados, contextualizados, interrogados e postos em relação. Ali, onde nos vemos mais pequenos e mais estranhos, ali, onde as nossas vidas e as dos outros começam, se desdobram preocupações, motivações e sentidos individuais e coletivos que ainda precisam, em boa medida, serem atendidos.

 

 

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Data de recebimento: 16/09/2019
Data de aceite: 31/10/2019

 

 

1 Este trabalho foi realizado com financiamento do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas de la Argentina (CONICET).

2 Domesticar em seu duplo sentido: de subtrair as suas condutas instintivas e naturais, de humanizar instruindo uma cultura (Jenks, 1996), mas também em relação a restringi-los ao espaço doméstico, como espaço de circunscrição oposto aos “riscos” dos espaços públicos da vida urbana, como a rua, o mundo laboral e o mundo político (Aguilar, 2013; Collin, 1993)

3 Aquí pode-se mencionar como exemplo desta transição a abordagem do desenvolvimento infantil a partir do enfoque dos determinantes sociais e ambientais adotado na última década por pesquisadores e por organismos de governo e multilaterais (Raineri et al., 2015).

4 Para ilustrar a continuidade desse fenômeno, pode-se mencionar a escassa representação dos bebês nos trabalhos de levantamento bibliográfico levados adiante por Szulc e Cohn (2012) e por Milstein e Tammarazio (2018) sobre o estado da arte da produção regional de antropologia da infância.

 

 

I Pablo De Grande: Doutor em Ciências Sociais e Humanidades pela Universidad de Quilmes, Buenos Aires - Argentina. Graduado em Sociologia pela Universidad de Buenos Aires. É pesquisador do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (CONICET) e trabalha com temáticas vinculadas à infância no Instituto de Investigación en Ciencias Sociales (IDICSO) da Universidad del Salvador, Argentina, onde é professor titular da carreira de Sociologia. É colaborador do Centro de Estudios Desigualdades, Sujetos e Instituiciones (CEDESI) da Universidad de San Martín, Argentina. E-mail: pablodg@gmail.com

II Carolina Remorini: Doutora em Ciências Naturais e Graduada em Antropologia pela Universidad Nacional de La Plata (UNLP), Argentina. Professora Titular de Etnografia I (América do Sul) na Faculdad de Ciencias Naturales y Museo da UNLP. Pesquisadora Adjunta do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (CONICET). Integra o Laboratorio de Investigaciones en Etnografía Aplicada (LINEA)  da UNLP. Desenvolve pesquisas etnográficas em contextos rurais e indígenas principalmente, orientadas ao estudo da criação, do cuidado da saúde e do desenvolvimento infantil. E-mail: carolina.remorini@gmail.com

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