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Desidades

versão On-line ISSN 2318-9282

Desidades  no.30 Rio de Janeiro maio/ago. 2021

 

TEMAS EM DESTAQUE - SEÇÃO TEMÁTICA

 

Atravessar fronteiras e transpor barreiras: desafios e deslocamentos de crianças e adolescentes venezuelanos em Roraima - Brasil

 

Crossing borders and barriers: a look at the challenges of displacement of Venezuelan children and adolescents in Roraima - Brazil

 

Cruzando fronteras y rompiendo barreras: una mirada a los desafíos del desplazamiento de niños, niñas y adolescentes venezolanos en Roraima - Brasil

 

 

Janaine Voltolini de Oliveira

Universidade Estadual de Roraima, Curso de Serviço Social, Boa Vista, RR, Brasil

 

 


RESUMO

A realidade complexa e multifacetada das migrações internacionais revela enormes desafios que impactam diretamente a vida das crianças e dos adolescentes, especialmente os mais vulneráveis, e exigem, dos poderes constituídos e da sociedade civil, respostas urgentes frente às inúmeras violações de direitos humanos pelas quais passam essas populações. Nesse sentido, este estudo discute as circunstâncias dos deslocamentos forçados e o atendimento, especialmente nas políticas de saúde, educação e assistência social (acolhimento) às crianças e adolescentes venezuelanas que residem no Brasil, especificamente no estado de Roraima. Trata-se de pesquisa de natureza empírica, apoiada em documentos públicos de agências governamentais e não-governamentais, além de leitura, catalogação e arquivo de notícias de jornais locais, regionais e nacionais sobre o tema. Para além de muitos avanços alcançados em relação à garantia da proteção integral de crianças e adolescentes, há ainda um longo caminho a ser percorrido.

Palavras-chave: direitos humanos, infância, migração, refúgio, proteção.


ABSTRACT

The complex and multifaceted reality of international migration reveals enormous challenges that directly impact the lives of children and adolescents, especially the most vulnerable, and demand, from the constituted powers and civil society, urgent responses in the face of the numerous human rights violations that these people experience. In this sense, this study discusses the circumstances of forced displacement and care, especially in health, education and social assistance (reception) policies for Venezuelan children and adolescents who reside in Brazil, specifically in the state of Roraima. This research is of an empirical nature, supported by public documents from governmental and non-governmental agencies, in addition to the reading, cataloging and archiving of news from local, regional, and national newspapers on the subject. In addition to the many advances achieved in relation to ensuring the full protection of children and adolescents, there is still a long way to go.

Keywords: human rights, childhood, migration, refuge, protection.


RESUMEN

La compleja y multifacética realidad de la migración internacional revela enormes desafíos que impactan directamente en la vida de niños, niñas y adolescentes, especialmente los más vulnerables y demanda, de los poderes constituidos y de la sociedad civil, respuestas urgentes a las innumerables violaciones de derechos humanos que experimentan estas poblaciones. En este sentido, este estudio discute las circunstancias del desplazamiento forzado y la atención, especialmente las políticas de salud, educación y asistencia social (acogida) para niños y adolescentes venezolanos residentes em Brasil, específicamente en el estado de Roraima. Se trata de una investigación empírica, sustentada en documentos públicos de organismos gubernamentales y no gubernamentales, además de la lectura, catalogación y archivo de noticias de revistas locales, regionales y nacionales sobre el tema. Además de los muchos avances logrados en relación con la protección integral de la niñez y la adolescencia, queda un largo camino por recorrer.

Palabras clave: derechos humanos, infancia, migración, refugio, protección.


 

 

Introdução

O fim do governo Hugo Chávez, falecido em 2013, marcou o início da crise econômica na Venezuela, que tem na produção e na exportação do petróleo o motor da economia, até então uma das maiores da América do Sul. Sob a governança de Nicolás Maduro, o país viu seu Produto Interno Bruto (PIB) despencar, ao passo que se elevavam a inflação e o desemprego, cujos resultados imediatos não poderiam ser outros: aumento da pobreza; da vulnerabilidade; da fome; da violência e do desabastecimento de bens essenciais. De uma crise econômica, o país evoluiu para uma crise política e humanitária, tendo grande parte de sua população, notadamente os mais pobres, iniciado um movimento migratório, principalmente para os países vizinhos sul-americanos.

Dados do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (2020) apuram que existem 5,4 milhões de refugiados e migrantes venezuelanos ao redor do mundo, e cerca de 2,5 milhões vivendo sob outras formas legais de estadia nas Américas, distribuídos principalmente na Colômbia, Peru, Chile, Equador, Argentina, Costa Rica, México, Panamá, Caribe e Brasil. Há, além destes, os migrantes não solicitantes de refúgio, que perfazem números ainda mais elevados. Esses dados revelam, entre outras coisas, que os venezuelanos buscam, em primeiro lugar, países de língua espanhola e reafirmam que a migração na América do Sul se dá principalmente de forma intrarregional.

Sobre o aspecto dos deslocamentos, para Haesbaert (2007, p. 19), não se pode pensar em "desterritorialização", que seria a perda ou destruição do território, "ou melhor, nossos processos de territorialização (para enfatizar a ação, a dinâmica)", sem pensar em sua contraface, qual seja, o intenso e complexo processo de "(re)territorialização", em seu aspecto múltiplo, aqui considerando o processo multiterritorial, de "convivência concomitante de diversos territórios" (Ibid., p. 20).

Os migrantes e refugiados representam indivíduos ou grupos de famílias que chegam, geralmente a áreas urbanas1, com crianças, adolescentes, mulheres grávidas ou em período puerperal acompanhadas de seus bebês, idosos e pessoas com deficiência. Embora não haja dados oficiais, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) estima que, entre 2015 e 2019, quase 10 mil crianças e adolescentes venezuelanas em situação de vulnerabilidade entraram no Brasil (CIEGLINSKI, 2019).

Na fronteira Brasil (Pacaraima) e Venezuela (Santa Elena de Uairén), crianças e adolescentes representam quase metade dos deslocamentos (ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA REFUGIADOS, 2019). Muitos atravessam a pé, após dias de caminhada por regiões montanhosas com temperaturas muito baixas ou muito altas, com escassez de água, atravessando matas ou pela estrada e, para chegarem até a capital Boa Vista, seu principal destino no estado de Roraima, Brasil, caminham ou pedem carona à beira da rodovia BR-174, correndo o risco de serem vítimas de narcotraficantes, traficantes de pessoas2, grupos armados ou agressores de toda natureza.

Acompanhados de familiares, viajam apenas com a roupa do corpo, um calçado e poucos pertences pessoais em suas mochilas, muitos sem documentos de identificação civil ou qualquer comprovativo de escolaridade, formação profissional ou informações sobre histórico de saúde (vacinas, uso contínuo de medicação, etc.). Ainda mais dramática é a situação daqueles que viajam sozinhos, desacompanhados, como é o caso de 529 adolescentes que cruzaram a fronteira em 20193, de acordo com a Defensoria Pública da União (MAIS..., 2019), número que pode ser ainda maior, passando de 800, considerando relatos de conselheiros tutelares de Boa Vista (CERCA..., 2019).

Esses indivíduos passam fome, sede e vivenciam outras privações e violações de direitos humanos - dormem nas calçadas, não têm locais apropriados para tomar banho, realizar suas necessidades fisiológicas básicas, perdem os contatos e ficam sem informações daqueles com os quais se vinculavam afetivamente, além das inúmeras situações de abusos físicos e outras violências. No caso das mulheres adultas e adolescentes, estas não possuem as condições mínimas necessárias de higiene e saúde relativas às fases do período menstrual e, no caso daquelas com bebês, necessitam de fraldas e produtos para os cuidados de higiene das crianças.

Quando chegam ao destino almejado, são outros, mas não menos complexos, os enfrentamentos que se apresentam de imediato ou que estão por vir, tais como a vivência de rua em praças e nas proximidades de rodoviárias e feiras, ocupações irregulares de prédios abandonados e em péssimas condições de habitação, mendicância em semáforos, portas de lojas e bancos, trabalho infantil, fome e desnutrição, insegurança, medo e violência, dificuldades com o idioma, espera por vagas em abrigos, escolas e para conseguir documentos nos órgãos públicos de justiça e cidadania ou acessar programas sociais.

Destaque-se que a pandemia do Covid-19 recaiu de forma dramática sobre essa população: de acordo com os dados do Sistema de Mortalidade4 da Secretaria de Estado da Saúde de Roraima, foram registrados 40 óbitos de venezuelanos somente em 2020.

É diante dessa situação que se impõe a relevância e a atualidade deste estudo, cujo objetivo é discutir as circunstâncias dos deslocamentos de crianças e adolescentes venezuelanas para o Brasil, especificamente para o estado de Roraima. Isto porque, quando se trata de deslocamento em massa, os desafios não se impõem somente àqueles que imigram, mas também à população residente nos destinos dos imigrantes, que veem a paisagem da cidade modificada de forma abrupta e são chamados a uma ação urgente de solidariedade e socorro; aos governantes e gestores dos serviços públicos, que precisam se reorganizar com agilidade, visando à maior precisão para o atendimento às novas demandas dessa população, mesmo sem terem ao certo a noção de seu contingente; aos pesquisadores, que precisam desvelar essa nova realidade complexa e multifacetada para, a partir da produção de conhecimento, orientar a gestão pública, etc.

Para tanto, realizou-se pesquisa de natureza empírica a partir da vivência do cotidiano de trabalho da autora nas Varas da Infância e da Juventude da Comarca de Boa Vista, por meio de observações realizadas durante visitas em abrigos da Operação Acolhida, por conversas informais com assistentes sociais e outros profissionais que ali trabalham, bem como com os profissionais que atuam nas políticas de assistência social e saúde, especialmente nos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS), Centros de Referência Especializados de Assistência Social (CREAS) e nas unidades básicas de saúde do município de Boa Vista, no Hospital da Criança Santo Antônio (HCSA) e no Hospital Materno Infantil Nossa Senhora de Nazareth (HMINSN). Para além das visitas às instituições, as observações ocorrem no dia a dia das pessoas que vivem em Roraima e que presenciam a complexa situação dos migrantes venezuelanos.

Como apoio metodológico, além do acesso a documentos públicos de agências governamentais e não-governamentais, realizou-se a leitura, catalogação e arquivo de notícias de jornais locais, regionais e nacionais sobre o tema.

Desta forma, o trabalho se organiza em dois momentos: no primeiro, aborda a questão dos deslocamentos humanos de venezuelanos em função da crise humanitária que se instalou naquele país e, no segundo momento, apresenta um olhar sobre os desafios da garantia do atendimento protetivo de crianças e adolescentes migrantes no estado de Roraima, considerando sobretudo o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à convivência familiar e comunitária, anunciado na Carta Magna (BRASIL, 1988), no Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990), no Estatuto da Juventude (BRASIL, 2013) e no Marco Legal da Primeira Infância (BRASIL, 2016).

A migração venezuelana para Roraima

A migração5 internacional, como um direito humano (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1948) e fenômeno global, é tão expressiva em seus números quanto em sua complexidade e, por isso, carrega aspectos de alta prioridade para as agendas governamentais, organismos internacionais e sociedade civil.

De acordo com o Parlamento Europeu (2020), a migração envolve fatores de impulso (razões pelas quais as pessoas deixam um país) e atração (razões pelas quais as pessoas se deslocam para um determinado país), com destaque para três aspectos: a) sociopolíticos: perseguição étnica, religiosa, racial, política ou cultural, guerra, conflito e perseguição (ou ameaça) do governo; b) demográficos e econômicos: emprego (melhores salários ou melhores oportunidades de educação ou elevação do padrão de vida), desemprego, economia do país, crescimento, envelhecimento ou declínio populacional e; c) ambientais6: desastres naturais (inundações, furacões, terremotos) e alterações climáticas.

Segundo o Relatório de Migração Mundial 2020 (ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL PARA AS MIGRAÇÕES, 2019, p. 3), somente em 2018, o número total de refugiados7 no mundo era de 25,9 milhões e, destes, 52% tinham idade inferior a 18 anos, sendo em média 49% mulheres. Além disso, o documento estima que o número total de crianças migrantes seja de 31 milhões, sendo aproximadamente 13 milhões de refugiadas, 936 mil em busca de asilo e 17 milhões que foram deslocadas à força de seus próprios países, anunciando ainda que, entre 2014 e 2018, foram registradas mais de 30.900 mortes de mulheres, homens e crianças que tentavam atravessar para outros países.

Na América do Sul, o Brasil sempre esteve entre os países mais solidários em relação à questão migratória, posicionado entre os principais destinos de asiáticos e europeus. Ademais, as duas primeiras décadas do século XXI foram marcadas por importantes ondas migratórias de haitianos e venezuelanos que tiveram a região Norte como porta de entrada: os haitianos, cujo país foi devastado por um terremoto em 2010, adentraram principalmente pelo estado do Acre e, mais recentemente, os venezuelanos, chegando pela fronteira terrestre com Roraima, fugindo da crise humanitária naquele país.

Entretanto, apesar de ter registrado, somente entre 2010 e 2015, um acréscimo de 20% no fluxo migratório, estimativas da Polícia Federal do Brasil revelam que menos de 0,4% da população brasileira é constituída por imigrantes (TEIXEIRA, 2020).

De acordo com dados do Relatório Anual do Observatório das Migrações (OBMigra) (CAVALCANTI et al., 2019), entre 2010 e 2018, as principais nacionalidades presentes no Brasil eram, nesta ordem: haitianos; bolivianos; venezuelanos; colombianos; argentinos; portugueses; chineses; peruanos. Contudo, a partir de 2018, considerando o acréscimo da migração em massa de indígenas e não indígenas venezuelanos8 ocorrida a partir de 2015, houve uma mudança significativa neste perfil e, desta forma, as principais nacionalidades estrangeiras em território brasileiro são representadas por venezuelanos (39%), haitianos (14,7%), colombianos (7,7%), bolivianos (6,8%) e uruguaios (6,7%). Estima-se que vivam mais de 262.000 refugiados e migrantes venezuelanos em mais de 630 municípios brasileiros (Ibid.).

A razão para a Venezuela ocupar o topo das migrações decorre do fato de que, nos últimos anos, a crise humanitária daquele país forçou a migração de milhares de pessoas para outros países, em especial da América Latina e do Caribe, sendo o Brasil um dos mais impactados em decorrência de sua condição fronteiriça a partir do estado de Roraima. Estima-se que, entre 2015 e 2020, mais de 5,4 milhões de venezuelanos refugiados e migrantes deixaram seu país e mais de 800 mil são requerentes de asilo, tornando-se a maior crise migratória na história recente da América Latina e uma das maiores crises de deslocamento do mundo, ficando atrás apenas da Síria:

Os venezuelanos têm deixado o seu país por diferentes motivos. A grave escassez de medicamentos, suprimentos médicos e alimentos torna extremamente difícil para muitas famílias ter acesso a cuidados básicos de saúde e garantir a alimentação de seus filhos. Uma repressão implacável do governo tem resultado em milhares de detenções arbitrárias, centenas de casos de civis julgados por tribunais militares, casos de tortura e outras violações contra pessoas detidas. Prisões arbitrárias e abusos por parte das forças de segurança, inclusive pelos serviços de inteligência, continuam. As taxas extremamente altas de crimes violentos e a hiperinflação também são fatores centrais na decisão de muitas pessoas de deixar o país (HUMANS RIGHT WATCH, 2018, p. 1).

De acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (2020, n.p.), "houve um aumento de 8.000% no número de venezuelanos que buscam o status de refugiado em todo o mundo desde 2014, principalmente nas Américas". Outros optam por alternativas mais fáceis e rápidas de permanência, também legais, que permitem acesso ao trabalho, educação e serviços de assistência social. Sobre o trabalho, interessa destacar que, em relação aos estrangeiros vivendo em território nacional, no Brasil, ainda que a emissão de carteiras de trabalho para cidadãos venezuelanos seja superior, são os haitianos que detêm o maior número de registros formais de trabalho (CAVALCANTI et al., 2019), restando a muitos formas precárias de trabalho na informalidade e o desemprego.

Há também o caso de centenas de milhares de venezuelanos que não possuem qualquer documentação civil ou permissão para permanecer regularmente em nenhum país vizinho e, consequentemente, não têm acesso garantido aos direitos básicos. "Isso os torna particularmente vulneráveis ​​ao trabalho e à exploração sexual, tráfico, violência, discriminação e xenofobia" (ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA REFUGIADOS, 2020, n.p.).

A magnitude desses fluxos, cujos números alcançaram seu pico em 2018, impactou diretamente a capacidade do Estado em atender essa população com a dignidade humana que lhe é direito. Uma resposta tardia e ineficiente dos governos federal e estaduais marcou grande parte desse processo. Além disso, desentendimentos no tocante ao fechamento ou não de fronteiras, transferência de recursos e definição de responsabilidades entre governos estaduais e municipais também atrasaram a tomada de decisão (SOUZA, 2018).

Além dos enormes desafios relativos ao idioma, à identidade, à cultura e aos valores, a migração e o refúgio apresentam questões urgentes para a agenda política dos países, uma vez que, à medida que as pessoas chegam em situações cada vez mais vulneráveis, aumentam a demanda por educação, segurança, saúde, moradia, assistência social, justiça e cidadania, representando muitas vezes o esgotamento dos serviços públicos, especialmente aqueles que já funcionavam em situação de sobrecarga, com demandas reprimidas pela superlotação. Nesse sentido, muitas mazelas sociais ocorreram até que se iniciasse uma ação conjunta entre os governos e instituições humanitárias de assistência emergencial.

A resposta do governo brasileiro à migração venezuelana, segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (2019), desenhou-se em quatro áreas de atuação: a) acomodação e assistência humanitária básica; b) interiorização: cadastramento, seleção e realocação de migrantes (indivíduos singulares ou acompanhados de suas famílias) em outros estados da federação, com garantia de abrigo e trabalho; c) integração ao mercado de trabalho: garantia do Cadastro de Pessoa Física (CPF) e Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS); d) apoio aos migrantes que desejam, voluntariamente, retornar ao país de origem.

Com isso, além de abrigo, alimentação e possibilidades de trabalho protegido, aos migrantes também é possível o acesso a políticas de educação, saúde - com o cadastro de usuário do Sistema Único de Saúde (SUS), participação em projetos de assistência social e em programas socioassistenciais do governo federal, como o Programa Bolsa Família (PBF). Sobre este último, em 2019, do total de famílias beneficiárias no município de Boa Vista, 10% eram venezuelanas (MEGALE, 2019).

Embora essa organização revele conquistas, são proporcionais as fragilidades, uma vez que os serviços não estavam preparados para um aumento exponencial do atendimento em tão curto espaço temporal e são especialmente as crianças e os adolescentes as maiores preocupações, visto que estão em período de desenvolvimento. Com isso, as experiências e os estímulos do ambiente em que vivem podem ser decisivos e moldar para sempre suas vidas.

No caso dos migrantes, sobretudo na primeira infância, aspectos afetivos e de desenvolvimento que impactam diretamente a saúde da criança, como o cuidado e a atenção dos genitores, a alimentação, o sono, o brincar, entre outros, podem ser substituídos, em razão das circunstâncias, pelo abandono e negligência, pela desnutrição e intranquilidade, pelo estresse, o medo e as violências, etc. Por esses e outros motivos é que a proteção integral a essa fase de vida dos sujeitos se apresenta como primordial.

Diante disso, apresenta-se a seguir uma discussão sobre o suporte que vem sendo prestado às crianças e adolescentes migrantes venezuelanos que vivem em Roraima. O objetivo é lançar um olhar mais atento sobre os desafios da garantia da proteção integral do público infantojuvenil, ao passo que desvela como vem se dando o atendimento nas políticas sociais, com destaque para a saúde, a educação e o acolhimento, sem prejuízo do debate em torno da violência, do trabalho infantil, da justiça e da cidadania.

 

Atenção à criança e ao adolescente migrantes venezuelanos em Roraima

Os fluxos migratórios marcam a história e a memória de Roraima, estado mais setentrional do Brasil, na região amazônica. De acordo com Oliveira (2018) e Oliveira e Costa (2018), no século XX, alguns fatores colaboraram para os deslocamentos espontâneos para o estado: os garimpos de ouro e diamantes na década de 1970, a colonização agrícola e o incentivo às migrações a partir de doações de lotes de terras urbanas trouxeram pessoas de todo país, tendo destaque os nordestinos, especialmente cearenses e maranhenses.

Mais recentemente, a expansão das fronteiras agrícolas trouxe sulistas (gaúchos, catarinenses e paranaenses) e, já no final do século XX, a grande quantidade de vagas no serviço público (a partir de 1990), criadas após a instalação do estado de Roraima9, foi marcada pela chegada de pessoas provenientes de todos os estados da federação, sendo que as migrações inter-regionais foram fortalecidas a partir do Amazonas e do Pará. Somando-se a isto, não se pode ignorar o incremento do número de imigrantes cubanos, suíços, italianos, etc., do êxodo rural e dos deslocamentos da população indígena para áreas urbanas nos 15 municípios de Roraima.

Já nas duas primeiras décadas do século XXI, são destaque as migrações internacionais de haitianos e venezuelanos para Roraima, com um enorme incremento para a demografia do estado, sendo a segunda muito mais expressiva numericamente.

Mesmo que não sejam precisos, os dados estimam uma realidade inegável. O impacto da imigração é notável por todos os lados. Nas ruas, português e espanhol se misturam e o 'portunhol' se populariza. Por toda a cidade, há semáforos lotados de venezuelanos segurando placas em que pedem emprego. Outros estão nas portas dos supermercados em busca de comida e milhares dormem nas ruas, principalmente em praças. Os abrigos abertos pelo governo estão superlotados há meses e até 31 imigrantes vivem sob o mesmo teto em casas alugadas (COSTA; BRANDÃO; OLIVEIRA, 2018, n.p.).

De acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (2020), agência da Organização das Nações Unidas (ONU) para refugiados, 264 mil venezuelanos solicitaram refúgio ou residência no Brasil, a maioria entrando por Roraima, entre 2013 e 2019. Estimativas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) indicam que quase 79 mil venezuelanos vivam em Roraima, o que representa um incremento populacional superior a 10% da população do estado nos últimos anos (LIMA, 2019).

Assim que adentravam ao estado de Roraima, principalmente nos municípios de Pacaraima e Boa Vista, crianças, adolescentes e suas famílias logo procuravam abrigar-se em praças públicas, embaixo de marquises, próximos às rodoviárias, no entorno de hospitais, Superintendência da Polícia Federal, e houve inúmeras ocupações irregulares em prédios públicos abandonados e em ruínas - uma das primeiras ocorreu no centro de Boa Vista, no local onde funcionou a Secretaria de Estado da Gestão Estratégica e Administração (SEGAD).

Os acampamentos eram extremamente numerosos, as estruturas ofereciam riscos e havia barracas por toda parte. As condições de muitos destes lugares eram insalubres, o que se percebe na afirmação de Júnior (2016, n.p.), quando relata que, "como não há banheiro químico, eles fazem suas necessidades em qualquer lugar, o que provoca um risco à saúde pública".

Durante meses, o cair da noite era marcado por filas para receber comida nos arredores dos acampamentos; havia praças com mais de 300 pessoas. A solidariedade de organizações filantrópicas, igrejas e sociedade civil garantiu, por meses, a distribuição de pão, leite, sopas e marmitas. Alimentados, "atam suas redes debaixo de árvores, em pontos comerciais com cobertura ou dormem nos bancos das praças públicas" (Ibid., n.p.).

Para o acolhimento de parte dessa população, foram criados 14 abrigos temporários (ou provisórios com Unidades de Habitação Emergencial), sendo 12 em Boa Vista10 e 2 em Pacaraima11. Estes são geridos pelas Forças Armadas (Operação Acolhida) com apoio da ACNUR e as ações contam com a parceria superior a 30 órgãos12 do poder público e entidades da sociedade civil. Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (2020), estes espaços acolhem mais de 4,6 mil refugiados e migrantes, sendo quase metade crianças. Indígenas representam mais 1.031 abrigados.

Há também os casos de crianças e adolescentes encaminhados às unidades de acolhimento institucionais13 de acordo com o que estabelece o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (BRASIL, 1990; 2016), especialmente quando detectado que estas estavam sozinhas ou não havia definição sobre a responsabilidade da guarda.

Em contrapartida, de acordo com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (2020, n.p.), "projeções das autoridades locais e agências humanitárias apontam que 1,5 mil venezuelanos estão em situação de rua na capital, entre eles, quase 500 têm menos de 18 anos de idade".

Com o passar do tempo e o início da instalação de abrigos, muitas praças foram "fechadas para revitalização" (a exemplo da Simón Bolivar e Coreto) e prédios foram desocupados e demolidos, como o da antiga Secretaria de Estado da Educação (SEED), que abrigava mais de 200 imigrantes (JUSTIÇA..., 2020, n.p.). Mesmo assim, este tipo de ocupação ainda persiste, visto que não há vagas suficientes em abrigos e que, apesar de muitas pessoas terem conseguido emprego e, com a renda, alugado quartos em vilas, apartamentos e casas (muitas divididas entre várias famílias), para outros, as condições socioeconômicas ainda são por demais desfavoráveis.

Para sobreviver, muitos jovens e adultos recorrem ao trabalho doméstico, à construção civil ou ao trabalho informal, este fortemente marcado pela presença de crianças e adolescentes: ambulantes nos semáforos; lavadores de para-brisas; cuidadores de carros em vias públicas movimentadas pelo comércio; ajudantes (carregadores) em feiras locais de produtos agrícolas. A prostituição, antes trabalho noturno, passou a fazer parte do cenário diurno de vários bairros da cidade, que tiveram aumentados os casos de assaltos, agressões e tráfico de drogas (BRANDÃO, 2018).

Em Pacaraima, cidade fronteiriça, comerciantes denunciavam a inércia do poder público diante da situação de risco social das crianças que trabalhavam como vendedores: "É comum vê-los nas esquinas movimentadas, vendendo vários produtos. Alguns ainda não têm nem 12 anos. Mas, apesar do risco social que elas correm, as autoridades brasileiras nada fazem" (JÚNIOR, 2016, n.p.).

Em Boa Vista, os Conselhos Tutelares receberam diversas denúncias de exploração de crianças e adolescentes no trabalho infantil: somente na limpeza de mesas em bares, foram aproximadamente 10 denúncias, que se somam às de trabalho doméstico (limpar, cozinhar, cuidar de outras crianças). Num trabalho conjunto à Superintendência Regional do Trabalho (SRT) e à Divisão de Proteção das Varas da Infância e da Juventude - 1ª e 2ª VIJ -, muitas crianças e famílias foram orientadas, afastadas destes trabalhos e "empregadores" autuados (CRIANÇAS..., 2016).

Ainda assim, diante da situação de vulnerabilidade em que se encontram as famílias e da incapacidade de absorção da totalidade dos cadastrados nos programas socioassistenciais, embora tenham perfil para tal, é possível verificar um aumento da mendicância de crianças (sozinhas ou acompanhadas pelos pais e/ou responsáveis) nos semáforos, nas portas das lojas, supermercados e farmácias, além da realização das atividades laborais já citadas.

Outra grande preocupação está relacionada à área da saúde que, com a migração em massa, foi e ainda é uma das políticas mais impactadas pela crise migratória venezuelana, especialmente a saúde da criança na primeira infância. Isto porque muitas delas chegaram ao Brasil com diagnóstico de desnutrição, que atinge até 70% das crianças na Venezuela (CARAZZAI, 2018). Para se ter uma ideia, em Roraima, na rede municipal de saúde, o único hospital exclusivo para atendimento de crianças a partir dos 28 dias de vida até os 16 anos de idade registrou, entre 2015 e 2017, um aumento significativo nos atendimentos e óbitos de crianças migrantes, que já chegam, muitas delas, com a saúde extremamente debilitada. As unidades básicas de saúde tiveram 92% de acréscimo de consultas de pré-natal até 2018 (SILVA; ALMEIDA, 2020).

O registro de casos de sarampo em 2018 acendeu outra preocupação para a saúde no país, que até então tinha a doença erradicada e cuja vacinação faz parte do Calendário de Imunização da Criança, estando disponível em toda a rede pública. "Esse conjunto de fatores fez a taxa de mortalidade infantil subir de 3%, em 2015, para 11% em outubro de 2019" (Ibid.):

[...] com base em dados do Ministério da Saúde, aponta que a taxa de mortalidade infantil em Boa Vista tem sido influenciada por fatores como internações por patologias que demandam tratamento prolongado. Também contribuem o aumento de internações de crianças com desnutrição grave e a situação de pobreza de indígenas e venezuelanos que moram na rua ou não têm como retornar às suas aldeias e permanecem no HCSA (Hospital da Criança Santo Antônio) por até um ano (Ibid., n.p.).

Diante de tudo isso, a Sociedade Brasileira de Pediatria enviou uma moção de alerta escrita durante o 39º Congresso Brasileiro de Pediatria, aos governos federal, estadual e órgãos do poder judiciário, apontando para a "precariedade na assistência, especialmente às crianças, que já chegam muito doentes, com um quadro de desnutrição crônica" (PAIVA, 2019, n.p.), que, não raras vezes, é acompanhada por pneumonia, diarreia ou outra doença, deixando as emergências lotadas e pedindo "ações concretas diante do cenário de calamidade" no estado (Ibid., n.p.). No caso das adolescentes, muitas chegam grávidas, desnutridas e sem acompanhamento pré-natal, "o que aumenta as chances de parto prematuro, de morte e malformações nos bebês" (Ibid., n.p.). Assim, "Precisa do aumento de insumos, leitos hospitalares, atendimentos com retaguarda. Não é só trazer profissional para atender. Precisa ver que se aumentou 20% na população, tem que aumentar os insumos, os leitos em 20%. Tem que ser proporcional" (Ibid., n.p.).

Corroborando estas informações, numa recente pesquisa realizada na única unidade materno-infantil de Roraima, Arruda-Barbosa, Sales e Torres (2020) abordam os impactos da migração venezuelana na rotina hospitalar e revelam, a partir da fala de profissionais de saúde, que houve aumento na intensidade dos plantões devido à ampliação do número de pacientes e piora na gravidade dos casos, já que as pacientes chegam demasiadamente debilitadas, havendo insuficiência de leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI), problemas estruturais no Centro Cirúrgico que podem elevar os casos de infecção hospitalar, demora na entrega de resultados de exames laboratoriais devido à alta demanda, etc.

Como consequência, a pesquisa destaca, ainda de acordo com os profissionais, além da superlotação (na UTI neonatal, por exemplo, são 40 vagas e estavam internadas 53 crianças), que houve aumento na mortalidade perinatal e na morbimortalidade.

Em relação à educação escolar de crianças e adolescentes em situação de deslocamento forçado, são inúmeras as adversidades relacionadas, sendo que a interrupção desse processo é uma das maiores perdas. Agregadas a outras dificuldades, como idioma, ausência de documentos, matrícula e recolocação de acordo com a idade e a série adequadas, desmotivação para continuar e as dificuldades dos pais e responsáveis no acompanhamento do ensino e na aquisição de uniformes e materiais escolares, esta situação se eleva a patamares ainda mais complexos.

O mais recente relatório da ACNUR sobre educação e refúgio, com base em dados de 2017 e 2018, revela que "milhões de crianças refugiadas estão perdendo um direito humano fundamental: o direito a uma educação de qualidade" e estima que, das 7,1 milhões de crianças refugiadas em idade escolar, mais da metade - 3,7 milhões - não frequenta escolas (UNITED NATIONS HIGH COMISSIONER REFUGEES, 2019, p. 11):

Para a maioria de nós, a educação é como alimentamos mentes curiosas e descobrimos nossas paixões na vida. Isso é também como aprendemos a cuidar de nós mesmos - como navegar no mundo do trabalho, organizar nossas famílias, lidar com as tarefas e desafios diários. Para os refugiados, é tudo isso e muito mais. É o mais certo caminho para recuperar um senso de propósito e dignidade após o trauma do deslocamento. É - ou deveria ser - o caminho para o mercado de trabalho e autossuficiência econômica, significando o fim dos meses ou às vezes anos dependendo de outros (Ibid., p. 5).

Para Agostinho (2019, n.p.), "[...] crianças e adolescentes que estudavam em seu país de origem e foram obrigados a deixar tudo para trás, inclusive sua escola e tudo o que ela representa, enfrentam dificuldades adicionais durante este processo". No caso dos venezuelanos que migraram para Roraima, esta realidade não é diferente, sendo a matrícula na rede pública dos municípios e do estado um dos maiores desafios, já que, apesar da ampliação do número de vagas, ainda há uma grande demanda reprimida.

Segundo Araújo (2020), em 10 anos (2009 a 2019), o número de venezuelanos matriculados no sistema de ensino público de Roraima (estado e 15 municípios) aumentou 8.489%, totalizando mais de 4,1 mil alunos, números que não acompanharam o orçamento público. Estes alunos estão matriculados, em sua maioria, no ensino fundamental em Boa Vista (3,1 mil) e em Pacaraima, inclusive em escolas indígenas e militarizadas.

Para além da falta de vagas, há ainda a dificuldade da língua (tanto para alunos quanto para professores e demais trabalhadores das escolas), ausência de documentos por parte dos migrantes: falta certidão de nascimento; cédula de identidade; histórico escolar; documento de guarda dos responsáveis. O sistema de avaliação também é diferente: na Venezuela, a pontuação varia de 0 a 20 e, no Brasil, de 0 a 100 e, portanto, há a necessidade de análise cuidadosa dos documentos e tradutores juramentados para equiparação de notas.

Diante de tantos entraves documentais, pode-se citar algumas ações recentes em prol do direito à educação de crianças e adolescentes: a Secretaria Municipal de Educação e Cultura de Boa Vista editou o Relatório Técnico nº 1, de outubro de 2019, do Departamento de Inspeção Escolar da Secretaria Municipal de Educação e Cultura de Boa Vista. Nele consta que "toda criança e adolescente estrangeiro que esteja em situação de refúgio, independente de documentação, tem direito à Educação em igualdade de condições para o acesso e permanência na escola, não cabendo cerceá-los em seus direitos" (PIRES, 2020, n.p.).

Já a Secretaria Estadual de Educação de Roraima constituiu equipes multidisciplinares para aplicação de avaliações às crianças e adolescentes, que "aderiram à classificação idade-série para, na ausência da documentação, regularizar a vida escolar dos imigrantes venezuelanos" (Ibid., n.p.).

Por sua vez, atendendo a princípios da legislação educacional brasileira e de convenções internacionais, que asseguram o direito de crianças e adolescentes à diversidade, à proteção, ao respeito e dignidade humana, o governo federal, por meio da Câmara de Educação Básica, publicou a Resolução nº 1, de 13 de novembro de 2020, que dispõe sobre o direito de matrícula de crianças e adolescentes migrantes, refugiados, apátridas e solicitantes de refúgio no sistema público de ensino brasileiro.

O documento assegura, entre outras coisas e, havendo vagas, a matrícula em estabelecimento de ensino, inclusive na modalidade Educação de Jovens e Adultos e em creches, mesmo em casos de documentos fora da validade. Na ausência de documentos, salvo algumas situações, os estudantes serão avaliados e matriculados em qualquer etapa, conforme desenvolvimento e faixa etária, devendo a avaliação ser realizada na língua materna da criança ou adolescente.

Ademais, como alternativa à não absorção de todo o contingente de crianças e adolescentes migrantes nas escolas, o UNICEF, em ação conjunta com a ACNUR e com apoio financeiro da União Europeia, criou, a partir da pedagogia da emergência, espaços de educação e proteção que visam à manutenção da criança e do adolescente nas atividades educativas mesmo estando fora da escola, ao passo que preparam para o retorno ao ensino formal. Ao todo, são 23 unidades em Boa Vista e Pacaraima que já atenderam mais de 15,5 mil pessoas: "Os espaços oferecem educação não formal e assistência social e psicológica para crianças e adolescentes entre 3 e 17 anos" (AGOSTINHO, 2019, n.p.). Além disso:

Os espaços funcionam dentro e fora dos centros de abrigamento emergencial para refugiados e migrantes em Boa Vista e Pacaraima. As atividades educacionais realizadas nos espaços estão alinhadas com a Base Nacional Comum Curricular brasileira e incluem o ensino de língua portuguesa e espanhola, conhecimentos sobre a história e geografia do Brasil, ciências e outras competências, bem como o desenvolvimento de recreação e esportes. O objetivo é preparar as crianças e adolescentes atendidos para ingressarem na escola regular (Ibid., n.p.).

Tais ações se revelam fundamentais para o retorno à escolarização e tudo que isso envolve, a exemplo do direito ao brincar e à socialização, indo além: sabe-se que, quando uma criança ou adolescente está fora da escola, fica sujeito à situação de rua, trabalho infantil, mendicância, tem mais chances de sofrer violências e xenofobia, ser cooptado por facções criminosas e praticar atos infracionais.

Sobre este último, Oliveira (2018) já destacava a presença de adolescentes de naturalidade venezuelana, que estavam fora do sistema de ensino e em situação de vulnerabilidade social, nos registros de conflito com a lei em Roraima entre os anos 2006 e 2016. Contudo, os dados também revelam que estes não são, ao contrário do que muitas vezes é veiculado em rádios e programas de televisão local, os responsáveis pelo aumento da violência juvenil no estado, nos últimos anos. Estas informações, que consideram somente o senso comum e não têm nenhuma base científica, contribuem apenas para avolumar episódios de xenofobia e agressões de toda natureza, que urgem serem combatidos.

 

Considerações finais

O fenômeno da deslocação em massa de venezuelanos para o Brasil, especialmente para o estado de Roraima, ao mesmo tempo que representa um enorme impacto à demografia (representam 10% da população), também exige respostas urgentes diante dos inúmeros desafios para a gestão pública, organizações não-governamentais e sociedade civil.

À medida que chegam em situações cada vez mais vulneráveis e precisando de proteção, crianças, adolescentes e suas famílias demandam capacidade de resposta em diversas áreas das políticas sociais, como saúde, assistência social, educação e segurança pública. Precisam de documentos, acompanhamento e integração social; no caso dos adultos, o trabalho é primordial e, no caso das crianças e adolescentes, merecem atenção a educação, a saúde e o convívio familiar e comunitário.

Considerando que objetivo deste trabalho é discutir as circunstâncias dos deslocamentos de crianças e adolescentes venezuelanas para o Brasil, não se pode declinar de apontar alguns caminhos que podem refletir num melhor atendimento às políticas sociais e, em consequência, na garantia dos direitos da criança e do adolescente venezuelanos residentes em Roraima para que, num futuro próximo, sejam capazes de elaborar e viabilizar seus projetos de vida.

Neste sentido, considerando a incompletude institucional e, portanto, a necessidade de um trabalho articulado das políticas sociais, espera-se que os esforços coletivos apontem para as seguintes direções:

a) a ampliação de vagas em espaços que forneçam abrigo, alimentação e condições de manutenção da higiene pessoal e do convívio familiar e comunitário;

b) ampliação do número de vagas em espaços formais de educação;

c) melhorias nas condições de assistência à saúde de gestantes, crianças e adolescentes, com garantia do acompanhamento de pré-natal, imunização de acordo com cada calendário vacinal, orientações quanto a registros de nascimento e acompanhamento puerperal;

d) orientação às famílias para emissão de documentos (CPF e CTPS) e cadastramento em programas de assistência social a partir dos CRAS, priorizando, para os adultos, projetos de qualificação profissional;

e) realização de ações de combate à xenofobia e ao trabalho infantil;

f) realização de ações de incentivo à contratação formal de migrantes;

g) estabelecimento de ferramentas para monitoramento e avaliação dos fluxos migratórios e capacidade de resposta frente às ações realizadas.

Por fim, cabe refletir que, embora, à primeira vista, a migração venezuelana para Roraima possa ser entendida como um fenômeno negativo para muitos, já que vislumbram os aspectos da ampliação da população de rua, o aumento da pobreza e mendicância, a disputa por vagas de emprego (principalmente no comércio e construção civil) e por atendimento nos serviços públicos, além dos episódios de xenofobia e outras formas de violência, historicamente, a migração, como um fenômeno global e multifacetado, pode representar aspectos positivos em vários níveis para os países destino. Isto porque os migrantes contribuem para o aumento das taxas de natalidade (hoje crucial em vários países da Europa, como Portugal e Itália), favorecem o crescimento econômico, a inovação tecnológica e o empreendedorismo, podem representar saldos positivos nos sistemas de segurança social, contribuem para a diversidade cultural e linguística e, sobretudo, para a diplomacia e fortalecimento da democracia.

 

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Data de recebimento: 30/01/2021
Data de aprovação: 30/05/2021

 

 

Janaine Voltolini de Oliveira
Pós-doutoranda do Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais da Universidade Nova de Lisboa (CICS.NOVA), Portugal. Doutora em Geografia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), Brasil. Professora do curso de Serviço Social da Universidade Estadual de Roraima (UERR), Brasil, e assistente social do Tribunal de Justiça de Roraima (TJRR).
E-mail:jjanaine.voltolini@gmail.com

 

 

1 De acordo com a Organização Internacional para as Migrações (2019, p. 3), 61% dos refugiados em todo o mundo vivem em áreas urbanas.
2 Oliveira (2017), ao discutir a violência urbana e a criminalidade em Boa Vista, destaca que, nos últimos anos, Roraima tem se fortalecido como rota internacional para o tráfico de drogas e para o tráfico de pessoas.
3 É importante destacar o trabalho de triagem, documentação, regularização de guarda e encaminhamentos diversos (a exemplo da colocação em instituição de acolhimento) realizado em articulação entre a Superintendência da Polícia Federal de Roraima, a Defensoria Pública, o Ministério Público, o Tribunal de Justiça por meio das Varas da Infância e da Juventude e Vara da Justiça Itinerante, os Conselhos Tutelares e as secretarias municipais e estadual de assistência social.
4 Disponível em: <https://saude.rr.gov.br/index.php/sistemas/sistema-tabnet>. Acesso em: 13 jan. 2021. Dados sujeitos a atualização.
5 Processo de atravessamento de uma fronteira internacional ou de um Estado. É um movimento populacional que compreende qualquer deslocação de pessoas, independentemente da extensão, da composição ou das causas; inclui a migração de refugiados, pessoas deslocadas, pessoas desenraizadas e migrantes econômicos (ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL PARA AS MIGRAÇÕES, 2009, p. 43).
6 A definição do termo migrante ambiental encontra-se em Organização Internacional para as Migrações (2009, p. 43).
7 Sobre as condições de refúgio, atentar-se para a Lei nº 9.474, de 22 de julho de 1997 (BRASIL, 1997).
8 O aumento dos fluxos de venezuelanos atravessando a fronteira e solicitando refúgio no Brasil levou o Conselho Nacional de Imigração a editar a Resolução Normativa Nº 126, de 2 de março de 2017, que dispõe sobre a concessão de residência temporária a nacional de país fronteiriço (BRASIL, 2017).
9 O estado foi criado pela Constituição Federal (BRASIL, 1988).
10 13 de setembro, Jardim Floresta, Latife Salomão, Nova Canaã, Pintolândia, Rondon 1, 2 e 3, Santa Tereza, São Vicente 1 e 2, Tancredo Neves.
11 BV-8 e Janokoida (exclusivo para indígenas).
12 Entre elas: Fraternidade Sem Fronteiras (FSF); Caritas; Médicos Sem Fronteiras (MSF); Associação Voluntários para o Serviço Internacional (AVSI); Fraternidade Internacional (FFHI); Ministério da Cidadania do Governo Federal; Força Tarefa Logística Humanitária das Forças Armadas; Instituto Pirilampos; Agência Humanitária da Igreja Adventista do Sétimo Dia (ADRA); Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF); Conselhos Tutelares (CT); Tribunal de Justiça de Roraima (TJRR); Universidade Federal de Roraima (UFRR); Governo do Estado e prefeituras municipais de municípios de Roraima, por meio de secretarias de saúde, educação, segurança e assistência social.
13 Em Roraima estão em funcionamento 4 instituições de acolhimento para crianças e adolescentes, sendo 1 municipal para acolhimento de crianças residentes na capital Boa Vista e 3 estaduais: 2 para atendimento de adolescentes - 1 masculina e 1 feminina - e 1 para atendimento de crianças residentes nos outros 14 municípios do interior do estado.

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