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Revista Subjetividades
versão impressa ISSN 2359-0769versão On-line ISSN 2359-0777
Rev. Subj. vol.15 no.1 Fortaleza abr. 2015
ARTIGO ORIGINAL
Notas sobre a metapsicologia do ato transgressivo
Notes about metapsychology transgressive act
Notas sobre la metapsicología del acto transgresivo
Notes sur la metapsychologie de l'act transgressif
Alan Souza LimaI; Mauricio Rodrigues de SouzaII
IMestre em Psicologia Social e Clínica pela Universidade Federal do Pará. Psicólogo Clínico
IIPós-Doutor em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor Adjunto IV no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Pará
RESUMO
Este artigo visa à construção de algumas reflexões acerca da metapsicologia do ato transgressivo, no qual vislumbramos a incidência da atuação em conjunto do masoquismo primário, do supereu e da pulsão de morte. Com efeito, acreditamos serem três conceitos enlaçados de tal modo que, ao pensarmos acerca do funcionamento de um deles, automaticamente nos vemos obrigados a convocar os outros se quisermos contemplar um panorama mais completo no que tange à metapsicologia. Nossos balizamentos para tal empresa são as construções freudianas do início da década de vinte, especificamente as obras Além do Princípio do Prazer (1920), O Eu e o Isso (1923) e O Problema Econômico do Masoquismo (1924). Nosso ponto de partida é a ideia de que, se na obra de 1920 a pulsão de morte é tida como uma hipótese especulativa, será somente no contexto da obra de 1923 que Freud articulará de maneira eficaz as ferramentas teóricas e clínicas que permitem adensar e integrar tal noção. Por fim, com o auxilio da descrição freudiana sobre os "criminosos por sentimento de culpa", faremos uma breve explanação sobre a incidência deste trio "infernal" na realização da transgressão, na tentativa de compor um cenário mais completo no que diz respeito à metapsicologia que subjaz a esta ação.
Palavras-chave: metapsicologia; pulsão de morte; supereu; masoquismo primário; transgressão.
ABSTRACT
This article intends to make some reflections on the metapsychology of the transgressive act, which we perceive as the incidence of a joint operation of the primary masochism, the superego and the death drive. In fact, we believe that these three concepts are so interlaced that, thinking about the functioning of one of them enforces, automatically, into call the others, if we wish to consider a more comprehensive overview regarding the metapsychology. Our guide for this endeavor are the Freudian constructions of the early twenties, specifically: Beyond the Pleasure Principle (1920), The Ego and the Id (1923) and The Economic Problem of Masochism (1924). Our starting point is the idea that, if in the 1920 work, the death drive can be considered only a speculative hypothesis, it is only in his 1923 work that Freud articulates, in a more efficient manner, the theoretical and clinical tools that allows the solidification and integration of this notion. Finally, with the help of Freudian descriptions about "criminals by guilt feelings", we elaborate a brief explanation about the incidence of this trio from "hell" in the realization of the transgression, trying to set a thorough scenario with respect to the metapsychology that underlies this action.
Keywords: metapsychology; death drive; superego; primary masochism; transgression.
RESUMEN
Este trabajo tiene como objetivo construir algunas reflexiones sobre la metapsicología del acto transgresor, en lo cual vemos la incidencia de las operaciones conjuntas del masoquismo primario, del superyó y de la pulsión de muerte. De hecho, creemos que estos tres conceptos están entrelazados en tal manera que, cuando uno piensa sobre el funcionamiento de uno de ellos, automáticamente se ve obligados a llamar los otros, si se quiere considerar una visión más completa sobre la metapsicología. Nuestros guías para esta empresa son las construcciones freudianas de los años veinte, en concreto las obras: Más Allá del Principio de Placer (1920), El Yo y el Ello (1923) e El Problema Económico del Masoquismo (1924). Nuestro punto de partida es la idea de que, se en el trabajo de 1920, la pulsión de muerte se considera una hipótesis especulativa, es sólo en el contexto de la obra de 1923 que Freud articuló eficazmente las herramientas teóricas y clínicas que permiten espesar e integrar esta noción. Finalmente, con la ayuda de la descripción freudiana de "criminales por sentimiento de culpa", se hace una breve explicación acerca da la incidencia de este trio "infernal" en la realización de la transgresión, en una tentativa de componer un escenario más completo con respecto a la metapsicología que subyace esta acción.
Palabras clave: metapsicología; pulsión de muerte; superyó; masoquismo primario; transgresión.
RÉSUMÉ
Cet article a l'intention de construire quelques réflexions sur la metapsychologie de l'acte transgressive, lequel nous apercevons l'incidence en ensemble du masochisme primaire, de surmoi et de la pulsion de mort. En effet , nous croyons qu'il sont trois concepts attachés d'une manière que, quand on pense sur fonctionnement d'un d'entre eux, immédiatement nous nous voyons en contrainte de convoquer les autres pour envisager un panorama plus complet en ce qui concerne à la metapsychologie. Nôtres références pour cette entreprise sont les constructions freudiennes au début de la décennie de vingt, spécifiquement les oeuvres Au-Delà de Principe de Plaisir (1920), Le Moi et le Ça (1920) et Le Problème Économique de Masochisme (1924). Notre point de départ c'est l'idée de que, se dans l'oeuvre de 1920 la pulsion de mort est considérée comme une hypothèse spéculatife, il sera seulement dans le contexte de l'oeuvre de 1923 que Freud articulera de manière efficace les outils théoriques et cliniques que permettent condenser et intégrer telle notion. Finalement, avec l'aide de la description freudiennes sur les "criminels pour sentiment de faute", nous ferons une brève explication sur l'incidence de ce trio "infernal" dans la réalisation de la transgression, dans le but de faire un cadre plus complet sur la metapsychologie que est implicite dans cette action.
Mots-clés: metapsychologie; pulsion de mort; surmoi; masochisme primaire; transgression.
É no artigo "O Inconsciente", na sessão sobre a "Topologia e Dinâmica das Representações", que Freud (1915/1979f) irá estabelecer o significado do termo metapsicológico em sua obra. Consistiria no saldo de uma exposição acerca do funcionamento psíquico do sujeito que fosse capaz de abarcar, de modo mais ou menos completo, as relações dinâmicas, topológicas e econômicas de tal funcionamento.
Nestes termos, o ponto de vista dinâmico se refere aos fenômenos psíquicos como sendo o efeito da ação recíproca e conflituosa entre forças mais ou menos antagônicas. Por conseguinte, a explicação advinda do ponto de vista dinâmico não requer apenas a análise do fenômeno psíquico em si, mas também a análise das forças que os produzem. No ensaio "As Pulsões e Seus Destinos", Freud (1915/1979g, p. 117) afirma ser a pulsão um conceito-limite entre o somático e o psíquico. E mais: "(...) como um representante psíquico dos estímulos provenientes do interior do corpo e que alcançam a alma, como uma medida de exigência do trabalho imposta ao psíquico como consequência de sua ligação com o corpo". A tendência destes representantes seria o rebaixamento do nível de tensão por meio da descarga de forma imediata, contra o quê se oporiam as medidas de proteção do recalcamento. Este embate entre as moções pulsionais e o esforço recalcador para suprimi-las constituiria a base dos fenômenos psíquicos e daria consistência ao ponto de vista dinâmico.
Já o ponto de vista topológico consiste na concepção sobre o aparelho psíquico formulado por Freud desde os primórdios de sua obra, sendo o primeiro esquema conceitual desta monta identificado no famoso capítulo VII da obra A Interpretação dos Sonhos (Freud, 1900/1979a), o qual seria posteriormente retomado no já referido ensaio metapsicológico "O Inconsciente". O essencial de ambas estas referências é a tomada do aparelho psíquico como composto por duas instâncias opostas, dois grandes sistemas (pré-consciente/consciente e inconsciente) que se opõem frontalmente, estando neste embate à causa para a produção das chamadas formações do inconsciente.
Finalmente, o ponto de vista econômico se volta para a energia psíquica a partir de seu quantum, da sua intensidade - ou seja, a partir do prisma quantitativo. O interesse aqui recai sobre o modo como esta energia circula como ela se mobiliza em investimentos e é repartida entre as diferentes instâncias, objetos e representações. As energias empregadas pelas moções pulsionais, assim como pela instância recalcadora, são surpreendentemente deslocáveis. Há representantes pulsionais mais difíceis ou mais fáceis de recalcar, estando tal operação na dependência também da força contrária empregada pelo recalcamento. O ponto de vista econômico se volta para a questão acerca da quantidade de excitação suportada no embate entre as instâncias.
A formulação do novo dualismo pulsional obedeceu a certa exigência clínica acerca das neuroses traumáticas: Aquelas que não respondem satisfatoriamente ao modelo anterior de formação de sintoma enquanto formação de compromisso, conforme Freud (1920/1979i) formula. Soma-se a isso a problemática crucial da repetição que, em linhas gerais, consiste na reedição do doloroso e traumático em detrimento da "evolução" do tratamento analítico. Ainda que reeditem uma experiência vivida anteriormente que causara dor e desprazer, as repetições não deixam de conter um "núcleo inassimilável, pois como poderia alguém se assustar com algo tantas vezes visto?", conforme indaga Santos (2002, p. 95).
Este acosso na direção do desprazeroso parece responder a um imperativo inegociável, caracterizando o que podemos chamar de uma atração irresistível para o sofrimento agenciada pela ação da pulsão de morte. O encaminhamento que esta daria de volta ao estado anterior consistiria na cessação absoluta das atividades anímicas que caracterizariam a vida psíquica, no esforço de fazer realizar a plenitude das moções pulsionais. A pulsão de morte consistiria neste fator estranho que conduziria ao inanimado por meio de reiteradas tentativas nas quais identificamos o campo por excelência da compulsão à repetição.
Podemos vislumbrar o quanto a introdução do novo dualismo pulsional e da chamada segunda tópica, no início da década de vinte, fora capaz de um considerável remanejamento no que diz respeito à metapsicologia, pois suas primeiras formulações estão contidas no âmbito do primeiro dualismo pulsional e da primeira tópica. O primeiro dualismo pulsional formulado por Freud (1905/1978) opunha pulsões sexuais e pulsões de autoconservação. Já a primeira tópica, por sua vez, fora formulada por Freud (1900/1979a) ainda na sua obra fundamental, A Interpretação dos Sonhos. Nela encontrávamos a oposição entre os sistemas consciente/pré-consciente e inconsciente.
Com efeito, como fora dito anteriormente, Freud (1920/1979i) se depara com novos elementos clínicos que o fazem rever suas considerações acerca da questão pulsional presente no tratamento, o que, por sua vez, requer novos arranjos metapsicológicos. Por conseguinte, sendo a metapsicologia o que marca de maneira indelével o campo psicanalítico, sua validade permanece impassível e por isso levamos adiante a assertiva freudiana de que uma análise só pode ser considerada minimamente completa se forem contemplados todos os planos que compõem o conjunto metapsicológico (dinâmico, topológico, econômico). Como o próprio Freud (1920/1979i, p. 7, grifo do autor) observa: "Uma descrição que, junto ao fator topológico e ao dinâmico, procure apreciar este outro aspecto econômico, parece-nos ser a mais completa que podemos imaginar, merecendo a designação de metapsicológica".
De todo modo, diz Freud (1915/1979f) que a exposição metapsicológica, no estado atual de seus conhecimentos à época dos artigos sobre metapsicologia, ainda era feita apenas em alguns pontos isolados. Tal afirmação nos impele a problematizar o estatuto da exposição de cunho metapsicológico após as importantes modificações introduzidas na década de vinte, a partir da introdução do segundo dualismo pulsional e a formulação da segunda tópica.
Dessa feita, intentamos arregimentar um conjunto satisfatório de elementos conceituais para discorrermos sobre o estatuto metapsicológico do ato transgressivo na figura descrita por Freud (1916/1979c) como aquela do "criminoso por sentimento de culpa". Tal conjunto de elementos conceituais terá como peças fundamentais a noção de pulsão de morte, repetição e supereu na medida em que acreditamos que tais elementos se encontram bastante relacionados na obra freudiana. Na realidade, acreditamos que a noção de pulsão de morte, em um primeiro momento tido como "especulativa", só se torna definitivamente operativa no âmbito clínico com a cunhagem teórica do supereu. Rudge (2006) supõe que a pulsão de morte surge como efeito do supereu e que ambos os conceitos não são inteligíveis se não forem levados em consideração conjuntamente.
A ideia de que a pulsão de morte surge enquanto efeito do supereu se justifica pela constatação de que o supereu se insinua na escrita freudiana muito tempo antes de sua definitiva nomeação. Gerez-Ambertín (2003) demonstra as questões que levam à teorização desta instância psíquica, surgida ainda nos primórdios da clínica psicanalítica, e na medida em que esta evolui, os espectros daquilo que virá a ser o supereu assomam a um patamar cada vez mais evidente. Uma das primeiras ocorrências de sua incidência sob a pena de Freud (1907/1979b) aparece na "religião privada" do neurótico obsessivo, em obediência aos "mandatos insensatos"; posteriormente, há uma ocorrência ainda mais significativa no texto dedicado à questão do narcisismo (Freud, 1914/1979e), quando se descreve a participação do "Ideal do Eu" na constituição do quadro paranoico. Com efeito, é na melancolia (Freud, 1917/1979d) que o modus operandi daquilo que se constituirá como o supereu aparece melhor delineado: na virulência do ataque do Eu contra si mesmo; por sua vez, a descrição da dinâmica psíquica do criminoso por sentimento de culpa (Freud, 1916/1979c) também consiste numa ocorrência significativa; também se pode evocar a incidência da futura instância psíquica no conjunto de questões levantadas pela fantasia masoquista a qual o sujeito se submete em Uma Criança é Espancada (Freud, 1919/1979h).
Ora, o que se destaca nestas descrições é o caráter imperativo que as caracteriza: uma necessidade incoercível de proceder aos ritos da "religião privada" do neurótico; uma "voz" como que vinda de fora no delírio paranoico; uma autoacusação feroz na melancolia; uma injunção insensata no crime por sentimento de culpa; uma inclinação irrefreável para submissão na fantasia masoquista. Frente a isto, da maneira retroativa, pode-se supor nestes fenômenos o agenciamento da instância psíquica descrita poucos anos mais tarde. Há um vasto universo de fenômenos na clínica e na cultura que, se não são definitivamente clarificados mesmo com a formulação posterior do supereu, revelam, ao menos, novas possibilidades de manejo clínico e conceitual a partir do surgimento deste.
Há ainda outra questão: A elaboração teórica desta série de incidências já faz aportar, no corpo teórico da psicanálise, a questão do além do princípio do prazer privilegiada na obra de 1920. Se em Além do Princípio do Prazer, Freud (1920/1979i) tenta dar conta das neuroses traumáticas e das compulsões à repetição por meio da cunhagem da pulsão de morte, é preciso que se atente para o fato de que algo de "demoníaco" já fora posto em questão algum tempo antes. Notamos, além disso, que este "demoníaco" parece irromper sob os auspícios da "instância crítica" (1917/1979d) ou mesmo dos imperativos a partir dos quais despontam as primeiras "engrenagens" do supereu. Com o além do princípio do prazer, o "demoníaco" parece mesmo se relacionar intimamente com a pulsão de morte, ainda que falte ao texto de 1920 demonstrar como se opera a passagem da tendência regressiva da pulsão - retorno ao inorgânico - à virulência do ataque contra si mesmo e contra o outro. Por conseguinte, se reconhecemos na incidência dos fenômenos aqui mencionados - e que foram descritos por Freud antes de 1920 - os rudimentos clínicos e teóricos que irão compor a quimera superegóica a partir de 1923, podemos supor que, no plano da teoria psicanalítica desenvolvida por Freud, a pulsão de morte surge como efeito do supereu.
Daí a necessidade de vermos como estes conceitos se conjugam na análise metapsicológica do ato transgressivo, em que a questão da culpa é central para a sua emergência.
Do Masoquismo Primário ao Supereu e à Pulsão de Morte
O maior móbil que levou Freud a cogitar a presença de algo incoercível que conduz ao inanimado foi a reiteração insistente das repetições na análise. Mais especificamente, a repetição de experiências dolorosas, das quais os sonhos traumáticos consistem no exemplo mais candente. De todo modo, a obra na qual a pulsão de morte é elucubrada, Além do Princípio do Prazer (1920/1979i), abre com considerações de cunho metapsicológico. Refere-se à regulação que a vida anímica tem por meio da atuação do princípio do prazer, que, no limite, consiste na evitação do desprazer ou geração de prazer. O primeiro consiste na evitação da tensão provinda da retenção das moções pulsionais e o segundo é a sensação de alívio oriunda da cessação da tensão. O prazer aqui não contém a simples conotação de bem-estar, como se pode depreender de uma primeira leitura. Tal consideração situa-se no campo eminentemente econômico, no qual a definição precisa do que seja o prazer não é descrita em sua essência.
Dentro da hipótese econômica, se o prazer é tido como diminuição da excitação psíquica e o desprazer tido como aumento da excitação, considerar o prazer como bem-estar pode acarretar sérios problemas de ordem teórica, pois nem sempre os processos psíquicos são acompanhados de prazer, como se poderia esperar em função do modelo do princípio do prazer. Freud (1920/1979i) então evoca os trabalhos de Fechner, nos quais o prazer seria relacionado à estabilidade, à manutenção da medida possível entre as grandezas psíquicas. Com efeito, o que Freud (1920/1979i) problematiza no início de Além do Princípio do Prazer é a proeminência que este princípio teria na vida anímica, relativizando-a ao máximo sem, contudo, contradizê-la. Em seguida, discorre sobre os fenômenos que de alguma forma contrariam este primado do princípio do prazer. A saber: o sonho típico da neurose traumática e as brincadeiras das crianças.
Os primeiros são decorrentes dos traumas adquiridos por ex-combatentes da primeira guerra, acometidos por um tipo específico de neurose que, ainda que tenha com a histeria alguma semelhança quanto aos sintomas motores, com ela em nada se parecia em função dos: "[...] indícios bastante desenvolvidos de sofrimento subjetivo, que se assemelhar a uma hipocondria ou a uma melancolia, e nas evidências de um mais amplo enfraquecimento e transtorno das funções psíquicas" (Freud, 1920/1979i, p. 12). Ou seja, a sintomatologia das neuroses traumáticas não se coadunava com a sintomatologia do modelo das "formações de compromisso", que vicejam ricamente dada a plasticidade das representações por meio do recurso à condensação e ao deslocamento. Há algo na neurose traumática que permanece impassível e que não é posto a trabalho pelo jogo das substituições. Mais especificamente, este caráter sempre "cru" do trauma se presentifica nos sonhos que fazem com que o sujeito retorne à situação do evento traumático, da qual ele desperta com renovado terror, como se vivera aquela mesma situação pela primeira vez. Assim como na sintomatologia da neurose traumática, os sonhos não apresentam fios a partir dos quais se poderia tecer o sentido oculto em suas representações. Pelo contrário: "A ausência de qualquer forma de elaboração onírica que pudesse revelar no trabalho associativo um sentido oculto, uma alusão, faz desse sonho típico uma exceção" (Santos, 2002, p. 95).
Já as brincadeiras infantis, ainda que contenham também um fundo de traumático, possuem em seu bojo a tentativa de dominar o aspecto doloroso do trauma por meio do recurso do simbólico. O conhecido jogo do Fort-Da serve como exemplo privilegiado para Freud (1920/1979i) descrever a experiência de repetição de uma situação desagradável que é a ausência da mãe para criança. Ao jogar o carretel para fora de seu raio de visão, a criança visa domar a situação de desamparo representando a ausência do objeto materno. E, ao trazê-lo de volta para junto de si por meio do fio, concretiza tal domínio, fazendo com que o objeto que está no lugar do corpo materno responda ao seu arbítrio. O traumático aqui é esmiuçado por meio do jogo simbólico:
A interpretação do jogo então foi óbvia. Ele estava relacionado à grande conquista cultural do menino, à renúncia pulsional (renúncia à satisfação pulsional) por ele realizada de permitir a ausência da mãe sem protestar. Ressarcia a si mesmo, digamos, ao encenar o desaparecimento e a reaparição com os objetos que estavam ao seu alcance. (Freud, 1920/1979i, p. 15)
O jogo do Fort-Da contém uma grande peculiaridade ressaltada pela pena de Freud. Trata-se da questão do domínio sobre a situação dolorosa, revivida pelas reiteradas repetições da ausência materna. Podemos pensar que o acento é posto sobre a ausência, representada pelo carretel fora do campo visual da criança. É neste momento específico do jogo que se encontra a ambivalência que marca a teorização freudiana: mesmo que seja a repetição de uma situação dolorosa, ela comporta uma dimensão de prazer. Santos (2002) enfatiza bem este aspecto ao comentar que, se por um lado tal repetição contradiz o princípio do prazer, por outro o afirma. O prazer estaria na própria atividade de representação, ainda que o que venha a ser representado no jogo seja justamente aquilo que é doloroso.
Freud (1920/1979i) se refere ainda a outros elementos para justificar a consideração à compulsão à repetição como algo que sobrepuja o princípio do prazer. A esta compulsão estariam ligados os sonhos das vítimas de neurose traumática e o impulso que leva as crianças a brincar. De todo modo, o que parece estar em questão é esta oposição tenaz que o princípio do prazer encontra em seu caminho e que insiste em retornar. Há nisto algo de mais originário, elementar, pulsional na compulsão à repetição, além do princípio do prazer. Logo, Freud (1920/1979i) se vê diante da contingência de ter que pensar sobre o que se encontra além deste princípio que, até então, gozou do privilégio de ser o guia único da vida anímica do sujeito a partir corpo teórico da psicanálise. Se a compulsão à repetição conduz ao pior do desprazer é por que algo atrai o sujeito de modo inexorável para o sofrimento, algo demoníaco que não cessa jamais de tentar realizar o seu propósito. É neste contexto que Freud partirá para a teorização da pulsão de morte, motor teórico da compulsão à repetição.
Nesse ponto da nossa démarche, é preciso que façamos uma consideração importante. Mencionamos acima a relação entre pulsão morte e supereu no desenvolvimento da teorização de Freud. Daí, cremos que se faz necessário que a incursão sobre este conceito seja feita em concomitância com a apreciação da noção de pulsão de morte antes de nos voltarmos para a interrogação que nos propomos apreciar neste texto, qual seja: o "estatuto" metapsicológico do criminoso por sentimento de culpa após a definitiva formulação da segunda tópica e do segundo dualismo pulsional.
Conforme pontua Rudge (2006), a noção de pulsão de morte serviu a Freud como uma maneira de sinalizar fatos clínicos que até então ainda não haviam sido levados devidamente em conta. Em tal contexto, é apenas ao cunhar o conceito de supereu que ele poderá se munir de ferramentas teóricas para a clínica dos quadros de atração pelo sofrimento e pela dor. O próprio Freud (1923/1979j, p. 13) inicia a obra na qual enfim nomeia a sua "moção maligna" como supereu com a seguinte assertiva:
As seguintes considerações retomam um curso de pensamentos que iniciei em Além do princípio do prazer (1920), diante dos quais minha atitude pessoal era de uma certa curiosidade benévola. Elas lhes dão prosseguimento, ligam-nos a diversos fatos da observação analítica, procuram deduzir novas conclusões a partir dessa relação, mas não fazem novos empréstimos à biologia, e por isso estão mais próximas da psicanálise do que aquela obra.
Eis o essencial do primeiro parágrafo, que, de um só golpe, faz com que Freud (1923/1979j) situe de maneira panorâmica o estatuto das reflexões obtidas com a obra de 1920. Naquele contexto, o saldo mais candente daquele trabalho, a pulsão de morte, foi tido como uma noção especulativa para a qual Freud voltara sua "curiosidade benévola" a partir de fenômenos inexplicáveis pelo modelo anterior do primeiro dualismo pulsional. Este material será tratado agora de modo tal que, prosseguindo em seu encalço, poderá ser ligado de maneira mais vigorosa aos fatos da observação psicanalítica. E o mais importante: afastar-se-á ainda mais de qualquer referência biológica. Atua como uma síntese do que fora até então abordado, e não mais como uma especulação no sentido que Freud (1920/1979i, p. 24) dera ao iniciar a sessão na qual expôs a noção de pulsão de morte pela primeira vez: "O que se segue é especulação, às vezes especulação extremada, que cada um pode apreciar ou dispensar, de acordo com sua posição subjetiva".
Ora, a pulsão de morte é definida, a partir da especulação freudiana e do empréstimo à biologia, como uma tendência para reconduzir o organismo vivo ao estado inorgânico. Rudge (2006) ressalta a perplexidade que tal concepção pode causar, já que o pensamento psicanalítico tendeu e tende a se afastar progressivamente da referência biológica, mesmo que o fundador, influenciado pelo paradigma evolucionista, acreditasse firmemente na continuidade entre o somático e o psíquico. Com efeito, a noção de pulsão de morte, pelo espectro de fenômenos que abarca, requer uma extraterritorialidade em relação ao conjunto das outras construções freudianas.
Com efeito, em 1923 se faz necessário então um afastamento ainda um pouco maior das referências biológicas, de modo a trazer para mais próximo dessa "especulação" os dados específicos da experiência e da observação psicanalíticas. Por conseguinte, é preciso que façamos menção aqui a um dado fundamental: a formulação do novo dualismo pulsional, o qual, confrontando Eros e Tânatos, aparece como uma tentativa de salvaguardar o conflito psíquico. Este, como sabemos, goza de uma posição privilegiada no corpo teórico da psicanálise freudiana (afinal, possibilitou um entendimento seguro acerca das agruras do sofrimento neurótico).
Ora, Rudge (2006) chama atenção para fato de que, mesmo salvaguardado no interior do pensamento freudiano, o dualismo permanece inutilizado diante do novo panorama expresso pela pulsão de morte. A justificativa para tal afirmação aparece à medida que na segunda tópica temos eu, isso e supereu como polos de possíveis conflitos psíquicos e que fundamentariam os sintomas neuróticos e psicóticos. Neste arranjo, contudo, a oposição entre as duas pulsões não encontraria lugar, pois as pulsões primárias, tanto as de vida quanto as de morte, encontram-se espalhadas por todo psiquismo. Ou seja, com ambas as pulsões espraiadas por todo psiquismo parece não haver lugar para o conflito.
Ainda que formem um par para salvaguardar o dualismo enquanto referência imprescindível para dimensão conflitiva da psicanálise freudiana, pulsões de vida e pulsão de morte não perfazem exatamente estes territórios opostos, condição de existência do conflito, pois se encontram "diluídas", amalgamadas e indiscerníveis ao longo da segunda tópica.
Frente a isso, podemos então nos perguntar acerca da funcionalidade e permanência da pulsão de morte para teoria freudiana das neuroses. Mezan (2006, p. 494) pontua que o alcance da nova teoria das pulsões sobre o aparelho conceitual da psicanálise é supreendentemente limitado. Em decorrência disso, ela irá afirmar que:
A lista dos problemas em que a pulsão de morte não intervém é, bem dizer, bastante longa; na verdade, no nível psíquico, é apenas na severidade do superego, no masoquismo originário e na análise do ódio e do sadismo que desempenha um papel de destaque.
Importante menção à participação destacada da pulsão de morte na severidade da instância superegóica, que até aquele momento, como temos visto, ainda não havia sido definitivamente teorizada, ainda que o supereu venha sendo uma constante presença ainda indefinível na teorização de Freud desde há muito.
Em linhas gerais, a questão gira em torno da pertinência da originalidade da pulsão de morte que se expressa de maneira mais evidente na agressividade e na violência do homem. Por sua vez, estas se manifestam de modo mais explícito no nível social, como nas guerras. Porém, também se manifestariam na dimensão mais restrita da clínica: nas neuroses traumáticas, nas manifestações masoquistas e, claro, na reação terapêutica negativa e nas passagens ao ato. Freud irá se voltar para elas não a partir do pressuposto da tendência ao inorgânico. Irá falar que as pulsões destrutivas são derivações da pulsão de morte originária. Não seria a pulsão de morte enquanto tendência ao inorgânico que explicaria diretamente a agressividade do homem. A agressividade aludida pelos fenômenos analisados por Freud - clínica e cultura - seria antes efeito das pulsões agressivas, derivadas da pulsão de morte originária. Nisto teríamos uma diferença entre a especulação biológica da pulsão de morte (retorno ao inorgânico) e seu extrato mais "superficial": o campo da agressividade do homem; tema de interesse clínico.
É nesse ponto que o supereu se torna a peça fundamental que ensejará uma melhor sistematização dos rudimentos apurados até então. O supereu será o operador lógico da agressividade do homem, sem o qual a pulsão de morte perde a sua vertente agressiva. Por conseguinte, a intervenção do supereu poderia lançar alguma luz sobre a violência com a qual o homem abate a si mesmo e ao seu semelhante.
É em tal contexto que, posteriormente, Freud (1926/1979l) irá discriminar os tipos de resistência ao tratamento analítico, dentre os quais destacamos a reação terapêutica negativa e o masoquismo como manifestações do sadismo do supereu. Tais resistências derivam do sentimento de culpa e da necessidade de autopunição. Com efeito, a culpa aparece como figura chave no universo do supereu e ela se torna uma peça fundamental desde o mito das origens descrito por Freud em Totem e Tabu (1913/1980). Logo, a construção metapsicológica que confere sentido a estes fenômenos se torna ainda mais imbricada sem o recurso à biologia, pois a pulsão de morte que conduz ao inanimado não parece equacionar de maneira satisfatória os fenômenos clínicos. Acrescente-se a isto um dos pressupostos mais fundamentais do discurso psicanalítico: aquele referente ao desamparo e à dependência do psiquismo humano quando de sua formação, condição de possibilidade para a servidão em relação a um pai severo (masoquismo primário).
Com relação a isso, um ano depois da formulação da segunda tópica, Freud (1924/1979k) trata sobre a questão do masoquismo, da qual ele já havia tratado anos antes nos seus famosos Três Ensaios. Contudo, neste novo trabalho, o masoquismo ganha um novo estatuto: não apenas enquanto derivação da pulsão parcial, mas como próprio fundamento da ordem pulsional. Ou seja, coloca-se na origem de todo desenvolvimento libidinal. Em linhas gerais, o masoquismo primário seria então um estado no qual a pulsão de morte, vinculada à libido, é dirigida ao próprio eu. Ele remeteria a um tempo em que a agressividade ainda não estaria voltada para um objeto externo. Tal lugar para o masoquismo corresponde à força da resistência com a qual Freud (1924/1979k) se depara: a mesma que se esforça para manter o sujeito no sofrimento. É com o postulado da vertente agressiva da pulsão de morte e, com isto, pela reafirmação do caráter desamparado do sujeito em sua vinculação irremediável ao masoquismo primário, que o supereu adquire ares de instância arcaica, referida ao pai da horda que, mesmo após ser morto e sacralizado (simbolizado) através do pacto edípico, ameaça retornar sempre, assombra com seu imperativo pela força, permanece como espectro ameaçador que não pacífica.
Pois bem, masoquismo primário, supereu (culpa) e pulsão agressiva (extrato mais superficial da pulsão de morte e com operacionalidade clínica) formam uma série no conjunto da obra freudiana que condiciona o lugar do sujeito após a psicanálise. Constituem o núcleo do mal-estar sobre o qual Freud irá refletir posteriormente. Com efeito, é contra esta série que este sujeito se debate de maneira ambivalente: ora lutando contra ela, ora buscando realizá-la nos extremos da repetição. Pode-se afirmar que é contra esta mesma série que se erige o princípio do prazer, ao passo que além dele se encontra a base deste "trio infernal" que comanda insensatamente o sujeito a se encaminhar na sua direção. Tal comando tem como operacionalizador clínico o supereu, sem o qual a pulsão de morte parece se impor como um duro monólito que não encontra um ponto de articulação com todo restante do constructo freudiano.
É nesse sentido que os efeitos produzidos por essa série podem ser minimamente articulados pela psicanálise e assim sucede com os tipos de caráter encontrados por Freud no trabalho analítico (1916/1979c). Se à época que este trabalho fora publicado - antes da formulação do segundo dualismo pulsional e da segunda tópica - Freud já se deparava com formas de resistência que desafiavam o modelo clínico primordial, após a cunhagem do supereu e da pulsão de morte tais "tipos de caráter" se tornam teoricamente mais inteligíveis. O criminoso por sentimento de culpa se constitui como grande paradigma da ação do supereu que conduz, por intervenção da culpa, ao exercício da pulsão agressiva com o intento de satisfazer o masoquismo primário. Isto na medida em que o crime cometido é uma forma de buscar a punição por um crime que permanece além da sanção penal atribuída.
À Guisa de Conclusão: A Metapsicologia do Crime por Sentimento de Culpa
O que marca o crime por sentimento de culpa é a anterioridade deste sentimento ao delito. Freud (1916/1979c, p. 338) afirma que: "Por paradoxal que isso possa soar, devo afirmar que aí a consciência de culpa estava preexistia ao delito, que não se originou deste, pelo contrário, foi o delito que procedeu da consciência de culpa". Tal curiosa peculiaridade deste tipo de crime só pode ser aventada a partir do saber psicanalítico, que não faz coincidir o ato presente com sua real motivação, na medida em que nos referimos a um sentimento de culpa inconsciente. Com efeito, Freud (1916/1979c) remete tal sentimento de culpa aos dois grandes intentos criminosos da humanidade. A saber: matar o pai e ter relações sexuais com a mãe. O crime realizado pelo sujeito atormentado pela culpa em função destes dois desejos teria a finalidade de fixar o sentimento de culpa em um ato objetivado, descrito e situável de maneira a ser sancionado pela lei vigente. O saldo em relação aos desejos incestuosos e parricidas seria o seu aplacamento em uma realidade material e uma cota de alívio diante da premência de tais desejos, já que, no registro inconsciente, o "simples" desejar já constitui um equivalente do ato.
Em linhas gerais, não se trata da mesma culpa que decorre do crime e que é sancionada juridicamente. Assim, a novidade freudiana está em formalizar um tipo de delito cuja execução está a serviço de uma intenção ainda mais obscura e que sempre permanecerá impune. E, neste sentido, cabe a ressalva de que, enquanto permanece encoberta por outro crime que não sanciona "a contento", a culpa originária continuará convidando ao delito.
Contudo, indagamos sobre como esse arranjo estabelecido por Freud para designar o criminoso por sentimento de culpa se reorganiza a partir do segundo dualismo pulsional e da segunda tópica e, mais especificamente, a partir do masoquismo primário, do supereu e da pulsão agressiva. Ou, dito de maneira distinta, perguntamo-nos: em que patamar a metapsicologia deste fenômeno se encontra a partir de tais postulados?
De início, a principal alteração empreendida por Freud (1920/1979i) já nos impõe um novo axioma sobre o fim pretendido pelo transgressor por sentimento de culpa. Todavia, este novo axioma não é especificamente um completo ultrapassamento do modelo anterior (como é comum no percurso freudiano), mas, em parte, sua complementação e sua superação.
No modelo anterior, o crime era efeito de uma pressão inconsciente exercida pelo sentimento de culpa. Esta culpa originária poderia ser manifestada por meio de angústia ou ser fixada por meio de um ato transgressivo. Para evitar a angústia da culpa, o criminoso encontra uma saída na sanção visada com a execução do crime. O fundamental do crime por sentimento de culpa não é o crime em si, mas a sanção que se espera após ele: a sanção que aliviaria a culpa. Sentida como desprazerosa a partir do inconsciente, a culpa pressiona no sentido de um desprazer que justifique, legitime e alivie o desprazer interior. O princípio do prazer (ou menor desprazer possível) apela ao princípio de realidade na medida em que este conta com a punição que deve advir como resposta ao seu ato. Ora, se assim não fosse, se não houvesse o intento de ser punido por uma instância exterior, o crime dificilmente seria uma saída aventada. Tal modelo parece satisfatório no que diz respeito à primeira tópica e ao primeiro dualismo pulsional.
Porém, a partir da segunda tópica o sentimento de culpa passa a ser mais bem localizado. Tendo isto em vista, o cometimento do ato delituoso com fins de aplacar a angústia e assim sancioná-la de forma indireta parece ser uma intenção posterior. Haveria uma razão mais forte e mais profunda que encaminharia para o crime. Certamente não se trata mais do princípio do prazer que apela ao princípio de realidade e sua certeza de encontrar punição do lado de fora, mas de uma moção ainda mais arcaica, além do princípio do prazer, e que chega a atuar contra si. Este é o ponto nodal da questão: o princípio do prazer parece ser rechaçado. E se é a partir dele que subsiste o desejo, pois ele mantém a circulação das representações no inconsciente - circulação mínimo possível, mas ainda assim circulação - o que estaria em causa no sentimento de culpa seria a negação do desejo, o estancamento da circulação das representações que põem este mesmo desejo para funcionar.
O substrato de tal tentativa de estancamento seria a inelutável presença do masoquismo primário. Este subjuga a partir dos traços arcaicos deixados no psiquismo à época em que ainda não havia uma diferenciação entre o mundo externo e interno e as pulsões agressivas circulavam livremente. Esta indiferenciação originária não implicaria no movimento desejante, já que este irá requerer a perda do objeto primordial e a diferenciação progressiva entre mundo externo e interno. É justamente esta indiferenciação que é reclamada pelo masoquismo primário. Então, com base no que afirmávamos anteriormente acerca do estreito vínculo entre a pulsão de morte e o supereu, ocorre-nos agora levantar a questão acerca das relações entre o supereu e o masoquismo primário.
O agenciamento do supereu sobre as pulsões agressivas corresponde a esta moção do masoquismo primário, pois, ao voltar contra si à pulsão de morte e seus derivados, o efeito obtido sobre o sujeito é a tensão agressiva entre o eu (fruto de identificações ao longo da formação do indivíduo) e o supereu (oriundo de uma identificação ainda mais arcaica). Com efeito, esta tensão não se equaciona de maneira satisfatória e definitiva, pois fora como saldo de um momento no qual o sujeito se encontrava completamente à mercê do próximo (Nebenmensch) que o supereu se esboçara, como uma espécie de trauma estrutural.
Com efeito, a culpa aparece como resultado desse atrito entre o eu e o supereu e o "convite" que este último dispensa àquele é de um retorno ao absoluto de servidão e indiferenciação vivido quando da plena égide do masoquismo primário. Nisto nos encontramos no campo da pulsão de morte enquanto tendência regressiva e da repetição enquanto tentativa reiterada da reconquista de tal condição. O intento maior é a abolição do campo do desejo que consistiria nos desdobramentos de representações que se concatenam a fim de evitar o horror suscitado pelos desejos criminosos de incesto e parricídio. Assim, o crime se torna uma estratégia plausível, pois ao mesmo tempo em que representa a busca por uma sanção jurídica externa, também podemos encontrar nele o exercício da submissão ao supereu e ao masoquismo primário.
A partir desta análise do criminoso por sentimento de culpa à luz do segundo dualismo pulsional e da segunda tópica, o crime seria uma tentativa de renúncia das representações regidas pelo princípio do prazer em favor do além do princípio do prazer. Consistiria então em uma busca por se encontrar novamente "amparado" no masoquismo primário, no qual a culpa estaria plenamente justificada, pois é uma abstração da teoria que a submissão irrestrita ao próximo (Nebenmensch) seja justamente a vivência do incesto e da negação do pai.
A sanção penal aplicada, como dissemos, permanecerá aquém da culpa originária que encaminhou para o crime, o que irá requerer da parte do criminoso por sentimento de culpa o prosseguimento da subserviência ao supereu. Este, ao agenciar as moções agressivas da pulsão de morte, não deixará de fazer subsistir a repetição que é sempre reiterada tentativa de obter um estado anterior. Por sua vez, tal reiteração não deixa de nos evocar a dimensão coercitiva do trio: masoquismo primário, supereu e pulsão de morte.
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Recebido em:03/12/2013
Revisado em:15/10/2014
Aceito em:17/01/2015