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versão impressa ISSN 2359-0769versão On-line ISSN 2359-0777
Rev. Subj. vol.15 no.1 Fortaleza abr. 2015
ARTIGO ORIGINAL
Uma nota sobre a homossexualidade na história
A note on homosexuality in history
Nota respecto la homosexualidad en la historia
Une note sur l'homosexualité dans l'histoire
Julio Pinheiro Faro
PMestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV); Secretário-Geral da Academia Brasileira de Direitos Humanos (ABDH); Pesquisador vinculado ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito Público da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN); Servidor Público Federal
RESUMO
Das questões mais polêmicas nos últimos anos tem sido a liberdade de orientação sexual. A presente nota demonstra, por meio de dados secundários, que a questão da necessidade de especificação do gênero do parceiro sexual só entrou em cena, na cultura ocidental, principalmente no século XVIII, e que a busca por reconhecimento público da possibilidade de orientação sexual diversa da hetero é, na verdade, uma reconquista, e não uma novidade na história da humanidade, já que há relatos de práticas análogas desde sociedades antigas.
Palavras-chave: liberdade; orientação sexual; gênero; homossexualidade; história.
ABSTRACT
One of the most recent polemical issues is the freedom of sexual orientation. The following note shows, using secondary data, that the necessity of specifying the genre of the sexual partner gained importance, on Western culture, only and mainly in the Eighteenth century, and that the need for public recognition of the hetero diverse sexual orientation is, actually, a reconquest, and not a novelty in the mankind history, once there are reports of analogues practices since antique societies.
Keywords: freedom; sexual orientation; genre; homosexuality; history.
RESUMEN
La libertad de orientación sexual ha sido uno de los temas más controvertidos de los últimos años. Esta nota demuestra, a través de datos secundarios, que la cuestión de la necesidad de una especificación de género de la pareja sexual solo se hizo presente, en la cultura occidental, especialmente en el siglo XVIII, y que la búsqueda de reconocimiento público de la posibilidad de un tercer tipo de orientación sexual es en realidad una reconquista, y no una novedad en la historia humana, ya que hay informes de prácticas similares desde las sociedades antiguas.
Palabras clave: libertad; orientación sexual; género; homosexualidad; historia.
RÉSUMÉ
Entre les questions plus controversées au cours des dernières années a été la liberté d'orientation sexuelle. Cette note demontre, à travers des données secondaires, que la question de la nécessité d'une spécification de genre de partenaire sexual est apparu en scène, dans la culture occidentale, en particulier dans le dix-huitième siècle, et que la recherche de la reconnaissance publique de la possibilité d'un troisième type d'orientation sexuelle est, en fait, une reconquête, rien un nouveau, dans l'histroire humaine, car il y a des rapports de pratiques similaires à partir des sociétés anciennes.
Mots-clés: liberté; orientation sexuelle; sèxe; homosexualité; histoire.
Uma das questões mais polêmicas nos últimos anos tem sido a liberdade de orientação ou de opção sexual, que é um dos resultados da luta pelo reconhecimento oficial pelo Estado das uniões entre pessoas do mesmo sexo e cuja discussão tem sido ampliada para outros tipos de manifestação da sexualidade humana, o que se chama de diversidade sexual (sobre as diferentes nomenclaturas, cf., p. ex. Silva, 2011, p. 97-100). A regra de que os opostos se atraem não tem, atualmente, mais qualquer valia; nem mesmo histórica, já que a especificação do gênero do parceiro sexual não era uma questão importante durante a antiguidade e o medievo europeus, tendo ganhado muita importância, na cultura ocidental, apenas no século XVIII (Löfström, 1997, p. 35).
O objetivo desta nota é demonstrar que, apesar de todo o preconceito ainda existente, o reconhecimento público da manifestação sexual heterodiscordante é uma reconquista em relação a uma orientação social (e até religiosa) que foi construída e transmitida durante séculos como a única possível.
Para alcançar o objetivo, utilizou-se como recurso metodológico a análise de dados secundários, de modo a relacionar informações levantadas por alguns autores que têm se debruçado sobre a questão, a fim de que se fundamente a hipótese de que a prática da homossexualidade foi muito comum até determinada época, quando se estabeleceu que somente fosse admitida como comportamento não desviante a relação afetivo-carnal entre um homem e uma mulher. A partir desse momento, a tônica da sexualidade teria se atrelado, provavelmente de modo impositivo, a um modelo de heterossexualidade, e passado a classificar como anormal ou imoral toda conduta heterodiscordante.
Relatos Sobre Práticas Homossexuais
Afirma-se a probabilidade da tentativa de imposição de um comportamento porque "as sociedades egípcia e mesopotâmia antigas, consideradas como importantes antecedentes da cultura ocidental, aparentemente não apenas toleravam relações homossexuais, como também as reconheciam em sua cultura, literatura e mitologia" (Eskridge, 1993, p. 1437-1438 e nota 49). As evidências disso são, contudo, apenas indiretas, não havendo muitos registros, sendo um deles a tumba do renomado faraó Akhenaton, que contém figuras dele em posições muito íntimas com seu companheiro, o que, para o período, era muito significante, já que na maioria das tumbas a representação entre homem e mulher era quase sempre muito formal (Eskridge, 1993, p. 1437-1438 e nota 49).
Outra evidência, porém na Mesopotâmia, se refere ao rei Zimri-Lim e ao rei Hammurabi da Babilônia, que "tinham amantes homens semelhantes a esposas" (Eskridge, 1993, p. 1439). Outras evidências dos costumes mesopotâmicos no que diz respeito às relações entre pessoas do mesmo sexo encontram-se na mitologia, no épico em que se conta "o relacionamento entre Gilgamesh, o grande e poderoso soberano de Uruk, e Enkidu, um homem criado pelos godos para divertir Gilgamesh" (Eskridge, 1993, p. 1439) e que, provavelmente, se tornou seu amante. Evidências ligeiramente mais fortes e diretas podem ser encontradas tanto na cultura grega antiga quanto na romana (Eskridge, 1993, p. 1437).
No Symposium de Platão há um registro interessante, em que ele explica como a humanidade foi originariamente dividida em três sexos: pares de dois homens, ou de duas mulheres ou de um homem e uma mulher (Odent, 2008, p. 81). Ainda nesta obra, há um discurso de Phaedrus, em que se sugere "que a relação esposo-esposa e a relação entre Aquiles e Pátroclo poderiam ser consideradas funcionalmente similares, mas que também eram formalmente diferentes, porque a primeira era um casamento e a segunda não" (Eskridge, 1993, p. 1442). De acordo com historiadores especialistas no assunto, no relacionamento entre Aquiles e Pátroclo não era claro quem fazia o papel de homem, concluindo-se, então, que relações entre pessoas do mesmo sexo na Grécia antiga se parecem bem mais com os modernos casamentos do que com o casamento entre pessoas do mesmo sexo naquele tempo, "em que esposo e esposa tinham pouca afinidade emocional e o esposo tinha grande liberdade para se envolver em ligações sexuais fora do casamento" (Eskridge, 1993, p. 1437).
Relata-se, também, que a essa época, em Atenas, os cidadãos, homens e adultos, "poderiam penetrar indivíduos socialmente inferiores, como mulheres, garotos, estrangeiros e escravos" (Rupp, 2001, p. 288). Parece haver consenso entre os historiadores de que na Antiguidade Greco-Romana não se proibia o relacionamento entre pessoas do mesmo sexo, havendo, inclusive, tolerância social para esse tipo de relação (Eskridge, 1993, p. 1445-1446).
Também há fortes provas de que havia tolerância ao relacionamento entre pessoas do mesmo sexo durante a Idade Média (Eskridge, 1993, p. 1437). É mais ou menos na Alta Idade Média, contudo, que parecem ter surgido os primeiros sinais de intolerância a esse tipo de relação: o Código de Justiniano de 533 d.C. tornou ilícita a relação íntima entre pessoas do mesmo sexo, "colocando-a na mesma categoria do divórcio e do adultério - tudo o que violava o ideal cristão do casamento entre pessoas de sexos distintos" (Eskridge, 1993, p. 1447 e 1449).
Na Idade Média cristã, a Igreja "era espiritualmente contra a relação entre pessoas do mesmo sexo porque dela não poderia resultar a procriação", admitindo, porém, paradoxalmente, "em alguns casos, uniões entre pessoas do mesmo sexo, especialmente entre clérigos". Contos, poemas e cartas eróticos já eram comuns nessa época (Eskridge, 1993, p. 1450).
É por volta do século XIII que as uniões homossexuais começam a ser combatidas, sobretudo com as leis que tornaram a prática da sodomia ilícita (Eskridge, 1993, p. 1469). A Igreja teve relevante papel nessa mudança, sendo protagonista na perseguição a pessoas que tivessem condutas invertidas - o que se chama atualmente, embora nem sempre com o mesmo preconceito, de condutas homossexuais.
O motivo pelo qual "essa mudança de atitudes ocorreu não está claro, mas se pode dizer que ela coincidiu com a aceleração de uma cultura ocidental que era urbana, burguesa e estatista", relatando-se que, ao mesmo tempo em que os homens tinham mais liberdade para ter relacionamentos com outros homens, o novo arranjo da sociedade tornou tal "atividade mais proeminente e potencialmente desestabilizadora" (Eskridge, 1993, p. 1470). Essa mudança de atitudes decorreu de pesado "investimento histórico" feito pelas instituições religiosas sobre um "tipo de sexualidade: aquela que permite a organização social a partir de um determinado tipo de família, baseada num casal heterossexual e monogâmico e que restringe ou privilegia a prática sexual orientada para a procriação" (Adelman, 2000, p. 164).
Não se deve esquecer que a essa altura da Idade Média havia a Inquisição, que perseguiu judeus, hereges, bruxas e pessoas que praticavam a inversão. Mas essa não foi uma peculiaridade da Idade Média, também na Idade Moderna (1453-1789) acreditava-se que as uniões homossexuais "constituíam uma grande ameaça à ordem social e para o agora-poderoso Estado" (Eskridge, 1993, p. 1472).
No século XIX mudou-se a expressão, embora não haja uma correspondência exata entre elas, de modo que aqueles a que se chamavam invertidos passaram a ser chamados homossexuais. Essa mudança de expressão se deveu a "um novo discurso médico-científico preocupado com o estudo e classificação das patologias", de maneira que "os primeiros estudos tentaram identificar as manifestações e 'causas' da homossexualidade" se propunham a criar terapias para tentar "normalizar" a vida sexual dos indivíduos invertidos, com o fim de controlar e regular a vida das massas urbanas (Adelman, 2000, p. 165).
Dentro desse sistema de controle social, apesar de toda perseguição e tratamento dispensado, há documentos históricos que atestam a existência, durante a Modernidade, bem como na Contemporaneidade, de comunidades ou guetos, situados dentro dos maiores centros urbanos europeus, de homens e mulheres que praticavam a inversão (Eskridge, 1993, p. 1472). Há relatos de que em Florença, entre 1459 e 1502, havia uma seção especial da magistratura, que fiscalizava os bons costumes, controlando, particularmente, a prática da sodomia (Cocks, 2007, p. 868). Na Grã-Bretanha, até 1861, a sodomia era considerada crime capital, embora ninguém tenha sido executado depois de 1835, sendo que a maioria das pessoas presas parecia pertencer a uma categoria identificada, no século XVIII, como mollies, isto é, rapazes ou homens afeminados, assumindo características de mulheres, de maneira que, no século XIX, os nomes utilizados eram "Mary-Ann", "Margery" e "poof", por exemplo (Cocks, 2007, p. 869 e 872). Além disso, "todos os comportamentos homossexuais eram crimes até 1967, uma vez que qualquer toque, beijo ou 'convite' poderia ser visto como uma 'tentativa' de cometer dito crime" (Cocks, 2007, p. 869).
Não só na Europa a prática da inversão era perseguida como pecado ou crime. Nos arquivos coloniais da Índia há registros feitos entre 1860/1861 e 1920, a respeito de condenações bem-sucedidas contra sodomitas (Arondekar, 2005, p. 20). Há relatos de colonizadores espanhóis e portugueses sobre a prática da inversão entre os povos nativos das Américas. Dentre os registros espanhóis há um de 1615, feito por Juan de Torquemada, que descrevia um costume muito comum entre os povos pré-colombianos em que "os pais [davam] um garoto ao seu jovem filho para que ele o possuísse como uma mulher e para usá-lo como uma mulher" (Eskridge, 1993, p. 1454). Também há um relato de 1576, feito por Pedro de Magalhães, de que havia mulheres no nordeste do Brasil que deixavam de lado seus afazeres e agiam como se fossem homens, tendo, cada uma "uma mulher para servi-la, com a qual elas diziam estarem casadas, e uma tratava a outra como se fossem marido e mulher" (Eskridge, 1993, p. 1454).
Além disso, há registros de que entre os Índios norteamericanos, os Astecas, os Maias e os Incas havia uma tradição chamada berdache, em que "uma pessoa, homem ou mulher, que se desviou do papel tradicional de seu gênero, adquire algumas das características e recebe as responsabilidades do sexo oposto", sendo considerada como pertencente a um terceiro sexo; e, ainda, se "casavam com indivíduos do mesmo sexo" (Eskridge, 1993, p. 1454-1455). A prática da tradição berdache existiu entre os índios Mohave, que ocupavam o oeste dos Estados Unidos (Rupp, 2001, p. 291). Dentre as tribos indígenas dos Estados Unidos, há um registro de fins do século XIX, de que em uma comunidade Zuni havia um líder político, We'Wha, um berdache, um homem que havia se casado com outro homem (Eskridge, 1993, p. 1419).
Há estudos antropológicos que demonstram haver tradições similares à berdache entre os povos africanos (Eskridge, 1993, p. 1460). Mas há talvez uma modalidade existente no continente africano que seja única, tendo-lhe sido dada a devida atenção pelos antropólogos na década de 1930. Trata-se da instituição dos "maridos femininos" ou "casamento de mulher", em que mulheres casavam com mulheres, sendo que uma delas assumia o papel do homem na relação (Eskridge, 1993, p. 1460-1461). Isso é interessante porque os relatos até então registrados traziam muito mais os relacionamentos entre homens, e raros eram aqueles entre mulheres, como aquele registro feito sobre mulheres no nordeste do Brasil. Há um registro do século XIX de uma tribo Igbo, localizada no leste da Nigéria, em que Ifeyinwa Olinke, uma mulher, em virtude de sua prosperidade era casada com outra mulher (Eskridge, 1993, p. 1419-1420). A questão da pouca atenção sobre relacionamentos homossexuais entre mulheres tem sua razão de ser no fato de que as mulheres eram consideradas sexualmente marginais (Eskridge, 1993, p. 1475).
Conta-se que no século XVI, na França, "o Senhor de Brantôme escreveu sobre o sexo entre mulheres com uma tolerância que ele não teria demonstrado para a sodomia masculina", explicando-se que uma razão aparente para essa anomalia seria o fato de que ele, como outros homens em sua época, acreditavam que relações homossexuais só seriam potencialmente ameaçadoras se houvesse um pênis envolvido (Eskridge, 1993, p. 1474). Há relatos de que nos séculos XVI e XVIII havia mulheres que se vestiam como homens, para se alistar no exército, desempenhar os trabalhos dos homens e também para ter relações com mulheres (Rupp, 2001, p. 293).
Entre os povos asiáticos também há fortes evidências de tolerância aos relacionamentos homossexuais, havendo inclusive registros de prática da tradição berdache, sendo, talvez, o exemplo mais bem-documentado aquele do casamento homossexual praticado entre os Hijiras na Índia, em que homens impotentes ou emasculados assumiam o papel de mulher (Eskridge, 1993, p. 1463). Há relatos de exploradores e missionários europeus sobre a prática de inversão em sociedades polinésias, em que os homens se vestiam de mulher e se relacionavam com outros homens (Eskridge, 1993, p. 1463). Os mahus do Taiti, no século XVIII, tinham a mesma prática: "eram homens que não só se vestiam como mulheres, como também desempenhavam o trabalho tradicionalmente feito por elas", sendo interessante observar que "a cultura taitiana não só aceitava os mahus, como também os reverenciava" (Eskridge, 1993, p. 1468).
As populações aborígenes da Austrália e da Melanésia desenvolveram uma espécie de "homossexualidade ritualizada" de curta-duração, e que se encontra muito bem documentada atualmente. Neste rito, "um garoto, antes de entrar na idade adulta, deve ter uma relação sexual temporária com um homem mais velho"; populações que praticam esse rito acreditam que "ao deixar seu sêmen dentro do garoto, o homem mais velho dá poder ao seu jovem parceiro, ajudando-o a completar a sua jornada para a virilidade e a idade adulta" (Eskridge, 1993, p. 1468).
Também se encontram evidências de prática homossexual institucionalizada no Japão feudal entre os guerreiros samurais, tendo sido feitos registros na literatura e em outros documentos durante o período Tokugawa e especialmente durante o século XVII (Eskridge, 1993, p. 1467), quando "se supunha que homens desejavam manter relações sexuais tanto com mulheres quanto com garotos" (Rupp, 2001, p. 289). De acordo com relatos históricos oficiais, "dez dos imperadores chineses da Dinastia Han (206 a.C a 220 d.C.) tinham amantes homens e relacionamentos homossexuais abertos" (Eskridge, 1993, p. 1464).
Há fortes evidências da institucionalização de casamentos homossexuais na China durante as Dinastias Yuan e Ming (1264-1644), especialmente registradas nas estórias de Li Yu, datadas do século XVII, e muito lidas: "muitas dessas estórias falam abertamente de relações sexuais e casos de amor entre homens" (Eskridge, 1993, p. 1465). Apesar disso, relata-se que no reino de Yongzheng (1723-1735) a prática homossexual entre homens foi "pela primeira vez diretamente 'assimilada' à prática heterossexual sob a rubrica de 'sexo ilícito'", o que provocou uma reorientação da sexualidade na China, embora "o problema nunca tenha sido a homossexualidade em si, e sim se o comportamento sexual de alguém poderia potencialmente reverter o sistema social dominante" (Chiang, 2010, p. 632).
O Termo "Homossexualidade"
Diante de todo esse histórico sobre a prática da homossexualidade no mundo, há que se discutir sobre a questão da orientação sexual. O fato é que "vários comportamentos e atributos têm sido confundidos com a orientação sexual", de maneira que para se evitar isso é possível utilizar uma distinção útil, que divide e enxerga a identidade sexual a partir de quatro prismas: biológico (material genético presente nos cromossomos), psicológico (sentir-se homem ou mulher), sociológico (papel desempenhado dentro da sociedade) e erótico/afetivo (disposição pelo sexo oposto ou pelo mesmo sexo), sendo que apenas este último tem uma clara relação com a orientação sexual do indivíduo (Gonsiorek, Sell e Weinrich, 1995, p. 40-41).
Sócio-biologicamente, a orientação erótico-afetiva homossexual é tradicionalmente "vista como o mecanismo emocional que predispõe certos indivíduos a escolher (ou a permitir que se escolha por eles) um papel não reprodutivo" (Weinrich, 1987, p. 308). Apesar de na escrita árabe medieval já existir, por exemplo, uma palavra para o que atualmente se denomina de lesbianismo e lésbica (Amer, 2009, p. 215), o termo homossexual era desconhecido até fins do século XIX (Schultz, 2006, p. 14; Sauer, 2010, p. 135), tendo sido substituído o nome inversão por homossexualidade na segunda metade do século XIX, havendo quem aponte 1869 (Mott, 2006, p. 510) e quem aponte 1892 (Fisher, 2007, p. 41) como marco temporal. No entanto, parece haver um consenso maior quanto ao ano de 1869, tendo sido o termo cunhado pelo austro-húngaro Károly Mária Kertbeny, designando, conforme a terminologia clínica, "as formas de amor carnal entre pessoas do mesmo sexo, impondo-se nas sociedades ocidentais à palavra heterossexualidade, que foi criada em 1888" (Giorgis, 2011, p. 64).
Todavia, cumpre considerar que, mesmo havendo outros termos para esse tipo de conduta (por exemplo, inversão), ainda depois do surgimento da sexologia, a homossexualidade era vista como conduta desviante (perversão sexual), não como identidade sexual. Tanto que o termo homossexualidade foi cunhado "não como uma forma de classificar ou de estigmatizar uma pessoa por suas atividades, e sim como uma 'orientação sexual', uma parte essencial da personalidade e do caráter de alguém", mas, além disso, pelo fato de uma "orientação sexual 'normal' ser heterossexual, sentir-se atraído fisicamente por pessoas do mesmo sexo tornou-se não apenas uma orientação homossexual, como também um 'desvio' sexual, uma doença" (Eskridge, 1993, p. 1473). Daí se afirmar que a palavra homossexual é problemática, já que seu uso tem implicações de diagnóstico, de patologia (Gonsioriek et al., 1995, p. 41), sendo um conceito bastante ambíguo (Rousseau, 1990, p. 226).
A sexologia do século XIX contribuiu para transformar a homossexualidade numa patologia a ser estudada e curada e para permitir uma abordagem que "tentava justificá-la, argumentando que se tratava de uma natureza diferente que algumas pessoas possuíam contra a qual (sendo esta 'natural') não havia porque lutar" (Adelman, 2000, p. 165). Essa visão de que havia uma orientação sexual "normal" e que a outra seria patológica, permitiu, com base no controle social (Mcintosh, 1968, p. 183-184), que os homossexuais fossem perseguidos por muitos anos ainda, mesmo depois do terror nazista, que, repetindo a perseguição inquisidora, só não queimava homossexuais nas fogueiras porque as câmaras de gás produziam os mesmos resultados práticos, ressalvadas as práticas pirotécnicas.
É interessante, nesse sentido, registrar que, embora o termo seja problemático e tenha um conteúdo ambíguo, aproximando-se muitas vezes de algo patológico, em 1973, a Associação Psiquiátrica Americana reconheceu formalmente que a homossexualidade, por si, não é uma doença (Murphy, 1987, p. 195), retirando-a do DSM-II (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, segunda versão, na sigla em inglês) e substituindo-a por uma nova classificação, perturbação de orientação sexual, criada para aqueles homossexuais angustiados com sua orientação sexual, ou seja, para aqueles que buscavam mudanças ou ajustamentos; na terceira versão do DSM, a classificação possuía o rótulo de homossexualidade egodistônica (Bayer & Spitzer, 1982, p. 32). Em 1975, a Associação Americana de Psicologia também deixou de considerar como doença, distúrbio ou perversão a homossexualidade e, em 1985, o Conselho Federal de Medicina brasileiro tomou a mesma decisão (Guimarães, 2011, p. 30, nota 4).
Considerações Finais
Diante disso, pode-se concluir que os relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo existem desde pelo menos a antiguidade, havendo vários relatos, embora muitos deles sejam indiretos, de que entre egípcios, mesopotâmios, gregos ou romanos antigos os relacionamentos entre homens eram muito comuns e até socialmente tolerados. Há relatos, também, da chamada prática da inversão (figura próxima, mas que não se confunde com a homossexualidade), não só na Antiguidade, mas também nas idades média e moderna (e contemporânea), houvesse ou não tolerância social ou estatal. Dentre os registros há uma interessante tradição, que foi longamente mantida por povos americanos, asiáticos e africanos, chamada berdache, em que o homem invertido, isto é, usando trajes e desempenhando trabalhos de mulher, casava-se com outro homem, havendo relatos também para mulheres invertidas - o curioso é que tal tradição geralmente abrangia os líderes ou as pessoas bem-sucedidas das tribos.
Embora em certo momento da história humana se tenha transformado a prática homossexual em pecado, em desvio, que devia, por isso, receber tratamento médico, os relatos sobre a tolerância e até mesmo o culto à prática homossexual em outras culturas bem demonstram que, nas diversas partes do mundo, a homossexualidade já foi, é ou tem sido reconhecida como uma liberdade negativa e individual, podendo-se dizer, de uma maneira geral, que "a sexualidade integra a própria condição humana", não podendo um indivíduo, "realizar-se como ser humano, se não tiver assegurado o respeito ao exercício da sexualidade, conceito que compreende tanto a liberdade sexual como a liberdade da livre orientação sexual" (Dias, 2011, p. 677).
Sistematicamente vista como um novo direito, a homossexualidade ou ainda, como têm preferido alguns especialistas, a homoafetividade pode ser, com muito mais propriedade, apontada como uma liberdade de reconhecimento tardio. Não há dúvidas de que seja um direito fundamental, ou, pelo menos, a expressão do direito fundamental à autodeterminação quanto à própria orientação sexual, isto é, quanto à própria sexualidade do indivíduo. Assim, o direito de manifestar determinada opção sexual é uma liberdade natural humana, imperando seu reconhecimento na atualidade em virtude do princípio da dignidade humana.
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Endereço para correspondência:
Julio Pinheiro Faro
E-mail: julio.pfhs@gmail.com
Recebido em: 14/03/2014
Revisado em: 08/12/2014
Aceito em: 22/01/2015