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versão impressa ISSN 2359-0769versão On-line ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.18 no.2 Fortaleza maio/ago. 2018

https://doi.org/10.5020/23590777.rs.v18i2.6885 

ESTUDOS TEÓRICOS

 

Objetos (in)visíveis: psicanálise, espetáculo e a arte de Vik Muniz

 

(In)visible objects: psychoanalysis, spectacle and the art of Vik Muniz

 

Objeto (in)visible: psicoanálisis, espectáculo y el arte de Vik Muniz

 

Objets (in)visibles: psychanalyse, spectacle et l'art de vik muniz

 

 

Marília Zancan Frantz (Lattes)I; Edson Luiz André de Sousa (Lattes)II

IMestre em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
IIProfessor Titular do Departamento de Psicanálise e Psicopatologia e Professor PPG Psicanálise - Clinica e Cultura do Instituto de Psicologia da UFRGS

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

As questões propostas neste ensaio nascem de três encontros: o primeiro, com a teoria lacaniana a respeito da constituição do sujeito a partir do campo do Outro; o segundo, com a obra de Guy Debord sobre A Sociedade do Espetáculo; o terceiro, com o trabalho do artista brasileiro Vik Muniz. O que une esses três encontros é o desejo de pensar nas relações do sujeito com o social e nas questões que suscitam a respeito do laço social em nossa sociedade capitalista, na qual visibilidade e cidadania se confundem com a capacidade de consumo. Se o sujeito depende do olhar do outro para se estruturar, e é o poder aquisitivo que, nesse contexto, lhe dá lugar no espaço público, já não basta consumir, é preciso mostrar aquilo que se consome, transformando a si mesmo em objeto consumível. Este ensaio propõe que o espetáculo, conforme o definiu Debord, é o modo como o laço social se apresenta a partir da estrutura que Lacan definiu como discurso capitalista, e que produz efeitos de reificação e de apagamento da singularidade do sujeito através da antecipação de respostas para as questões que o desejo coloca. No entanto, nem todas as imagens que vemos são iguais, nem todas estão submetidas à lógica espetacular. A arte propõe imagens a partir de outro lugar, compartilhado com a psicanálise: aquele que busca desestabilizar o eixo dos discursos prontos e das produções de sentido. E é esta também a proposta de trabalho de Vik Muniz ao criar ilusões que não iludem, mas revelam os elementos que as constituem. Assim, diante dos imperativos do espetáculo, da arte e da psicanálise, ao sustentarem a potência do nome que falta, possibilitam que o sujeito de desejo encontre brechas por onde resistir.

Palavras-chave: arte; capitalismo; espetáculo; psicanálise; Vik Muniz.


ABSTRACT

The questions proposed in this essay arise from three meetings: the first, with the Lacanian theory regarding the constitution of the subject from the field of the Other; the second, with Guy Debord's The Society of the Spectacle; the third, with the work of Brazilian artist Vik Muniz. What unites these three meetings is the desire to think about the relations of the subject with the social and the issues that raise about the social bond in our capitalist society, in which visibility and citizenship are mixed with the capacity of consumption. If the subject depends on the other's eyes to structure, and it is the purchasing power that, in this context, gives him place in the public space, it is not enough to consume, it is necessary to show what is consumed, transforming itself into consumable object. This essay proposes that the spectacle, as defined by Debord, is the way in which the social bond presents itself from the structure that Lacan defined as capitalist discourse, and which produces effects of reification and erasure of the singularity of the subject through the anticipation of responses to the questions that the desire poses. However, not all the images we see are the same, not all of them are subjected to spectacular logic. Art proposes images from another place, shared with psychoanalysis: the one that seeks to destabilize the axis of the ready discourses and the productions of meaning. And this is also the proposal of Vik Muniz's work in creating illusions that do not deceive, but reveal the elements that constitute them. Thus, in view of the imperatives of the spectacle, art and psychoanalysis, in sustaining the power of the missing name, they enable the subject of desire to find loopholes to resist.

Keywords: art; capitalism; show; psychoanalysis; Vik Muniz.


RESUMEN

Las cuestiones propuestas en este ensayo nacieron de tres encuentros: el primero, con la teoría lacaniana relacionada con la constitución del sujeto a partir del campo del Otro; el segundo, con la obra de Guy Debord sobre La Sociedad del Espectáculo; el tercero, con el trabajo del artista brasileño Vik Muniz. Lo que une estos tres encuentros es el deseo de pensar en las relaciones del sujeto con el social y en las cuestiones que suscitan a respecto del lazo social en nuestra sociedad capitalista, en la cual visibilidad y ciudadanía se confunden con la capacidad de consumo. Si el sujeto depende de la mirada del otro para estructurarse, y es el poder adquisitivo que, en este contexto, le da lugar en el espacio público, consumir ya no es lo suficiente. Es necesario enseñar lo que se consume, transformando a si mismo en objeto consumible. Este ensayo propone que el espectáculo, según definición de Debord, es el modo como el lazo social se presenta a partir de la estructura que Lacan definió como discurso capitalista, y que produce efectos de reificación y de supresión de la singularidad del sujeto por medio de la anticipación de respuestas para las cuestiones que el deseo impone. Sin embargo, no todas las imágenes que vemos son iguales, ni todas están sometidas a la lógica espectacular. El arte propone imágenes a partir de otro lugar, compartidos con el psicoanálisis: aquel que busca desestabilizar el eje de los discursos listos y de las producciones de sentido. Esta también es la propuesta de trabajo de Vik Muniz al crear ilusiones que no ilusionan, pero revelan los elementos que las constituyen. Así, ante los imperativos del espectáculo, del arte y del psicoanálisis, al sostener la potencia del nombre que falta, posibilitan que el sujeto de deseo encuentre huecos por donde resistir.

Palabras clave: arte; capitalismo; espectáculo; psicoanálisis; Vik Muniz.


RÉSUMÉ

Les questions proposées chez cet essai découlent de trois rencontres: la première, avec la théorie lacanienne par rapport à la constitution du sujet à partir de l'Autre; la seconde, avec l'oeuvre de Guy Debord sur La Société du spectacle et la troisième, avec le travail de l'artiste brésilien Vik Muniz. Ce qui unit ces trois rencontres, c'est le désir de réfléchir aux relations du sujet avec le social et aux questions qui se posent par rapport au lien social dans notre société capitaliste, où la visibilité et la citoyenneté se mélangent avec la capacité de consommation. Si le sujet dépend du regard de l'autre pour se structurer, et s'il est le pouvoir d'achat qui, dans ce contexte, lui donne une place dans l'espace public, il ne suffit plus de consommer, il faut montrer ce qui est consommé, en transformant soi-même dans un objet consommable. Cet essai propose que le spectacle, tel que défini par Debord, est la manière comme le lien social se présente à partir de la structure définie par Lacan comme discours capitaliste, ce qui produit des effets de réification et d'effacement de la singularité du sujet par l'anticipation des réponses aux questions posées par le désir. Pourtant, la plupart des images qu'on voit ne sont pas identiques, elles ne sont pas toutes soumises à une logique spectaculaire. L'art propose des images à partir d'un autre lieu, ce qui est partagé avec la psychanalyse, lequel cherche à déstabiliser l'axe des discours préparés et des productions de sens. Et c'est aussi la proposition du travail de Vik Muniz, quand il croit des illusions qui ne trompent pas, mais révèlent les éléments qui les constituent. Ainsi, face aux impératifs du spectacle, de l'art et de la psychanalyse, qui soutiennent le pouvoir du nom manquant, ils permettent le sujet du désir de trouver des échappatoires où il peut résister.

Mots-clés: art; capitalisme; spectacle; psychanalyse; Vik Muniz.


 

 

Se há sempre algo mais a ser dito e se o que vem depois ressignifica o que veio antes, as reflexões aqui apresentadas não podem ser compreendidas como o fim da pesquisa que as originou, mas sim como parte de uma pesquisa que não encontra em sua publicação o seu fim. Trata-se, pois, de um ensaio, o texto presente, uma vez que o ato de escrever é a própria metodologia do trabalho: elaboração de leituras e pensamentos, que é engendrada no momento da escrita e não escapa de um endereçamento ao outro e dos efeitos decorrentes disso. Adorno aponta que o ensaio não começa com Adão e Eva, mas com aquilo sobre o que o ensaísta deseja falar; "diz o que a respeito lhe ocorre e termina onde sente ter chegado ao fim, não onde nada mais resta a dizer: ocupa, deste modo, um lugar entre os despropósitos" (Adorno, 2003, p.17). Já Starobinski (2011), ao tratar da origem do ensaio a partir de Montaigne, aponta que esse estilo, ao propor inconclusões, servia como artimanha para escapar à censura religiosa, e que temos na publicação dos humores do fidalgo um testemunho da importância que o indivíduo havia, então, adquirido. O ensaio, dessa forma, pode ser compreendido como aquilo que autoriza a "pessoa" a falar. Nesse sentido, talvez a escrita permeada pela psicanálise não possa ser outra coisa que não um ensaio: longe de uma produção asséptica, o que se busca é um lugar desde o qual o sujeito possa estar colocado, ou melhor, se colocar.

Se o saber está do lado daquele que fala e, no percurso de produção de uma pesquisa, quem fala é o pesquisador, logo, trata-se de trabalhar a partir de seu desejo de produzir um saber sobre aquilo que lhe interroga. Assim, este ensaio é, ele mesmo, resultado de três encontros produtores de interrogações, os quais levantaram questões sobre a relação do sujeito com o social. O primeiro foi o encontro com Lacan e a psicanálise; o segundo, com o livro A sociedade do Espetáculo, de Guy Debord; o terceiro, com o trabalho do artista brasileiro Vik Muniz.

Em sua releitura de Freud, Lacan explora as relações do sujeito com o campo do Outro - campo daquilo que o antecede e sucede, campo da linguagem, constelação de significantes, do que ordena os sexos, as gerações, as relações de parentesco - e no qual, portanto, podemos incluir as normas sociais e as leis da cultura. Assim, o Outro é uma abstração simbólica que pode ser representada pelos mais diversos personagens e funções em diferentes momentos constitutivos - Mãe, Pai, Supereu, etc. Lacan (1949/1998) aponta o que nomeou como estádio do espelho como um momento crucial para a constituição subjetiva, a saber, aquele em que nos reconhecemos em nossa própria imagem a partir de nosso reconhecimento pelo outro. Dessa forma, o registro da imagem é imprescindível para o desenvolvimento do sujeito. A relação simbólica com o Outro precisa desse suporte imaginário. Só podemos ser reconhecidos por aquilo que mostramos. Sendo assim, a imagem é fundamental na construção das relações e do laço social. O espelho do qual fala Lacan, muito mais do que o objeto em si, é o olhar daqueles que cuidam do infans, daqueles que lhe dão um lugar e que exercem a função de alteridade, inserindo-o na linguagem e na cultura.

É através da formalização efetuada em sua teoria dos quatro discursos que Lacan (1969-1970/1992) procura demonstrar os elementos mínimos que constituem o sujeito, e que se articulam e rearticulam produzindo diferentes laços sociais. Os quatro discursos colocam em relação elementos mínimos - a saber S1, S2, $, e a -, que através de quartos de giro se alternam entre os lugares do agente, outro, produção e verdade. Temos, então, o discurso do mestre, histérico, do analista e universitário. Todos os quatro são formas de laço social em torno de um impossível - real, fonte de mal-estar - apresentando a impossibilidade de aceder à positividade do objeto de desejo. Quinet (2009, p.17) explica que o laço social produzido pelo discurso é um modo de aparelhar o gozo com a linguagem, uma vez que o processo civilizatório, isto é, o estabelecimento de laços sociais entre as pessoas, implica a renúncia a uma parcela de gozo, uma renúncia da tendência pulsional em tratar o outro como um objeto a ser consumido: seja sexual, seja fatalmente. Podemos dizer, então, que o laço social é o que dá lugar ao sujeito na sua relação com o desejo, com aquilo que é da ordem do impossível. Mas se, em um primeiro momento, Lacan propôs a existência de apenas quatro estruturas discursivas, causou estranheza mais tarde ao falar da existência de um quinto discurso, que rompia com a lógica dos outros quatro: o discurso capitalista (Lacan, 1972).

Esse quinto discurso se constitui não como um giro, mas como uma torção no discurso do mestre, invertendo os lugares de S1 e $. Há quem diga que esse matema não se trata, efetivamente, de um discurso, e que tudo não passou de um ato falho de Lacan, não havendo consenso sobre sua escritura. Ato falho ou não, pouco importa. A psicanálise não ignora a importância dos atos falhos e aquilo que veiculam. O fato é que a ordem político-econômica não é sem efeitos e a estrutura denominada por Lacan como discurso capitalista nos ajuda a pensá-la. Em um primeiro momento, em seu seminário de 1969, o psicanalista aponta apenas que o lugar do senhor antigo no discurso do mestre foi ocupado por um novo senhor, o capitalista, e que isso provocou uma modificação no lugar do saber. Na passagem que faz com que S1 deixe de ser o senhor para tornar-se o rico, o saber não passa de aparelho de exploração. A acumulação de capital começa a partir do momento em que o mais-de-gozar passa a ser contado, contabilizado, totalizado (Lacan, 1969-1970/1992). Ainda aponta que, nessa mudança, a impotência da junção entre o lugar da verdade e o mais-de-gozar é esvaziada, e a mais-valia se junta ao capital. Para ele, o que é chocante nisso tudo é que o significante-mestre, por terem sido dissipadas as nuvens da impotência, aparece como mais inatacável justamente em sua impossibilidade. "Onde está ele? Como nomeá-lo? Como discerni-lo, a não ser, evidentemente, por seus efeitos mortíferos? Denunciar o imperialismo? Mas como pará-lo, este mecanismo tão pequeno?", pergunta (Lacan, 1969-1970/1992, p.189). Eis aí o Deus Mercado.

Foi somente em 1972 que Lacan falou, pela primeira vez, sobre esse quinto discurso, que chamou de discurso capitalista, situando-o como o substituto do discurso do mestre e o anunciando já em crise, isto é, uma crise inerente ao discurso capitalista: é astucioso, mas destinado a explodir; insustentável, porque anda rápido demais, se consome tanto que se gasta. No original: "... ça se consomme, ça se consomme si bien que ça se consume" (Lacan, 1972). No discurso capitalista, estabelece-se uma relação em que o sujeito se dirige a um saber que lhe entrega o produto capaz de resolver sua falta, como se não houvesse disjunção entre o lugar do produto e o da verdade, daí a dificuldade de questionar certas lógicas, de abrir brechas em determinadas posições de fala. No discurso da histeria, o saber produzido não dá conta da verdade do objeto causa de desejo do sujeito que se encontra no lugar do agente. No discurso capitalista, ao contrário, o objeto de desejo dá conta de prover, imaginariamente, o gozo do sujeito consumidor, à medida que este se dirige a um saber que lhe entrega o objeto que foi designado para desejar. Nesse sentido, somos todos passivos espectadores diante da sedução do Mercado. Como fica, então, o laço social constituído a partir de um discurso cuja única exigência é o gozo sem limites? Será que ainda é possível falar em laço? Kehl (2009) vem apontar que hoje, no atual estágio do capitalismo, o que se vende (e que situa o sujeito diante dos outros, garantindo reconhecimento) não é mais a mão de obra, mas é seu valor de gozo: a capacidade de vender a si mesmo como objeto de gozo para o Outro. E, no capitalismo, o lugar do Outro é o lugar do Mercado, esta estranha entidade-significante que se agrada, ou desagrada, e com a qual devemos negociar o rumo de nossas vidas.

Debord (1967/1997) foi um pensador que fez uma importante crítica da sociedade de consumo, caracterizada por ele como sociedade do espetáculo. Para Debord, o espetáculo é o meio e fim do modo de produção vigente, que captura a vida humana através da imagem, deixando ao sujeito o lugar de espectador-consumidor. Mas, adverte ele, o espetáculo não é apenas um conjunto de imagens, e, sim, uma relação social entre pessoas, mediada por imagens. "É uma Weltanschauung que se tornou efetiva, materialmente traduzida. É uma visão de mundo que se objetivou" (p.14). Seja sob a forma de informação, seja de propaganda, publicidade ou divertimento, segundo Debord, o espetáculo constitui o modelo atual da vida dominante da sociedade, a afirmação onipresente da escolha já feita na produção e o consumo que decorre dela. Portanto, Debord também aponta, assim como Lacan, a condição de submissão do desejo do sujeito diante do saber, da técnica, das produções do Mercado; evidenciando o papel fundamental desempenhado pela imagem, que é tomada por ele como representação daquilo que já não se vive diretamente. Daí que a publicidade, o marketing, a propaganda apareçam como um dos grandes paradigmas do espetáculo.

Mas nem toda imagem é igual, isso é fato. Nem toda imagem está submetida ou veicula a lógica espetacular, embora não esteja a salvo de ser engolida por ela. A arte, por exemplo, propõe imagens desde outro lugar que não o da entrega de sentidos prontos. Opera, isto sim, com a suspensão dos sentidos previamente dados. E é assim que chegamos ao terceiro encontro que dá origem a este trabalho: em 2014, no Santander Cultural, em Porto Alegre, com a exposição O tamanho do Mundo, composta por setenta obras do artista brasileiro Vik Muniz. O desequilíbrio do espectador, proposto pelo artista em seu trabalho, dialoga com a angústia produzida diante das imagens midiáticas. Assim como Debord buscou sacudir a sociedade do espetáculo com suas teses, Muniz busca escancarar para o espectador a ilusão produzida pelas imagens contemporâneas. O que o artista afirma é que, com seu trabalho, busca desestabilizar o discurso imperativo das imagens. Para ele, aprendemos a mentir melhor do que a contar a verdade e, por isso, se propõe a criar a pior ilusão possível como forma de desequilibrar o olhar que acredita naquilo que vê (Muniz, 2007). As oposições e paradoxos do capitalismo atual se fazem representar no trabalho de Muniz: como um catador, ele recolhe nossas contradições, nossos restos, e com eles constrói sua obra. Para construir isso tudo, vale-se dos mecanismos do "hiper", do espetacular: o macro e o micro, o lixo e o luxo. A grande arte reconstruída com elementos do cotidiano. Escolhe materiais que funcionam como significantes, e monta sua obra de maneira a nos confrontar com os significados conflitantes, nos expondo à nossa própria insuficiência, fragilidade, futilidade, aos nossos próprios clichês. Vik Muniz acredita que será somente a partir de uma revolução na educação, que garanta um profundo conhecimento da imagem, que uma nova estrutura ética poderá surgir. Enquanto isso não acontece, enxerga como função do artista a difusão do conteúdo filosófico e do exercício especializado da imagem (Muniz, 2009).

Tendo isso em mente, o que se pretende neste escrito não é esgotar a questão da relação do sujeito com o discurso capitalista ou com as imagens, mas compartilhar reflexões que nasceram desses encontros e cujo sentido será dado pelos ecos que produzirem. A arbitrariedade da interpretação constitui, assim, o limite e também a potência do trabalho no campo da psicanálise (Coelho & Santos, 2012).

 

O espetáculo como laço social

Debord (1967/1997) definiu o espetáculo como a realização completa do fetichismo da mercadoria, em que o mundo sensível é substituído por uma seleção de imagens, unificando a Terra como mercado mundial: "O espetáculo é o momento em que a mercadoria ocupou totalmente a vida social. Não apenas a relação com a mercadoria é visível, mas não se consegue ver nada além dela: o mundo que se vê é o seu mundo" (Debord, 1967/1997, p. 30). Para o autor, no laço organizado pelo capitalismo, as imagens que medeiam a relação social são as imagens-mercadoria e que, em um sistema que precisa sobreviver da venda dos produtos que inventa, a necessidade e o desejo por esses produtos precisam também ser inventados. Dessa forma, no espetáculo, o operário - e nós poderíamos dizer: o cidadão, sujeito da pólis - é disfarçado de consumidor (Debord, 1967/1997). Em outras palavras, do início ao fim do processo, na produção ou no consumo, somos engrenagens de produção de mais-valia, ou, nos termos que colocou Lacan, de gozo para o Mercado.

Nos tempos em que a sociedade se organizava pelo trabalho de massa (que coincide com a era vitoriana e o nascimento da psicanálise), a repressão do desejo se colocava como condição necessária ao exercício do trabalho ao longo de exaustivas jornadas. Era o tempo do "ser". A partir do deslocamento para o que se chamou de sociedade do consumo de massa, o controle do desejo passou a se dar não mais pela repressão, mas pela sedução, por uma ética do consumo (Chauí, 2011). Era o tempo do "ter".

Mas, diante da oferta de tantas mercadorias, como escolher? É justamente pela via da sedução que as imagens se inserem no discurso capitalista, o qual as coloca como portadoras da verdade acerca de qual é o objeto certo para a realização do desejo do sujeito consumidor. Esse suposto direito ao prazer é, na realidade, a forma pela qual o desejo é controlado sob o modo de produção, tal como se organiza atualmente. Há uma ilusão de liberdade, porque essa suposta liberação do desejo é a forma como o controle acontece através da pré-determinação de quais são os objetos válidos de investimento e, ainda, pela pré-determinação de quais são as respostas para as questões que o desejo coloca ao sujeito, esvaziando a invenção própria de destinos para as pulsões (Chauí, 2011; Kehl, 2009).

Como situou Debord (1967/1997, p.18), contudo, já não basta ser ou ter, é preciso parecer. É só aí que o "ter" adquire sentido para o sujeito diante da vida social. Quer dizer: não é preciso, ou mesmo suficiente, ser rico. É preciso parecer rico aos olhos dos outros. Não seria possível, então, pensarmos que o espetáculo é a forma que o laço social adquire sob a estrutura do discurso capitalista? Afinal, é dessa maneira que o gozo passa a ser aparelhado. Cada vez mais o controle do desejo se dá, também, pelo campo do olhar. O olhar, como afirmou Lacan (1964/2008), é aquela manifestação do Outro que nos toma por todos os lados, e em relação ao qual é necessário construir um anteparo que nos proteja da condição de puro objeto. A palavra é aquilo que aparece para dar conta de uma ausência, de algo que falta, quando o gesto da criança de indicar com o dedo aquilo que deseja já não é mais o suficiente, ou seja, quando a imagem da coisa já não é mais o suficiente para representar o desejo. Por isso, é pertinente retomar a pergunta feita por Alain Didier-Weill (1997, p.32): "o que acontece quando o campo do olhar deixa cada vez menos oportunidades ao campo da palavra?".

Ao mesmo tempo em que, ao apontar continuamente para formas de gozo pré-determinadas, ameaça a própria condição de sujeito, o espetáculo não permite nunca que o sujeito se esqueça de sua insuficiência, pois cada demanda de gozo recoloca a falta em cena e faz a roda girar. Assim, se as prescrições espetaculares podem produzir certo alívio por dispensar um maior trabalho subjetivo na construção do pensamento, por esse mesmo motivo se constituem como fontes de angústia para o sujeito, que acaba achatado frente à voracidade que solicita, no final das contas, nada mais que seu desejo. Vale relembrar uma peça publicitária de 1992, que acabou sendo proibida por ser considerada abusiva. Como estratégia de venda de tesouras do Mickey e da Minnie para crianças, o comercial veiculado pela empresa Mundial apresentava ora um menino, ora uma menina (eram dois comerciais no mesmo molde), dizendo de maneira provocadora e repetitiva: "eu tenho, você não tem", como algumas crianças costumam fazer em algum momento da vida para provocar os irmãos ou os amigos. Em seguida, o narrador adulto reafirmava: "só você ainda não tem". Poderíamos perguntar: E daí que não tem? Qual a diferença entre quem tem e quem não tem a tesoura? Mas não é à toa que a frase foi utilizada. Ela produz efeitos. Também não é à toa que foi considerada abusiva. O que o comercial veiculava era a ideia de que a criança que tem é a "legal", a amada, que corresponde a um ideal que a outra não está conseguindo corresponder, a menos que ganhe, ela também, a tesoura. Mais claro, impossível. Com o imperativo de gozo também se coloca o imperativo de ser "ideal" (condição que, supostamente, seria possível através do devido consumo, é claro). É por isso que parece que o sujeito contemporâneo tolera muito mal a distância que existe entre Eu Ideal e Ideal do Eu, e que é a própria condição de ser sujeito. Ideal sem falhas, faltas, brechas, frestas. Um dos efeitos disso é a recusa de tudo aquilo que possa apontar na direção contrária (ou seja, de tudo aquilo que nos indica a castração). Um jogo um tanto perverso, não é?

No estágio do capitalismo representado pela estrutura lacaniana do discurso capitalista, não há mais nada em termos de economia para marcar que nem tudo está disponível: a sedução do espetáculo é o que comanda essa estrutura discursiva, e não mais a interdição promovida pela castração, como era num estágio anterior que podemos reconhecer no discurso do mestre, diz Kehl (2009), acrescentando que isto não significa que a castração esteja forcluída, mas sim que capitalismo e espetáculo se conjugam na produção de imagens-fetiche, ou seja, imagens que recusam a castração.

Para a autora, na sociedade do espetáculo, as imagens sob a forma de mercadoria são o que organiza as condições do laço social. O lugar do Outro é ocupado pelo Mercado, e a publicidade, através de uma eficiente manipulação das fantasias inconscientes do sujeito, promete a supressão da falta através do consumo - supressão sempre falha, vale lembrar, pois a falta é também constantemente recriada: "só você ainda não tem". O circuito do consumo é parceiro (ou parasita?) do circuito pulsional. E o gozo será maior quanto mais "exclusivo" e "diferenciado" for o objeto consumido. É por essa via que o sujeito busca a diferenciação dos demais e a afirmação da identidade própria. Assim como há os escolhidos por Deus, há os escolhidos pelo Mercado. Uma lógica social organizada pelo consumo e pela ostentação precisa da exclusão: para alguns, a interdição segue existindo, embora o discurso capitalista afirme, perversamente, que o contrário é possível para aqueles que "fazem por merecer". Na lógica da exclusão, também é a falta que move o sistema. Ao contrário do que faz crer, nem tudo se mostra no espetáculo: há pontos ocultos por seu brilho forte.

Sousa (2014) aponta que, através de uma hábil manipulação da associação de idéias, a propaganda recorta da realidade apenas aquilo que interessa ser revelado, tentando sustentar à força a ilusão de uma positividade do objeto causa de desejo e produzindo, assim, identificações tão potentes que o sujeito se confunde com o objeto, ficando-lhe submisso. De acordo com o autor, nesse processo, a identificação se apresenta em sua face de sintoma, pois deixa o sujeito num estado de alienação ao desejo do Outro, cuja função é a redução do conflito entre o Eu e seus Ideais. É a imagem na prevalência de um discurso imaginário, e não simbólico, que se apresenta como o legítimo representante da realidade. Chemama (1997) aponta que o que é lamentável nesse processo é que, quando um objeto de gozo não é metaforizado, isto é, não é regido pelo significante, fica-se escravo - e, então, relembra Marx, para quem a produção não cria somente um objeto para o sujeito, mas também um sujeito para o objeto.

Portanto, é no espetáculo, segundo Debord (1967/1997), que o fetichismo da mercadoria, "a dominação da sociedade por 'coisas suprassensíveis embora sensíveis'", encontra sua realização completa; quando "o mundo sensível é substituído por uma seleção de imagens que existe acima dele, e que ao mesmo tempo se fez reconhecer como o sensível por excelência" (p.28), ou seja, na experiência do espetáculo o fetichismo fica por conta da imagem, sem, no entanto, aposentar a necessidade de posse de objetos, apenas deslocando essa relação. Não basta produzir ou ter: é preciso mostrar. É pela posse que se tem visibilidade. O funk ostentação, por exemplo, está aí pra nos lembrar disso, como um dos símbolos da emergência do que se chamou de "nova classe média" brasileira, que alcançou a cidadania através do consumo (claro, cabe discutir o que se entende, sob essa perspectiva de consumo, por cidadania). Funk Ostentação - O Filme (2012) explica a origem desse ramo do funk paulista e a relevância social que cantar a ostentação de carros, bebidas caras e correntes de ouro adquire no seio da comunidade em que nasce. Ao mesmo tempo, ao mostrar o processo de apropriação de símbolos antes reservados apenas a uma pequena parcela da população brasileira, escancara de que maneira as relações sociais são mediadas na sociedade como um todo. No filme, é emblemática a fala do cantor Mc Bio G3 que diz:

Com essa ascensão econômica e tal, e São Paulo tem essa parada, essa metrópole do luxo, eu acho que a periferia quis mostrar isso, quis mostrar que pode, entendeu? Agora, eu tô podendo ter um tênis de mil reais. Agora, eu tô podendo ter uma camiseta de trezentos, entendeu? Agora, eu tô podendo ter um relógio maneiro. Nem que, de repente, seja um esforço pra ter, mas acho que a perifa pegou esse ritmo meio que geral assim, não só no funk, todo mundo tá querendo... Hoje em dia, é mais fácil o cara ter a condição de ter um carrinho maneiro, que antigamente era mais difícil. Então, acho que pegou o gancho, conseguiu dropar na onda que vinha vindo, vamos dizer assim. (Mc Bio G3, 2012, 29:09min)

A propaganda, dizem, é a alma do negócio. Assim, o espetáculo é ele próprio a principal produção de nossos tempos, um circuito que se retroalimenta, reafirmando sempre a aparência e a mediação das relações pela imagem. Serve-se de todo o aparato da linguagem para dizer apenas uma coisa: compre. Venda-se. Todo interlocutor é um cliente em potencial. A própria imagem torna-se mercadoria. "Tu me compras?", eis a questão.

Se o desejo pode satisfazer-se pelo fetichismo das imagens-mercadoria, o sujeito precisa se fazer objeto consumível para ser desejado. Precisa ter sua existência reafirmada através do olhar do outro. A questão que se coloca é sobre o que atualmente valida a existência. Se é apenas aquilo que o sujeito mostra, então ele se encontra capturado pela imagem, alienado e dependente de um olhar constante.

Antes de mais nada, existir é, diz Kehl (2004b, p.150), "apresentar a própria imagem para o Outro. O que equivale a dizer, para um adulto que já tenha ultrapassado as fronteiras dos complexos familiares, que existir é apresentar a própria imagem no espaço público". Assim sendo, explica a autora, não se trata mais de apenas exibir uma bela figura para o deleite do Outro, como se fez outrora à contemplação apaixonada da mãe. Habitar o espaço público é uma ação política, ética, e implica que o sujeito se responsabilize pelo efeito de seus atos na pólis. Mas como e onde se constitui, atualmente, nosso espaço público? Na sociedade de massa, como o sujeito pode saber que existe para o Outro?, pergunta a autora. "Que ações relevantes estão ao alcance do homem comum, de modo que sua existência se inscreva no campo do Outro e o salve da insignificância de 'nada' ser (publicamente)" (Kehl, 2004a, p.151)?

Para tentar responder a essas questões, Kehl (2004a) retoma o mecanismo da identificação. A massificação, o anonimato das grandes cidades e a supressão das relações horizontais favorecem a identificação com ideais representados por figuras de destaque. O sujeito não se torna mais visível, mas goza através da identificação com uma imagem que assume como sendo sua também. O espaço público deixa de ser um lugar de troca de idéias, de composições de discursos coletivos, para tornar-se lugar de adesão à palavra do ídolo (que pode ser qualquer um, basta que sua imagem tenha se tornado conhecida, vide a profusão das "subcelebridades"). Para atingir a todos como se fossem um só, é preciso eliminar toda ambiguidade possível - incertezas, mediações e relativizações que poderiam dar conta de simbolizar o real - e, para isso, a palavra precisa operar tendo efeito de imagem: uma palavra-imagem que é meio de gozo, antes de construção simbólica capaz de barrar o mesmo. Esse mecanismo está presente no discurso publicitário, no discurso do Outro colonizado pelo Mercado: seu objetivo é transformar o desejo de milhares de pessoas em uma mesma motivação banal (Kehl, 2004a, p. 154).

O espetáculo vem, de certa forma, como um desdobramento lógico desse processo que envolve anonimato e massificação subjetiva, assim como num segundo tempo, a passagem para o que alguns autores situam como hiperespetáculo. Este é definido por Silva (2007, 2012) como o espetáculo enquanto mídia, num momento em que o indivíduo não quer apenas contemplar, mas contemplar a si mesmo através do outro, constituindo-se também como objeto de admiração. O que são as selfies nas redes sociais, afinal? Já não basta ser espectador, é preciso participar. Cada um pode ter seu próprio reality show, mostrar o que tem para oferecer e se situar diante do outro/Outro.

Dessa forma, temos um universo no qual é preciso postar tudo no Facebook ou no Instagram. Caso contrário, é como se não houvesse certeza sobre a validade do que se viveu. Se a televisão representa uma esperança de visibilidade, como coloca em seu texto Kehl (2004a), nos últimos anos, através das redes sociais, que permitem a qualquer um converter-se em ídolo pop, a internet representa a possibilidade de realização efetiva dessa visibilidade, mesmo que apenas para poucas centenas de contatos e mesmo que a consagração máxima siga sendo a aparição televisiva: no final, todo grande sucesso da internet acaba parando na TV.

Há mudanças, mas nem tanto. Segue-se fantasiando por intermédio de figuras que representam a imagem do sucesso; de tudo o que não se foi, mas poderia ter sido caso a vida tivesse sido mais generosa, ou de tudo o que se pode ser e ter, pois basta querer de verdade. Mais uma vez: a particularidade do discurso espetacular é produzir um apagamento dos limites de gozo, como se tudo fosse possível. Existência, consumo, visibilidade e publicidade se misturam e se confundem, como se a própria existência para o Outro pudesse ser comprada. O hiperespetáculo não é libertação ou desalienação, nem uma mudança radical de paradigma, mas outro patamar da mesma dominação que se coloca como uma radicalização do dar a ver: não basta consumir para aparecer, é preciso fazer-se consumível. O laço social promovido pelo espetáculo capitalista é um laço de consumo, de reificação. Não é à toa que os trabalhadores se tornaram "recursos humanos". Recursos.

A sociedade de consumo, pensada como uma operação no interior do inconsciente sobre o desejo, é totalitária, diz Chauí (2011), fazendo referência ao admirável mundo novo de Aldous Huxley: cada indivíduo já nasce com um lugar reservado e uma função pré-determinada na engrenagem de produção, criado, ele próprio, em uma linha de montagem, para desejar apenas o que já foi planejado para si, de maneira que nunca sofra por frustrações e desejos insatisfeitos. E quando excepcionalmente sofre, tem o soma, uma substância que faz com que tudo volte a ficar bem e a engrenagem social-produtiva siga seu curso sem ser perturbada. Aliado às ciências técnicas, o Mercado é o "deserto que expulsou de suas terras o enigma, que enterrou o obscuro da potência utópica de um ainda não (de Ernst Bloch), já que nestas terras que precisam tornar-se produtivas não há mais tempo para esperar pelo nome que falta" (Sousa & Lima, 2009, p.51).

Mas o sentido da vida de cada sujeito não pode ser encontrado à pronta-entrega: "quando temos nossos sonhos prescritos por um programa de vida qualquer, anestesiamos a turbulência inventiva e irruptiva do futuro", diz Sousa (2007a, p.40). "A dimensão subjetiva dos prazeres, das pulsões, dos afetos, transformou-se em força de trabalho da sociedade regida pela indústria da imagem", diz, por sua vez, Kehl (2009, p.96). E isso, segundo ela, produz os sujeitos que o atual estágio do capitalismo necessita: esvaziados do que lhes é mais próprio, estão mais disponíveis para responder aos objetos e imagens que os convocam; presos no aqui-agora, são incapazes de imaginar um devir que não seja apenas reprodução da temporalidade encurtada do capitalismo contemporâneo. A autora ainda explica que a colonização do inconsciente pelo capitalismo, ocorrida através de imagens produzidas e distribuídas em escala industrial, assim como a oferta de gozo associada a elas e governada pelo vale-tudo do mercado financeiro, tem como efeito uma descrença generalizada na potência dos homens como agentes de mudança e de transformação política, descrença que remete ao abatimento fatalista dos depressivos. É preciso propor outras imagens, outra relação com as imagens. É preciso resistir.

 

Outros laços possíveis

O trabalho de Vik Muniz intitulado Objeto Invisível II (1999-2000) resiste. Na obra, temos a fotografia de um menino de mãos vazias, um menino que segura nas mãos a imaginação, segura um objeto invisível. Uma imagem que nos deixa cara a cara com a ausência na imagem, com a ausência do objeto, com uma curiosidade que, na demora a ser atendida, flerta com a angústia ou com o incômodo: Afinal, o que é que ele segura? A imaginação, enquanto vazio que permite dar asas ao desejo, que permite que esse objeto invisível seja o que quiser que seja: tanto para o menino quanto para quem se depara com a fotografia. Vazio compartilhado. Imagem que coloca em cena toda a potência da infância, do brincar, do faz-de-conta que se encontra, ele também, tão ameaçado pelas prescrições, instruções, medicalizações e seduções comerciais que assediam as crianças. Imagem que provoca desconforto naqueles tão acostumados a receber prontas as respostas.

A infância é um tema caro a Vik Muniz. Isto ecoa na série da qual Objetos Invisíveis II faz parte, e sua obra resiste não apenas pelo resultado final das fotografias, mas também através de todo o processo envolvido na produção dessa série feita a partir de uma parceria com o Projeto Axé, de Salvador, uma ONG que trabalha com crianças que viviam nas ruas. Crianças imersas em uma sociedade organizada através do consumo, em que cidadania, visibilidade social e poder aquisitivo se confundem, mas para quem o imperativo do consumo vem acompanhado da exclusão social. O artista conta que, em seu primeiro encontro com as crianças, frente à pergunta sobre o que gostariam de fazer, percebeu a dificuldade que elas tinham em expressar seus desejos, como se impusessem a si mesmas uma espécie de estoicismo, e lhe incomodava o fato de essas crianças serem doutrinadas a suprimirem seus desejos, de evitarem fantasiar por um excesso de dureza em sua realidade (Muniz, 2007, 2009). Mas gostavam de brincar, relata, e foi através do brincar que junto ao artista puderam, de acordo com suas palavras, ir desembaraçando a teia de desejos e esperanças e ir lidando com a possibilidade de satisfação. "Não há vida sem desejo, e sem desejo não há esperança", diz Muniz (2007, p. 134). No segundo dia do projeto, desenvolvido em agosto de 1999, levou um pôster da escultura de Alberto Giacometti, O objeto invisível, e pediu às crianças que comentassem a figura.

De saída, disseram que se tratava de uma mulher negra, e algumas chegaram até a descrevê-la como uma mulher africana. Decidiram, então, que a mulher estava triste e que ela não tinha muitas escolhas. Algumas concluíram que ela havia perdido uma coisa que já não podia mais reaver, enquanto outras discordaram, dizendo que ela ainda poderia recuperar o que havia perdido, desde que não se esquecesse do que era, e o que estava fazendo era somente isto: tentando lembrar-se. Segurando uma coisa que não estava ali, a mulher segurava seu desejo de tê-la de volta; o objeto invisível, portanto, era seu desejo. (Muniz, 2007, pp.134-135)

O artista conta que durante a terceira semana de projeto perguntou às crianças o que gostariam de segurar nas mãos, e elas descreveram uma série de objetos que depois de terem sido explorados por meio de redações e desenhos feitos em papel machê. Cada criança levou o objeto para casa para memorizar suas formas. Uma exposição estava prevista desde o início do projeto, e a venda das obras de Muniz e de outros artistas que trabalharam com outros grupos de crianças teria sua renda revertida para a ONG. Mas as crianças do grupo de Muniz resolveram não expor seus objetos de papel machê ao público, "porque, segundo disseram, ' são os ricos que vão ver, e são eles que não nos deixam ter o que queremos'. Eles preferiram tirar retratos de si mesmos posando, como a mulher do Objeto Invisível de Giacometti" (Muniz, 2007, p.135). Os objetos foram então expostos, mas dentro de sacolas de veludo preto, de maneira que os espectadores da exposição precisariam imaginar qual sacola correspondia a qual gesto nas fotografias. Como coloca Muniz (2007), foi uma breve experiência de inversão de poder.

Tanto a obra de Giacometti quanto a de Muniz nos apresentam uma metáfora do sujeito de desejo, que segura nas mãos o vazio deixado pela perda do objeto, cuja ausência permite que o desejo se alie à imaginação e invente formas. Dessa maneira, o trabalho de Muniz com as crianças de Salvador pode ser situado no campo das experiências utópicas pelos deslocamentos de posições e sentidos que proporcionou às crianças e ainda proporciona aos espectadores através das fotografias da série.

Nas palavras de Sousa (2002, 2007a), a utopia tem a função de resistir aos imperativos do consenso que o laço social cada vez mais nos impõe, e indica o "em falta" de seu tempo, abrindo lugares para o desejo. Sousa explica ainda que "as construções utópicas sempre foram a matéria prima tanto no campo da arte quanto no da psicanálise" e que "poder confrontar uma forma, um pensamento, um sintoma com seus limites, abre a trilha para que o desejo possa ser reconhecido em sua função de desequilibrar o eixo do discurso" (2002, p.17). Tal qual a função da Estamira1. É a função do artista, aponta ainda Sousa (2007b): revelar, ou, como ela mesma coloca, "[...] capturar a mentira e tacar na cara, ou então ensinar a mostrar o que eles não sabem [...]" (Souza, 2013, p.10).

Muniz, em diversas entrevistas, definiu a arte como a habilidade de olhar para uma coisa e enxergar outra. É o efeito que busca produzir com suas obras. E é esse gesto, essa brecha que se abre que pode nos salvar da burocratização da vida, das respostas prontas, da obturação das perguntas e da desapropriação da potência criadora do sujeito de desejo pelas imagens entorpecentes do espetáculo. É a utopia que nos salva daquilo que nos captura e resiste em se deixar transformar.

Frente às distopias do capital e do espetáculo, temos a arte e a psicanálise como formações que resistem ao desfalecimento do verbo promovido pela expansão do campo da imagem sobre o campo da palavra (Didier-Weill, 1997). Enquanto o espetáculo afirma apenas a lógica do consumo, o fetichismo da imagem e o valor do lucro, é incapaz de autocrítica e opera como um congelamento no tempo lógico do instante de ver. A arte, principalmente desde a arte moderna, ocupa-se com a crítica às imagens e ao estabelecido, com sua desconstrução. Não nasce da intenção de vender ou convencer, mas do desejo do artista frente a alguma questão que o mobiliza. A psicanálise, por sua vez, opera a partir da ética do desejo, do "ganhar perdendo", pois em um tratamento não se paga para ganhar ou obter gozo, mas justamente para perder. A experiência de um tratamento psicanalítico vai na contramão da lógica do mercado, porque não entrega nada: trata-se de permitir que o sujeito se depare com a falta e possa se reposicionar a partir daí.

Para Kon (2001), a clínica psicanalítica deve guardar em si o parentesco com a atividade artística: sendo um fazer que se dá no próprio ato de feitura, sendo invenção de valores originais, criação de uma nova realidade. Só no fazer é que a psicanálise é encontrada, concebida e inventada, diz a autora. A própria noção de inconsciente é transformada: ele não é sentido ocultado, mas uma forma de criação de sentidos (Kon, 2001, p.47). A função de um analista, de fato, não se trata de ser, mas, sim, de funcionar como um. O que importa é que desde sua posição de escuta provoque o outro a trabalhar considerando a própria divisão que o funda. A psicanálise é revolucionária, ou melhor, subversiva, justamente na medida em que provoca esse deslocamento do lugar do saber. Não é o saber da técnica que importa, mas o saber do sujeito do inconsciente. Dessa maneira, em tempos em que a própria capacidade de fantasiar é o elemento que se encontra colonizado, arte e psicanálise adquirem grande relevância enquanto veículo do campo das utopias, pois não se trata de entregar aquilo que os olhos querem ver. Sua função é outra coisa, tem a ver com produzir brechas e, assim, permitir e instigar a imaginação com a criação de outros horizontes possíveis.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Marília Zancan Frantz
Email: mz.frantz@gmail.com

Edson Luiz André de Sousa
Email: edsonlasousa@uol.com.br

Recebido em: 16/08/2017
Revisado em: 14/07/2018
Aceito em: 10/08/2018

 

 

1 Estamira é visível e invisível, a beira. Para quem não a conhece, ver o filme Estamira (2004), de Marcos Prado.

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