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Revista Subjetividades
versão impressa ISSN 2359-0769versão On-line ISSN 2359-0777
Rev. Subj. vol.18 no.2 Fortaleza maio/ago. 2018
https://doi.org/10.5020/23590777.rs.v18i2.6513
ESTUDOS TEÓRICOS
O dispositivo clínica da urgência na atenção hospitalar: sofrimento, escuta e sujeito
The clinic device of urgency in hospital care: suffering, listening and subject
El dispositivo clínica de la urgencia en la atención hospitalar: sufrimiento, escucha y sujeto
Le dispositif assistance psychologique d'urgence en milieu hospitalier: souffrance, écoute et sujet
Maico Fernando Costa (Lattes)I; Abílio da Costa-Rosa (Lattes)II
IDoutorando pelo curso de Pós-Graduação em "Psicologia e Sociedade" pela Universidade Estadual Paulista (UNESP)
IIDoutorado em Psicologia Clínica e Professor Livre-Docente em Psicologia Clínica na UNESP
RESUMO
O objetivo do presente artigo é considerar os aspectos psíquicos do sofrimento do sujeito que chega ao estabelecimento hospitalar relatando ou apresentando tipos de lesão física no corpo. Essa perspectiva passa pela definição de clínica da urgência no campo da atenção à saúde hospitalar. Para tanto, apresentamos aos psicólogos e trabalhadores, inseridos nos estabelecimentos hospitalares e que possuem interesse na escuta ao sujeito do sofrimento, um posicionamento num horizonte técnico-teórico e ético-político pautado na orientação da Psicanálise de Freud e Lacan. No hospital, as concepções de doença, tratamento e diagnóstico são consideradas, a priori, por uma equipe de médicos e enfermeiros, como um fator biológico do humano. No discurso médico, o sujeito se torna objeto e passivo a sua condição de "doente". Respaldados pelas noções de sujeito e subjetividade, o psicólogo, precavido pela Psicanálise, aposta e apreende, mediante a experiência em uma Unidade de Pronto Atendimento, a possibilidade, nesse contexto, de uma direção de tratamento não excludente ao sujeito do inconsciente. De maneira que, o sujeito, ao falar de sua história, daquilo que mais o angustia e o assusta, ao perceber a saúde abalada por um acidente, pode se reposicionar diante da "doença".
Palavras-chave: clínica da urgência; escuta; atenção hospitalar; sujeito.
ABSTRACT
The objective of this article is to consider the psychic aspects of the subject suffering who arrives at the hospital reporting or presenting types of physical injury in the body. This perspective goes through the definition of clinical urgency in the field of hospital health care. To this end, we present to psychologists and workers, inserted in hospitals and who have an interest in listening to the subject of suffering, a position on a technical-theoretical and ethical-political horizon based on Freud and Lacan's Psychoanalysis orientation. In the hospital, conceptions of disease, treatment and diagnosis are considered, a priori, by a team of doctors and nurses, as a biological factor of the human. In medical discourse, the subject becomes object and passive to his condition of "sick." Backed by the notions of subject and subjectivity, the psychologist, wary of psychoanalysis, bets and apprehends, through experience in a Unit of Care, the possibility, in this context, of a direction of treatment that is not exclusive to the subject of the unconscious. Thus, when the subject speaks of his history, of what distresses and scares him the most, when he perceives his health affected by an accident, he can relocate himself in the face of "illness."
Keywords: urgency clinic; listening; hospital care; subject.
RESUMEN
El objetivo de este trabajo es considerar los rasgos psíquicos del sufrimiento del sujeto que llega al hospital informando o presentando tipos de lesión física en el cuerpo. Ese enfoque pasa por la definición de clínica de urgencia en el campo de la atención a la salud hospitalar. Para eso, presentamos a los psicólogos y trabajadores, dentro de los establecimientos hospitalarios y que posee interés en la escucha del sufrimiento del sujeto, una posición en un horizonte técnico-teórico y ético-político basado en la orientación del psicoanálisis de Freud y Lacan. En el hospital, los conceptos de enfermedad, tratamiento y diagnóstico son considerados, a priori, por un equipo de médicos y enfermeros, como un factor biológico humano. En el discurso médico, el sujeto cambia a objeto pasivo a su condición de "enfermo". Respaldados por la noción de sujeto y subjetividad, el psicólogo, precavido por el Psicoanálisis, apuesta y aprehende, ante la experiencia en una Unidad de Pronto Atendimiento, la posibilidad, en este contexto, de una dirección de tratamiento no excluyente al sujeto del inconsciente. De forma que, el sujeto, al hablar de su historia, de lo que más le disgusta y le asusta, al percibir la salud comprometida por un accidente, puede reposicionarse ante la "enfermedad".
Palabras clave: clínica de urgencia; escucha; atención hospitalar; sujeto.
RÉSUMÉ
L'objectif de cet article est d'examiner les aspects psychiques de la souffrance du patient qui arrive à l'hôpital en signalant ou en présentant des blessures physique dans le corps. Cette perspective passe par la définition des urgences clinique dans le domaine des soins des services de santé hospitalier. À cette fin, on présente aux psychologues et aux travailleurs des hôpitaux lesquels ont intérêt à écouter de la souffrance du patient, une position sur un horizon technico-théorique, bien comme politico-éthique basé sur l'orientation de la psychanalyse de Freud et Lacan. À l'hôpital, les conceptions de la maladie, du traitement et du diagnostic sont considérées, à priori, par une équipe de médecins et d'infirmières, comme un facteur biologique de l'être humain. Dans le discours médical, le patient devient objet passif à sa condition de "malade". Soutenu par les notions de sujet et de subjectivité, le psychologue, prévenu par la Psychanalyse, parie et appréhende, à partir d'une expérience dans d'urgences clinique, la possibilité, dans ce contexte, d'une direction de traitement qui n'exclut pas le sujet de l'inconscient. Ainsi, lorsque le sujet parle de son histoire, de ce que le plus l'angoisse et lui fait peur, il s'aperçoit de son état de santé, lequel a été affecté par un accident, donc il peut se repositionner face à la "maladie".
Mots-clés: urgences clinique; écoute; soin hospitalier; sujet.
O presente artigo é um dos desdobramentos de uma dissertação de mestrado. Tem-se o compromisso de apresentar aos psicólogos e trabalhadores que estão nos estabelecimentos hospitalares1 um horizonte técnico-teórico e ético-político de escuta aos sujeitos do sofrimento com base na Psicanálise do campo de Freud e Lacan. Pretende-se também formalizar a "clínica da urgência" enquanto um dispositivo de tratamento nesse contexto específico da atenção à saúde. O intento, de todo, não é propor uma análise na unidade hospitalar, pois que a aplicação de uma análise é realizada em circunstâncias peculiares e fundamentais à execução do dispositivo analítico. Quando transpostada para outro lócus de ação, sem que sejam consideradas as novas condições de técnica, de lugar, de tempo e espaço, esse deslocamento é, no mínimo, descabido (Costa-Rosa, 2013, 2015).
O objetivo do texto é, dessa forma, apresentar a clínica psicanalítica na urgência de um serviço de saúde hospitalar, bem como discutir a possibilidade de uma clínica da urgência impressa nos domínios do que é subjetivo, e no que toca, de modo prioritário, à escuta aos sujeitos do sofrimento. Quer-se propor à unidade de saúde hospitalar, em especial à Unidade de Pronto Atendimento (UPA), uma compreensão de sofrimento que alcance o sujeito do inconsciente. A urgência e a emergência em atender casos, por exemplo, de ordem orgânica, não impedem a escuta na urgência e emergência de um sujeito pulsando entre sentidos inconscientes (Moura, 2000), o qual demanda dizer sobre o sofrimento psíquico contido nas feridas físicas. A realidade das feridas físicas, por sua vez, abre passagem para se notar, a partir delas, a existência de uma realidade psíquica - movendo-se para suportar o dilaceramento do corpo, causado pelo acidente - de um impossível de se evitar.
Para fundamentar o trabalho, foram considerados autores que pensam e vivenciam a Psicanálise de Freud e Lacan, isto é, a clínica psicanalítica no hospital, à luz das suas teorizações acerca da clínica da urgência (Calazans & Marçal, 2011; Moura & Souza, 2007; Simões, 2011). Deve-se pontuar, contudo, que o desenvolvimento teórico do texto foi elaborado mediante a experiência de psicólogo-estagiário2 em uma UPA, situada em um município no interior paulista.
A reflexão dessa práxis, posteriormente transformada em dissertação de mestrado, teve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade (Parecer n. 1.165.744) e atende às exigências éticas previstas na Resolução 466/12, do Conselho Nacional de Saúde, e na Resolução 010/12, do Conselho Federal de Psicologia. Ao longo do artigo, buscou-se abordar o conceito de clínica da urgência associado às suas definições ou, ainda, aos diversos matizes que ao conceito se associam. Visou-se evidenciar a clínica da urgência como um dispositivo de tratamento aos sujeitos em sofrimento, além de propor quatro pressupostos de ação para orientar a escuta do trabalhador precavido pela Psicanálise na unidade de saúde hospitalar. Em suma, o exercício teórico produzido no texto trouxe fragmentos clínicos da experiência de um psicólogo (autor principal deste artigo) inserido em uma unidade da atenção hospitalar, visando a ilustrar a reflexão teórica empreendida.
A clínica da urgência: definições
É pertinente caracterizar a clínica da urgência sob o ponto de vista da Psicanálise em um serviço de urgência e emergência, pois, nesse espaço, ainda é prioritária a atenção ao padecimento do sujeito no plano biológico do corpo. Para se discutir os efeitos dessa práxis, é imprescindível que a clínica da urgência, referenciada pela Psicanálise de Freud e Lacan, passe pela compreensão da urgência subjetiva. É necessário, nesse sentido, superar os conceitos forjados pelo discurso médico, hegemônico no seio hospitalar da Saúde, subvertendo-os. Dessa forma, ergue-se, de modo cauteloso, os pilares da concepção de clínica da urgência; dentre eles, a noção de que há na urgência muito mais do que uma pressa do sujeito por um alívio da dor. Outrossim, para Lacan: "Nada há de criado que não apareça na urgência, e nada na urgência que não gere sua superação na fala" (1966/1998a, p. 242). Acredita-se que a fala é a ponte para a superação da angústia e dos impasses relatados pelos sujeitos em suas demandas. Para tanto, é preciso ter a compreensão que, na urgência subjetiva, há a pressa por um saber, e que não é somente um esparadrapo, um soro ou uma sutura de machucado que o sujeito do sofrimento pede ao outro (semelhante). Esse sujeito3 anseia por um significante, um sentido, o qual deve ser esvaziado dos sentidos que o fixam à condição de "doente". Entendemos que o sujeito não quer apenas um saber de alguém. Ele quer, além desse, poder saber do seu próprio saber: "O que sou? Sou somente isso, uma doença, pela qual estou me representando?".
A imprevisibilidade dos acontecimentos, no que afeta os sujeitos, e a prontidão da equipe em atendê-los fazem parte do cotidiano do estabelecimento de saúde na atenção hospitalar. Nesse ínterim, não há tempo para prever o que está por vir: o tempo do fazer, calma e vagarosamente, está excluído, isto é, no que se refere às queixas, é o instante da equipe avaliar o caso e já dispor um encaminhamento. Por conseguinte, o "[...] que define uma urgência é a exigência de uma resposta rápida" (Simões, 2011, p. 26). Tal conotação de urgência clínica existe para se referir à pressa do sujeito em querer o alívio ao seu sofrimento, considerando o modo como se apresenta, os motivos que o trouxe e o que o impeliu a procurar por um socorro (Carvalho, 2000).
O deslocamento que manejamos pretende substituir o olhar, alienado nos códigos emitidos pela doença, por uma escuta do sujeito do inconsciente, separada do lugar que toma o outro por objeto. Tratar "o real pelo simbólico" (Lacan, 1964/2008, p. 14), como salienta Jacques Lacan, é a empreitada em tal especificidade de trabalho. E isto nos obriga a quê? Obriga-nos a perceber o sofrimento de outra perspectiva. Freud (1921/1996a) não sublinha que toda psicologia individual é, ao mesmo tempo, social? No trabalho analítico, não difere, porquanto, acresce que todo sofrimento físico pode produzir um sofrimento psíquico. Muitos dos sujeitos atendidos, ao se queixarem de dor física, manifestaram em sua fala problemáticas vinculadas ao seu psiquismo ou o oposto. E, por vezes, tais impasses psíquicos, reconhecidos pelos sujeitos, constituíam o originador da "doença".
Elucidemos com o caso da senhora H., em uma vinheta clínica, essa especificidade da clínica da urgência. Estava eu a circular pelos espaços do estabelecimento hospitalar quando adentrei na sala de hidratação e avistei H. sozinha, com as mãos na cabeça e com um soro injetado na veia. Perguntei: "Como está?", e ela me respondeu "mais ou menos". Relatou estar com dor de cabeça e que, da última vez que estivera na UPA, foi por estar com uma cólica renal. De modo chistoso, pontuei, "ah, então agora é a cabeça que lhe traz aqui?". Ela sorriu e perguntou o que eu fazia, em que trabalhava. De imediato, ao me apresentar como psicólogo, revelou que há um tempo, meses atrás, quisera falar com um psicólogo. Disse-me: "É muita coincidência você aqui".
Investiguei com a técnica em Enfermagem se existia uma sala desocupada. Sem demora, prontificou-se em ajudar com a locomoção de H. rumo a um dos quartos vazios. Foram duas entrevistas, sessões. Na primeira sessão, falou de um medo de morrer, de ter depressão e tentar suicídio, como a filha e o irmão tentaram. Sobre o medo, contou que era uma coisa inexplicável, não sabia dizer o que era. Ficou quieta. Passado algum tempo, disse: "Já falei tudo, não tenho mais o que conversar". Sublinhei: "Você falou do medo de ficar como a filha e o irmão". Neste momento, H. começou a chorar. Não queria falar mais nada. Silenciou-se. Considerei ser o momento para encerrar. Levantei-me, disse que iria dar uma volta e que já retornava.
Na segunda sessão, relatou que, quando seu pai ficara doente, ele lhe pedira que fosse curadora do irmão. Segundo H., o irmão estava louco, não era mais capaz de responder pelos próprios atos. Ela estava se desfazendo da herança, doando para desconhecidos os bens herdados. H. disse que tal situação era muita coisa para a cabeça e revelou, ainda, que os períodos da noite eram os mais tristes. Por vezes, ela se silenciava e mencionava que não tinha mais nada para falar: "É tudo isso. É só isso, não tenho mais nada pra falar". Em razão de seu silêncio, intercedia: "Você mencionou seu pai, talvez seja importante falar dele". Fez um movimento como quem estava engolindo algo e começou a chorar novamente. "Sinto falta do meu pai", referindo-se à morte dele. H. continuou, "antes eu tinha ânimo para as coisas, inventava viver. Hoje, hoje eu tenho medo de morrer, uma vontade de morrer que vem do nada".
Durante a segunda sessão, chegou a dizer que a sua dor de cabeça havia parado. Retomou sua fala, contando que não aguentava mais viver daquele jeito. Quando mencionou o marido, disse: "Ah, o meu marido... Ah, ele é um coitado, não faz mal pra ninguém. Eu faço tudo, sou sozinha, me sinto sozinha". Continuou H.: "Ah, parou a dor, será que é o remédio? Como a dor parou?". Cortei-lhe, encerrando a entrevista e, destaquei para ela pontos de sua fala que emergiram, os quais mereciam ser desdobrados em um tratamento. H. quis contatos de psicólogos, algum nome com o qual ela pudesse continuar o trabalho psíquico. Endossou o pedido dizendo que reconhecia precisar de um atendimento diferente daquele que estava recebendo da equipe médica. Depois, ao sair da sala, reencontrei a técnica em Enfermagem, referindo-se à H., ela me perguntou o que acontecia com as pessoas que, entravam para conversar comigo e depois, saíam melhores e mais animadas.
Não se trata de afirmar que a dor de cabeça de H. estava, de modo necessário, atrelada às questões não trabalhadas de sua história. Entretanto também não podemos desconsiderar o fato de que o significante "dor de cabeça", a posteriori subsumido [suprimido e transformado noutra coisa] na forma de alívio, foi se destilando em outros significantes, outros sentidos, os quais a representava no instante em que ela os trazia em sua fala.
Nesse trajeto, define-se a dor [psíquica] como a reação à perda de uma suposta estabilidade física que havia, a perda de ligação do Eu com os seus próximos; ligação que foi desfeita, a qual impele quem sofre a direcionar toda sua atenção para si próprio e a investir toda a energia no Eu, que é tida como meio de resgatar a unidade corporal, estilhaçada por uma ferida cuja dimensão é real. "A dor é assim a reação à perda de objeto, enquanto a ansiedade [angústia] é a reação ao perigo que essa perda acarreta e, por um deslocamento ulterior, uma reação ao perigo da perda do próprio objeto" (Freud, 1926[1925]/1996b, p. 165). Trata-se da perda do objeto, que, em termos clínicos, se manifesta no discurso de um sujeito em sofrimento por intermédio da perda de um ideal, de um ente querido, de um trabalho, com o término de uma relação. Quanto à angústia, segundo as conjecturas freudianas, içando-os ao contexto da experiência analítica, os acidentes vividos pelos sujeitos, os quais os levaram à unidade hospitalar, atualizam outras perdas experimentadas ao longo de suas vidas.
Os apelos no estabelecimento hospitalar são enunciados como emissões sonoras, quase a esmo: "Não aguento mais essa dor, o que será de mim?"; "Ai, é muita dor, é a quarta vez que fico internado aqui"; "Tenho muita dor no estômago. Não suporto tanto tempo mais, o que eu faço? Vou morrer!". Esses pedidos de ajuda, de soluções às sensações físicas, surgem, em um primeiro momento, aos olhos do saber médico, como se fossem facilmente passíveis de resolução objetiva. Entretanto, são escutados na clínica, orientada pela Psicanálise e sustentada pelo dispositivo "clínica da urgência", como manifestações do sujeito do inconsciente.
Fizemos a discussão das concepções de clínica da urgência pelos pontos de vista de autores e analistas atuantes na clínica psicanalítica. Pudemos optar por alguns aspectos desses conceitos e refletir um pouco sobre outras ideias não menos importantes. O trauma, a morte, o tempo, a angústia, o término e a direção de um tratamento psíquico (de uma escuta) no estabelecimento hospitalar são temas que não devem ser desconsiderados em reflexões ulteriores.
O dispositivo clínica da urgência
O dispositivo "clínica da urgência" tem a sua preocupação voltada para o que não se pode esperar, isto é, a busca por uma rápida resposta ao que foi tido por traumático: as ocorrências que provocam no corpo a experimentação de sensações dolorosas. Tem destaque na atenção hospitalar esse encontro com o traumático: as tentativas de suicídio; os acidentes diversos, domésticos e de trânsito; os atos de violência; as disfunções no organismo, nos sistemas respiratório, cerebral e cardiovascular; os fenômenos psicossomáticos e as feridas que emergem no corpo sem causas orgânicas constatáveis.
Calazans e Bastos (2008) oferecem uma valiosa contribuição à clínica da urgência. Assinalam, nesse respeito, a transformação da urgência subjetiva em três momentos. O primeiro, marcado pela urgência generalizada, é a precipitação do sujeito à instituição hospitalar. Não há, em tal estágio, transferência endereçada ao saber encarnado no psicólogo precavido pela psicanálise. O segundo, concernente à recepção do sujeito, tem início o processo de transferência, no qual o sujeito começa a supor um saber no dispositivo analítico. E, o terceiro, o estágio de encaminhamento do sujeito para uma "direção de tratamento" noutro lugar, com outro profissional referenciado na Psicanálise.
Podemos, então, concluir que, no nível dos fenômenos, a urgência se torna subjetiva devido ao dispositivo de recepção do caso. Isso porque no início ela é uma demanda não situável ao nível do significante que possibilita a transferência com um analista e sim com a instituição, transferência não analítica ou latosensu. Essa especificidade deve ficar mais clara para podermos pensar que o dispositivo da urgência seja da ordem do encontro com um analista. (Calazans & Bastos, 2008, p. 645)
É imprescindível, nesse ponto, fazermos uma ressalva. Interpretemos, para a escuta ao sujeito do sofrimento na saúde hospitalar, os três momentos da urgência subjetiva, no dispositivo "clínica da urgência", pensados por Calazans e Bastos para a instituição de saúde mental. A discussão tecida pelos autores fornece um terreno frutífero para as intenções presentes, pois a clínica psicanalítica na urgência mostra-se producente na recepção dos sujeitos em extrema angústia. A urgência elevada ao estatuto de subjetiva pelo posicionamento de quem está no lugar de escuta pretende, a partir da oferta de uma experiência analítica, apostar no sujeito, transportando-se à "Outra cena", a do inconsciente, deslocada da cena anterior, a qual compreende, tão somente, um "doente" e uma "doença" (Batista, 2011).
É preferível "nos referir à especificidade desta clínica atual como a clínica do Real4, da Urgência" (Mohallem, 2003, p. 25). A clínica do Real mostra-se um bom homônimo para uma clínica do sujeito do inconsciente na urgência. Nela, está em questão ficar atento ao que é impossível - de se dizer pela linguagem e em palavras - e ao que não pode ser dito, não obstante que avulta em atos, na pele. Mohallem (2003, p. 29), por conseguinte, destaca que, na "clínica da urgência, nesses momentos de crise, nessas situações adversas, o que acontece é da ordem do imprevisível não só para o paciente, mas também para o profissional".
Os sujeitos esbarram na impossibilidade de conseguirem um significado pronto e único para os acontecimentos, para a dor de existir, nas suas indagações sobre o viver. O viver e o morrer são um mote que atravessa a peculiaridade dessa clínica, como assevera Silva:
A clínica psicanalítica na urgência denuncia a ilusão de completude e de eternidade, afirmando a finitude. O sujeito está diante de um mundo que lhe aponta muitas impossibilidades e, diante do desamparo e do real da castração, a insegurança e a angústia se multiplicam, revelando para ele sua dimensão dolorosa e sangrenta. (2003, p. 14)
Por meio da Psicanálise, os autores supramencionados conceituam a clínica da urgência no âmbito hospitalar. Os elementos presentes na composição do conceito apontam as matizes existentes na práxis: a rapidez nas respostas à crise e às demandas, a imprevisibilidade dos eventos, o desvelamento do caráter de finitude e limite da vida, a ruptura com o tempo linear. Tais autores partem da escuta ao que está insuportável para ser dito em palavras (Baroni, 2011; Cruz, 2007, 2010; Simões, 2011). É o que assinala Simões, pois a partir
[...] do momento em que a psicanálise se detém a pesquisar sobre a clínica da urgência afirmando que há algo a ser escutado e a ser tratado nesse campo, afirma sobre a importância de não se descuidar das crises dos sujeitos. Ficam evidentes as dimensões do real, do simbólico e do imaginário, seus enlaçamentos e seus desencadeamentos. Aparece o elemento insuportável e o impossível de ser colocado em palavras, mas há que se apostar que, através da escuta, de intervenções, o sujeito abre uma possibilidade de se construir algo em torno desse real que se apresenta de forma avassaladora. (2011, p. 31)
Calazans e Marçal (2011) conceituam a clínica da urgência como a escuta aos sujeitos em sofrimento psíquico na instituição de saúde mental. Notam-se na proposta mais contribuições para a operatividade do trabalho realizado na unidade de saúde hospitalar. Eles ressaltam a importância em se traçar estratégias e abordagens capazes de incluir e manejar de modo transferencial os atos dos sujeitos na urgência. É expressivo que, junto a isso, eles sugerem que se pense em uma direção de tratamento, cuja característica vá ao encontro dos estilos subjetivos dos pacientes, ao modo de apresentação das suas demandas. Em suma, encontra-se, na reflexão exposta, uma ressonância com a práxis que se quer propor.
Concorda-se, nesse sentido, com a leitura dos psicanalistas a respeito da clínica da urgência, no entanto é válido sublinhar certas nuances sobre as quais os autores não se debruçaram. Discutir, por exemplo, a clínica da urgência em um estabelecimento hospitalar público e o exercício da práxis (de escuta aos sujeitos) da clínica da urgência em um dispositivo hospitalar intermediário, de média para alta complexidade, em uma UPA. E, em conclusão, tem-se a escuta dos sujeitos, não dissociada de uma estratégia em Rede, que tem em conta a construção dos casos em sintonia com os demais estabelecimentos de saúde do território. Portanto, é possível destacar dessas singularidades uma escuta que não se encerra no atendimento especializado, localizado no estabelecimento institucional, sendo um trabalho que visa à continuidade do tratamento psíquico dos sujeitos.
O caso de L. demonstra uma das tentativas de se operar com o dispositivo clínica da urgência na UPA, e revela um pouco as circunstâncias peculiares encontradas, em particular, nesse local. Outro caso fora de uma senhora cuja idade aparentava mais avançada, a qual aguardava em uma cadeira de rodas, no corredor, ser medicada. Sua filha aparecera e, em seguida, a senhora desmaiou. A observar a cena, uma mulher que estava próxima de mim, L., perguntou se eu não poderia fazer algo pela senhora. Fui até a técnica em Enfermagem responsável pelo setor, que me disse: "Ah, não, deixa ela. Está dando 'piti'. Deixa que ela vai descansar na cadeira". Fui em direção à senhora, ao que tudo indicava estava desacordada. Falei para ela, ao pé do ouvido, tendo em consideração que havia muitas pessoas à espreita: "Depois que você for medicada, quero falar com você. Sou o psicólogo aqui e sei que pode ser importante conversarmos". Essa senhora respondeu murmurando palavras: "Ai, que bom". O primeiro contato com L. ocorrera nessa ocasião.
De seguida, ainda na UPA, enquanto conversava com conhecidos, L. ao se aproximar, chama-me de lado para perguntar sobre a senhora que desmaiara minutos antes. L. revela se importar muito com as pessoas, que estava em consulta médica, e que, no entanto, ao perceber a cena do desmaio e a demora da equipe no atendimento, tivera a recordação de sua mãe e de seu estado na última vez que se encontraram. "Aquela senhora estava muito parecida com a minha mãe, a forma como minha mãe estava antes de morrer". Convidei L. para me acompanhar a uma sala para que tivéssemos mais sigilo, isolada da grande circulação de pessoas.
Já na sala, L. menciona que preferia ajudar os outros, que se preocupava muito com o sofrimento dos outros. Ao que sublinhei: "Dos outros?", ela reiterou como foi ver a mãe momentos antes de seu falecimento. Ademais, relatou que não havia se separado do marido por dó, porque dependia dele. Aos sete anos, passou a morar em uma instituição (espécie de orfanato, que hoje seria uma "Casa Abrigo"), local onde viviam crianças órfãs, em situação de rua, vítimas de violência doméstica ou negligência. Contou ainda que ela e a mãe apanhavam muito do pai e, após a morte do pai, sofrera agressões do padrasto. Salienta que a agredia e abusava sexualmente de sua irmã, uma deficiente física. Menciona que passara muita fome na infância; e, às vezes, pensava muito na vida que tivera e na que queria dar aos filhos.
Além disso, no momento em que pedi para que falasse de sua mãe, L. desatou um pranto copioso. Relata que sentia muita saudade e do quanto sua mãe lhe fazia falta; que a mãe era uma mulher guerreira, muito amorosa com os filhos. Todavia, em relação ao pai, sinalizou que não desejava se pronunciar sobre e que somente Deus a escutava. De imediato, L. perguntou-me: "De que me vale falar com um psicólogo?". A propósito de sua indagação, pontuei firmemente: "O seu sofrimento é legítimo, mas existem questões em aberto na sua história que precisam ser escutadas". Respondeu-me que nunca teve coragem de ser atendida por um psicólogo, mas que quis falar comigo quando notou meu interesse em saber sobre a senhora na cadeira de rodas. Revelou que, por várias vezes, indicou seu nome para agendamento com a psicóloga do posto de saúde de bairro e, não obstante, nunca tivera coragem de seguir em frente. Após isso, expressou: "Só Deus me escuta". Perguntei, dessa vez encerrando a entrevista: "Deus escuta. E você, se escuta?". Levantando-me da cadeira, disse que talvez fosse o momento para que ela procurasse a psicóloga credenciada na unidade de saúde, porém não me esquivei de falar que eu estaria na UPA no dia seguinte, no horário de trabalho habitual, caso voltasse. Na porta, disse-me: "Não entendi o que você falou. Você fala de um jeito difícil. O que você quis dizer?", indagou, se referindo ao fim da sessão.
Tempos depois, fui à UBS em um dos bairros da cidade, para uma reunião com a psicóloga da unidade. Enquanto aguardava na recepção, coincidentemente, L. apareceu. Aquela era a unidade referência no território5. Cumprimentou-me e disse que veio resolver uns assuntos seus, marcar exame. Na volta, L. veio me cumprimentar uma vez mais, estendeu-me a mão e disse: "Marquei com a psicóloga. Desta vez, decidi que quero começar". Ficou em silêncio e olhando para mim. Respondi: "Você pode se beneficiar disso"; e L. emendou: "eu preciso e eu quero". Despediu-se com um sorriso e se foi.
Cabe, nesse sentido, refletir sobre qual razão teria motivado L. a procurar por uma consulta médica na UPA. Embora L. talvez tivesse uma queixa relacionada a algum mal-estar físico, tendo por aporte as indicações de Calazans e Bastos (2008) a respeito dos três momentos da urgência subjetiva, a sua fala permite o levantamento de hipóteses sobre os impasses psíquicos pouco, ou nada, elaborados. Acerca da ausência de um endereçamento transferencial, de supor um saber nos fragmentos de sua história, um sentido nos acontecimentos que a angustiavam, é de real importância assinalar as suas dificuldades de separação: de separar-se da imagem da mãe, a que tanto amava e que, mesmo após ter morrido, insistia em estar presente na memória; de separar-se do marido, de quem admitia ter dependência financeira e pena, e por acreditar que a separação infligira sofrimento caso se concretizasse; e de separar-se do seu pai, que ocupava lugar em seus pensamentos e sobre o qual, de maneira veemente, se privou de falar.
L. citou episódios de seu passado, enfatizando o pesar causado por eles e, ao revelar que nunca tivera coragem de ser atendida por um psicólogo e exprimir que só Deus a escutava, acreditamos que a intercessão, outrora realizada pelo psicólogo, interrogando-a se ela mesma se escutava, tenha proporcionado algo de uma transferência com o saber analítico, o trabalho subjetivo. Esse assinalar, operado a partir do discurso de L., pode ter impulsionado o começo de um trabalho de transferência, ou seja, a possibilidade de L. poder interrogar os significantes-mestres e tautológicos da relação tecida e constituída com o seu sintoma.
Em síntese, os dois momentos da urgência subjetiva denotados em sua fala, ao entendimento analítico, enlaçam o terceiro momento, o da continuidade com o tratamento psíquico (ou princípio de tratamento): evento marcado pelo instante em que L., ao encontrar com o psicólogo na unidade de saúde, disse-lhe ter resolvido iniciar a psicoterapia com a psicóloga atuante na unidade.
Dadas as condições de funcionamento da UPA em que estivemos, o caso de L. ilustra o que se considera profícuo para o horizonte do psicólogo precavido pela psicanálise, isto é, aquele que visa uma práxis ancorada na clínica da urgência: a escuta ao sujeito do sofrimento; o manejo da transferência em um espaço diferente da sala preservada de influências externas, característico do consultório; a abertura do sujeito para o tratamento psíquico, o seu desejo de querer continuar elaborando a sua questão na Unidade de Saúde do seu Território; o conhecimento da Rede, a inserção e a articulação desse psicólogo com os demais psicólogos - atores institucionais dos estabelecimentos de atenção à saúde.
O deslocamento do tradicional setting para a instituição de saúde, representada no hospital, implica o surgimento de uma série de variáveis que, no consultório, na clínica stricto sensu, não se colocam da mesma forma. Noutras palavras, é preciso trocar o significante setting pelo significante "dispositivo analítico". Somente dessa forma, em um ambiente aberto amiúde a surpresas, por conservar a ética do desejo (da Psicanálise), que dá base ao dispositivo analítico, consegue-se manusear as novas modulações da clínica psicanalítica. eNa perspectiva de trabalho que se quer propor, a partir da clínica da urgência, tendo por objetivo a emergência de sujeito, urgência e emergência se configuram em continuidade moebiana: entrecruzam-se, têm o seu ponto de partida no sujeito do inconsciente, isto é, escuta-se os sujeitos acolhendo a dor física que punge o seu corpo, porém compreende-se na queixa a existência de um sofrimento psíquico, e assim a chance, para aquele que sofre, de experimentar os efeitos de sua própria fala (Marcos & D' Alessandro, 2013).
Da urgência aos quatro pressupostos de ação
A elaboração da escrita sobre a práxis tem corroborado para a formulação dos quatro pressupostos de ação, orientadores da escuta na unidade de saúde hospitalar. Por se tratar de um texto que não objetiva se mostrar acabado em suas exegeses, em esforço sintético, é intento expor os quatro pressupostos, pois que se reconhece que este é um trabalho merecedor de desdobramentos posteriores das reflexões sobre a prática da Psicanálise oriundas do contexto hospitalar. Trata-se, nesse aspecto, de uma tentativa de formalizar certa especificidade da clínica da urgência enquanto dispositivo na atenção aos sujeitos do sofrimento.
No texto "Do sujeito enfim em questão", Lacan (1966/1998c) é categórico, sem ser imperativo, a respeito da condição única para se apreender o sintoma e a verdade portada nesse: "que haja psicanalistas" (p. 237). O sintoma não é olhado de cima, como um mero buraco para ser tampado (curado), porquanto é de tal buraco que se há de escutar a sua dimensão de verdade, naquilo que esse possui de mais singular na angústia, sem lhe delegar um estatuto de mentira, fingimento ou sinal de doença. Assim, para escutar os sujeitos em seus sintomas, e para que os sintomas adquiram estatuto de verdade para os sujeitos, como afirmou Lacan (1966/1998c), torna-se fundamental uma escuta precavida pela Psicanálise.
É sabido que, na angústia, não há sujeito, fator que não exclui supor uma pressa, uma urgência subjetiva, daquele que sofre por reconhecer-se como tal. "Agora, pelo menos, podemos contentar-nos com a ideia de que, enquanto perdurar um vestígio do que instauramos, haverá psicanalistas para responder a certas urgências subjetivas, ainda que qualificá-los com o artigo definido fosse dizer demais, ou, mais ainda, desejar demais" (Lacan, 1966/1998c, p. 237). Afigura-se, na citação, um corroborar com o que já havia sido exposto sobre a urgência subjetiva: de pensá-la como um átimo a ser constituído por meio da operação analítica perpetrada por um operador capaz de escutar o sujeito do desejo, do inconsciente, na angústia. Não pretendemos que psicanalistas ofertem aos "doentes" a chance de se experimentarem sujeitos: bastar-nos-ia, trabalhadores e psicólogos precavidos pela Psicanálise, a existência de trabalhadores capazes de ocupar para os sujeitos uma posição que lhes permita a experiência de não serem objetos de seu impasse, de sua agrura.
De modo necessário, a atuação sobre o alicerce da clínica da urgência nos impele a manobrar outros dispositivos e conceitos clínicos imprescindíveis à práxis psicanalítica, a saber: as entrevistas preliminares e os quatro pressupostos de ação.
As entrevistas preliminares em Psicanálise consistem em um tratamento prévio a todo início de análise ou de um trabalho de teor analítico. Trata-se, por conseguinte, do momento em que são constituídas as condições necessárias para que o sujeito possa começar o trabalho analítico. Segundo Quinet (2002), as entrevistas preliminares têm a sua semelhança e a diferença em relação à análise. O tempo do diagnóstico é o que causa tal distinção, pois, para a condução do tratamento, o término das entrevistas preliminares marca, para o sujeito, uma posição subjetiva diante do seu impasse e, para o analista, a elaboração de uma hipótese diagnóstica. Entrementes, a associação livre é o elo que mantém a proximidade com uma análise.
Este experimento preliminar, contudo, é, ele próprio, o início de uma psicanálise e deve conformar-se às regras desta. Pode-se talvez fazer a distinção de que, nele, se deixa o paciente falar quase o tempo todo e não se explica nada mais do que o absolutamente necessário para fazê-lo prosseguir no que está dizendo. (Freud, 1913/1996c, p. 140)
O experimento preliminar ao qual se refere Freud, enquanto um tratamento que se ensaia, coloca-se como uma das regras imprescindíveis para o princípio de um trabalho analítico. Em "As 4+1 condições da análise", Antonio Quinet (2002) afirma que a expressão "entrevistas preliminares" em Lacan, corresponde ao "tratamento de ensaio" em Freud. É o percurso de algumas sessões, entrevistas, para que uma questão seja formulada pelo sujeito e esse se retifique subjetivamente, se reposicione diante do sintoma que o fez buscar um analista, ou um psicólogo precavido pela Psicanálise.
Quinet (2002) organiza as entrevistas preliminares em torno de três funções: a função sintomal, a função transferencial e a função diagnóstica. A função sintomal refere-se ao modo como o sujeito manifesta a própria demanda na forma de queixa, isto é, quando quer o analista que o escute. É evidente que tal demanda, a priori, está associada ao sintoma em seu estado bruto, circunscrito em um local específico, interligado ao psiquismo ou ao corpo.
De modo particular, na UPA, não se pode dizer que os sujeitos que lá estavam queriam um tratamento psíquico. Dessa experiência, o trabalho subjetivo que se engatilhou com os sujeitos do sofrimento derivou da ação do psicólogo precavido pela Psicanálise, o de apresentar-lhes a possibilidade da escuta. "Consegui, em suma, aquilo que se gostaria, no campo do comércio comum, de poder realizar com a mesma facilidade: com a oferta, criei a demanda" (Lacan, 1966/1998b, p. 623). A ação [intercessão] analítica, feita pelo psicólogo, pretendeu dar seguimento à máxima lacaniana: de que ofertar para criar a demanda é apostar que, em determinados momentos, os sujeitos podem se abrir a um trabalho de análise, ou seja, quando se deparam com uma oferta por parte daquele que escuta. Isto significa, decerto, não sem que tal oferta venha a partir da hipótese do operador da escuta após encontro com o sujeito, quando este dirige seu discurso para um sintoma que o incomoda.
Assim sendo, a demanda se formula para o sujeito quando ele a direciona para o dispositivo analítico, tendo a percepção de verdades existentes por detrás do seu sintoma, que se conectam a sua história, verdades com as quais ele precisa entrar em contato. Por efeito, ocorre em tal movimento um deslocamento: do sintoma-queixa-resposta para um sintoma-demanda-enigma. O sintoma, transformado em demanda de tratamento, ganha estatuto de enigma. Há, por sua vez, um movimento duplo, em que o analista, ou psicólogo precavido pela Psicanálise, atua com o intuito de provocar uma histerização no discurso do sujeito, que questiona a sua posição inicial em relação ao impasse (Quinet, 2002).
A função transferencial sinaliza a entrada em análise. O sujeito supõe um saber naquele que o escuta. Ademais, supõe que há um saber existente e vinculado ao seu sintoma, saber que pode portar e, por ora, não o sabe como. A transferência, portanto, diz respeito ao sujeito supondo um saber. No tocante à UPA, não se mencionou da transferência em termos de entrada em análise, no entanto foi situada pelo estabelecimento da transferência em termos de uma vinculação do sujeito ao dispositivo analítico, a saber: o sujeito retifica sua queixa e estabelece uma associação à doença.
A função diagnóstica é, por sua vez, um componente das entrevistas preliminares auxiliador à condução de uma análise, e proporciona ao operador clínico da Psicanálise um conduzir da sua escuta e direciona o tratamento em uma hipótese de diagnóstico: se o sujeito tem um estilo subjetivo constituído por recalcamento, renegação ou foraclusão.
A ação do psicólogo precavido pela Psicanálise em uma unidade de saúde hospitalar, não espera, a princípio, que o sujeito retorne para mais uma sessão. De muitas vezes, será apenas por intermédio de um encontro, que o sujeito irá colher os efeitos de sua própria fala, os quais o instigarão a continuar tal elaboração. Acerca da duração do tratamento, Freud (1913/1996c) expressa ser uma questão um tanto irrespondível. Pensa-se que cabe às entrevistas preliminares, visto queo seu fim será sempre o ínterim do sujeito para interrogar os ditos veladores dos dizeres do seu inconsciente.
Há, nesse aspecto, a indicação dos quatro pressupostos de ação do sujeito no percurso de subjetivação da vivência de sua angústia, a qual é provocada pelo acidente na situação de urgência. A produção e o funcionamento dos pressupostos dependem, a rigor, da instalação e condução das entrevistas preliminares. Entende-se aqui que, todo pressuposto emerge em consonância com a modulação da escuta do psicólogo precavido pela Psicanálise. Além disso, os conceitos de transferência, sintoma, interpretação e diagnóstico são, de modo gradual, operacionalizados na práxis. Para fins de explicação, são dispostos em uma sequência, mas sua ocorrência não é determinante. São eles: a linguagem e sua possibilidade de fala, a ressignificação do acidente, o sintoma como resposta para o sintoma como enigma, e a localização e esboço de implicação [retificação] subjetiva.
Questiona-se, portanto: Quantos sujeitos são atendidos na unidade de saúde hospitalar em uma UPA6 e, desses, quantos permanecem nos leitos e sequer abrem a boca, senão para responder às perguntas diretivas (prescritivas) do médico? "A linguagem e sua possibilidade de fala" acontece no instante em que é dado o destaque à palavra. O inconsciente é estruturado como uma linguagem (Lacan, 1964/2008) e é isso que traz o sujeito (de volta) à malha dos discursos, doravante com a oportunidade de continuar o investimento da libido em seus laços, inclusive dos outros ao seu redor e de recuperar os próprios ideais e aspirações.
Confia-se na fala, qual motor essencial do tratamento possível nas subjetivações das queixas, que, a princípio, (re)clamam apenas de uma patologia física da vida cotidiana (Rodrigues, Dassoler & Cherer, 2012). A nuance que merece ser sublinhada desse pressuposto, a julgar pela forma como pode se estruturar na unidade hospitalar, efetiva-se pela concepção de linguagem da Psicanálise de Freud e Lacan. Em outras palavras, a linguagem não como comunicação social tão somente, mas como a revelação e/ou expressão de uma verdade transmitida pelo sujeito. Cita-se, por exemplo, o que querem dizer os sujeitos mediante seus sintomas físicos não desvendados pelo saber médico e seus equipamentos tecnológicos: as fibromialgias, as dores de cabeça intensas, as paralisias das pernas, dentre outros.
A "ressignificação do acidente" implica em perguntas evocadas, desdobradas, pelos supostos objetos do sofrimento. Logo, importa ao psicólogo precavido pela Psicanálise uma ressignificação do acidente. Desse modo, o indagar-se é decisivo na elaboração do episódio traumático. Acreditamos que as perguntas dos sujeitos relativas ao acidente que sofreram ilustram os sujeitos se interrogando. "Nesse sentido, a urgência pode ser tomada como uma oportunidade para uma nova tomada de posição do sujeito frente às suas questões, fazendo com que lide com elas de forma inédita e diferente da anterior, ou seja, a proximidade com a morte incita a ressignificar a vida" (Baroni & Kahhale, 2011, p. 68).
As inquietações não são incomuns, pelo contrário, se escutadas, propõem uma convocação a um saber-fazer com o sintoma, como se evidenciou na fala da senhora H., já citada neste texto, que havia chegado à UPA por apresentar cólica renal e fortes dores de cabeça. H. falou sobre a perda do pai, muito querido, e de um irmão e uma filha muito dependentes dela. Ao mencionar que se sentia sozinha e que tudo em sua casa dependia dela, perguntou-se, surpreendida com as próprias palavras: "Ah, parou a dor, será que é o remédio? Como a dor parou? Será que a minha dor de cabeça tinha tudo a ver com isso que estou te contando? Engraçado, como antes de você chegar, eu já estava pensando que seria bom falar com um psicólogo". A interrogação realizada pela própria H. de seu sintoma, ao se deparar com os efeitos da própria fala, mostra-se cara, visto que, o sujeito pôde olhar diferente para a sua dor de cabeça e dar ênfase aos eventos de sua história, que tanto a marcaram e ainda marcam. Tornou possível que ela constatasse a impossibilidade de ter respostas para tudo e de ser a heroína dos parentes. Portanto, observa-se na ressignificação dos acidentes vivenciados uma condução, um conotar para outros sentidos e, de modo paralelo, um interrogar dos sintomas que fazem sofrer.
Para se deslocar "do sintoma como resposta para o sintoma como enigma", faz-se essencial inserir o sintoma em análise (Quinet, 2002). E como se faz isso? Ao se compreender as angústias manifestadas, em falas lamuriosas, como uma derivação do sintoma, tal qual se possui uma compreensão diferente do fenômeno, não se tem esses unicamente como queixas de sintomas físicos. O intuito é o impulsionar o questionamento do sujeito, e que este se transforme em material psíquico. Aspira-se pela "aposta no compromisso do sujeito com o seu padecimento, isto é, a aposta de que a palavra do paciente produza enigmas que suscitem demanda para a continuidade do tratamento" (Calazans & Bastos, 2008, p. 641).
O status de enigma para o sintoma na saúde hospitalar confere a posição de abertura do sujeito para trabalhar, de modo subjetivo, suas questões. O sujeito começa a falar do que lhe trouxe até ali, percebe outros detalhes que, até então, não tinha notado, lembra-se e se depara com uma vida anterior ao acidente, sinalizando as feridas psíquicas, narcísicas, as rupturas da imagem de si e em relação à imagem que possui de seus entes próximos. É substancial para este trabalho que a materialização do pressuposto ocorra quando o sujeito percebe a enunciação que há por detrás dos seus ditos, ou seja, note que os seus dizeres possuem mais do que um sentido único e que isto o provoque a colocar os sintomas na esfera do enigma. Note que um pressuposto está conectado ao outro.
Por sua vez, a "localização e esboço de implicação subjetiva" surgem quando os sujeitos percebem de sua própria fala os pormenores que, de menores, eles sabem, só possuem o nome. "Se o paciente escutado em uma situação de urgência conseguir localizar elementos que possam ser relacionados com o aparecimento da urgência, isto em si já pode ser considerado como um princípio para a direção da cura" (Simões, 2011, p. 71). Desse modo, umas das tarefas "é questionar a posição tomada por quem fala quanto aos próprios ditos; e a partir dos ditos localizar o dizer do sujeito, retomar a enunciação" (Miller, 1997, p. 236). Ceder a voz ao sujeito é, por conseguinte, deixá-lo se escutar em meio a toda a caotização de gritos no contexto hospitalar, sem se confundir com um objeto entregue no leito e à espera de um curativo.
A implicação subjetiva é o movimento do sujeito de não se identificar como objeto caído, à espreita de uma resposta vinda do [O]outro. Para que o sujeito localize subjetivamente quais são as próprias questões psíquicas, faz-se indispensável a percepção de que o seu lugar não é dependente, de maneira única, das resoluções vindas do saber médico. No campo da saúde hospitalar, implicar-se subjetivamente na queixa é oportuno para que o sujeito possa quem sabe associar as suas dores físicas às causas para além do corpo biológico (Moretto, 2001).
O sujeito irá falar através do olhar, da voz, do semblante e com o corpo, mas, sem dúvida, irá falar, isto é o que deve interessar a quem escuta e lida com os sujeitos na unidade de saúde hospitalar. As minúcias dos discursos são preciosas, dizem de um dizer subjacente ao que está dito. Mesmo esmaecido no enunciado, o desejo, em definitivo, não está apagado (Moretto, 2001; Souza, 2008). "Apagar o desejo do mapa, quando ele já está recoberto na paisagem do paciente, não é o melhor seguimento a dar à lição de Freud. [...] Nem o meio de acabar com [a] profundidade, pois é na superfície que ela é visível como herpes em dia de festa a florescer no rosto" (Lacan, 1966/1998b, p. 608). Em outras palavras, atuando sob a perspectiva da práxis psicanalítica na unidade hospitalar, seguimos à risca a leitura lacaniana de escuta: não estaríamos procurando investigar as profundezas das falas dos sujeitos, o encoberto, ou aquilo que carece de ser traduzido à consciência por intermédio da interpretação para, então, se poder trazer alívio ao sofrimento. Diferente de outros psicanalistas da época, o que Lacan quer dizer com um desejo que não se encontra no "profundo", no fundo da consciência, é que, o essencial, se encontra pelo desejo do sujeito e se manifesta por um discurso tido por trivialidade, isto é, o que há de mais intrínseco para ser elaborado: o mais profundo estaria na superfície, e não o contrário.
A saída da posição de objeto, transposta para uma unidade de saúde hospitalar, é a fonte para o sujeito prosseguir criando novos passos rumo ao desejo. Para o psicólogo precavido pela Psicanálise, é o desfecho, a amarração dos quatro pressupostos básicos de ação incorporados na práxis no hospital. De "sujeito suposto objeto" passa-se a uma "suposição de saber de sujeito", e confiamos que supor sempre um sujeito é um dos poucos imperativos levado a rigor na ética que baliza a práxis analítica. Desse modo, cabe a descoberta de uma "doença" que seja "auto-poiesis" (na construção de si) para o sujeito, e não uma "coisa" para o discurso médico (Clavreul, 1983).
Foram citados operadores técnicos de compreensão relativos ao lugar do sujeito na urgência, tendo por continuidade a emergência de sujeito. Tais elementos de análise são considerados cruciais ao trabalhador interessado em uma formação a partir da Psicanálise. A "emergência de sujeito" precedente à "urgência do sujeito" tem nos fenômenos do sintoma os sinais da subjetividade, da realidade compartilhada (o sujeito no laço social), sobredeterminada pela realidade psíquica (Realittät), a qual emite um recado a quem o possa captar.
O manejo da escuta ao sujeito do inconsciente é o sujeito poder se escutar e se apropriar dos efeitos de sua fala, reposicionando-se subjetivamente em relação a suas mazelas e suas escolhas. A "soma dos efeitos da fala, sobre um sujeito" (Lacan, 1964/2008, p. 126) é uma das conceituações de Lacan relativas ao inconsciente, naquilo que a emergência de sujeito pode se constituir, a partir dos efeitos da inscrição do significante da fala.
Há o risco de se ser taxado de presunçoso ao sustentar a hipótese, comprovada pela experiência, de que é exequível a ética da Psicanálise noutros espaços que não o restrito ao seu tradicional setting? Haverá quem critique o que defende a existência de outra morte na urgência médica hospitalar? "A referência à morte simbólica, no comum velada pelo temor da perda da vida biológica" (Souza, 1991, p. 91), é tema de interesse quando o que importa, em especial, é uma vida que se realize pela im-pulsão de quem a vive.
Concluir...
A urgência médica coincide, sobremaneira, com a urgência subjetiva (Baroni, 2011). Diante da atenção médica, não é cabível vendar os olhos à hegemonia de sua técnica no âmbito do atendimento hospitalar. O olhar reclinado sobre a doença, entretanto, incide nos intentos de curá-la a todo o custo. A princípio, nesse modo de operar, o que se tem é um corpo combalido à espera do restabelecimento físico. Portanto, no que coincide a urgência subjetiva com a médica? Coincide na existência e na pressa do sujeito por se descolar de suas identificações sintomáticas com a doença.
Para se precaver de qualquer opinião contrária às críticas tecidas em relação ao discurso e ao saber médico, fica esclarecido que a práxis analítica não pretende menosprezar as práticas de salvamento de vidas sob a ótica biológica. Pelo contrário, compreende-se, do lugar que elas se propõem, muito pertinentes. No entanto, o que se quer é tão somente introduzir um plano Outro de compreensão do sofrimento e da doença no seio hospitalar, com as matizes do psiquismo e da subjetividade, sem que se prive ao psicólogo o direito de sublinhar os efeitos opressores e devastadores da clínica incrustada no discurso médico. É intuito ocupar as brechas deixadas pelo discurso médico, na expectativa que, com a clínica resguardada na concepção de sujeito, do desejo, se tenha um estilo de subjetividade atuante para o ciframento (barramento) de gozo angustioso.
Há pontos inerentes à pronta resposta do trabalhador que são valiosos para salvar uma vida, os quais são utilizados com a ajuda de aparelhos técnicos e tecnológicos. Contudo, acrescente-se que, quando o sujeito se desloca do seu lugar de demandante e pedinte (desloca-se porque houve uma intercessão junto à impossibilidade do dizer), enxerga-se em outros planos de existência além dos fixados no sentido tautológico, marcado pela doença. Quando começam a se encontrar em meio a todo o caos urgido pelo acidente, as produções de desejo emergem (Palma, Jardim & Oliveira, 2011), por isso "não podemos desprezar a palavra. É um instrumento poderoso" (Freud, 1926/2014, p. 131). Ora, se a palavra é um instrumento poderoso, indicá-la como o principal instrumento de trabalho analítico não soa como um disparate ou uma incongruência. Eis que, em Psicanálise, é possível designar "tratamento pela palavra" como uma locução homóloga e conectada à expressão "tratamento psíquico".
Em síntese, é relevante tecer uma breve análise em três tempos, a qual se julga pertinente para melhor visualizar o esboço do trabalho subjetivo por parte do sujeito na experiência do sofrimento:
1) O sujeito é objeto do gozo do Outro e está tomado pela angústia na figura de Das Ding (A Coisa) (Harari, 1997), ao passo que, o corpo e a imagem corporal estão dilacerados pelo trauma. O sujeito está objetalizado diante da "doença", isto é, falta-lhe o sentido para nomear o que lhe acontece. Destarte, a finitude humana a ele se desvela e o obriga a confrontar a morte, o fim de uma vida que se presumia e fantasiava eterna.
2) O surgimento da palavra, vem como uma primeira tentativa de se inscrever e historicizar o ocorrido na cadeia significante - dar sentidos à angústia - para a reconstituição do sujeito na esfera de uma demanda, de um querer. A palavra surge, para o sujeito, como um recurso para cifrar o gozo, para transformar a dor e sofrimento em uma chance de retornar às escolhas e aos desejos que se oferecem ao seu horizonte em decorrência do "tratamento pela fala" junto a um psicólogo precavido pela Psicanálise. Nesse ponto, o sujeito esboça, ao ocupar o lugar de trabalho e ser protagonista nos processos de subjetivação da angústia, uma demanda formulada para tratamento psíquico.
3) A instalação da demanda já é o sujeito supondo o saber, em si e no outro (o psicólogo precavido pela Psicanálise) e, ainda que, muitas vezes, não claro para um observador externo, este momento afina-se com a instalação da transferência. O sujeito começa a flertar com o desejo em uma posição de questionamento aos significantes (dos sentidos inconscientes inerentes aos ditos da fala e apropriados pela cultura) que vêm dos outros (seus semelhantes). No início, é um sujeito sem fala; depois, esboçando a falar. Por último, já falando dos impasses e os correlacionando com o que lhe impulsionou a buscar um atendimento hospitalar. Em suma, após pontuar esses momentos, é possível afirmar que um grande passo do sujeito no trabalho subjetivo terá sido dado.
O intuito da especificidade de psicólogo e trabalhador que se quer propor é o estar atento às circunstâncias de crise encontradas na instituição, na unidade de saúde hospitalar. Esse posicionamento serve como proposição de uma escuta - não combativa às intenções da equipe de trabalhadores no estabelecimento - e providencial à oferta de uma ação entre várias, contemplando o sujeito do inconsciente e os possíveis direcionamentos de seu tratamento (Lacan, 1966/1998b).
Acredita-se ser admissível a escuta em um lócus de atuação que, do ponto de vista histórico, não é devotado aos fenômenos de ordem psíquica. Assim sendo, o mesmo método de manusear a técnica e a teoria no setting stricto sensu, é factível de ser manuseado pelo psicólogo na unidade de saúde hospitalar. Isto posto, a sua função não deverá ser ocupada para rejeitar o modo como os sujeitos de início se queixam, pedindo pelo alívio de suas dores.
O fluxo livre da fala, tal qual a condução do discurso para a mobilização do sujeito frente à angústia, são importantes. O intuito, então, não é entrar em confronto com os tratamentos médico-hospitalares, porém, junto aos demais trabalhadores, articulado com outros estabelecimentos de saúde, é se servir dos referidos tratamentos para transformá-los em Outra coisa: uma saúde capaz de incluir também o sujeito, entendido como efeito de discurso na linguagem. E, não será a fala um instrumento digno de propiciar os fundamentos para a clínica da urgência subjetiva?
Logo, elaborou-se, ao longo do presente artigo, a definição do dispositivo clínica da urgência, com o objetivo de pensar a sua expressão nos estabelecimentos de saúde pública. De forma que, nessa propositura, é que os psicólogos e trabalhadores orientados pelos referenciais clínicos da Psicanálise não se limitem à unidade hospitalar de origem, e que, em contrapartida, considerem necessário o trabalho na Rede e também os realizados nos estabelecimentos institucionais, junto às equipes do território em que estão situados. Portanto, é essencial lembrar que é possível estender a operação do dispositivo clínica da urgência - preservando as singularidades de cada espaço - para outros campos da atenção nas políticas públicas, a saber: assistência social, educação, cultura, dentre outros7.
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Endereço para correspondência:
Maico Fernando Costa
Email: maicofernandodd@gmail.com
Abílio da Costa-Rosa
Email: abiliocr@assis.unesp.br
Recebido em: 13/05/2017
Revisado em: 23/06/2018
Aceito em: 19/08/2018
1 Deixa-se claro que, todas as vezes que é mencionado o termo "hospitalar", faz-se referência aos estabelecimentos hospitalares, considerando também os componentes pré-hospitalares, fixos e móveis, por exemplo, Unidade de Pronto Atendimento (UPA) e Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU), respectivamente, da Rede de Urgência e Emergência.
2 Sob a autorização dada pela Secretaria de Saúde do município, um psicólogo que estaria aprimorando a sua profissão em um estabelecimento da atenção hospitalar.
3 Alerta-se ao leitor que se, às vezes, o termo "sujeito", referindo-se ao sujeito do inconsciente, parece se confundir com a ideia de "pessoa" (sujeito da consciência), é por reconhecermos que o sujeito do inconsciente é também o sujeito da consciência, ou, segundo Costa-Rosa (2013) por intermédio de Lacan, o sujeito do inconsciente é o indivíduo mais o inconsciente.
4 O Real ganha estatuto de conceito na Psicanálise à medida em que Lacan tece sua releitura da obra freudiana. Em Freud, o Real confunde-se com a realidade da consciência propriamente dita, impondo ao sujeito o encontro com uma frustração com a qual ele terá que se haver ao se deparar com a impossibilidade da satisfação total. Já para Lacan, o Real forma o nó borromeano, com o Imaginário e o Simbólico, isto é, na topologia lacaniana é justamente aquilo que está aquém da realidade da consciência e escapa ao campo do simbólico. Em sua dimensão de Das Ding, a partir de Jacques Lacan, o Real é outro nome dado ao objeto a, gozo angustioso, objeto inapreensível e "não-todo" inscrito na linguagem. Oobjeto a, também chamado de objeto causa de desejo, para sempre perdido. Logo, o Real é o (re)encontro com o impossível, o que não cessa de não se inscrever [dizer] todo na linguagem (Kaufmann, (1996); Lacan (1957-1958/1999).
5 Noção adquirida da Saúde Coletiva, o território não é só o espaço geográfico e físico, é construído historicamente pelos atores sociais em seus vínculos afetivos, econômicos, relacionais e nos locais onde habitam. (Saquet & Silva, 2008).
6 Local onde se produziu tal práxis, do qual a dissertação e o presente artigo tecem considerações.
7 Há um conjunto de pesquisadores trabalhando com estas questões, os quais podem ser consultados: Benelli (2014); Périco (2014) e Souza (2015).