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Revista Subjetividades
versão impressa ISSN 2359-0769versão On-line ISSN 2359-0777
Rev. Subj. vol.19 no.2 Fortaleza maio/ago. 2019
https://doi.org/10.5020/23590777.rs.v19i2.e9156
ESTUDOS TEÓRICOS
Escrita, vestígio e ausência em A amiga genial de Elena Ferrante
Writing, trace and absence in a amiga genial de Elena Ferrante
Escrita, rastro y ausencia en la amiga genial, de Elena Ferrante
écriture, trace et absence chez L´amie prodigieuse d´Elena Ferrante
Tatianne Santos Dantas (OrcID)I; Simone Zanon Moschen (Lattes)II
IDoutoranda em Estudos Literários pela Universidade Federal de Sergipe. Mestre em Psicanálise: Clínica e Cultura pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Integrante do Núcleo de Pesquisa em Psicanálise, Educação e Cultura (NUPPEC) da UFRGS
IIProfessora do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise: Clínica e Cultura e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Pós-Doutora em Psicanálise pela UERJ, Coordenadora do Núcleo de Pesquisa em Psicanálise, Educação e Cultura (NUPPEC/UFRGS) e Bolsista Produtividade do CNPq. Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre
RESUMO
Neste artigo, pretendemos fazer ressoar, com a psicanálise, os efeitos da leitura do livro A amiga genial de Elena Ferrante. Encontramos nesse romance, em especial no prólogo Apagar os vestígios, a possibilidade de traçar um percurso que nos permite mobilizar elementos capazes de dar contorno à proposição freudiana de que os traços mnêmicos, constituintes do aparelho psíquico, inscrevem-se como fruto de um apagamento. Também interessará à tessitura deste texto os fios que nos chegam do trabalho de Lacan com o romance Robinson Crusoé, de Daniel Defoe - trabalho que mobiliza o movimento de ausência-presença-ausência como condição de um registro simbólico. O desaparecimento da personagem Lila Cerullo, narrado nas páginas iniciais do romance de Ferrante, nos permitirá pensar sobre a relação entre perda e criação literária. O significante vestígio, que compõe o título do prólogo de A amiga genial, indica a passarela que permite colocar em contato o pensamento da escritora italiana e as formulações freudianas sobre o inconsciente. É no rastro desse significante que espraiamos a relação com a literatura para entrever o que a ficção contemporânea pode dizer para a psicanálise.
Palavras-chave: Elena Ferrante; escrita; vestígio; psicanálise.
ABSTRACT
In this article, we intend to resonate with psychoanalysis the effects of reading the book A amiga genial de Elena Ferrante. We find in this novel, especially in the Prologue Erasing the Traces, the possibility of tracing a path that allows us to mobilize elements capable of circumventing the Freudian proposition that the mnemic traits that constitute the psychic apparatus are inscribed as the result of an erasure. The text that draws us from Lacan›s work with Daniel Defoe›s novel Robinson Crusoé, a work that mobilizes the movement of absence-presence-absence as a condition of a symbolic record, will also interest this text. The disappear rance of the character Lila Cerullo, narrated in the opening pages of Ferrante›s novel, will allow us to think about the relationship between loss and literary creation. The significant trace, which makes up the title of the prologue to The Ingenious Friend, indicates the catwalk that allows the Italian writer's thoughts and Freudian formulations of the unconscious to be brought into contact. It is in the wake of this signifier that we spread the relationship with literature to glimpse what contemporary fiction can say for psychoanalysis.
Keywords: Elena Ferrante; writing; trace; psychoanalysis.
RESUMEN
En este trabajo, pretendemos hacer resonar, con el psicoanálisis, los efectos de la lectura del libro La amiga genial, de Elena Ferrante. Encontramos en este romance, especialmente en el prólogo Borrar los rastros, la posibilidad de trazar un trayecto que nos permite movilizar elementos capaces de dar forma a la proposición freudiana de que los rasgos mnémicos, constituyentes del aparato psíquico, inscríbanse como fruto de un borramiento. También será importante para la composición de este texto los hilos que nos llegan del trabajo de Lacan con el romance Robinson Crusoe, de Daniel Defoe - trabajo que moviliza el movimiento de ausencia-presencia-ausencia como condición de un registro simbólico. La desaparición del personaje Lila Cerullo, narrado en las páginas iniciales del romance de Ferrante, nos permitirá pensar sobre la relación entre pérdida y creación literaria. El significante rastro, que compone el título del prólogo de La amiga genial, indica el camino que permite poner en contacto el pensamiento de la escritora italiana y las formulaciones freudianas sobre el inconsciente. Es bajo el rastro de este significante que expandimos la relación con la literatura para entrever lo que la ficción contemporánea puede decir para el psicoanálisis.
Palabras clave: Elena Ferrante; escrita; rastro; psicoanálisis.
RÉSUMÉ
On trouve dans ce roman, notamment dans le prologue"Effacer les Traces", la possibilité de tracer un chemin où on puisse mobiliser des éléments capables de cadrer la proposition freudienne selon laquelle les traits mnémologiques, qui constituent l'appareil psychique, sont inscrits à la suite d'un effacement. Les tessitures de ce texte sont également intéressantes pour le travail de Lacan avec le roman Robinson Crusoé de Daniel Defoe - une œuvre qui mobilise le mouvement de l'absence-présence-absence en tant que condition d'un enregistrement symbolique. La disparition du personnage Lila Cerullo, relatée dans les premières pages du roman de Ferrante, nous permettra de réfléchir au rapport entre perte et création littéraire. La trace significative, qui constitue le titre du prologue de L'amie prodigieuse, pointe vers le podium qui permet de mettre en contact les pensées de l'écrivaine italienne et les formulations freudiennes de l'inconscient. C'est à la suite de ce signifiant qu'on a étendu la relation avec la littérature pour apercevoir ce que la fiction contemporaine peut dire pour la psychanalyse.
Mots-clés: Elena Ferrante; écriture; trace; psychanalyse.
Só vagamente tomava conhecimento da espécie de ausência que tinha de si em si mesma. Se fosse criatura que se exprimisse, diria: o mundo é fora de mim, eu sou fora de mim. (Vai ser difícil escrever esta história. Apesar de eu não ter nada a ver com a moça, terei que me escrever todo através dela por entre espantos meus. Os fatos são sonoros mas entre os fatos há um sussurro. É o sussurro que me impressiona).
Clarice Lispector
O texto literário questiona a psicanálise desde Freud e, muitas vezes, foi através desse questionamento que a psicanálise abriu veredas na teoria, estendendo sua condição de intervir junto ao sofrimento humano. Brandão afirma que "são várias as questões que se levantam a propósito de leituras do texto literário que se valem de conceitos psicanalíticos, o que indica talvez uma inquietação relativa à própria psicanálise" (Brandão, 1996, p. 26). Inquietação que tomamos como índice da vida que pulsa no campo psicanalítico, capaz de se agitar diante do novo, não o recobrindo com o tecido de conceitos já estabelecidos. A literatura permite à psicanálise avançar desde que, como psicanalistas, possamos encontrar uma posição de leitura que torne possível o alargamento do nosso campo conceitual.
Podemos situar pelo menos dois pontos de interesse dos psicanalistas em relação à literatura: o processo criativo e o texto produzido. Com o primeiro, Freud muito cedo se inquietou, indicando o papel privilegiado que o inconsciente assume nesse processo, uma vez que "o texto literário pode ser compreendido como o possível do desejo e espaço para a fantasia" (Brandão, 1996, p.33), em que o escritor é portador de um segredo que só começa a ser revelado quando ele imprime sua linguagem no papel. Freud (1907/1996) fala sobre esse mistério em Escritores Criativos e Devaneio quando, logo no primeiro parágrafo, apresenta características dos escritores que os colocam em outro lugar:
Nós, leigos, sempre sentimos uma intensa curiosidade em saber de que fontes esse estranho ser, o escritor criativo, retira seu material, e como consegue impressionar-nos com o mesmo e despertar-nos emoções das quais talvez nem nos julgássemos capazes. Nosso interesse intensifica-se ainda mais pelo fato de que, ao ser interrogado, o escritor não nos oferece uma explicação, ou pelo menos nenhuma satisfatória; e de forma alguma ele é enfraquecido por sabermos que nem a mais clara compreensão interna (insight) dos determinantes de sua escolha de material e da natureza da arte de criação imaginativa em nada irá contribuir para nos tornar escritores criativos. (Freud, 1907/1996, p. 135)
É interessante observar essa colocação de Freud porque nela ele se situa à margem daqueles que considera como escritores criativos, apesar de ficar evidente em seus textos e no próprio corpo teórico psicanalítico a forte presença da literatura e da arte. Percebe-se, nos escritos de Freud, uma aproximação com a narrativa ficcional, principalmente ao relatar seus casos clínicos - lembremos que ele dizia que seus casos clínicos deveriam ser lidos como contos. Talvez não seja coincidência que o único prêmio recebido durante toda a sua vida tenha sido um reconhecimento pelo caráter literário de sua obra, em ١٩٣٠, o Prêmio Goethe de Literatura. Ao dizer que seus casos deveriam ser lidos como contos, Freud indica a escrita literária como um lugar privilegiado para a transmissão da experiência clínica e também da própria psicanálise (Azevedo, 2007) - papel assumido tanto pela dimensão ficcional com a qual essa escrita opera quanto pelas narrativas que ela inscreve -, alargando, em seu obrar, as formas de enunciar os impasses humanos.
Embora seja ponto pacífico a potência da afetação entre psicanálise e literatura, não é igualmente concordante, entre os analistas, a posição de leitura a ocupar diante da obra e de seu escritor. Como afirma Chemama (2002), muitas vezes, os analistas procuram a literatura como um lugar para fazer funcionar seu sistema, interpretando a produção do escritor de forma a ilustrar a operatividade da constelação teórica de seu campo. Esta, no entanto, não parece ser a recomendação deixada por Freud, pelo menos não nos primeiros delineamentos desse litoral. Em 1906, quando escreve o ensaio intitulado O delírio e os sonhos na gradiva, Freud (1906/2015) inicia dizendo que os poetas e romancistas são preciosos aliados para a psicanálise, uma vez que "no conhecimento da alma são nossos mestres, homens vulgares, pois se banharam nas fontes que ainda não tornamos acessíveis à ciência" (Freud, 1906/2015, p. 16). Assim, alerta Chemama (2002), é inútil interpretar Édipo, uma vez que é antes o Édipo que nos permite entender o que diz o sujeito.
No ensaio sobre a Gradiva, Freud parece manter a vontade de que, com o estudo da literatura, pudéssemos obter um pouco mais de compreensão sobre a criação literária, apontando que é no campo do inconsciente que ela se dá. Isto não significa, contudo, que através da análise da obra literária seja possível chegar ao inconsciente do artista; o que podemos entrever da aproximação proposta por Freud é que há algo na experiência da escrita/leitura que se aproxima ao processo de fala/escuta na análise. Em ambas, bebe-se na mesma fonte, trabalha-se com o mesmo objeto - a palavra -, cada campo constrangido pelos limites que seu método impõe, para fazer avançar o conjunto de enunciados sobre o humano que permitem validar simbolicamente o que lhe é próprio.
No texto Homenagem a Marguerite Duras pelo arrebatamento de Lol V. Stein, Lacan (1965/2003) retoma, de outro modo, o que Freud diz em Gradiva. A metodologia do diálogo entre psicanálise e literatura adquire, através do olhar do psicanalista francês, uma ética pela qual o campo psicanalítico se acha melhor balizado. Para ele, "a única vantagem que um psicanalista tem o direito de tirar de sua posição é a de se lembrar com Freud que em sua matéria o artista sempre o precede, portanto, ele não tem que bancar o psicólogo quando o artista lhe desbrava o caminho" (Lacan, 1965/2003, p. 200).
Chemama (2002) lembra-nos que as formações do inconsciente não devem ser traduzidas por um código psicanalítico; antes disso, se constituem como enigmas, acidentes do sentido: o sujeito que acreditava saber o conteúdo da sua fala, dá-se bruscamente conta de que não sabe o que fala nele. O exercício da escuta, para o qual o analista convida o analisante, não será o da construção de uma compreensão sobre aquilo que causou a surpresa - muito embora um entendimento possa surgir como resto nesse processo -, mas, sim, o de fazer recair o acento sobre a impossibilidade de o discurso dizer-se a si mesmo. Impossibilidade essa que carrega consigo toda a potência criativa da palavra.
O analista toma o sujeito pela palavra. Dizemos, então, que ele pode tomar o texto à letra. Ele não procurará ali um sentido, profundo, essencial, único, mas estará atento ao próprio funcionamento da escrita. A interpretação, se conservarmos esse termo, não será uma metalinguagem, remetendo o discurso de um escritor a um saber já constituído. Ela será corte, escansão operada sobre os traços da própria escrita, que permite fazer sobressair o que nela já está. (Chemama, 2002, p. 65)
A condição de fazer aparecer o corte que confere à palavra o seu poder criador - corte que Lacan tão bem indicou ao ressaltar a barra que separa significante e significado, conferindo àquele a primazia no jogo da produção do sentido - depende radicalmente da posição que se toma junto ao texto; o que temos em mãos, ao ler uma célebre obra e o que temos ao alcance das orelhas ao escutar um analisante. Parece-nos imprescindível ressaltar o caráter decisório da posição, da pré-posição, da preposição. Melhor dizendo, pensamos que o jogo se decide a partir do exercício de uma disposição a tomar certo lugar na leitura/escuta e, nesse sentido, desejamos, neste artigo, tirar consequências de um trabalho com o texto literário e não sobre o texto literário. Tomar o com como bússola do trabalho é, para nós, uma petição de método.
Assim, este artigo pretende fazer ressoar efeitos da leitura do livro A amiga genial de Elena Ferrante. Deste, toca-nos, em especial, o trabalho com o prólogo cuja leitura nos permitiu mobilizar elementos para uma tessitura entre o que ali encontramos e a proposição freudiana que tem na escrita inspiração para estabelecer o funcionamento do aparelho psíquico em termos de traços mnêmicos. Nesse tecido, comparecem também os fios que nos chegam do trabalho de Lacan com o romance Robinson Crusoé, de Daniel Defoe - trabalho que mobiliza o movimento de ausência-presença-ausência como condição de um registro simbólico. O desaparecimento da personagem Lila Cerullo, narrado nas páginas iniciais do romance de Ferrante, nos permitirá pensar sobre a relação entre perda e criação literária.
Tomamos o significante1 vestígio, que compõe o título do prólogo de A amiga genial, como a passarela que permite colocar em contato o pensamento da escritora italiana e as formulações freudianas sobre o inconsciente. É no rastro desse significante que espraiamos a relação com a literatura para entrever o que a ficção contemporânea pode dizer para a psicanálise.
"Escrever é se vingar da perda"
A amiga genial (2015) é o primeiro volume de uma série de quatro livros escritos por Elena Ferrante que ficaram conhecidos como tetralogia napolitana. Os demais volumes, em ordem de publicação, são: História do novo sobrenome (2016), História de quem foge e de quem fica (2017) e História da menina perdida (2017a). Além da série napolitana, a autora publicou os livros Um amor incômodo (2017), Dias de abandono (2016), A filha perdida (2016), Uma noite na praia (2016) e uma compilação de diversas cartas, bilhetes, ensaios e entrevistas chamada Frantumaglia: os caminhos de uma escritora (2017b). O conteúdo dessa coletânea foi todo concedido por e-mail ou por correspondências que chegam ao público através de seus editores, uma vez que Elena Ferrante é o pseudônimo para uma escritora que diz ter escolhido a ausência. Mesmo sendo indicada para premiações, Ferrante opta por não aparecer; envia seus discursos escritos para serem lidos ou publicados e toda a comunicação é feita através de seus editores.
A falta da pessoa física por trás da autoria tornou-se uma questão, nos últimos anos, com a explosão da venda dos seus livros em todo o mundo. O esforço para desvendar o mistério da ausência pode ser observado no artigo What is Elena Ferrante? A comparative analysis of a secretive bestselling Italian writer (2018), escrito pelas pesquisadoras Arjuna Tuzzi e Michele A. Cortelazzo, que buscam saber quem é a escritora comparando o conteúdo do texto literário de Ferrante com o de 150 escritores italianos da segunda metade do século XX. No resultado, não são encontradas as semelhanças esperadas entre os romances analisados; aquele que mais se aproxima em estilo é Domenico Starnone, que já negou várias vezes ser o autor por trás do pseudônimo.
Concordamos com o escritor Roberto Saviano (2017) ao situar que a ausência da autora, no caso de Ferrante, é um projeto que parece ser parte intrínseca da sua obra. Como não é nosso objetivo neste artigo analisar essas questões, partimos do posicionamento que a autora toma em uma das entrevistas de Frantumaglia, quando questionada sobre quem é Elena Ferrante: "Treze letras, nem mais nem menos. A sua definição está toda contida nelas" (Ferrante, 2017b, p. 321).
A narrativa da tetralogia napolitana conta a longa história de amizade entre Elena Greco e Rafaella Cerullo, uma amizade que começa quando as duas são crianças e vivem em um bairro periférico de Nápoles, na Itália. Na velhice, quando ambas estão com sessenta e seis anos, Rafaella - chamada por Elena e, somente por ela, de Lila -, desaparece. O sumiço é contado no prólogo de A amiga genial, e é a partir dele que Elena começa a narrar a história que temos em mãos. Logo percebemos que, além do romance sobre a amizade, estamos diante de uma narrativa sobre o bairro onde elas nasceram e os acontecimentos históricos da segunda metade do século XX. No romance, Elena Greco é escritora, o que torna a tetralogia uma autobiografia ficcional que tece uma reflexão sobre questões que ocupam a teoria da literatura e a psicanálise desde o seu surgimento e que, longe de estarem resolvidas, são perguntas em constante processo de (re)construção.
O prólogo da série napolitana chama-se Apagar os vestígios, e demorar nessa primeira aproximação com a obra é importante por tratar-se de um início que coloca em questão a ausência, a presença e, podemos dizer, o que está em jogo no começo de uma escrita. Elena Greco, a narradora, nos conta que faz, pelo menos, trinta anos que sua melhor amiga, Lila Cerullo, "quer sumir sem deixar rastro" (Ferrante, 2015, p. 15). Lila nunca teve o intuito de fugir ou mudar de identidade, tampouco nutriu o sonho de recomeçar a vida em outro lugar. O suicídio também não era uma hipótese por ela aventada, uma vez que deixar seu corpo para que outra pessoa cuidasse era uma ideia incômoda. "Seu objetivo sempre foi outro: queria volatilizar-se, queria dissipar-se em cada célula, e que ninguém encontrasse o menor vestígio seu" (Ferrante, 2015, p. 15, grifo nosso). Diante da constatação do desaparecimento da amiga, Elena se irrita e diz que Lila extrapolara o conceito de vestígio uma vez que "queria não só desaparecer mas também apagar toda a vida que deixara para trás" (Ferrante, 2015, p. 17). A raiva gerada pelo movimento de Lila provoca Elena a ligar o computador com um único propósito: escrever cada detalhe daquela história que lhe ficou na memória - e, em alguma medida, impedir Lila de desaparecer.
É a partir da ausência deixada por Lila que Elena escreve, como se estivesse a embalsamar, com palavras, o vazio deixado pelo seu corpo. Os livros que ora estamos prestes a desbravar parecem a tentativa da narradora de levantar um túmulo através da escrita, algo a que Lila se negou quando decidiu apagar-se sem deixar vestígios. Jeanne-Marie Gagnebin (2014) nos lembra da proximidade entre o túmulo e a escrita: "se o túmulo é um signo (sèma) construído com pedras, o poema é também um signo (sèma) de palavras; ambos têm por tarefa lembrar aos vivos de amanhã a existência dos mortos de ontem e hoje" (Gagnebin, 2014, p. 14). Desde os textos que fundaram a literatura ocidental2, a relação entre morte e escrita existe, e é enfatizada na narração como uma maneira de evitar o esquecimento e criar a ilusão de uma imortalidade coletiva. Os traços gravados no túmulo encontram uma expansão na escrita, transformando, em forte presença do canto poético, a função fúnebre de dizer a morte e a ausência que dela decorrem.
Em sua etimologia, a palavra lapide deriva do latim lapis: o nome escrito na pedra tumular guarda um valor significante para a cultura e assinala ali a presença/ausência de um corpo sem o sopro de vida. Lacan (1953/1998) vai nos dizer no texto Função e campo da fala e da linguagem que o túmulo é o primeiro símbolo de reconhecimento da humanidade em seus vestígios, "e a intermediação da morte se reconhece em qualquer relação na qual o homem entra na vida de sua história" (Lacan, 1953/1998, p. 320).
No entanto, no caso da história narrada pela tetralogia de Ferrante, há a negação de Lila em se submeter à impossibilidade que caracteriza o humano, negação que se dá a ver a partir do que Elena nos diz sobre o seu desejo de desaparecer. Além da tentativa de construir um túmulo para a amiga com suas palavras, nossa narradora também quer vingar essa perda, ir contra o desejo manifesto de apagar-se, que Lila enunciou durante toda a sua vida - ir contra aquilo que a amiga deliberadamente cultivava como recusa da humanidade que lhe constituía. Lila não queria apenas desaparecer, mas dissipar-se, volatilizar-se em cada célula, até que não fosse encontrado nada de seu. No último volume da tetralogia, História da menina perdida, a narradora nos fala sobre esse desejo de apagar-se como um projeto estético:
Ela já havia expressado aquela vontade de se apagar várias vezes, mas a partir dos anos 1990 - sobretudo de 2000 em diante - aquilo se tornou uma espécie de refrão insolente. Era uma metáfora, naturalmente. Que a atraía, recorrera a ela nas circunstâncias mais diversas, e nunca me ocorreu, nos tantos anos de nossa amizade (…) que ela pensasse em suicídio. Apagar-se era uma espécie de projeto estético. (Ferrante, 2017a, p. 455)
Ana Cecília Carvalho (1994) situa a necessidade de escrever tanto como aquilo que pode surgir a partir da vivência de um luto - ressaltando que não se trata necessariamente da morte de alguém, mas da captação de um vazio qualquer - quanto o que pode carregar consigo a tentativa de fazer emergir algo que se encontra nas lacunas do que é dito, de decifrar um enigma, um segredo ou um mito que, pela sua própria natureza, comporta espaço para inúmeras e incessantes versões. Lembremos que em Luto e Melancolia, Freud (1917/1996) diferencia aquele e esta mostrando que o luto, ao referir-se "à reação à perda de uma pessoa amada ou à perda de abstrações colocadas em seu lugar, tais como pátria, liberdade, um ideal, etc." (Freud, 1917/1996, p. 105), está direcionado para um objeto que, com o passar do tempo, será localizado no lugar do ausente e, em sua ausência, poderá se fazer presente.
Partindo desse pressuposto, Ana Cecília Carvalho (1994) afirma que "a produção literária serve bem a essa necessidade de representar uma ausência, substituindo aquilo que foi, recuperando-a em outro registro" (Carvalho, 1994, p. 3). Para a psicanalista e escritora, escrever parece ser a tentativa de localizar uma perda inaugural, engendrando uma pele simbólica para encobrir a ausência fundante. Algo desapareceu, se apagou, e o escritor é aquele que tenta construir com suas palavras a condição de indicar essa ausência.
No poema que pegamos emprestado para dar título a esta seção, Waly Salomão (1996) nos diz que:
Escrever é se vingar da perda
Embora o material tenha se derretido todo
Igual queijo fundido. (Salomão, 1996, p. 33)
Sousa (2007) afirma que "a escrita é ela mesma a materialização da experiência da perda" (Sousa, 2007, p. 240). Parece ser essa a disparadora da narrativa em A amiga genial, o que convoca a narradora a abrir o computador e começar a contar. Elena escreve para se vingar da perda. Busca a criação a partir do caos que a ausência de Lila deixou; busca dar forma ao que não tem forma, ao material que se derramou. O texto literário vem em seu auxílio como uma espécie de nomeação para o enigma que ainda é indecifrável. O escritor francês George Pérec tem uma proposição que é pertinente lembrar, pois aproxima-se do que intuímos aqui como um paradigma para pensar o que está colocado como movimento na abertura desse romance: "o indizível não está escondido na escrita, é aquilo que, muito antes, a desencadeou" (Perec, 1995, p. 54).
Sabemos, com a psicanálise, que o luto por alguém querido é ainda mais difícil pela mágoa que sentimos com a sua partida. Como se o desaparecimento do outro levasse uma parte de nós. É o trabalho do luto que permite a quem fica o tempo de elaborar o vazio deixado, de maneira a se proteger, assim, de uma violência destrutiva. Ao escrever sobre o desaparecimento de Lila, Elena faz com que seus leitores sintam essa violência. Apesar de o sumiço não lhe ser estranho, como se fosse um acontecimento esperado há muito tempo, sua concretização traz o sem-sentido que acompanha uma perda. Ela parece escrever para recompor-se dessa falta indicando a presença inscrita na ausência.
Segundo Gagnebin (2014), a literatura pode ser definida como a linguagem cuja lei de estruturação é sua relação com a morte. Essa relação não precisa ser explícita, ela habita o texto literário, visto que este não pretende falar do que existe, mas, sim, criar outras realidades, inventar outros mundos. Uma realidade em princípio inexistente, mas que passa a existir quando pensamos no possível da invenção. A ficção pode, então, ser lida tanto na chave de uma mentira como da tentativa de escrever algo da ordem do desconhecido. Quando alguém escreve sobre a beleza ou a dor do mundo, o faz abrindo a possibilidade de um sentido que é criado a partir de suas palavras. Dentro do texto de ficção, "criar sentido é, portanto, manter esse mundo imediato à distância, criar entre mim e ele um intervalo que dele me afasta, me separa, me corta, mas também me permite nomeá-lo" (Gagnebin, 2014, p. 25).
Elena sabe que escrever sua história com Lila não evitará o desaparecimento da amiga, tão pouco a trará de volta, mas isso não a impede de fazê-lo. A escrita, nesse sentido, enseja também uma espécie de libertação. Kafka nos lembra, em um de seus aforismas, que a arte se assemelha ao templo onde se acha gravada em cada pedra uma inscrição sacrílega: "tão profundamente gravada que o sacrilégio durará mais tempo, tornar-se-á mais sagrado que o próprio templo" (Kafka, 2002, citado por Blanchot, 2011, p. 34). Assim, a arte torna-se o lugar da inquietação e da complacência, da insatisfação e da segurança; lugar de destruição de si mesma, desagregação infinita e, ao mesmo tempo, ventura e eternidade.
O trabalho da escrita, apesar de longo e extenuante - os quatro volumes reunidos somam mais de 1500 páginas -, não consegue revelar o mistério que circunda a história e enseja o começo de A amiga genial, a causa do desaparecimento. O final inconcluso nos mostra que sempre há algo que permanece não-dito, há um fracasso da escrita em recobrir a falta - antes, ela faz localizá-la. Mas um fenômeno curioso acontece em algumas narrativas, e talvez seja esse o motivo da sua atração: percebe-se, em certo instante, que algo da ordem da verdade irrompe no tecido literário. Como ressalta Walter Benjamin (1985) em suas teses Sobre o conceito de história: "A verdadeira imagem do passado passa célere e furtiva. É somente como imagem que lampeja justamente no instante da sua recognoscibilidade, para nunca mais ser vista, que o passado tem de ser capturado" (Benjamin, 1985, p. 62).
A proposta da escrita literária parece ser a modificação mútua do passado no presente, sendo essa imagem célere e furtiva a única maneira de alcançá-lo. O passado irrompe no presente, emergindo como verdade capaz de ensejar o trabalho de reconfiguração do saber. Essa imagem que lampeja parece ser a busca de Elena ao narrar a ausência de Lila, trazendo à tona o real de um encontro faltoso que se revelou a partir do trauma do desaparecimento.
Segundo Anzieu (1990, p. 184, citado por Carvalho, 1994) as obras literárias mais tocantes são aquelas que apenas sugerem a existência de um enigma e fazem com que leitores participem dessa busca com dupla face de evidência e de incerteza, sabendo de antemão sobre o fracasso inevitável de compreendê-las totalmente. À semelhança da escrita, que surge a partir de um enigma dado pelo outro, quem lê também deve encontrar no texto uma fresta por onde entrar, ser fisgado e escrever a história à sua maneira, "reconstruir o texto com a sua leitura" (Anzieu, 1990, p. 184, citado por Carvalho, 1994).
Vestígio: olhar para a ausência
Lembremos do que Elena nos diz sobre Lila querer extrapolar o conceito de vestígio, tentando barrar a transmissão de sua história. Com seu desaparecimento, Lila se quer inscrever em uma camada inacessível ao humano - preso que estamos à impossibilidade de apagar aquilo que uma vez tenha ganhado registro mnêmico/simbólico - e, também por isso, sua empreitada causa disruptura na ordem da vida da narradora. É na página que ela busca restabelecer uma conexão com uma história cuja travessia deixou cicatrizes importantes.
Nesta manhã, tento controlar o cansaço e volto à escrivaninha. Agora, que estou perto do ponto mais doloroso de nossa história, quero buscar na página o equilíbrio entre mim e ela que, na vida, não consegui encontrar sequer comigo mesma. (Ferrante, 2017a, p. 15)
O trecho citado compõe a introdução de História da menina perdida. Apesar de tratar-se de uma narrativa que obedece, na maior parte do tempo, a uma ordem cronológica, existem momentos em que a voz da narradora reflete no presente sobre o que está escrevendo. No começo de cada nova etapa da vida - uma vez que os livros são divididos em: Prólogo, Infância, Adolescência, Juventude, Tempo intermédio, Maturidade, Velhice e o Epílogo -, Elena reflete, principalmente, sobre o que gerou a escrita daqueles livros. Trata-se uma reflexão que irrompe no texto sem um elo aparente com o que está sendo contado. Assim como o prólogo Apagar os vestígios coloca-nos em busca, junto com a narradora, de pistas para entender o desaparecimento de Lila, essas pequenas introduções nos indicam as condições em que se produz a escrita de Elena: suas letras sublinham a impossibilidade de narrar aquele - ou qualquer - desaparecimento sem colocar em questão também o que está em causa no próprio ato de narrar; sem, paradoxalmente, presentificar-se. Vejamos o que ela nos diz antes de iniciar o último livro, o tempo da Maturidade.
Ela é a única que pode dizê-lo, se é verdade que conseguiu inserir-se nesta cadeia longuíssima de palavras para modificar meu texto, para introduzir com astúcia alguns elos faltantes, para desatar outros sem se dar a ver, para falar de mim mais do que eu tenho vontade, mais do que sou capaz de dizer. Torço por essa intrusão, espero por isso desde que comecei a esboçar nossa história, mas preciso chegar ao fim e submeter todas estas páginas a uma verificação. Se eu tentasse fazer isso agora, certamente travaria. Estou escrevendo há muito tempo e estou cansada, é cada vez mais difícil manter esticado o fio do relato dentro do caos dos anos, dos acontecimentos miúdos e grandes, dos humores. Sendo assim, ou tendo a passar por cima dos fatos relacionados a mim para logo agarrar Lila pelos cabelos com todas as complicações que ela tem, ou, pior, deixo-me tomar pelos acontecimentos de minha vida apenas porque os desembucho com mais facilidade. Mas tenho de me furtar a essa encruzilhada. Não devo seguir o primeiro caminho, no qual - já que a própria natureza de nossa relação impõe que eu só possa chegar a ela passando por mim - eu acabaria, caso me colocasse de fora, encontrando cada vez menos vestígios de Lila. Nem devo, por outro lado, seguir o segundo. De fato, o que ela com certeza mais apoiaria é que eu falasse de minha experiência cada vez mais profusamente. Vamos - me diria -, nos conte que rumo sua vida tomou, quem se importa com a minha, confesse que ela não interessa nem mesmo a você. E concluiria: eu sou um rascunho em cima de um rascunho, totalmente inadequada para um de seus livros; me deixe em paz, Lenù, não se narra um apagamento. (Ferrante, 2017a, p. 15)
Não é possível narrar aquela história sem se implicar, assim como não há como narrá-la sem deixar que Lila passe por ela modificando o texto, inserindo alguns nós para desatar outros, e acabe por fazer com que Elena fale de si mais do que deve, se dê a ver através do texto de uma maneira que nem ela mesma sabe. Guardadas as devidas proporções, podemos pensar que a relação entre Elena e Lila nos coloca em contato com as ambiguidades e incertezas típicas do duplo3. Essas ambiguidades aparecem desde a epígrafe, que é um trecho do romance Fausto, de Goethe: "O agir humano esmorece muito facilmente, em pouco tempo aspira ao repouso absoluto. Por isso lhe dou de boa vontade um colega que lhe sempre o espicace e desempenhe o papel do diabo" (Goethe citado por Ferrante, 2015, p. 6).
Na primeira parte de A amiga genial, quando narra a sua infância no bairro, Elena nos conta que guardava uma antipatia pela mãe e pelo seu caminhar trôpego. O corpo da mãe lhe causava repulsa e, aos 6 anos de idade, a narradora esboça o medo de que, uma hora ou outra, o corpo defeituoso de sua mãe emergisse de dentro dela e a fizesse também mancar. Quando conhece Lila e percebe que, em relação ao resto da classe, aquela menina magra, provocadora, está sempre à frente, decide que vai seguir seu passo para não ficar igual à mãe. A narradora se coloca, então, como alguém que andará sempre na sombra de Lila, e isso se repete no ensaio de seus primeiros passos como escritora.
O texto que ela quer imitar é o da amiga, seja a partir das primeiras cartas que recebe ou quando lê o primeiro livro que Lila escreve aos 10 anos de idade: uma fábula infantil intitulada A fada azul. Elas desenvolvem tanto uma relação antagônica como uma em que se completam, sustentando a ambivalência da narrativa, que é comum nos casos do duplo. Mas, em relação à escrita literária, é somente na presença de Lila que Elena sente sua criatividade explodir, "como se algo lhe atingisse a cabeça fazendo irromper imagens e palavras" (Ferrante, 2015, p. 96). Por esse jogo que se desenha entre as duas desde a infância, a afirmação de Elena no último livro, "caso se colocasse de fora acabaria encontrando menos vestígios de Lila" (Ferrante, 2017a, p. 15), nos permite pensar a importância da palavra vestígio como algo que circunda a relação entre a escrita e o movimento de presença e ausência de Lila na vida de Elena.
Vestígio é significado no dicionário4 como um sinal deixado pela pisada ou passagem; pegada, rastro; aquilo que restou de algo que desapareceu; sinal indicativo de algo, indício, signo. É no rastro das pegadas de Lila que Elena tenta chegar a algum tipo de esclarecimento sobre o que desconhece, a causa desse desaparecimento. Segundo Maud Mannoni, "o vestígio evoca a marca de uma passagem, orienta o olhar para um outro lugar, uma ausência" (Mannoni, 1999, p. 41). Ao ser confrontada com o vazio da ausência de Lila, a escritora Elena Greco coloca-se a tarefa de dar um espaço, produzir um lugar, através da escrita, que inscreva a passagem da amiga pelo mundo. Como nos lembra Henry Michaux, "quem deixa um vestígio deixa uma chaga" (citado por Mannoni, 1999, p. 41), e a recusa de Lila em deixar essa chaga é o que convoca Elena à escrita.
O vestígio como rastro de uma passagem está presente nas primeiras tentativas de Freud de desenhar a arquitetura e economia do aparelho psíquico. Encontramos, na Carta 52 (Freud, 1896/2016), o estabelecimento da relação entre vestígio e memória:
Você sabe que eu trabalho com a suposição de que nosso mecanismo psíquico tenha surgido de uma sobreposição de camadas, na qual, de tempos em tempos, o material presente na forma de traços mnêmicos [Erinnerungsspuren] sofre uma reorganização, uma reescrita, a partir de novas relações. Portanto, o que há de fundamentalmente novo em minha teoria é a afirmação de que a memória não está disposta em apenas uma, mas várias camadas, que é escrita com vários tipos de signos [Zeichen]. (Freud, 1896/2016, p. 337)
Nem todas as primeiras vivências vão marcar o psiquismo em sua constituição, mas algumas inscrições deixarão rastros/traços5. Tais inscrições não têm uma correspondência de representação fixa com os objetos do mundo, ou seja, a inscrição não diz respeito a uma imagem do objeto replicada no psiquismo, mas ao efeito, sobre o aparelho, do encontro com a perturbação que o mundo - interno e externo - produz. No Projeto para uma psicologia científica, Freud (1895/1996) aponta para o não-registro integral das experiências vividas, pois é a partir de um recorte qualitativo e quantitativo que elas passam a ser inscritas como traços. A inscrição, portanto, não é uma marca que representa o objeto ou ainda uma cópia da realidade; o conceito de traço mnêmico comporta a perspectiva de um rastro, um sulco, um vestígio, deixado por uma experiência e que serve de facilitadora para futuras passagens de investimentos, gerando, com isso, um campo propício à repetição. É a partir da noção de rastro que Freud localizará a repetição como mecanismo constituinte do psiquismo: uma repetição que é facilitada pelos rastros deixados anteriormente.
É também na Carta 52 que vemos Freud (1896/2016) afirmar que, se pensamos a arquitetura da memória como algo que se ergue em camadas, podemos dizer que nem tudo que se inscreve em uma camada pode tranquilamente transitar para a outra. Se podemos supor que há reorganizações, reescritas que operam no aparelho psíquico como fruto de inscrições que, ao transitarem de uma camada a outra da memória, acabam por adquirir/produzir novos sentidos, podemos também supor que nem todas as marcas mnêmicas carregam consigo a possibilidade dessa travessia e retranscrição. Logo, há inscrições que restam em camadas que compõem uma escrita não legível. As formações do inconsciente se constituem como um enigma para o sujeito, pois veiculam traços submersos no mar do ilegível, traços inscritos em signos que não podem ser decifrados e que constituem o que Freud (1900/1996) chamou, em A interpretação dos sonhos, de umbigo do sonho.
Freud (1900/1996) caracteriza o sonho como linguagem pictográfica: o trabalho do sonho, como ele o chama, conjuga imagens e palavras como resultado da transposição dos pensamentos latentes em cenas visuais que são escritas novamente quando se conta o sonho. Apesar de fazer a analogia do sonho com um "quadro onírico", Freud diz que "os sonhos constroem-se mesmo com palavras" (Freud, 1900/1996, p. 43). Rivera (2013) vai nos dizer que, no sonho, a relação entre imagem e palavra não é exatamente contínua e harmoniosa. "O pictograma onírico é rébus, é charada: [...] para significar soldado, podemos desenhar um sol ao lado de um dado" (Rivera, 2013, p. 83). O sonho propõe um enigma e, para chegar à sua solução, é necessário caminhar letra a letra dentro das palavras que o compõem. Por essa razão, um sonho não pode ser comunicado, como uma notícia de jornal, o sonho deve ser narrado, interpretado, a ele devem ser atribuídos múltiplos sentidos. Nesse movimento de transposição o sonho é transformado, fragmentado e, por ser submetido a esse processo, deixa lacunas.
A metamorfose a que o relato submete o sonho faz Freud afirmar que há nele sempre algo de perturbador. Mesmo quando ele nos deixa uma lembrança coerente, há o confronto com algo estranho. Algo que nos faz arrodear um ponto cego, uma ausência que Freud chama de umbigo - fazendo, assim, do sonho um corpo. Na multiplicidade de imagens que apresenta, o sonho tem como núcleo um ponto de contato com o desconhecido. Nesse ponto, seu umbigo, é que o sonho se torna obscuro e encontra o limite de sua interpretação. Apesar de encoberto, é desse ponto inescrutável que advém a "potência formadora das imagens" - que seguem arrodeando e recobrindo o ponto cego ao mesmo tempo que apontam para ele. Quando se chega muito próximo desse ponto impossível de imaginar, as imagens são postas em xeque, e a letra deve vir em nosso socorro (Rivera, 2013, pp. 83-84).
Freud estabelece a necessidade de pensarmos - ainda que em termos míticos - a inscrição de um traço originário que permanece como intraduzível, impossível de ser nomeado. Esse traço serve de sustentação para a inscrição de outros traços, frutos dos rastros deixados pelos trilhamentos que lhe são subsequentes. É essa marca inaugural que permite a emergência do sujeito na linguagem em uma posição na qual nem tudo que lhe determina lhe será acessível - há algo de inabordável naquilo que lhe constitui. A proposição que Freud faz de um aparelho psíquico, que se constitui como fruto da inscrição de traços que se marcam como sulcos deixados pelo trilhamento da energia mobilizada no encontro com o mundo, traços que, compondo-se em camadas, são sustentados em um traço originário inacessível, é fundamental para pensarmos o fazer literário como uma busca relacionada a essa dimensão inabordável da qual temos vagas notícias.
De acordo com Carvalho (2006), no processo de dependência da linguagem inerente à escrita, ora o escritor está condenado a "fazer soar" algo, ora está condenado à mudez. É a partir desse caráter paradoxal da linguagem, de restaurar e desorganizar, que se ergue a criação literária. Para que a escrita tenha um papel transformador, inventivo e, até mesmo, restaurador, uma distância é colocada entre quem escreve e a experiência sobre a qual se escreve. No entanto, há também "uma imediaticidade na experiência literária" (Carvalho, 2006) que nega ao texto o caráter puramente mimético e parece apresentar o Real, mais do que o representar. Para a psicanalista, a escrita literária é resultado da exigência de um trabalho efetuado quando as experiências passam por um processo de recriação e ressignificação, e é nesse "momento posterior que tais vivências deixam de ser o que eram para se transformar em texto, este sempre inaugural, sempre originário de uma subjetividade" (Carvalho, 2006). Nesse percurso, as palavras mostram a quem escreve algo da ordem do inabordável: a letra como borda do que é impossível saber, mas que não cessa de ser buscado através da escrita. É dessa tensão que se instaura na cena da escrita literária que surge A amiga genial, uma criação que decanta da relação entre o que permanece como enigma e o que pode constituir-se como um saber.
Lila desaparece e extrapola o conceito de vestígio ao tentar apagar qualquer imagem sua no mundo. Ela recorta as fotografias em que aparece junto a Rino, seu filho, e Elena percebe que não guardou nenhuma imagem sua e, tampouco, tem qualquer marca de sua letra. A escrita da narradora começa decidida a fazer vingar a presença de Lila no mundo e, talvez assim, se libertar do seu desaparecimento. O que vamos acompanhar na série napolitana é a incansável tentativa de Elena de apreender o passado e expressar a ausência de Lila para poder se libertar de algo que, no início, ela desconhece. No epílogo, a escrita do livro abre a possibilidade para a narradora de livrar-se do fascínio que a amiga sempre exerceu sobre ela, um movimento que fica sublinhado na frase que encerra o romance: "agora que Lila se fez ver tão nitidamente, devo resignar-me a não vê-la nunca mais" (Ferrante, 2017a, p. 476).
Ausência-Presença-Ausência
Como vimos, na Carta 52, Freud (1896/2016) indica que os traços mnêmicos se inscrevem na memória compondo um aparelho cuja arquitetura se compõe em camadas. A passagem de um traço de uma camada a outra não se faz sem uma reorganização, uma reescrita. Na dinâmica do aparelho de memória, contudo, nem toda inscrição é passível de trânsito; existem traços que permanecerão situados em uma camada ilegível. O trabalho da escrita literária de Elena Greco, em A amiga genial, parece consistir no próprio esforço de localizar esses traços, indicar sua existência, sem, no entanto, desvendá-los; trabalho que acontece no espaço aberto pelo jogo de presença e ausência que marca a relação da narradora com sua melhor amiga.
Em um texto de 1925, intitulado Notas sobre o "Bloco Mágico", Freud (1925/2011) segue aproximando-se do que é próprio à escrita para pensar a constituição do aparelho psíquico. No começo do artigo nos diz que o papel e o lápis surgem como um auxílio quando a memória falha, sendo estes uma porção materializada do aparelho mnemônico que carregamos conosco. "Se posso resgatar o lugar em que foi acomodada a recordação, posso repeti-la à vontade, com a segurança de que ela escapou incólume às deformações que talvez sofresse na memória" (Freud, 1925/2011, p. 241).
Em seu exercício de constituir um modelo capaz de abrigar a complexidade do aparelho, Freud imagina dois caminhos de escrita/inscrição: posso escrever com tinta e assim preservar intacta a nota por tempo indeterminado, num traço mnêmico duradouro, ou posso escrever com giz numa lousa, apagando no momento que a nota deixar de interessar, não se constituindo ela como um traço duradouro. A desvantagem, no primeiro caso, é a de que com o tempo a folha vai se encher de riscos e não teremos espaço vazio para anotar, enquanto, no segundo caso, é a impossibilidade de anotar algo a mais sem antes apagar o que já foi escrito. "Portanto, irrestrita capacidade de receptora e conservação de traços duradouros parecem excluir-se mutuamente nos dispositivos que substituem nossa memória; ou a superfície de recepção tem de ser renovada ou as anotações têm de ser eliminadas" (Freud, 1925/2011, p. 243).
Diante desse impasse, entra em cena a estrutura do bloco mágico, um brinquedo infantil que, em sua arquitetura, promete ser mais do que a lousa ou a folha de papel:
O Bloco Mágico é uma tabuinha feita de cera ou resina marrom-escura, com margens de papelão, sobre a qual há uma folha fina e translúcida, presa à tabuinha de cera na parte superior e livre na parte inferior. Essa folha é a parte mais interessante do pequeno aparelho. Consiste ela mesma de duas camadas, que podem ser separadas uma da outra nas bordas laterais. A camada de cima é uma película de celuloide transparente, a de baixo é um papel encerado, ou seja, translúcido. Quando o aparelho de baixo não é utilizado, a superfície de baixo do papel encerado cola-se levemente à superfície de cima da tabuinha de cera. (Freud, 1925/2011, p. 244)
Freud situa o bloco mágico como um retorno ao modo como os antigos escreviam em tabuinhas de argila e cera. Basta um estilete pontiagudo para fazer um risco na superfície, constituindo, assim, a marca que origina a escrita. No aparato, o estilete não age diretamente na cera, mas através da folha que a cobre, tornando as ranhuras visíveis na superfície do celuloide. Para apagar o que foi escrito, basta levantar a dupla folha de cobertura, a partir da borda inferior que está solta, e o bloco fica novamente vazio, disponível para receber novas anotações.
Na comparação que faz entre o artefato e o aparelho de percepção-consciência, o inconsciente é situado na prancha de cera que se encontra por trás das folhas: a escrita desaparece e não volta a aparecer, mas o traço do que foi inscrito pode ser lido se dispormos da iluminação adequada. Esse movimento de aparecimento e desaparecimento que, no bloco mágico, se dá através do movimento da mão a levantar a folha, no aparelho psíquico é derivado de um investimento interno.
Simone Moschen Rickes (2007) nos diz que é possível articular, no trabalho que Freud faz em torno do bloco mágico, "a extensão sem bordas de um espaço ilimitado de inscrição, que permite dar lugar à noção de atemporalidade inconsciente, e a intermitência, o intervalo que corta, que separa e que permite temporalizar o registro" (Rickes, 2007, p. 75). No que diz respeito ao tempo, o bloco mágico nos mostra o lugar fundamental da descontinuidade, estabelecendo o trabalho da escrita no intervalo entre traçado e apagamento.
No seu retorno a Freud, Lacan (1961-1962/2003) articula, a partir do livro Robinson Crusoé, de Daniel Defoe (2004), o conceito de traço à noção de rastro, de sulco, um corte na pele, que, ao cicatrizar, deixa a marca de que algo ali aconteceu. O psicanalista francês recorta um trecho do romance para situar o traço como a descoberta de uma pegada: "Certo dia em que estava indo para o barco, por volta do meiodia, tive uma enorme surpresa, de ver na praia a pegada de um pé humano, descalço, perfeitamente desenhada na areia" (Defoe, 2004, p. 134).
Não há nada ao redor que denuncie a presença de outro ser humano, apenas aquela pegada, solitária. Através da marca deixada pelo pé, Lacan discute o registro articulando-o de forma paradoxal a uma perda, ou melhor, a um apagamento que possibilita o surgimento do significante. Ele proporá que o registro implicará três tempos: a pegada, o apagamento e o rastro oriundo do apagamento. A inscrição psíquica se dá a partir da travessia desses três momentos, que escrevem a letra como portadora de um enigma a se articular, futuramente, por meio do jogo significante.
Partamos do que é um traço. Um traço é uma marca, não é um significante. A gente sente, no entanto, que pode haver uma relação entre os dois, e, na verdade, o que chamamos de material do significante sempre participa um pouco do caráter evanescente do traço. Essa até parece ser uma das condições de existência do material significante. A marca do pé de Sexta-Feira, que Robinson Crusoé descobre durante seu passeio pela ilha não é um significante. Em contrapartida, supondo-se que ele, Robinson, por uma razão qualquer, apague esse traço, nisso se introduz claramente a dimensão do significante. A partir do momento em que é apagado, em que há algum sentido em apagá-lo, aquilo do qual existe um traço é manifestadamente constituído como significado. (…) O significante como tal é algo que pode ser apagado e que não deixa mais que seu lugar, isto é, não se pode mais encontrá-lo. (Lacan, 1957-1958/1999, p. 355)
Robinson Crusoé escreve um X no lugar da pegada de Sexta-Feira depois de apagá-la. Lacan fala do passo e do rastro do passo de Sexta-Feira para explicar que o significante não surge a partir da marca feita pela pegada do personagem, não surge a partir do seu rastro, mas como efeito de seu apagamento. Crusoé apaga o rastro do passo de Sexta-Feira e, ao colocar no seu lugar um X, indica o significante como "algo que se apresenta como ele próprio podendo ser apagado e que justamente nesta operação de apagamento como tal subsiste" (Lacan, 1961-1962/2003, p. 95). De algum modo, Robinson Crusoé produz a travessia que Lacan propõe como necessária à inscrição do traço: a pegada deixada pela passagem de um objeto, o apagamento dessa pegada e o rastro produzido pelo apagamento responsável pelo registro da inscrição em uma outra ordem - ordem que não é anterior ao próprio registro, mas seu fruto. Dessa proposição Lacan retirará inúmeras consequências; a que aqui nos interessa sublinhar é a de que significante só se configura como tal na medida em que pode advir como vestígio.
O apagamento do rastro na praia impede o acesso ao que antes esteve ali, ao mesmo tempo em que institui, por obra de um movimento de ausênciapresençaausência, um enigma acerca do que/de quem o produziu. É porque o que resta não guarda uma articulação necessária com aquilo que originou o que ficou decalcado como marca na superfície, que o significante usufrui da propriedade de abertura à produção de múltiplos sentidos. O X marcado na areia pode indicar o tesouro enterrado, a pegada apagada, a semente plantada, a décima pista de um mapa... A ausência que a marca indica enseja um trabalho de produção de sentidos operado pelo jogo do significante posto em cadeia; trabalho que se, por um lado, não chega a seu fim - se o tomamos como recuperação do que foi apagado -, por outro, deixa atrás de si um rastro que podemos substantivar como criação.
O que Elena parece querer perscrutar em toda a série napolitana - algo que surge como indício a partir do prólogo do livro Apagar os vestígios - é o seu caminho para tornar-se escritora através de Lila. Elena se surpreende com a fluidez que sua escrita adquire diante da ausência de Lila, como se a presença da amiga tornasse o processo difícil; ao mesmo tempo, não consegue desvencilhar-se dela, suas vidas estão sempre amalgamadas, como se a palavra de uma estivesse sempre articulada a da outra: "naquele meu a menos que é assim por um seu a mais, naquele meu a mais que é a caricatura de um seu a menos" (Ferrante, 2016, p. 337). Quando começa a escrever os livros da tetralogia napolitana, Elena empreende um movimento que é fruto da ausência de Lila; semelhante ao de Robinson Crusoé em relação à pegada de Sexta-Feira: é o apagamento do rastro que se faz surgir o significante, a presença.
Carvalho (1994) coloca que a criação literária pode ter como função a transformação de realidades externas penosas ou decepcionantes. Portanto, uma das características do escritor criativo pode ser obter júbilo ao compor várias partes de uma realidade inexorável e transformá-la em uma forma original, singular, mas universalmente compartilhável através do registro de prazer, ou seja, há uma transformação em jogo, já que através da escrita há uma reinvenção ou invenção do mundo por quem escreve. Não é novidade ouvirmos que os escritores estão sempre repetindo a mesma história. No entanto, ali onde o sintoma quer expressar - ou mentir - a mesma coisa em repetição, a criação literária conta o mesmo tema de outro modo, multiplicando o jogo de sentidos (Carvalho, 1994).
Na história de A amiga genial, Elena admite que essa multiplicação só pode acontecer a partir da ausência de Lila; na tentativa de não deixar que aquele apagamento se concretize faz do rastro deixado pela amiga - as informações que lhe ficaram na memória - o mote da sua criação. Assim, Elena parece intuir que a escrita literária provém do reconhecimento que nada pode solucionar a ausência deixada pelo enigma do desaparecimento, esse espaço pode apenas ser bordejado, mas sempre deixará uma fenda, lugar onde a escrita acontece.
Considerações Finais
O epílogo da série napolitana não traz uma solução para o mistério do desaparecimento. Depois de ter narrado toda a sua vida, Elena escreve o que chama de Restituição. Na releitura das páginas que contém a história de amizade que lhe foi mais cara, a narradora teme encontrar a prova de que Lila havia se infiltrado no texto e decidido contribuir para escrevê-lo. Mas, admite, isso não aconteceu: aquelas páginas são de sua responsabilidade, a ausência permanece. O que acontece com a escrita é a possibilidade de contornar essa ausência.
Mas o fato é que não havia mais vestígio dela. Naquelas ocasiões de luto, passeei pelo bairro, perguntei a esmo por curiosidade: ninguém mais se lembrava dela, ou talvez fingissem (...) Então para que me serviram todas estas páginas? Eu pretendia agarrá-la, reavê-la a meu lado, e vou morrer sem saber se consegui (...) Nesta manhã sentada na sacadinha que dá para o rio Pó, estou esperando. (Ferrante, 2017a, p. 474)
Inspiradas pelos caminhos percorridos pela narradora na escrita de sua história, pretendemos, neste artigo, ensejar um diálogo entre psicanálise e literatura que não contivesse a pretensão de estabelecer qualquer conclusão a respeito da obra de Ferrante. As noções trabalhadas de criação literária e vestígio compuseram este percurso no intuito de vislumbrar algo que, por vezes, insiste em escapar. O desaparecimento de Lila Cerullo e a ausência desencadeada nos permitiram elaborar, através da psicanálise, a relação entre escrita e perda, tendo no horizonte a ideia de que os processos abordados estão em um movimento de contínua transformação.
O trabalho da escrita, semelhante a uma artesania, é o de habitar a intimidade de uma ausência e tornar-se responsável por ela, assumir o risco que ela engendra e sustentar esse risco. Há uma proximidade entre a ficção e a narrativa em análise, ambas constituindo-se como uma travessia onde é possível encontrar a palavra ou a nomeação do que antes tomávamos como inexprimível. A literatura permite estender as fronteiras do simbólico, numa interação capaz de promover rupturas e outras produções de sentido.
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Endereço para correspondência:
Tatianne Santos Dantas
E-mail: thatysd@hotmail.com
Simone Zanon Moschen
E-mail: simoschen@gmail.com
Recebido em: 18/03/2019
Revisado em: 27/04/2019
Aceito em: 12/05/2019
Publicado online: 18/07/2019
1 Em A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud, Lacan (1957-1958/1999). chega na formulação do inconsciente estruturado como uma linguagem através das noções de significante e significado provenientes da Linguística, em que o primeiro é o som da palavra, seus fonemas, que sozinhos não possuem sentido algum, sendo diferenciados a partir da conceituação que advém do significado. Enquanto, na Linguística, significante e significado têm uma relação de reciprocidade regida de maneira arbitrária, como dito anteriormente, para Lacan, o significante tem primazia sobre o significado e é a articulação de vários significantes que definirão os efeitos do significado e a significação.
2 Gagnebin, (2014) traz a Ilíada e a Odisseia para enfatizar essa relação entre escrita e morte. As narrativas tanto podem ser lidas como a história da ira de Aquiles e das aventuras de Ulisses, "mas também como uma teoria poética sobre a força, sobre o poder da palavra poética" (Gagnebin, 2014, pp. 14-15). Através de Aquiles, a Ilíada encena o paradigma que vai constituir a tradição grega e ocidental: ou morrer velho, com a casa cheia de filhos e netos, modelo de uma vida feliz que não seria lembrada pela posteridade, ou morrer jovem, no auge da beleza, em uma batalha heroica que será lembrada através do canto poético por todas as gerações futuras. Aquiles escolhe a glória, pois só assim terá acesso à imortalidade através da palavra, uma sobrevivência não do corpo, mas da poesia. Ele morre, mas permanece vivo numa luta contra o fim biológico inevitável. Na Odisseia a relação entre escrita e morte acontece através da transmutação do aventureiro em narrador-poeta que sabe contar histórias e encantar quem o ouve. Ulisses é o mestre do artifício e do ardil através das palavras, suas histórias comovem e convencem quem as ouve. O núcleo da Odisseia é a descida do marinheiro ao Hades, para confrontar a morte e os mortos, e a vitória sobre as sereias. Portanto, "na transfiguração da magia maléfica do canto em potência artística de rememoração" (Gagnebin, 2014, p. 16).
3 O conceito do duplo é esmiuçado em um estudo feito por Otto Rank (2014) a partir do filme O estudante de Praga. Para Rank, o duplo é uma garantia contra o desaparecimento do Eu, um enérgico desmentido ao poder da morte. O autor supõe que a alma imortal teria sido o primeiro duplo do corpo, trazendo garantias contra a sua destruição e um indício que prova essa afirmação é a repetição em muitas culturas da Antiguidade do ritual de embalsamento. No ensaio O inquietante, Freud (1919/2010) menciona o estudo de Rank e discorda da sua argumentação, ressaltando o aparecimento do duplo como um desejo infantil que surge com o narcisismo primário e o amor ilimitado a si mesmo. O psicanalista apresenta o conceito em três níveis: duplicação, divisão, troca ou confusão. Situações que envolvem personagens idênticas ou muito semelhantes, nos processos mentais que se revestem de um caráter telepático, ou ainda quando o sujeito duvida sobre si mesmo e deixa-se encarnar por um eu estranhado. O duplo também se dá no retorno constante da mesma coisa: estranha repetição de traços, características, atos, feitos e nomes através das gerações. Freud toma a sua experiência como exemplo para dizer do efeito de inquietação e desamparo que remete a alguns estados oníricos a que pode o sujeito ser levado em situações de repetição. Em certa ocasião, ao andar pelas ruas desconhecidas de uma pequena cidade italiana, ele chega a um lugar de prostituição e, apesar de sair dali o mais rápido que pode quando percebe do que se trata, acaba voltando a ela depois de vagar por algum tempo sem orientação.
4 Disponível em Dicionário Michaelis Online https://michaelis.uol.com.br
5 A expressão Erinneerungsspuren é na maioria das vezes traduzida como traços mnêmicos mas Gagnebin, 2014, p.21) sugere que seria melhor traduzi-la como rastros mnêmicos. Apesar de concordar com essa tradução, nos livros consultados é predominante o uso de traços e achamos que trocá-la no texto dificultaria a leitura. No entanto, gostaríamos que durante a leitura o termo rastros se presentificasse, pela proximidade com vestígios.