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versão impressa ISSN 2359-0769versão On-line ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.20 no.3 Fortaleza jul./dez. 2020

https://doi.org/10.5020/23590777.rs.v20i3.e9537 

ESTUDOS TEÓRICOS

 

Feminino e Transmissão Geracional em Beira Rio Beira Vida, de Assis Brasil

 

Women and Generational Transmission in Beira rio Beira vida, from Assis Brasil

 

Femenino y Transmisión Generacional en Beira rio beira vida, de Assis Brasil

 

Les Femmes et la Transmission Générationnelle dans "Beira rio beira vida", par Assis Brasil

 

 

Fabiano Chagas RabêloI; Reginaldo Rodrigues DiasII; Karla Patrícia Holanda MartinsIII

IPsicanalista, professor da UFDPar - Universidade Federal do Delta do Parnaíba, doutorando em psicologia pela UFC - Universidade Federal do Ceará, Bolsista CAPES/PDSE
IIPsicanalista, professor da UFDPar - Universidade Federal do Delta do Parnaíba, doutorando em psicologia pela UFC - Universidade Federal do Ceará
IIIProfessora na graduação e pós-graduação em psicologia da UFC - Universidade Federal do Ceará - doutora em teoria psicanalítica pela UFRJ - bolsista PQ/CNPQ

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Partindo da assertiva de que a realização do feminino não se limita à identificação às insígnias fálicas, comenta-se o livro Beira rio beira vida de Assis Brasil. Reconhece-se que cada uma das personagens da história - avó, mãe e filha - confronta-se com o desafio de desenvolver uma forma própria de se tornar mulher, valendo-se, para tanto, dos significantes e semblantes que lhes chegam da linhagem familiar. Defende-se que a sobredeterminação dos enunciados de Luíza e as respostas lacônicas, opacas e evasivas de Mundoca incitam uma tomada de posição ética e política do leitor diante do enigma do feminino e da transmissão intergeracional da maldição familiar, tal como é designada a prostituição no livro. Conclui-se que a prostituição não é um destino inexorável para as personagens e que Mundoca, a terceira geração, não transparece uma posição subjetiva nítida, o que dá margens para se conjecturar diferentes possibilidades de realização do legado familiar. Identifica-se, por sua vez, do lado de Luíza e Cremilda, a invenção de alguns semblantes que podem ter servido de barreira à devastação e ao agravamento de algumas situações de vulnerabilidade psíquica. Ao final, destaca-se a importância de determinados arranjos em torno do feminino que acompanham algumas experiências de sofrimento em mulheres, considerando os possíveis destinos da transmissão familiar. Cita-se, como exemplo disso, o trabalho de perlaboração por Luíza de seu devir feminino e de seu lugar na linhagem de mulheres que acompanha a costura das roupas da boneca Ceci. Trata-se de uma pesquisa bibliográfica, não sistemática, que interroga as vicissitudes do feminino e da transmissão a partir do diálogo da psicanálise com a literatura, em interlocução com estudos de gênero, culturais e literários.

Palavras-chave: Assis Brasil; psicanálise; feminino; sexuação; transmissão intergeracional.


ABSTRACT

Starting from the assertion that the realization of the feminine is not limited to the identification with phallic insignia, the book Beira Rio Beira Vida de Assis Brasil is commented. It is recognized that each of the characters in the story - grandmother, mother, and daughter - faces the challenge of developing their way of becoming a woman, making use of the significant and semblants that come from the family line. It is argued that the overdetermination of Luíza's utterances and Mundoca's Laconic, opaque and evasive responses encourage the reader to take an ethical and political position in the face of the enigma of the feminine and the intergenerational transmission of the family curse, as prostitution is called in the book. We conclude that prostitution is not an inexorable destiny for the characters and that Mundoca, the third generation, does not show a clear subjective position, which gives scope to conjecture different possibilities for realizing the family legacy. In turn, on the other hand, on the side of Luíza and Cremilda, the invention of some semblants that may have served as a barrier to the devastation and aggravation of some situations of psychological vulnerability. In the end, the importance of certain arrangements around the feminine that accompany some experiences of suffering in women is highlighted, considering the possible destinations of family transmission. As an example, the work of Luíza's work on her feminine becoming and her place in the line of women that accompanies the sewing of the clothes of the Ceci doll is cited. It is bibliographic, non-systematic research that questions the vicissitudes of the feminine and the transmission based on the dialogue between psychoanalysis and literature, in dialog with gender, cultural, and literary studies.

Keywords: Assis Brasil, psychoanalysis, female, sexuation, intergenerational transmission.


RESUMEN

A partir de la afirmación de que la realización del femenino no se limita a la identificación a las insignias fálicas, se comenta el libro Beira rio beira vida, de Assis Brasil. Se reconoce que cada uno de los personajes femeninos de la historia ¬-abuela, madre e hija - se confronta con el reto de desarrollar una forma propia de ser mujer, valiéndose, para eso, de los significantes y semblantes que les llegan del linaje familiar. Se defiende que la sobre determinación de los enunciados de Luíza y las respuestas lacónicas, opacas y evasivas de Mundoca incitan una toma de posición ética y política del lector ante el enigma del femenino y de la transmisión intergeneracional de la maldición familiar, tal como es designada la prostitución en el libro. Se concluye que la prostitución no es un destino inexorable para los personajes y que Mundoca, la tercera generación, no demuestra una posición subjetiva nítida, lo que da espacio para conjeturar diferentes posibilidades de realización del legado familiar. Se identifica, por su vez, del lado de Luíza y Cremilda, la invención de algunos semblantes que pueden ter servido de barrera a la devastación y al empeoramiento de algunas situaciones de vulnerabilidad psíquica. Al final, se enfoca la importancia de determinados arreglos alrededor del femenino que acompañan algunas experiencias de sufrimiento en mujeres, considerando los posibles destinos de la transmisión familiar. Se cita, como ejemplo de esto, el trabajo de perlaboración por Luíza de su devenir femenino y de su sitio en el linaje de mujeres que acompaña la costura de las ropas de la muñeca Ceci. Se trata de una investigación bibliográfica, no sistemática, que interroga las vicisitudes del femenino y de la transmisión a partir del diálogo del psicoanálisis con la literatura, en interlocución con estudios del género, culturales y literarios.

Palabras clave: Assis Brasil; psicoanálisis; femenino; sexuación; transmisión intergeneracional.


RÉSUMÉ

En prenant de l'affirmation que la réalisation du féminin ne se limite pas à l'identification avec les insignes phalliques, le livre "Beira rio Beira vida" par Assis Brasil est commenté. On sait bien que chacun des personnages de l'histoire - grand-mère, mère et fille - doit développer sa propre façon de devenir femme. Par conséquent, elles utilisent les éléments significatifs et les semblants qui viennent de la lignée familiale. On soutient que la surdétermination des énoncés de Luíza, bien comme les réponses laconiques, opaques et évasives de Mundoca incitent le lecteur à prendre une position éthique et politique face à l'énigme féminine et à la transmission intergénérationnelle de la malédiction familiale, telle comme la prostitution est montrée dans le livre. On peut conclure que la prostitution n'est pas un destin inexorable pour les personnages et que Mundoca, la troisième génération, ne montre pas une position subjective claire, ce qui ouvre la conjecture de plusieurs possibilités pour la réalisation de l'héritage familial. On peut identifier, par conséquent, l'invention de certains semblants qui ont pu servir de barrière à la dévastation et à l'aggravation de certaines situations de vulnérabilité psychologique avec Luíza et Cremilda. À la fin, on met en évidence l'importance de certains aménagements autour de la femme, lesquels accompagnent certaines expériences de souffrance et rendent compte des destinations possibles de la transmission familiale. A titre d'exemple, on peut citer le travail de perlaboration par Luíza, sur son devenir femme et sur sa place dans la lignée des femmes lesquelles accompagnent la couture des vêtements de la poupée Ceci.Cet article s'agit-il d'une recherche bibliographique, non systématique, qui interroge les vicissitudes du féminin et la transmission du dialogue entre psychanalyse et littérature, en interlocution avec les études culturelles, littéraires et de genre.

Mots-clès: Assis Brasil ; psychanalyse ; femme ; sexuation ; transmission intergénérationnelle.


 

 

Beira rio beira vida é o título do romance do escritor piauiense Francisco de Assis Almeida Brasil. Publicado originalmente em 1965, é o primeiro livro da Tetralogia piauiense (Brasil, 1979), da qual também fazem parte A filha do meio quilo, O salto do cavalo encobridor e Pacamão. Esses quatro livros possuem em comum o contexto histórico e geográfico - a cidade natal do escritor, Parnaíba, nos anos 1930 e 40 - e o foco no cotidiano da população desfavorecida: prostitutas, pequenos comerciantes, trabalhadores rurais e assalariados dos centros urbanos (Ribeiro, 2011).

Escolheu-se Beira rio beira vida por várias razões. Primeiro, pela importância do autor, ainda desconhecido de muitos. Francisco de Assis Almeida Brasil é romancista, contista, antologista, jornalista, professor, dicionarista, crítico literário, além de membro da Academia Piauiense de Letras e da Academia Parnaibana de Letras. O escritor piauiense obteve várias premiações por sua obra. O Prêmio Walmap de literatura foi ganho devido às obras Beira rio beira vida, no ano de 1965, e Os que bebem como os cães, em 1975. Lembramos ainda o Prêmio Machado de Assis, concedido pela Academia Brasileira de Letras ao conjunto de sua obra, em 2004. Dessa forma, Assis Brasil é o mais importante escritor piauiense ainda vivo. Atualmente, aos 88 anos e com mais de 100 livros publicados, seus comentadores destacam a necessidade de divulgação de sua obra, ainda não suficientemente valorizada pela mídia especializada (Andrade, 2012).

Segundo, pela potência da história, que interroga o processo pelo qual uma menina se torna mulher a partir de sua relação com a mãe e de como ela responde às marcas da transmissão familiar. A esse respeito, vale lembrar Freud (1931/1997i) ao afirmar que as obras dos escritores literários constituem uma via privilegiada de acesso ao feminino. Tal recomendação ganha peso quando, no mesmo texto, ele reconhece que a abordagem psicanalítica do feminino ainda é incompleta e insuficiente.

Em terceiro lugar, o romance de Assis Brasil permite desenvolver alguns apontamentos sobre as diversas roupagens que o feminino assume em um determinado contexto cultural. No caso, o litoral do estado do Piauí. Deve-se acrescentar que mulheres de baixa renda com queixas de sofrimento psíquico constituem uma parte significativa da clientela que recorre aos Serviços Escola de Psicologia (SEP) das instituições de ensino superior (IES). Conflitos familiares, situações de violência, o luto de pessoas próximas e questões relacionadas à sexualidade são temas frequentes na fala dessas mulheres e que são abordados no livro de forma bastante atual e pungente.

Por fim, sua história serve de base para a interlocução com outros saberes. Parte-se da perspectiva de que o diálogo com os estudos literários, culturais e de gênero constitui um apoio importante para a investigação clínica psicanalítica. Mais particularmente, a escolha da literatura como campo de reflexão é consequência do diálogo já empreendido por Freud e demonstrado nas suas diversas incursões no campo da literatura. Ao tomá-la, em sua estrutura de ficção, Freud (1908/1997a)atribui ao escritor um acesso privilegiado ao saber inconsciente, podendo a literatura ser considerada como uma forma de elaboração antecipada das teses psicanalíticas. Entende-se que a obra literária é capaz de transmitir de forma elegante e concisa um entendimento dos processos psíquicos que o psicanalista só consegue obter de modo parcial e fragmentado após um longo, moroso e dispendioso percurso.

Trata-se, portanto, de uma pesquisa bibliográfica, não sistemática, que interroga as vicissitudes do feminino na clínica psicanalítica a partir do diálogo com a literatura. O objetivo principal é comentar o livro Beira rio beira vida, tomando como eixo de análise a invenção do feminino na relação mãe-filha e a questão da transmissão familiar. As referências teóricas são os conceitos de complexo de Édipo, metáfora paterna, sexuação e devastação. Os dois primeiros, para tratar da transmissão geracional; os dois últimos, para situar a especificidade do lugar do feminino na linhagem simbólica familiar. Buscou-se, ainda, articular a discussão psicanalítica sobre o feminino com contribuições dos estudos de gênero e da teoria literária, enfatizando-se o ambiente histórico e cultural no qual os acontecimentos do livro se desenrolam.

Na primeira parte do trabalho, contextualiza-se Beira rio beira vida na obra de Assis Brasil. A partir do levantamento de artigos que tratam da Tetralogia piauiense, estabelece-se uma interlocução com investigadores de outros campos. Na segunda parte, realiza-se a exposição dos principais pontos da teoria psicanalítica sobre o feminino em Freud e Lacan, cotejando-as com o comentário do livro de Assis Brasil. Na terceira parte, alguns detalhes do livro são discutidos mais pormenorizadamente à luz da teoria psicanalítica, destacando-se a sua relevância clínica.

 

O Feminino em Beira rio beira vida

O livro apresenta a história de três gerações de mulheres que nascem, crescem e vivem no Beira Rio. Na época em que se passa a história, um bairro portuário às margens do rio Iguaraçu1. São elas: Cremilda, Luíza e Mundoca - respectivamente avó, mãe e filha. Cada uma é tocada a seu modo pela prostituição, condição descrita por Cremilda e Luíza como uma maldição familiar. Mãe e avó tornaram-se prostitutas, mas o que a vida reserva para Mundoca, a terceira geração dessa linhagem?

O romance está estruturado a partir do relato de Luíza, que, na velhice, se endereça à filha para indagá-la sobre sua vida e escolhas, entremeando às suas perguntas o relato das próprias lembranças. Ao interpelar Mundoca, o intuito de Luíza é sondar o que lhe chegou da maldição que se abateu sobre as mulheres da família. Sua preocupação se mistura à curiosidade acerca da sexualidade de Mundoca: ela se interessa por homens? Já teve experiências sexuais? Por acaso cedeu (ou vai ceder) às investidas de Jacinto, o patrão/padrinho que lhe arrumou um emprego a pretexto de fazer caridade e que constantemente lhe assedia? Luíza se pergunta, sobretudo, se Mundoca terá um destino diferente do dela e de sua mãe. O endereçamento de Luíza à filha é marcado, portanto, pela dúvida e pela esperança.

A narrativa do livro é fragmentada e, como já foi assinalado, adota a perspectiva subjetiva e particular de Luíza, cujas lembranças, pensamentos e percepções constroem a linha de desenvolvimento da história em uma ordem não cronológica. Tal fato permite que alguns autores proponham uma aproximação de Beira rio beira vida com a estrutura do romance psicológico, no qual se sobressai o monólogo interior: "divagações internas, raciocínios e sensações que não são compartilhadas com ninguém além de quem as processa mentalmente" (Pinto, 2009). Outros comentadores (Assunção, 2014; Brito, 2017; Coelho, 1995; Ribeiro, 2011) situam o livro na tradição do realismo histórico neo-regionalista, apontando a crítica social como elemento central para o entendimento da trama. Assim, é destacado que seus livros problematizam o acirramento das desigualdades econômicas no contexto da cidade de Parnaíba dos anos 1960 a partir da ótica dos desfavorecidos. Dentro dessa linha de trabalho, o interesse pelas questões de gênero e a denúncia de uma cultura machista de opressão às mulheres se sobressai. Um fato que corrobora essa perspectiva está no protagonismo das personagens femininas na Tetralogia piauiense (Brito, 2017).

Destaca-se que, embora pertinente, a caracterização dessa obra de Assis Brasil como um romance psicológico é imprecisa. Há no livro uma organização dialógica, mesmo que atípica. Nas palavras de Cunha (1979), trata-se de uma combinação "do diálogo direto e do diálogo indireto, do monólogo e dos ecos dos monólogos" (p. 134), que é atravessada por "silêncios e pausas" e uma "linguagem alusiva" (p. 135), aproximando-a ao teatro. Coelho (1995) ressalta, no texto de Assis Brasil, a fluência e a valorização da fala oral, características que impregnam a narrativa de suas histórias de um sentimento de realidade e autenticidade, ao ponto de permitir que "o leitor penetre profundamente no mundo das prostitutas de beira do rio, em Parnaíba" (Cunha, 1979, p. 134).

Do exposto, ainda que o endereçamento à Mundoca seja um traço determinante na organização da narrativa, a complexidade de Beira rio beira vida reside no fato de que a fala de Luíza ultrapassa essa interlocução imediata à filha. Luísa está no meio, comunica-se com as duas beiras - Cremilda e Mundoca -, lá e cá, narrando a partir de uma temporalidade que acolhe dimensões do inconsciente, especialmente a da repetição e da transmissão. Ao oscilar entre o diálogo e o monólogo, os seus enunciados assumem um modo de discursividade que, em alguns pontos, se aproxima da associação livre no dispositivo analítico (Freud, 1913/1997e), isto é, não se trata do discurso comum, em que a significação é antecipada para se adequar a uma determina expectativa de recepção (Lacan, 1953-54/1986). Os sentidos das frases são abertos, imprecisos. Eles denotam, contudo, uma direção, um vetor, que apontam para um movimento análogo à perlaboração no tratamento psicanalítico (Freud, 1914/1997f). A sobredeterminação dos enunciados de Luíza e as respostas lacônicas, opacas e evasivas de Mundoca incitam o leitor a uma tomada de posição ética e política diante do enigma do feminino e da transmissão intergeracional da maldição familiar.

Esse modo de construção textual pode ser aferido no trecho a seguir:

- Vamos indo, Mãe.

- Que horas são, Mundoca?

- Quase sete.

- Quase sete, com toda essa escuridão?

- A senhora não larga essa boneca?

- Você nunca ligou pra Ceci, minha filha. Sabe que Ceci é quase da minha idade?

Vamo indo - é só o que ela sabe dizer nos últimos tempos. Quanto tempo? Vamo indo, vamo indo, vamo indo - seca rio, enche rio, chega barca sai gaiola, arroz se derrama no cais, vem o sol, vem a lua, passa Jessé, passa Nuno - os barqueiros gingando, chove hoje, amanhã estia, Ceci fica mais feia, mais velha, mais cega. Vamo indo, mãe, vamo indo. (Brasil, 1979, p. 92)

No momento da narrativa, Cremilda - a avó - já está morta e Luíza pressente que, em breve, chegará a sua vez. Os clientes sumiram e sua beleza tornou-se apenas uma lembrança do passado. A protagonista realiza, então, um retrospecto de sua vida: as escolhas que fez, as que foram realizadas a sua revelia, os amores vividos e não vividos, as dores e os prazeres.

A cidade, por sua vez, passa por mudanças. Percebe-se o decréscimo gradual de sua importância no contexto regional. A transferência dos equipamentos econômicos e administrativos para outros centros acentua os conflitos e as diferenças sociais. Em nome do progresso e da ordem, planeja-se intervenções urbanísticas e de saneamento no Beira Rio, entre as quais a remoção das famílias que ali vivem para um bairro mais distante. Dessa forma, a prostituição e a pobreza estão prestes a serem transferidas para longe dos olhos das famílias mais abastadas que residem nas proximidades.

Por meio da fala de Luíza, a história das três mulheres se entrelaça com a da cidade. As mudanças sociais e urbanísticas se refletem na avaliação que a protagonista faz de sua vida (Brasil, 1979). O reconhecimento da velhice, o luto da juventude e dos amigos mortos, a solidão e a pobreza são alguns dos temas tratados em sua fala. No entanto, diferentemente do acento dado pelos comentadores (Assunção, 2014; Ribeiro, 2011), mesmo se considerando o peso do ambiente social desfavorável, entende-se que a prostituição não é apresentada em Beira rio beira vida como um destino inexorável para Mundoca. O livro joga com contrastes: otimismo e desesperança, determinismo social e indeterminação psíquica, opressão machista e realização do feminino, maldição familiar e livre arbítrio. Todas essas questões convergem para a dúvida acerca da feminilidade de Mundoca, que permanecesse como um enigma para Luíza. No dizer de Cunha (1979), Luíza "realiza-se vicariamente na boneca Ceci [] e não percebe que de certa maneira venceu ao não passar a tocha da degradação à sua filha" (p. 136).

Observa-se que, na linhagem da transmissão, o sujeito inserido numa cadeia de significantes geracionais surge como elo que não necessariamente sucumbe ao determinismo. Diferentes arranjos entre os elementos desses pares antitéticos tomam forma de modo singular em cada uma das gerações das mulheres retratadas na história. Com efeito, no romance de Assis Brasil (1979), o enigma do feminino é colocado em primeiro plano, no cerne da maldição familiar. Por meio dessa questão, o problema da constituição psíquica do feminino é explorado de forma mais aguda. A protagonista interroga o enigma de sua própria feminilidade e das mulheres de sua família.

Convém esclarecer que não se propõe analisar o autor ou os personagens do livro como fossem sujeitos concretos em trabalho de transferência. Enfatiza-se antes a capacidade do escritor de conjurar o real do impensado da língua, que extrapola as memórias pessoais de um dado indivíduo (Willenmart, 2014). Desse modo, a literatura pode ser tomada como um duplo do trabalho do psicanalista (Kon, 2014), na medida em que ambos estão comprometidas, por vias diferentes, a dar um tratamento ao real pela linguagem. Logo, parte-se da perspectiva que escritor, narrador e autor são funções distintas que se enodam, mas não se confundem. Assim, o que está em jogo é a realização de uma leitura flutuante, por meio da qual o texto é entendido como um processo móvel, inacabado, em constante atualização e transformação.

Acompanhando o que propõe Rivera (2003, p.47), a obra de Assis Brasil é tomada, neste trabalho, no plano da "escrita como impressão", o que significa dizer que "ao contrário de uma marca rígida e precisa deixada por um carimbo" (p. 47), ela é "cambiante, fluida [...] um processo que continuamente se transmuta, transformando seu agente e seu produto" (p. 47). Conclui-se daí que essa proposta de leitura psicanalítica do texto literário está em consonância com a avaliação que Cunha (1979) faz do processo criativo de Assis Brasil. Para esse autor, o escritor piauinense "não se submeteu ao narrativo puro e simples, ao anedótico. [...] Era necessário que os personagens vivessem por si sós, como se não fossem personagens. Desde a primeira página, a criação se opera quase em estado de realidade" (p. 134).

Do exposto, percebe-se em Beira rio beira vida uma sensibilidade clínica. Sua trama busca ressaltar a realidade psíquica tal como ela é vivenciada pelos personagens. No texto, as fantasias, mesmo aquelas mais rarefeitas, obscuras e aparentemente despropositadas, manifestam-se como uma predisposição à tomada de determinadas escolhas e ao desencadeamento de certas reações afetivas (Freud, 1908/1997b, 1909/1997c). Nesse caso, as fantasias precisam ser construídas pelo leitor - ou pelo psicanalista - a partir de fragmentos muitas vezes discretos e corriqueiros da fala dos personagens (Freud, 1937/1997k).

Deve-se ainda sublinhar o caráter intersubjetivo da estrutura da fantasia. Ela inevitavelmente pressupõe uma alteridade e um modo de endereçamento. Desse modo, a adoção de uma posição subjetiva não se reduz a um processo estritamente individual (1909/1997c). Vigoram na constituição do sujeito processos complexos de identificação, por meio dos quais a inscrição das marcas provenientes da história familiar e as suas repetições dialetizam com as operações de separação e alienação (Lacan, 1964/1998). A partir daí, a maldição familiar presente no livro pode ser entendida como índice das marcas de uma alteridade na constituição das posições subjetivas dos personagens.

 

O Enigma do Feminino

Freud (1926/1997h), ao referir-se ao feminino como o continente negro2, isto é, como uma zona enigmática e inexplorada da psique humana, estabelece os fundamentos para uma crítica ao complexo de Édipo, o qual avalia insuficiente, embora necessário para lançar luz sobre os diferentes e singulares destinos do sexual no humano (Freud, 1931/1997i, 1933/1997j). Necessário, porque é por meio do complexo de Édipo que o polimorfismo sexual do ser falante assume uma identidade sexual apoiada na fantasia, que se caracteriza como uma estrutura ficcional desenvolvida em torno de um ponto de fixação da pulsão (Soler, 2005). É como se, após experimentar uma maleabilidade radical originária da pulsão, algumas experiências de satisfação se destacassem, instituindo aquilo que há de singular e irredutível em cada sujeito. Insuficiente, pois essa organização não recobre a totalidade das vivências de gozo.

Freud propõe (Freud, 1931/1997i), então, pôr em relevo uma dimensão para além dos complexos de Édipo e de castração, concernida nas vicissitudes da sexualidade feminina, o que resulta em uma atenção especial às consequências psíquicas da relação entre mãe e filha, notadamente nos primeiros anos de vida. Os textos freudianos do início da década de 1930 salientam a importância de se buscar operadores teóricos suplementares para o feminino, sem, contudo, abandonar os modelos explicativos já construídos. Sugere-se, portanto, que esses operadores relacionam-se, em Freud, aos processos primários de identificação, em que estão situadas as operações relativas ao narcisismo primário e à transmissão psíquica.

Vale a pena contrastar os trabalhos dessa década (Freud, 1931/1997i, 1933/1997j) com o artigo que fecha o ciclo de textos sobre o complexo de Édipo após a publicação da segunda tópica (Freud, 1925/1997g), no qual se percebe uma argumentação mais fortemente alicerçada no poder de resolutividade da lógica fálica. Nele, Freud conclui que a anatomia provavelmente deve ser o destino para uma tomada de posição frente à diferença sexual.

Lacan (1972-73/1985), diferentemente de Freud nesse texto de 1925, mas em sintonia com suas publicações mais tardias, propõe situar a especificidade da feminilidade para além da anatomia, preservando, mas também relativizando, a referência ao falo como móbil de uma tomada de posição sexual.

O falo, nesse momento de seu ensino, passa a ser entendido como um significante/signo de exceção que produz inflexões específicas de gozo. Daí a referência ao falo não se reduzir a uma questão exclusivamente anatômica ou simbólica, mas também real. O que quer dizer: a desproporção sexual, a falta de simetria e reciprocidade entre as posições sexuadas, é condição para a tomada de uma posição na partilha dos sexos. Lacan (1971-72/2012). argumenta que se faz necessário o recurso à lógica para se avançar nessa discussão, uma vez que os dados da clínica, da metapsicologia, da biologia e da anatomia se mostram lacunares a esse respeito.

Utilizando-se da lógica modal de Aristóteles, mas inserindo nela relações paraconsistentes - isto é, considerando a falta e a contradição, ausentes nos matemas aristotélicos originais -, Lacan esboça as fórmulas da sexuação. No quadro que constrói, é possível encontrar duas posições diferenciadas: um gozo fálico, do lado esquerdo; outro nãotodo fálico, do lado direito. Lacan designa essa segunda modalidade de gozo "da mulher" e a primeira, "do homem".

Considerando as críticas feitas à psicanálise pelos estudos de gênero (Butler, 1990/2003), deve-se assumir que Freud e Lacan adotam uma lógica binária e falocêntrica. Todavia tal binarismo não é linear nem consistente, tampouco recobre ou corrobora as concepções de sexo biológico ou as convenções heteronormativas (Cossi & Dunker, 2016).

É possível afirmar daí que a relação entre feminino e masculino que se depreende dessa lógica não é de oposição, segundo os critérios de presença ou ausência de um órgão. O feminino está incluído na lógica fálica, mas de um modo peculiar. A incidência da função fálica é um pré-requisito para se demarcar os limites de outro gozo, que constitui o cerne da posição feminina. Assim, enquanto do lado esquerdo do esquema da sexuação o sujeito está totalmente incluído na lógica fálica, do lado direito, a função fálica não recobre a totalidade do gozo experienciado. Resta uma parcela dele que não é metabolizada pela função fálica e que a transcende, Daí a afirmação de que, ao transitar nesse lado da fórmula da sexuação, o sujeito - independente de seu sexo biológico - é nãotodo incluído na função fálica.

A perspectiva do nãotodo, inexistente na lógica aristotélica, é o que caracteriza a especificidade da posição feminina. A partir daí, como adverte Kon (2010), deve-se evitar alçar o feminino a uma forma de "reconfiguração do falo" (p. 519). Ao se denunciar o engodo do binarismo fálico/castrado, a autora busca pôr em evidência "a incompletude e a alteridade, figuras do negativo que apontam para o ensejo de uma nova ética nas relações com o outro" (Kon, 2010, p. 518).

A tomada de posição sexual da perspectiva fálica implica, por sua vez, na incidência universal da castração, que se apoia na referência ao pai primevo - o Urvater, o pai da horda do mito freudiano de Totem e tabu (Freud, 1913/1997d) -, sua única exceção. Esse pai da exceção é o pai morto, suposto detentor de um gozo sem limites. Deve-se ter em conta que a pessoa que encarna a função paterna para a constituição psíquica de um determinado sujeito não escapa da incidência da castração. Ela desempenha uma função de mediação em relação a esse lugar de exceção do pai primevo, cuja demarcação é condição necessária para efetivação de uma posição sexuada. Dito de outro modo: para operar com o falo, faz-se necessário tê-lo perdido.

Ao afirmar que a mulher é nãotoda inclusa na função fálica, Lacan (1972-73/1985) conclui que não há um significante que represente a mulher no inconsciente, ao contrário dos homens. Como consequência, deve-se contar cada mulher uma a uma. Não há um grupo coletivizado de mulheres produzido a partir de um significante que sirva de suporte às identificações. No entanto, quando contingencialmente situadas do lado masculino, as mulheres podem se articular em grupos, valendo-se, para tanto, dos significantes fálicos que estão ao seu dispor. É lícito afirmar, então, que não há uma mulher que incorpore em si a essência da feminilidade e que sirva de modelo de um devir feminino para todas as outras.

Esse ponto é crucial para o comentário de Beira rio beira vida, pois, ao se tomar a narrativa da personagem Luíza a partir do conceito de sexuação, enfatiza-se um traço de indeterminação na constituição das identidades sexuais das personagens, cujo artífice está no feminino e nas suas relações de gozo. Aceitando-se a premissa de que a realização do feminino não se limita à identificação às insígnias fálicas, reconhece-se que cada uma das mulheres do livro (Luíza, sua mãe e sua filha) depara-se com o desafio de inventar uma forma própria de se tornar mulher, tomando como matéria bruta os significantes e semblantes que lhes chegam da linhagem familiar. Daí as perguntas que atravessam a história: o que se transmite entre as gerações? Qual a margem de escolha para cada personagem? O que pode ser designado como destino?

Além disso, vale a pena se deter mais um pouco na diferença entre as posições de mãe e mulher, segundo a fórmula da sexuação. Segundo Soler (2005), há um hiato entre uma e outra. A primeira está numa posição fálica, pois o seu filho(a) encontra-se no lugar do falo na economia sexual da mãe. Por isso, esta se situa do lado esquerdo da lógica da sexuação. Tal situação é, na maioria dos casos, temporária e necessária para o desenvolvimento psíquico salutar da criança. É importante destacar que as transformações pulsionais proporcionadas pelo estado de maternidade não metabolizam a totalidade do outro gozo, o feminino. Como consequência, a mesma pessoa pode experienciar essas duas modalidades de economia de gozo simultaneamente, podendo cada uma delas se sobressair à outra, a depender da conjuntura psíquica (Pollo, 2012).

De acordo com Zalcberg (2013), o fato de a mãe estar apaziguada em relação à sua própria sexualidade favorece que sua filha possa inventar para si uma forma própria de tornarse mulher e, consequentemente, não venha sucumbir à devastação. Dessa forma, a habilidade da mãe de criar semblantes para si e fazer uso deles constitui uma fator que favorece uma tomada de posição sexual feminina menos conflituosa na geração seguinte.

Para Lacan (1972/2003b), cada mulher deve inventar um semblante que lhe permita fazer barreira à emergência do gozo Outro, do contrário vivenciará uma situação de avassalamento e desmoronamento subjetivo denominado devastação (ravage). Tais vivências possuem sua matriz na relação mãefilha, podendo se desdobrar secundariamente nos vínculos amorosos da vida adulta. De acordo com Soler (2005), a devastação se define como uma experiência de gozo aniquiladora, de abolição subjetiva ao Outro, que se torna absolutizado, ainda que por um instante. Segundo a autora, as manifestações fenomênicas da experiência de devastação podem assumir a forma de "uma leve desorientação até a angústia mais profunda, passando por todos os graus de extravio e evitação" (p. 185).

Lacan afirma que a menina espera mais substância de sua mãe do que de seu pai (1972/2003b). Soler (2005) e Zalcberg (2003) sublinham que essa reivindicação direcionada à mãe não é redutível ao modelo de uma demanda fálica. Trata-se, em última instância, de um apelo a um gozo que escapa ao campo do Outro e, portanto, aos limites da significação fálica.

Pode-se dizer daí que a experiência de devastação toca no núcleo do real como o impossível da não relação entre os sexos. Dessa forma, ela concerne não só aos sujeitos posicionados do lado direito da fórmula da sexuação, mas, antes de tudo, ao que há de mais radical do sexual na organização psíquica do ser falante. No âmbito dos discursos socialmente constituídos, o impossível da relação sexual se manifesta na forma de um mal-estar irredutível no laço social que todo discurso busca colmatar, oferecendo em troca modalidades de tratamento de gozo alternativas.

A maldição do sexo para Lacan (1973/2003c), tal qual pode ser lido em Televisão, diz respeito a uma mal-dicção ou um mal-dizer, de uma insuficiência da significação de uma proporcionalidade entre os sexos, da qual decorre a afirmação de que não há inscrição da diferença sexual no inconsciente. Jogando com expressões homofônicas do francês, Lacan estabelece uma conexão entre o termo maldição e male-diccion, ao pé da letra: um dizer masculino. Esse jogo de palavras põe em relevo a insuficiência dos significantes fálicos para fazer a relação sexual - a reciprocidade e a equivalência entre os sexos - consistir (Soler, 2008).

Cabe perguntar se a maldição familiar da prostituição que atravessa as três gerações de mulheres pode ser qualificada como uma modalidade de devastação. Se sim, se ela incide da mesma forma em Cremilda, Luíza e, eventualmente, Mundoca.

 

A Invenção do Feminino na Relação Mãe-Filha

Afirmou-se, na introdução, que o eixo central do romance reside no endereçamento da narrativa de Luíza a sua filha, Mundoca. Tal endereçamento é entendido como uma atualização da parte de Luíza de sua posição em relação à própria feminilidade. Ao resgatar recortes da história de sua vida, ela tenta situar como se tornou mulher e prostituta. No seu contar, Luíza concede um lugar especial à admiração que dedica à sua mãe, uma espécie de reverência atravessada pelo medo e a dúvida. Recorda-se do misto de terror e fascinação que lhe causava os gemidos de prazer da mãe no quarto contíguo ao seu quando Cremilda recebia os clientes.

Também é com admiração que Luíza descreve a habilidade da mãe em se desdobrar entre diferentes papeis, de capataz à prostituta. Quando cuidava do armazém de arroz e se dirigia aos peões que lá trabalhavam, falava de um jeito: sua aparência era suja, suada e descuidada. No entanto, quando era convocada por um cliente, lavava-se rapidamente e, ornamentando-se com uma simples bata, transforma não só a aparência, mas também o tom de voz e o olhar. Sua competência em se metamorfosear para incitar o desejo dos homens fascinava e confundia Luíza. Nunca sabia de que lugar Cremilda falava.

O armazém de Cremilda fora adquirido de um antigo cliente. Os comerciantes da cidade questionaram inicialmente, de forma veemente, a sua habilidade para gerir o negócio. Apesar das dificuldades, ela conseguiu prosperar e demonstrar a sua capacidade de administradora. Seu sucesso, contudo, não durou muito. Com o tempo, a especulação dos empresários mais abastados, o preconceito da sociedade e a decadência econômica da região forçaram a venda do negócio. Cremilda voltou a viver exclusivamente da prostituição.

Conclui-se, dessa passagem, que Cremilda conseguia operar satisfatoriamente a partir de suas insígnias fálicas, adotando uma atitude masculina de comando quando necessário. Por outro lado, também sabia fazer uso dos semblantes que criava, o que lhe permitia transitar para uma posição feminina quando lhe convinha.

A relação de Luíza com a mãe é complexa e ambivalente. De certa forma, a filha ansiava ser um dia igual à Cremilda. Ao mesmo tempo, tal perspectiva lhe causava forte insegurança. Ser mulher, tornar-se mulher, mostrava-se algo problemático. Daí o caráter aterrador da prostituição, que pairou como uma sombra sobre ela durante toda a vida.

Luíza lembra quando pediu pela primeira vez à mãe que lhe fizesse um vestido. A atitude de Cremilda, no primeiro momento, foi de reprovação. A protagonista se recorda de um dito da mãe: "- Já começa a vaidade" (Brasil, 1979, p. 107), como se Cremilda identificasse na demanda da filha um caminho sem volta no qual ela própria se perdera. Apesar dessa reação negativa inicial, Cremilda se empenha em realizar o pedido com esmero e dedicação.

Luíza, contudo, recusa o vestido feito pela mãe, apesar de destacar que Cremilda era uma refinada costureira. A prova disso era que muitas mulheres ricas da cidade vinham lhe procurar para realizar encomendas. A protagonista evoca mentalmente imagens das peças criadas pela mãe, costuradas a partir de retalhos de tecido e de pano, refugo recolhido dos armazéns. Luíza considerava essa transformação uma espécie de mágica, tal qual a mutação de capataz/gerente para mulher sedutora.

Luíza lembra-se que, a partir do momento em que ganhou fama de prostituta, as encomendas minguaram, como se a sua condição contaminasse os vestidos que ela produzia com uma mácula indelével que denunciava a sua procedência. A protagonista se questiona, então, o que fez a mãe abrir mão de seus talentos e de um ofício aparentemente tão maravilhoso e belo em prol da prostituição. A maldição da família teria falado mais alto e se feito valer?

Entende-se que a prostituição, no contexto do livro, constitui um fenômeno complexo, composto por várias camadas, e que possui uma dimensão tanto psíquica como social. Pode-se dizer que é um ofício geralmente exercido pelas mulheres socialmente e economicamente desfavorecidas. No entanto, mesmo que de forma efêmera, limitada e circunscrita, o exercício desse ofício proporciona um status peculiar ao seu agente, na medida em que exige a habilidade para se colocar no lugar de semblante do desejo do outro, de forma a satisfazer as fantasias sexuais da clientela que demanda esses serviços. Trata-se de uma posição que faz irromper a verdade que se mantém abafada pelos moralistas e hipócritas da cidade. Assim, Cremilda e Luíza tornam-se depositárias de um saber que as pessoas consideradas de bem gostariam que permanecesse oculta, o que as torna, ao mesmo tempo, desprezadas e odiadas, desejadas e invejadas.

Luíza interroga o porquê da realização da sexualidade de Cremilda ter sido tão trágica e difícil. Essa pergunta acerca do destino de sua mãe resvala em suas incertezas sobre a sua própria vida e a de sua filha. A rede bordada em que a mãe se deitava com seus clientes assume para Luíza a função de representante do feminino na linhagem familiar: ao mesmo tempo possibilidade de invenção do novo e reedição de um destino sombrio.

Cremilda, apontando para a rede, enuncia como inexorável a transmissão da maldição da "dinastia do cais" (p. 54). A primeira menstruação de Luíza é vivida como a confirmação desse vaticínio. Ela relata para Mundoca o sentimento de vergonha e tristeza que lhe assolou na ocasião. Sua percepção é que Cremilda a incentivava para o caminho da prostituição, mas não a obrigava. Era como se sua mãe possuísse a convicção da inevitável sina das mulheres da família. Nas palavras de Luíza: "minha mãe nunca me quis bem..." (Brasil, 1979, p. 86).

Essa fala circunscreve o móbil da maldição das mulheres da família de Luíza. Ela evoca retroativamente o momento de uma tomada de posição subjetiva da protagonista frente ao enigma do desejo materno. Deduz-se daí que há algo concernido na relação mãe-filha que pode atualizar ou não o engajamento na prostituição a cada nova geração. O investimento no devir feminino da filha pela mãe é um fator crucial na flexibilização dessa profecia autorrealizadora. Tal investimento, para ocorrer satisfatoriamente, pressupõe que a mãe esteja conciliada com a sua própria feminilidade. Assim, tanto a prostituição como a devastação são contingências que não estão inexoravelmente associadas.

Uma questão interessante a se destacar no livro é a organização edípica de Luíza. Fora criada pela mãe, sem conhecer o pai biológico ou um companheiro da mãe que lhe servisse de referência. A protagonista recorda o pouco caso que Cremilda fazia das perguntas sobre a identidade de seu pai. Ordenava-lhe pedir benção a quase todos os homens que frequentavam a sua casa. Rememora, então, a série de retratos de clientes espalhados pelas paredes da casa, exibidos pela mãe como troféu. Essa coleção causava em Luíza um misto de raiva, vergonha e curiosidade.

Após se tornar prostituta, Luíza é acossada com frequência pela ideia de, sem saber, vir a se deitar com seu pai. Por isso, evitava homens com as feições dos retratos colecionados pela mãe, principalmente os dos homens mais velhos. Havia um, em específico, que lhe era objeto de um interdito autoinfligido. Sabia que era o preferido da mãe. Ao contrário dos marinheiros que iam e vinham, ele morava na cidade e era cliente assíduo. Sua foto não constava na série de retratos da sala. Na falta de uma designação clara de sua paternidade, Luíza encarnava nesse homem o vetor do desejo de Cremilda.

É importante lembrar-se de Lacan, nesse ponto, quando escreve que o principal eixo da função paterna é significação para criança do enigma do desejo materno. Como tal, a pessoa que encarna essa função deve ser, aos olhos da mãe, investida de um atributo fálico. Tal fato deve ser perceptível pela criança e tomado como resposta às ausências do cuidado materno. Dessa forma, a criança passa a significar a sua própria falta, localizando o falo no campo do Outro. Dessa forma, a atribuição fálica ao pai instaura a função lógica que determina a universalidade nãotoda da castração. O pai, enquanto designado pelo desejo materno, constitui a exceção, o ao menos um, que dá consistência a função da castração.

Logo no despontar de sua feminilidade, esse homem, situado como vetor do desejo de sua mãe, propõe a Cremilda que lhe deixasse deitar com ela. A concordância da mãe e o incentivo dado para que Luíza aceitasse o convite é sentido como um aviltamento, talvez uma experiência próxima à devastação. Para a protagonista, é como se Cremilda fizesse pouco caso dela.

As tentativas de localizar um lugar para o feminino a partir de sua posição na linhagem familiar é metaforizada na costura do vestido da boneca Ceci, que Luíza ornamenta a partir dos trapos das vestimentas da casa, tal como sua mãe fazia com os vestidos que ela costurava. Ceci funciona para Luíza como o lócus de gestação de um semblante. Os semblantes que lhe protegem dos avassalamentos da presença da mãe. Pode-se afirmar que, por meio da ornamentação de Ceci, Luíza prepara uma via de criação de sua feminilidade, constituindo, a partir daí, uma espécie de reserva de semblantes.

Os cuidados de Luíza com Ceci podem ser avaliados como uma elaboração e transformação daquilo que lhe chegou como traços identificatórios das mulheres de sua família. Salienta-se que, tal como propõe Inglez-Mazzarella (2006, p.161), apropriar-se de uma herança "pode permitir colocar um "basta" na errância do legado das gerações anteriores".

Outros convites se seguiram ao primeiro, o que renovou para Luíza o alerta da possibilidade de concretização da maldição. O decréscimo da renda da casa era evidente. O caixa proveniente do armazém e das costuras já não existia mais. Até mesmo o dinheiro dos clientes de Cremilda diminua a cada dia, na mesma medida em que ela envelhecia. Tudo apontava para a necessidade de Luíza ocupar o lugar da mãe como provedora.

A primeira vez de Luíza, contudo, não aconteceu como uma obrigação ou violência. Relata ter se entregado a um homem de sua escolha, que ela amou de verdade. Trata-se do pai de Mundoca, Nuno. Um marinheiro de olhos claros que aportou no Beira Rio várias vezes e que, um dia, partiu para nunca mais voltar. Luíza não sabia muito a seu respeito, a não ser que se entregou a ele por livre e espontânea vontade. Fez questão de não lhe pedir nada em troca e não lhe perguntar nada mais do que ele quisesse dizer. Seu regresso continuou a ser aguardado por vários anos após a sua última partida, como uma espécie de fagulha de esperança no meio de um cotidiano árido e difícil.

Além da primeira vez e da relação ambivalente com a mãe, Luíza se recorda da cumplicidade com Jessé, o menino órfão criado por Cremilda. Pergunta-se: como lhe passou despercebido que dessa cumplicidade poderia surgir uma relação de amor? Luíza não levava a sério os esforços de Jessé de se mostrar capaz de ocupar o lugar de provedor da família e do sustento da casa. Desde novo, ele se empenhava em ganhar dinheiro pelos meios mais diversos, suportando com resignação as explorações e injúrias que Cremilda lhe impunha.

Luíza relata que não foi surpresa constatar a desolação de Jessé quando sua gravidez veio a público. De alguma forma, ela havia percebido o interesse dele. Malgrado a decepção, Jessé perseverou na busca do reconhecimento de Luíza e de sua mãe. No entanto, para Luíza, o amor que poderia ter sido vivido - um amor mais cotidiano - só se tornou evidente no momento da morte de Jessé, quando este agonizava, tomado por feridas e queimaduras em todo o corpo, resultado de um incêndio no barco em que trabalhava.

É possível conjecturar a partir daí: será que, ao endereçar-se à Luíza como mulher, Jessé, com seu desejo, incitava nela o medo de um devir feminino que ela só consentia dentro de determinadas balizas? Por outro lado, é patente que as investidas de Jessé não eram rechaçadas por Luíza, o que apontava para certo grau de consentimento de sua parte.

Tal assentimento, por sua vez, não era compartilhado por Cremilda. Para ela, a relação entre os dois, além de fadada ao fracasso, constituía um impedimento para que Luíza se consolidasse como prostituta, fato que, inevitavelmente, afetaria o seu sustento na velhice.

Do lado de Luíza, cabe indagar quais seriam os impedimentos para que um vínculo erótico com Jessé fosse experimentado. Pode-se considerar que a expectativa idealizada do retorno de Nuno constituísse um dos possíveis empecilhos. Outra possibilidade é o receio de Jessé se transformar em um dos clientes-troféus, tais quais os ostentados por sua mãe. De qualquer forma, o véu que encobria a viabilidade desse relacionamento cai na ocasião da morte de Jessé, o que parece confirmar a sina da maldição familiar:

A morte de Jessé, para que ela não se tornasse uma senhora casada []. A morte, para que Jessé não a tornasse respeitável - tal coisa, tamanha coisa, não podia acontecer no cais, nunca acontecera em sua família.

Por que pensara?

Por que se iludira? (Brasil, 1979, pp. 85-86)

Luíza assevera, em diversas passagens do livro, que a gravidez de Mundoca fora intencional e desejada. A gestação, todavia, fora atravessada por sentimentos contrastantes: pela vergonha de ter o despertar de sua sexualidade exposta para toda a cidade, pela exposição aos comentários preconceituosos dos que a apontavam na rua como a filha grávida da prostituta; pela humilhação decorrente da dependência da caridade de terceiros para obter comida e cuidados médicos; mas também pela esperança de que sua filha, gestada em um momento de felicidade, tivesse um futuro melhor que o dela.

Diferente de Cremilda, Luíza informa para Mundoca o nome de seu pai. Embora Mundoca nunca o tenha conhecido, ele era vivo na fala de sua mãe, presentificando e significando para a filha o desejo não anônimo de Luíza (Lacan, 1969/2003a). Nuno é a pessoa a quem Luíza escolheu como o primeiro e único homem de sua vida, apesar de todos os que vieram depois. Por isso, recusa-se a colecionar retratos como sua mãe.

Sempre se referenciando a um gozo desavergonhado de sua mãe, cujas gargalhadas ecoavam pela casa quando se recolhia com os marinheiros que a procuravam, Luíza descreve que buscou não transparecer o prazer que eventualmente sentia ao receber alguns de seus clientes. Diz que chegou a ter alguns mais assíduos e, mesmo, alguns preferidos. Todavia não se tratava de amor, era diferente do que ocorrera com o pai de Mundoca. O cuidado com a reação de Mundoca era algo que sempre a acompanhava, pois não queria que a filha sentisse o que ela sentiu e passasse pelo que ela passou.

Nesse trabalho de perlaboração de memórias que a fala de Luíza desenvolve (Freud, 1914/1997f), vemos surgir o interesse pelas mulheres que precederam Cremilda na linhagem familiar, sua avó e bisavó. Apesar de não as ter conhecido, Luíza relata ter ouvido de sua mãe uma espécie de mito familiar, uma história situada entre a realidade e a fantasia, que explica a origem da maldição das descentes de Cremilda. É lícito supor - mesmo considerando que se trata de uma ficção dentro de uma ficção - que tal história foi em parte herdada, em parte construída e modificada por Luíza e Cremilda.

Trata-se da história de uma mulher que consegue ascensão social, respeito, posses e reconhecimento, tornando-se muito poderosa. Em um dado momento, no ápice de sua influência, tal mulher cai em derrocada por amar quem não deveria e por confiar demasiadamente nos homens. Essa mulher é presa, acusada injustamente de ter assassinado o seu amante. A partir daí, passa a ser humilhada pelos habitantes da cidade que outrora a bajulavam. Nesse momento, ela se descobre grávida. Durante os nove meses da gestação, todas as noites, ela chorava e gritava na sua cela para que toda a cidade ouvisse. No momento do parto, ela amaldiçoa a filha e os seus descendentes: "Passou a maldizer o futuro da menina, que ela era culpada, haveria de penar, penar, e pegaria barriga de marinheiro, e teria uma filha que pegaria barriga de marinheiro, e a filha de sua filha pegaria barriga de marinheiro" (Brasil, 1979, p. 56).

Em contraste de com a mãe e a avó, Mundoca é descrita como descuidada, gorda e cheia de espinhas. Aparentemente, não se interessa pelos homens, nem se empenha em despertar o desejo deles. Não se importa com vaidades, como diria Cremilda. Passa o dia no trabalho, quando não está na janela a fumar seu cachimbo, na companhia da mãe. As respostas de Mundoca às perguntas de Luíza são sempre lacônicas e evasivas: "- Vá pro inferno." (Brasil, 1979, pp. 58, 66, 81, 126). Paradoxalmente, ela presentifica um testemunho opaco que relança as inquietações de Luíza, incitando-a a ir cada vez mais longe.

Apesar do aparente desinteresse, Mundoca está presente, e é muito provável que esteja também atenta, como está o leitor que se coloca nesse lugar de recepção do endereçamento da fala de Luíza, que, em relato, tece, recupera e transforma as suas recordações, com o seu cachimbo, à beira da janela e da vida.

 

Conclusão

A partir da obra de Assis Brasil Beira rio beira vida, discutiu-se alguns aspectos da relação mãe-filha, que influenciam no tornar-se mulher e que exigem uma elaboração da herança familiar a cada nova geração.

Apoiado em Lacan, sustentou-se que ninguém nasce mulher ou homem e que a identidade sexual não é função de um determinismo social ou biológico. Partiu-se, portanto, da premissa de que a vivência da sexualidade no ser humano é um evento indeterminado do corpo, de gozo, mas também um fato de linguagem, uma resposta à alteridade. Por conseguinte, tomou-se como solo comum, que permite o diálogo entre psicanálise e o romance de Assis Brasil, a questão do tornar-se mulher. Defende-se que, nos dois casos, a tomada de uma posição feminina é entendida como uma produção singular a partir de um enigma que remete a uma narrativa transgeracional que força os limites de agenciamento dos significantes fálicos e nos coloca frente às questões relativas à transmissão.

Fica a questão de saber, considerando-se a tensão entre a ordem da transmissão e a indeterminação, o que pode ser reescrito e o que permanece indelével no destino de Mundoca. Cada uma das gerações vive a tarefa de se inventar como mulher. Cada uma das mulheres da história responde à maldição familiar de uma forma própria. Cremilda encarna a prostituição como uma forma de enriquecer e ganhar influência. Ela almeja para si uma posição social, mas sucumbe diante da miséria e do preconceito. Isso, contudo, não impede que ela crie alguns semblantes de mulher, que demonstram ser muito úteis no ofício de costureira e no exercício da prostituição. É possível inferir a incidência de algumas vivências de devastação, que possivelmente demarcaram a vida de Cremilda e, por extensão, a de sua filha, Luíza. De todo modo, percebe-se, no relato de Luíza, que sua mãe respondeu a essas situações valendo-se, sobretudo, de estratégias masculinas, ou seja, a partir de uma posição masculina de gozo.

Da perspectiva de Luíza, é possível situar alguns momentos em que a devastação infligida por um gozo Outro se faz notar, manifestando-se principalmente na sua relação com a mãe, de onde ela espera apreender uma consistência no tornar-se mulher. Ao contrário de sua mãe, da qual se inferiu a incidência da devastação na relação com parceiros homens, Luíza mostra-se mais pacificada nesse terreno. Apesar da situação socialmente desfavorecida e estigmatizada, ela demonstra ter estabelecido algumas balizas, que regularam sua relação com parceiros e cliente, no amor e no trabalho. Seu relato dá provas da invenção de um modo de ser mulher diferente da mãe.

A situação de Mundoca permanece opaca para o leitor ao final do livro. Ela não parece demonstrar nitidamente a adesão a uma posição subjetiva ou social, o que dá margens para se conjecturar nela diferentes possibilidades de realização do feminino. Uma vez se constatando em Luíza e Cremilda a invenção de alguns semblantes que podem ter servido de barreira à devastação e ao agravamento de algumas situações de vulnerabilidade psíquica, pergunta-se: o que chegou à Mundoca do legado familiar? Quais as respostas que ela construiu para o enigma da maldição da prostituição? Qual a sua posição na relação com a sua mãe, Luíza?

Por fim, destaca-se a importância de determinados arranjos em torno do feminino que acompanham algumas experiências de sofrimento psíquico em mulheres, mas que podem ser mobilizados no tratamento psicanalítico como via de cura. São respostas espontâneas, que podem ser conjuradas como vetores de uma transformação. Talvez, por esse caminho, as maldições familiares possam ser convertidas em invenções de outros modos de ser.

 

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Endereço para correspondência:
Fabiano Chagas Rabêlo
E-mail: fabrabelo@gmail.com

Reginaldo Rodrigues Dias
E-mail: rgydyas@hotmail.com

Karla Patrícia Holanda Martins
E-mail: kphm@uol.com.br

Recebido em: 30/05/2019
Revisado em: 09/08/2020
Aceito em: 23/08/2020
Publicado online: 23/12/2020

 

 

1 Atualmente, as embarcações são despachadas nos portos das cidades vizinhas, Luís Correia e Porto das Barcas.
2 Em inglês no original, "dark continent" (Freud, 1926/1997h, p. 333).

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