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versão impressa ISSN 2359-0769versão On-line ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.20 no.spe2 Fortaleza  2020

https://doi.org/10.5020/23590777.rs.v20iesp2.e8986 

DOSSIÊ: O CONTEMPORÂNEO À LUZ DA PSICANÁLISE

 

Contação de Histórias como Dispositivo Clínico na Infância frente ao Racismo à Brasileira

 

Storytelling as a Clinical Device in Childhood facing Brazilian Racism

 

Narración de Historias como Dispositivo Clínico ante el Racismo a lo Brasileño en la Niñez

 

Le Récit comme Instrument Clinique dans l'Enfance face au Racisme Brésilien

 

 

Marina Gregianin RochaI; Marina da Rocha RodriguesII; Sandra Djambolakdjian TorossianIII; Ana Maria GageiroIV

IPsicóloga, Especialista em Saúde Mental Coletiva (UFRGS) e Mestre em Psicanálise: Clínica e Cultura (UFRGS)
IIPsicóloga, Mestre em Psicologia Social e Institucional (UFRGS), Professora do curso de Psicologia da Universidade Luterana do Brasil (Ulbra)
IIIDoutora em Psicologia, Professora do IP UFRGS- PPG em Psicanálise: clínica e cultura UFRGS
IVPsicóloga, Doutora pela Paris 7, Professora do Instituto de Psicologia da UFRGS, membro da APPOA

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo tem como objetivo apresentar oficinas de literatura infantil e contação de histórias como um dispositivo clínico para a escuta do sofrimento, do qual destaca-se, para fins deste artigo, a escuta da desigualdade racial. Parte-se de uma experiência na qual o racismo foi negado e silenciado no processo de escuta, situando essa cegueira como resistência do analista, a qual, decorrente do racismo estrutural à brasileira, está presente no campo do conhecimento científico e cultural. Trabalha-se a partir da contação da história de Dandara dos Palmares, analisando os efeitos de subjetivação em todos os participantes da oficina, crianças e psicanalistas.

Palavras-chave: psicanálise; racismo; infância; resistência do analista; literatura infantil.


ABSTRACT

This article aims to present workshops on children's literature and storytelling as a clinical device for listening to suffering, of which, for this article, listening to racial inequality stands out. It starts from an experience in which racism was denied and silenced in the listening process, situating this blindness as resistance by the analyst, which, due to structural racism to the Brazilian, is present in the field of scientific knowledge and culture. We work from the storytelling of Dandara dos Palmares, analyzing the effects of subjectification on all workshop participants, children, and psychoanalysts.

Keywords: psychoanalysis; racism; childhood; analyst resistance; children's literature.


RESUMEN

Este artículo tiene el objetivo de presentar talleres de literatura infantil y narración de historias como dispositivo clínico para escuchar el sufrimiento, de lo cual se enfoca, para este artículo, la escucha de la desigualdad racial. Se parte de una experiencia en la cual el racismo fue rechazado y silenciado en el proceso de escucha, situando esta ceguera como resistencia del analista, la cual, debido al racismo estructural brasileño, está presente en el campo del conocimiento científico y cultural. Se trabaja a partir de la narración de la historia de "Dandara dos Palmares", analizando los efectos de subjetivación en todos los participantes del taller, niños y psicoanalistas.

Palabras clave: psicoanálisis; racismo; niñez; resistencia del analista; literatura infantil.


RÉSUMÉ

Cet article vise à présenter des ateliers sur la littérature pour enfants et sur le récit en tant que dispositif clinique d'écoute de la souffrance. Dans cet article, on met en relief l'écoute de l'inégalité raciale. On part d'une expérience où le racisme a été nié et réduit au silence dans le processus d'écoute. On situe cet aveuglement comme une résistance de l'analyste, qui, à cause du racisme structurel brésilien, est présente dans le champ des connaissances scientifiques et culturelles. Nous travaillons à partir du récit de l'histoire de Dandara dos Palmares, et on analyse les effets de la subjectivité sur tous les participants à l'atelier, enfants et psychanalystes.

Mots-clés: psychanalyse ; racisme ; enfance ; résistance de l'analyste ; littérature pour enfants.


 

 

"Se a psicanálise [...] não se engaja nisso, se não toma esse ritmo, ela será - e já o é, em larga medida - deportada, ultrapassada, ou então, inversamente, ela continuará nas condições de uma época que foi aquela do seu nascimento" (Derrida, 2001).

Este texto tem como objetivo apresentar a literatura infantil e o dispositivo de contação de histórias como um modo de escutar a racialidade e incidir no processo de subjetivação de crianças que vivem em contextos sociais críticos. Por meio desse dispositivo aceita-se, também, o desafio colocado à escuta psicanalítica quando confrontada com o racismo estrutural da sociedade brasileira, racismo que não raramente se apresenta como resistência na escuta psicanalítica.

A questão racial emerge de um trabalho de oficinas de literatura infantil realizado com crianças de zero a doze anos em um projeto de extensão universitária numa comunidade em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, que tem na miserabilidade um dos seus traços constituintes. Iniciadas com o objetivo de escutar e intervir, com a psicanálise, nas questões relacionadas à violência e às vulnerabilidades, as oficinas foram sendo espaço de surgimento da violência racial entre as crianças. Não raro as palavras e insultos escolhidos nas agressões tinham conteúdo racista. Expressões como "nega bafão", "cabelo ruim" e "nego sujo" habitaram frequentemente as oficinas. Curiosamente, esses insultos só recentemente foram compreendidos como violência racial em um trabalho que vem sendo desenvolvido desde 2011. A introdução da questão do racismo na escuta deu-se à medida que a equipe de trabalho foi diversificando a cor da pele dos seus integrantes.

A equipe de trabalho nas oficinas é constituída por psicanalistas, estudantes de psicologia e residentes multiprofissionais. A equipe iniciou branca, e foram se incorporando estagiários, estagiárias e residentes negros e negras. Essa composição da equipe, em conjunto com a discussão sobre as políticas afirmativas presente no contexto universitário, fez com que a cegueira e o silenciamento em relação às questões de raça fossem enfrentadas e, assim, as intervenções passaram a contemplar o racismo. O enfrentamento desse silenciamento, no entanto é processual e não se realiza sem a devida análise em relação à escuta psicanalítica que, até os dias de hoje, resiste a dar um lugar diferenciado à escuta da cor da pele. Este artigo faz parte, então, desse processo de análise da escuta.

Após a introdução das questões que deram origem ao texto, passamos a situar a racialidade e o racismo estrutural à brasileira, e apontamos os desafios que esses temas colocam à psicanálise. Posteriormente, descreve-se a metodologia de trabalho em oficinas de literatura infantil e contação de histórias. Finalmente, apresentamos a literatura, incidindo nos processos de subjetivação a partir de uma experiência de contação da história de Dandara, princesa dos Palmares.

 

A Racialidade, o Racismo e os Desafios para a Psicanálise

A suposta democracia racial encobre e invisibiliza a brutalidade cotidiana da discriminação racial que está enraizada no imaginário social. Vannuchi (2017) aponta para a violência sofrida por negros e não brancos que, frequentemente, encontra-se invalidada por seu desmentido no discurso coletivo: não existe racismo no Brasil. Por não ser legitimado, o racismo no país usurpa a possibilidade do pensamento e, até mesmo, de defesa contra palavras e gestos violentos.

A política de "branqueamento" até hoje é testemunha da desqualificação da identidade negra. Essa política, incorporada depois da abolição da escravatura, se constituiu em um poderoso instrumento de hierarquização social, tendo em vista que os ex-escravos, os "novos brasileiros", segundo Vannuchi (2017), estavam condicionados a ascender socialmente mediante uma assimilação dos comportamentos, do ponto de vista estético e cultural, da população branca.

Nessa mesma via de pensamento crítico, Munanga (2017) destaca a peculiaridade do racismo à brasileira: implícito e nunca institucionalizado. O mito da democracia racial brasileira, segundo o autor, manipula alguns fatos da sociedade, posto que invisibiliza a desigualdade racial em nome da mestiçagem. "Se somos um povo mestiço - nem branco, nem negro, nem índio - quem vai discriminar quem se somos todos mestiços?" (Munanga, 2017, p. 38), indaga o autor.

O racismo à brasileira, no dizer de Munanga (2017), cria ambiguidades, dificultando o processo da formação da identidade negra. O autor explica que muitos deixam de assumir sua negritude, encontrando no ideal do embranquecimento um solo mais seguro, levando em conta as vantagens reservadas à branquitude. Assim, o racismo estrutural brasileiro é negado e silenciado.

Sobre essa negação, Bento (2014a) afirma que a branquitude e o branqueamento são responsáveis por produzir e reiterar persistentemente o apagamento das desigualdades raciais no Brasil. Para a autora, a falta de reflexão sobre o papel dos brancos nas relações raciais brasileiras é um dos mecanismos modernos de reiterar continuamente as desigualdades raciais no país.

A problemática racial no país acontece, segundo Bento (2014a), de forma unilateral, a ser considerada como problema dos negros. Esse silêncio e cegueira se produziria por um acordo tácito entre brancos de não se reconhecerem como parte importante na sustentação e reprodução das desigualdades raciais.

De acordo com Bento (2014b), essa cegueira e esse silêncio caracterizam a nossa produção científica e intelectual - incluindo a psicologia e a psicanálise -, na qual até os mais progressistas dos estudiosos se colocam fora desse processo relacional e não percebem que pertencem a um grupo racial.

Em concordância com os apontamentos acima em relação à produção de conhecimento científico, Souza (2017)afirma a existência de uma falsa interpretação dominante no campo das ciências sociais, vendida como crítica social, a qual se ancora na negação da escravidão. O mesmo autor analisa, ainda, que o paradigma culturalista, presente no campo das ciências sociais brasileiras, constitui uma falsa ruptura com o racismo científico da cor da pele quando parece acolher as diferenças culturais, no entanto sem fazer a devida análise da questão racial no país.

Adichie (2009)., escritora nigeriana, aponta para o silenciamento das diferenças raciais e de classe presentes na literatura quando as referências pessoais e científicas se embasam em histórias únicas. Essa autora relata que, quando começou a escrever, suas histórias se passavam em paisagens nevadas com personagens brancos, loiros e de olhos claros, distantes do seu mundo na Nigéria, mas habitantes do mundo de histórias infantis americanas e britânicas que lia. Os personagens comiam maçãs, falavam da mudança climática e bebiam cerveja de gengibre. Apesar de gostar das histórias, diz ela, não sabia que meninas negras, de cabelos crespos que comiam manga e não tinham a necessidade de falar do clima poderiam ser personagens das histórias. Ao lembrar-se de Fide, um menino acolhido pela sua família, do qual só ouvia dizer que a família era pobre e não tinha o que comer, relata sua surpresa ao ver, numa visita, que essa família produzia bonitos cestos. Surpresa produzida pela impossibilidade, construída até então, de vê-los como algo além de pobres. A pobreza era a história única sobre a vida deles. Uma situação semelhante a que ela própria viveu anos depois, nos Estados Unidos, quando sua colega de quarto tinha uma história única sobre a África, querendo escutar a música tribal, olhando-a com piedade e ficando atônita ao saber que o seu inglês era bem falado porque era a língua oficial da Nigéria.

Adichie (2009) pôde escrever outros livros ao tomar contato com escritores e escritoras africanas que foram espelho para abrir novas identificações. Já em solo estadounidense, tendo vários espelhos, lhe foi possível interrogar as certezas da sua colega. Não se identificar com um único espelho.

No contexto brasileiro, a arte também nega o racismo. Cuti (2017) afirma a alienação da arte brasileira no que toca às relações inter-raciais. Segundo o autor, há uma técnica do disfarce que não enfrenta o racismo na arte brasileira e se apresenta sob a técnica do silêncio. Refere-se a toda produção artística que apresenta o Brasil como um país de pura harmonia racial.

Cuti (2017) destaca, ainda, que a capacidade de enfrentamento se dá pela possibilidade de nomear o racismo. Precisa-se produzir um discurso que ouse tematizar o racismo como conflito humano, pois, citando o autor, a arte "negro-brasileira, quando atua no imaginário geral da população brasileira, liberta não apenas o negro das garras do racismo silencioso, mas também o branco e o mestiço daquilo que têm ou ainda lhes resta da sua auto percepção como "super homem" (Cuti, 2017, p. 208).

No campo psicanalítico encontramos esses mesmos silenciamentos, cegueiras e negações, tomadas aqui como resistência do analista e produtoras de surdez na escuta. Como já relatamos na introdução deste texto, a negação da racialidade habitou nossa escuta durante anos. Uma surdez que nos leva a indiferenciar a violência racial de outros modos de violência e, assim, impossibilita nossa intervenção sobre essa questão, muito presente no cotidiano do trabalho.

De modo semelhante ao nosso despertar ou desvelamento da questão racial na escuta psicanalítica, em sua tese de doutorado, Braga (2016) conta os caminhos que a levaram a pesquisar sobre os efeitos subjetivos e estratégias singulares de resistência de mulheres negras e pobres frente à desigualdade racial brasileira. Com a proposta de investigar um não dito escutado num grupo de adolescentes em uma escola pública de São Paulo, os quais eram a população-alvo inicial de sua pesquisa, a autora se direciona para a escuta da posição de certas mães na comunidade escolar.

É pelo encontro com uma dessas mães que a sua pesquisa é reformulada, uma vez que elas conseguiram mostrar e fazer notar para a pesquisadora a questão racial que perpassava as experiências de todas as mães entrevistadas. Para além de uma condição socioeconômica semelhante, todas as mães compartilhavam outra marca: eram negras. A escuta dessas mulheres leva à constatação do fato de que elas se reconhecerem e serem reconhecidas como mulheres negras era algo marcado em suas vivências cotidianas.

Braga (2016) critica a ausência da questão racial nas discussões de gerações de psicanalistas brasileiros, que acharam que era uma questão para "outros" e, assim, afirmavam uma cor neutra na psicanálise. Para ela, esse apagamento desconsidera que nossos ouvidos são marcados e estão inscritos em um campo de linguagem e que, no contexto brasileiro, não podemos deixar de considerar o campo de desigualdades raciais e sociais no qual os sujeitos que escutamos e os que escutam estão inscritos.

Para a pesquisadora, quando não reconhecemos que existe uma condição compartilhada experienciada por pessoas negras, que difere das vividas por pessoas brancas, podemos escutar algo como somente individual, um sintoma do sujeito, e não como algo que também se refere a uma marca produzida pela cor, uma condição de vivência subjetiva compartilhada.

No contexto brasileiro, a grande maioria dos psicanalistas colocou-se de fora das discussões raciais e do impacto do racismo na constituição psíquica de brancos e não brancos, ocupando, dessa forma, uma posição estrangeira. Estrangeiridade que é tão cara no desenvolvimento da metapsicologia freudiana, com o conceito unheimliche (Freud, 1919/2010): o estranho ou a inquietante estranheza. Freud toma a polissemia do termo unheimliche na língua alemã e destaca um curioso aspecto linguístico: heimliche pode significar o familiar e, também, algo de ordem secreta e oculta, o que, de forma paradoxal, torna tal palavra próxima de seu oposto, unheimliche. Para Freud, a operação psíquica que produz o sentimento de inquietante estranheza tem relação com o que deveria ficar oculto e por algum motivo se manifestou. Assim, o estranho é aquilo assustador que remonta ao que é muito conhecido, ao bastante familiar. A origem da inquietante estranheza estaria no familiar reprimido.

Como viemos desenvolvendo até aqui, a surdez perante as questões raciais, bem como o não reconhecimento da experiência compartilhada por pessoas negras, apontadas por Braga (2016), fazem parte do que Lacan (1985, p. 569) aponta como resistência do analista. Ao trabalhar as questões transferenciais presentes numa análise, Lacan discute as diferentes interpretações realizadas sobre a contratransferência e a resistência no campo da psicologia do ego, das proposições da psicanálise inglesa, e reposiciona o lugar e a política do analista situando-o no que denomina "carência de ser". Além disso, destaca que qualquer interpretação da resistência deverá ser tomada como resistência do analista, seja em relação ao tempo do sujeito, seja a outras questões do processo analítico. É nesse sentido que destacamos a surdez e a cegueira perante as diversas questões da desigualdade racial como pontos de resistência do analista.

Ainda sobre a temática dos pontos de resistência do analista, posteriormente a Lacan, encontramos autores como Bhabha (2013) e Spivak (2014), que compartilham da posição pós-colonial no campo de produção do conhecimento e nos auxiliam a fazer essa análise. No caminho da desconstrução do domínio colonial, Bhabha afirma que para compreender a produtividade do poder colonial é crucial construir o seu regime de verdade e não submeter suas representações a um julgamento normatizante.

A partir das afirmações do autor podemos assinalar a existência de um regime de verdade colonial que parece ter habitado a psicanálise quando delega ao campo de conhecimento vizinho a questão racial, valendo-se de uma pseudoneutralidade da escuta ou recusando a escuta da cor da pele e seus efeitos no sofrimento coletivo produzido pelo racismo. Silencia-se, assim, a racialidade e seus efeitos de branqueamento quando se argumenta que a estrutura psíquica ou o psiquismo não tem cor.

Spivak (2014) elabora algumas críticas ao movimento estruturalista e pósestruturalista quando considera que, ao se falar em "o sujeito", negam-se as diferenças de condições nas quais esses sujeitos são produzidos no cenário internacional, nega-se, assim, a divisão internacional do trabalho pelos países europeus, onde muitos dos nossos conceitos são produzidos, e negam-se os agenciamentos de classe que produzem "as condições econômicas da existência que separam seus modos de vida" (Spivak, 2014, pp.25).

Se a produção psicanalítica sofre de domínio colonialista do mesmo modo que as ciências sociais e a literatura, é necessário localizar os possíveis pontos de resistência do analista, não se deixando tomar pela alienação aos discursos produtores de olhares únicos, de estereótipos e de desigualdades. Esses podem contribuir para a reprodução da violência e repetição sintomática quando negadas as diferenças de condições produtoras de sujeito e os regimes de verdade nos quais os conhecimentos são produzidos.

 

A Literatura em Oficinas de Contação de Histórias

A proposta das oficinas inicia, no projeto atual, em 2011, mas vem sendo desenvolvida desde 2004 em outros contextos. Inicialmente denominadas "oficinas de literatura infantil", passaram de ser nomeadas como "oficinas de contação de histórias". Essa modificação deu-se sem qualquer intencionalidade prévia e pode ser entendida como um processo em que o conto ganhou espaço como modalidade literária e no qual foram se aprimorando as modalidades e estratégias do método de contar as histórias.

O trabalho desenvolvido teve várias inspirações; uma delas foi o "ateliê terapêutico de contos" com crianças que sofrem de vulnerabilidade social, desenvolvido por Gutfreind (2003) e que resultou no seu livro O terapeuta e o lobo: A utilização do conto na psicoterapia da criança. Foi essa uma experiência de pesquisa realizada no cenário francês que deu lugar a experiências brasileiras do mesmo autor, narradas no texto Vida e arte: A expressão humana na saúde mental (Gutfreind, 2005).

Gutfreind (2003) propõe a construção do setting tendo o conto como mediador, e ressalta a importância da narrativa. Aproxima, ainda, essa função ao holding, desenvolvido por Winnicott (1975). À mãe suficientemente boa, o autor faz equivaler, como Kehl (2006), a mãe e os adultos suficientemente narradores, sublinhando aqui a construção humana que acontece no ouvir e contar histórias.

Uma experiência com oficinas literárias foi, também, desenvolvida por Kastrup (2002). A autora propõe a oficina de leitura como um dispositivo de produção de subjetividade. Examina três níveis de práticas de leitura: a relação com o livro, a relação com a rede social na qual o livro e o leitor estão inseridos, e a relação do leitor consigo mesmo.

Em concordância com essa proposta, encontramos, no campo da saúde coletiva, o conceito de dispositivo clínico, compreendido como um dispositivo de subjetivação. No modelo proposto por Campos (2000), a clínica é o encontro de sujeitos coproduzidos por forças universais e particulares (Cunha, 2007). É um encontro de afetividades, discursos e formações discursivas. Encontram-se sujeitos produzidos por e produtores de instituições. Encontram-se instituições singularizadas em sujeitos do inconsciente. O dispositivo clínico é considerado, então, dispositivo de subjetivação.

Lima (2001) associa o trabalho grupal de oficinas terapêuticas à potencialidade clínica da arte, especialmente no encontro com o sofrimento de pessoas que, no cotidiano, vivenciam experiências de exclusão social. Ressaltamos as contribuições de Lima (2001), sobretudo quanto à possibilidade de as oficinas criarem uma via de prazer em trabalhar para os profissionais que lidam com problemas sociais críticos. Afirma ele, ainda, que a oficina permite trabalhar com a subjetividade de "técnicos" e "usuários" no mesmo dispositivo.

O conceito de dispositivo encontra movimento em vários momentos da obra de Foucault (1987. aponta que a filosofia de Foucault se apresenta como análise dos dispositivos concretos. O dispositivo foucaultiano assemelha-se, para o autor, a um novelo, um conjunto multilinear composto por linhas de naturezas diferentes e com variações de direção. As linhas podem ser compreendidas como vetores de saber, de poder e de subjetividade, "linhas de visibilidade, linhas de enunciação, linhas de força, linhas de subjetivação, linhas de ruptura, de fissura, de fratura que se entrecruzam e se misturam, enquanto umas suscitam, através de variações ou mesmo mutações de disposição" (, p.156).

Ao aproximar as oficinas ao dispositivo foucaultiano queremos iluminar as linhas subjetivantes de diferentes naturezas que produzem enunciados, enunciações e sujeitos. Linhas que podem tanto vetorizar a cristalização de significações quanto produzir rupturas nos sentidos historicamente construídos.

As oficinas de contação de histórias acontecem semanalmente e são ofertadas para as crianças num projeto de extensão universitária que tem como direção escutar através do brincar ou, como se costuma dizer às crianças, "brincar, falar e contar histórias". A frequência é livre, não havendo inscrição prévia, e a presença sustenta-se no desejo de as crianças estarem ali. Assim, as crianças podem ser assíduas frequentadoras ou terem participação esporádica.

A estrutura da oficina compõe-se de dois momentos: um de narração ou contação, e um de atividade lúdica decorrente dos efeitos da leitura. Momentos que se cruzam e misturam sem seguir necessariamente uma linearidade temporal. Por isso, muitas vezes, a contação acontece por meio da leitura do livro, em outras pela dramatização dos contadores, em outras pela proposta teatral. Acontece também a narração em forma de cordel, de circuito, de desenhos e outros modos de contar que vão sendo inventados a cada encontro.

Existe um planejamento da oficina que considera a escolha do conto a partir do processo de escuta. As histórias podem ser escolhidas tanto pelos contadores quanto pelas crianças. Destacamos que as contadoras e os contadores são psicanalistas ou estudantes que se ancoram na práxis psicanalítica e que o conto e as histórias são ofertados como narrativa na qual as crianças podem incluir suas histórias. Assim, muitas vezes elas falam através dos personagens num espaço que contorna a angústia (Gutfreind, 2003; Torossian, & Xavier, 2012). As oficinas de literatura infantil e contação de histórias são tomadas, então, como um cenário clínico no qual o conto e os efeitos por ele produzidos podem ser escutados.

Neste texto, recortaremos o trabalho realizado a partir da escuta do racismo, escuta que só se constituiu como tal a partir do questionamento da equipe depois de alguns anos de trabalho. Desse modo, a apresentação da intervenção vem sempre acompanhada da pergunta pela nossa cegueira e surdez, bem como pelo silenciamento da questão "cor da pele" na psicanálise.

 

A Literatura, a Leitura e os processos de Subjetivação

O tema do sujeito, a sua constituição e produção, como foi apontado até aqui, é relevante para analisar o racismo, a racialidade e a sua escuta. Os sujeitos se constituem a partir de discursos culturais e científicos. Entre esses discursos, encontramos a arte. Focaremos, então, a arte da literatura infantil entrelaçada à leitura para dar sustentação à nossa metodologia de intervenção nas oficinas.

Barbosa (2000) afirma que a emergência da literatura infantil se relaciona à emergência do conceito de infância. A partir dessa afirmação, Hilesheim (2008) coloca em análise o infantil que adjetiva a literatura, fazendo aparecer a emergência da higienização das histórias de Perrault (2015) na passagem da tradição oral para a literatura infantil. Higienização essa que acompanha o texto literário até os dias de hoje.

No entanto essa Hilesheim (2008) dedica-se, também, a apresentar a literatura infantil, higienizada, acompanhada da literatura menor. São Deleuze e Guattari (1977) que lhe fornecem as ferramentas necessárias para a leitura do menor ao buscar o encontro com o novo que emerge desse processo. Para esses autores, a literatura menor caracteriza-se pela "desterritorialização da língua, a ramificação do individual no imediato político, agenciamento coletivo de enunciação" (Deleuze & Guattari, 1977, p.41). Ela não se opõe à literatura maior, pois é um arranjo que uma minoria faz na língua maior, um arranjo que desacomoda, desarticula e rearticula os modos canônicos de fazer literatura.

Kastrup (2002) ressalta que o encontro com o texto literário é um encontro com o inesperado, com o estranho, com a surpresa. Os textos literários, afirma a autora, possuem "potência de problematização" (Kastrup, 2002, p.3) quando capturam o leitor na experiência do vivido. Esse encontro é experiência de dessubjetivação por transpor os limites impostos pelas histórias pessoais e conduz o leitor à experiência do contágio pelo texto. Essa experiência requer não somente a desatenção à vida prática, mas também a substituição da atitude de buscar a significação do texto pela atitude de descobrir, de encontrar.

Ao analisar a função dos contos na vida das crianças, Bettelheim (2001) e, mais recentemente, Corso e Corso (2006) resgatam o lugar desses na produção da subjetividade. Afirmam estes últimos que "a criança é garimpeira, sempre procurando pepitas no meio do cascalho numeroso que lhe é servido pela vida" (Corso & Corso, 2006, p.29).

Kehl (2006) ressalta o poder das narrativas infantis de simbolizar e "resolver" os conflitos psíquicos inconscientes, uma vez que as crianças sabem utilizar os contos segundo suas necessidades. Ainda segundo a autora, os pais suficientemente bons precisam ser pais suficientemente narradores, sendo "capazes de tecer uma teia de sentido em torno das crianças e, ao mesmo tempo, deixá-la incompleta para que estas continuem a tarefa de produzir o romance familiar apropriado a suas pequenas vidas" (Kehl, 2006, p.19).

Contar uma história é ocupar um lugar no mundo, no discurso do Outro. É como possuir um teto, paredes e um chão que sustentam o sujeito na linguagem, no simbólico. Parafraseando Galeano (2012), é preciso que o mundo seja a casa de todos, e não a casa de poucos e o inferno da maioria. O escritor afirma que o mundo é feito de histórias, dessas que a gente conta e escuta, inventa e transmite.

Rodulfo (2004a resgata o papel ativo da criança na constituição psíquica e propõe, para o entendimento do processo de subjetivação, uma sequência não linear que inclui um trabalho de inscrição e alocação da criança na subjetividade do outro. Isso se dá pela habitação de diferentes espaços nessa relação: o corpo materno, o espelho e a folha. No trabalho de alocação no corpo materno, a carícia, enquanto jogo conjunto, possui a função primordial de desenhar e fundar o corpo. O autor resgata aí os conceitos de pictograma e de zona-objeto formulados por , salientando o registro pré-verbal e da memória corporal presentes na constituição psíquica. Esses conceitos apontam para um momento psíquico no qual o sujeito não possui conhecimento do mundo exterior. O psiquismo trabalha num circuito no qual se priorizam as zonas sensoriais, é um momento de auto-organização. Apesar de ser um momento constitutivo voltado para as experiências e registro sensoriais, a criança precisa encontrar-se em relação com o outro para se autoengendrar. A carícia enquanto um dos movimentos que possibilita a constituição psíquica é o primeiro momento de encontro com o outro.

Para conceituar o lugar do espelho, Rodulfo (2004a recorre a e . O espelho é tomado como superfície de inscrição no qual há um espaço de invenção necessário: o espelho e a folha tornam-se tais se houver uma invenção por parte da criança. O olhar produz jogo de espelhamento: a criança é olhada e se faz olhar, construindo identificações inconscientes.

A passagem do espaço especular para a folha marca uma posição diferenciada, uma posição na qual o corpo pode ser desenhado em um espaço diferente do espaço geográfico/corporal e do espelho. Essas passagens ou migrações de uma superfície a outra se dão sempre num encontro da criança com o outro, é um trabalho conjunto, simultâneo. A invenção de novos espaços e sentidos só pode acontecer a partir desses encontros.

As possibilidades de subjetivação e invenção não são alheias às políticas de subjetivação e às diferentes políticas discursivas (Rodulfo, 2004b). Assim, na sociedade atual, impregnada de valores consumistas e individualistas, o consumo e a solidão podem se apresentar como propostas de subjetivação. O individualismo insere-se numa política de desamparo (Birman, 2003). No lugar do encontro com o outro, poderá predominar o desencontro, instaurando-se, assim, a solidão. Desamparo que se amplia nos casos de crianças que sofrem rupturas nas suas histórias de vida em função de situações de violência ou que encontram, ainda, nos espaços que deveriam ser de acolhida, olhares especulares de "nojo", narizes franzidos ou corpos receosos que evitam qualquer contato. É esta a população com a qual trabalhamos: crianças relegadas a becos da cidade, cuja circulação por outras ruas, que não as da favela, produzem olhares de desconfiança e ações violentas. No entanto a violência não está restrita à circulação pela cidade, pois ela se repete sintomaticamente dentro da própria comunidade.

Nossa intervenção sustenta-se na potência da literatura infantil, literatura menor, que tem potência de invenção e ruptura de discursos cristalizados, quando o sujeito se encontra como outros olhares. Ao contar uma história outros espelhos e significantes são oferecidos no lugar da repetição da violência à qual as crianças estão submetidas. Abre-se um caminho para que a fantasia e a significação tenham um lugar, fazendo o circuito da repetição falhar. Para Petit (2009), é com essa fresta que o sujeito se produz a partir de outras palavras e pode ser mais autor de sua própria história.

Apostamos, com a contação de histórias, na oferta de espaços especulares e recursos simbólicos que auxiliem as crianças a tecer outro texto para si, outra trama significante, enlaçando sua memória à posição desejante e abrindo espaço para a escolha, ali onde costuma restar uma repetição da violência.

A oferta de contos possibilita também a democratização da literatura ao aproximar as crianças ao capital cultural, frequentemente inacessível a elas, seja em função das dificuldades de leitura e escrita, que promovem a não permanência na escola, seja pela desigualdade no acesso ao livro. Para Souza (2009), o capital cultural pode ser entendido como as formas de conhecimento técnico e escolar bem como as precondições para o acesso a esse conhecimento. O contato prematuro com a leitura, os livros, os materiais de escrita, a inclusão da cultura no discurso familiar e a valorização do ambiente escolar constituem essas precondições. De acordo com o autor, esse é um privilégio das classes média e alta na sociedade brasileira.

Na divisão de classes, há uma classe de indivíduos não somente sem capital cultural e econômico, mas incapacitada das precondições que permitiriam a sua apropriação. Não há espaços de circulação na cidade que convidem os pequenos e suas famílias a frequentá-las. Sem acesso ao capital cultural, os adultos responsáveis pelas crianças poderão cumprir sua função de serem "suficientemente narradores" (Kehl, 2006).

A falta de acesso ao capital cultural produz violência simbólica: por um lado, o Estado não garante direitos culturais básicos; por outro, o discurso social dominante submete uma parcela dos sujeitos a ocuparem lugares marginais (Rosa, 2002).

Petit (2009), a partir do seu trabalho com bibliotecas públicas e acesso à leitura em populações segregadas no mundo, afirma que, por meio da leitura, crianças, jovens e adultos podem estar mais preparados para resistir aos processos de marginalização. Para a autora (Petit, 2013), acessar bens e direitos culturais - como educação, oportunidade de aprendizado de uma língua entre outros - é o que propicia a abertura a um tempo de fantasia, sem o qual não há pensamento, nem criatividade.

A prática da leitura ajuda a construção de si e a imaginar outras possibilidades, ajuda a sonhar. Para Petit (2013), a leitura, ao abrir caminhos para o sujeito, ajuda a pensar, a ser mais autônomo e a não permanecer objeto de um discurso repressivo e violento. A leitura exerce um papel na elaboração da subjetividade quando oportuniza a construção de uma identidade singular e uma abertura a novas sociabilidades, possibilitando outros espaços de pertencimento e novas posições na linguagem, no simbólico e no laço social. A autora aponta, ainda, que, nos países democráticos - ou aqueles que se dizem democráticos -, os poderes públicos deveriam criar as condições e oportunidades necessárias para que cada sujeito tenha seus direitos culturais garantidos. Lamentavelmente, esse não é um direito garantido a todos no Brasil (Souza, 2017).

 

Uma Abertura: Dandara dos Palmares

Os efeitos do branqueamento na arte, apontados por Cuti (2017), não poderiam deixar de estar presentes na nossa proposta de oferta de literatura. Apesar de buscar abrir espaço para a construção do acesso ao capital cultural, tendo a leitura e a contação de histórias como uma via de trabalho com as crianças, a oferta da literatura nos primeiros tempos do nosso projeto, sem o percebermos, privilegiou o eurocentrismo.

Trabalhamos sempre, e com certo sucesso, tanto na perspectiva da elaboração dos conflitos decorrentes da violência cotidiana por parte das crianças, como da oferta de outros espelhos com os quais as crianças pudessem se identificar, além de oferecer um solo simbólico com o qual construir outras palavras e histórias para suas vidas. No entanto foi necessário escutar o apontamento de quem sofria o racismo "na própria pele" para que incluíssemos entre os contos, histórias com personagens negros, histórias de homens e mulheres negros, contos da cultura negro-brasileira e negro-africana.

Além disso, foi também ressaltada a violência produzida em função da ausência de representatividade negra nos brinquedos oferecidos às crianças. Outros modos de escutar e de ler os encontros com as crianças foram permitindo que a equipe se interrogasse sobre um tema tão necessário.

O convite à Dandara para compor o dia de contar histórias foi um dos movimentos da equipe, uma vez que ampliou as reflexões sobre o racismo. Além da linguagem oral, começamos a dispor de contos protagonizados por personagens negras, apostando na literatura e na democratização dos livros, não somente de histórias africanas ou sobre a África, tampouco somente no mês de novembro.

 

Era uma vez...

Havia uma história para contar antes da história. Em uma folha grande, um mapa: o continente africano, o oceano e o Brasil. O portão nos separava das crianças que nos aguardavam, era o primeiro tempo daquela estratégia de Contação. A África mostramos. Contamos que, naquele continente, havia um povo livre, com reis e rainhas, com uma cultura e conhecimento. Falamos das pirâmides, da matemática e de suas riquezas. Certo dia, outro povo chegou e os levou contra sua vontade para trabalhar nas suas terras como pessoas escravizadas. "Alguém sabe o que é escravidão?", indagamos. Falamos de situações nas quais as pessoas eram forçadas a trabalhar para outra pessoa contra sua vontade e sem receber nada em troca, sem liberdade. Uma criança contou que sua mãe trabalhava todos os dias.

Hesitamos e deixamos em suspenso a questão sobre a dignidade do trabalho e a garantia dos direitos trabalhistas em nosso país. Da África, o mapa conduzia até o Brasil, onde se encontravam as pessoas escravizadas, aprisionadas. Também havia estratégias de resistência: um quilombo, a capoeira e o batuque. Ali começaria nossa história: Dandara dos Palmares.

Dandara dos Palmares foi uma mulher negra, líder, forte e corajosa que lutou pela liberdade e contra o racismo até o fim de sua vida. Era a face feminina do quilombo dos Palmares e esposa de Zumbi dos Palmares. Lutou para proteger os seus, desafiava o sistema colonial escravagista e organizava ataques. As crianças nunca haviam escutado sobre ela, não conheciam Dandara dos Palmares.

Em formato de cordel, sua história foi narrada. Em outros momentos desse ano, 2017, já tínhamos trazido literatura com personagens negras que abordavam a questão do cabelo e da cor da pele. "Nego preto" foi o adjetivo que um menino utilizou para agredir outro em um turno de contação de histórias. Quem recebeu a agressão silenciou.

Escutar essa agressão entre as crianças, assim como outras discriminações raciais, como se tratasse de um insulto qualquer, seria um modo de encobrir a desigualdade racial, uma das faces da violência que marca a vida de muitas crianças e seus familiares. Assim, a literatura entrou como dispositivo de trabalho também em relação a essas agressões.

 

Contar e Brincar "de" e "com" Dandara

Combinamos que, nesse dia, para contar essa história, precisaríamos da ajuda das crianças. A cada três versos, cantaríamos o refrão: "Dandara, princesa preta, Dandara, princesa forte, Dandara e o povo negro, contra o racismo até a morte". Nós cantávamos e elas repetiam, linha por linha. "Princesa preta" parecia, para as crianças, algo difícil de cantar em um primeiro momento, como uma palavra que não fosse boa. Logo aprenderam todo o refrão e cantavam. Quando repetiam, se defrontavam com essa questão: cantar ou não cantar essas palavras? Tratava-se de um contexto relativamente novo para elas.

Ao fim da narrativa, brincamos muito. Em uma grande área do pátio, se lia "Quilombo dos Palmares" e, do lado oposto, "Senzala". Era uma brincadeira de pega-pega que incluía dois feitores, duas Dandaras, e as outras crianças eram o povo negro em luta pela liberdade. As Dandaras - e também os Zumbis dos Palmares - libertavam o povo negro dos feitores. O quilombo era o "salve", lá as crianças não podiam ser pegas. Boa parte da manhã se desdobrou com essa brincadeira, por meio da qual trazíamos os elementos da história, tecendo a trama complicada da desigualdade social e racial.

Tanta correria em uma manhã quente de sol as fez pedir por água. Depois de beber, as crianças começaram a "desmaiar", deitavam-se no chão e fechavam os olhos. "O que será que aconteceu com essas crianças? Estão muito cansadas?", perguntamos. Silêncio em resposta. Algumas crianças, que não desmaiaram, pegaram um giz e foram contornando todos os corpos, um a um. Os pequenos desmaiados mal se mexiam, abrindo os dedos ou os braços para ter o seu contorno do corpo desenhado. Os corpos das contadoras também foram traçados no chão por um pedido das crianças. "O que é possível fazer com os corpos que temos? O que mais podemos desenhar?", intervimos. Olhos, boca e nariz foram inscritos nos corpos ao chão. "E o cabelo, vamos desenhar?", questionamos.

Uma menina negra, que é alvo frequente de racismo por parte das outras crianças, pela cor de sua pele, pelos seus traços e pelo seu cabelo cacheado, diz "Ah, sôra, o cabelo não!". Ao que respondemos "Olha, o teu cabelo é igual ao de Dandara", e uma contadora artista foi desenhando os cachos, com flores atrás da orelha. Em silêncio e atenta, a menina observava. Olhou o desenho, pensou. Parecia ter gostado e concluiu: "Meu cabelo é lindo, né, sôra?!". O dia foi chegando ao fim, as crianças foram ajudando a organizar algumas coisas, outras iam embora, tranquilamente. Podíamos escutá-las cantarolar o refrão de Dandara, a princesa preta e forte.

Nas semanas seguintes, escutamos o refrão inventado para contar a história de Dandara dos Palmares em outras atividades oferecidas pelo projeto. Dandara fez marcas, acariciou o corpo das crianças, permitindo-lhes se reinscrever nesse espaço denominado por Rodulfo (2004a de corpo materno. Corpos que foram acariciados por mãos negras e carregados subjetivamente aos espelhos literários, nos quais os esperavam uma princesa guerreira, libertadora, de cabelos negros, lindos e soltos. Assim, libertaram-se os cabelos "ruins", os cabelos "feios" que, por serem negros, crespos e de herança pobre e escrava, nunca haviam alcançado a liberdade. Os cabelos e as palavras foram libertos. A palavra "negro" positivada, como sustenta , p.211), "cumpre a função de exorcizar o racismo convicto, o enrustido e a anestesia de suas vítimas. É só dizer a palavra, sem medo de ser feliz".

Contamos a história de Dandara novamente. Conforme aponta Petit (2009), seria uma ingenuidade pensar que a leitura poderia reparar os furos do tecido social, esburacado pelas violências que descrevemos ao longo deste trabalho: desigualdade social e racial; privação dos direitos básicos; agressão e assédio sexual; truculência policial; a crueza do tráfico de drogas; entre outras. Como a escrita que solicita uma passagem pelo brincar com as letras, a literatura inaugura também outro jogo. O que entra em cena na multiplicidade da experiência de leitura é certo "jogo" no tabuleiro social, no dizer da autora, contribuindo para que haja mais autores de seus destinos nos bairros, nas cidades, nos países. Por isso, não é algo que diz respeito somente a um destino particular ou uma questão social pontual, mas ter seus direitos culturais garantidos está próximo à democratização profunda de uma sociedade. Não há cidadania sem o trabalho do pensamento.

Nesse sentido, o que entra em jogo no trabalho da leitura, para Petit (2009), é a própria identidade e o modo de representação de si: construir-se. Segundo a autora, a violência e os fundamentalismos religiosos, que são comumente atribuídos à questão socioeconômica, também estão apoiados na precariedade do sentimento de identidade. Dessa forma, estar destituído de referências culturais facilita a exposição a uma relação totalizadora, que oferece "próteses para a identidade" (Petit, 2009, pp. 72).

De acordo com Silva (2017), em relação ao racismo, há um afastamento de valores originais, levando o negro a tomar o branco como modelo de identificação, incorporando padrões e valores eurocêntricos ou externos à sua cultura, o que o expropria de seus símbolos e de suas criações culturais. Para não estar submetido à constante humilhação de se pensar e se definir com um valor negativo - provocada pelo racismo e, também, pelo preconceito de classes -, parece mais tentador encontrar-se nas imagens importadas, que prometem reconstruir os pedaços estraçalhados de modo mágico. Silva (2017)aponta como consequência do racismo o custo emocional da sujeição, da negação e do massacre de sua identidade original, de sua identidade histórico-existencial.

As crianças negras carregam os significados do racismo antes mesmo de nascerem, pois estão marcadas pelas experiências de seus pais. O racismo à brasileira é negado, ninguém o vê, porém provoca efeitos devastadores no sujeito, na construção da sua identidade e nos processos de identificação, tal como propõe Silva (2017). O discurso hegemônico, do branco, compõe os processos de identidade e identificação, marcando psiquicamente o impedimento e a manutenção de um lugar social: subordinação e inferiorização nas relações sociais e pessoais. O menino que foi chamado de "nego preto" silenciou-se, desprovido de palavras que fabricassem outra significação para o ato violento, efeito nefasto e recorrente entre os pequenos, colocando à prova suas potencialidades, o seu valor.

A mesma crueza da discriminação racial ensaiou-se com a menina. A equipe já estava com a escuta mais sensível a essa questão. Ressaltamos a importância da representatividade negra na equipe, que disparou o processo de olhar para essa diferença e validar a invisibilidade do racismo à brasileira, que, por vezes, cala a todos e, silenciados, repete-se na produção de uma surdez para as questões raciais no processo de escuta. Foi preciso considerar o impacto do preconceito racial na construção da subjetividade brasileira. Cantarmos todos juntos as palavras do refrão de Dandara, a "princesa preta e forte", porque, como reitera Cuti (2017), pronunciar as palavras, tematizar o racismo, liberta a todos brancos, negros e mestiços. Soltar as palavras e deixar que inscrevam outras marcas, ressignificando as imagens negativas que a discriminação introjeta sobre ser negro, é o que se faz necessário para um reposicionamento de todos.

Petit (2009) escreve sobre a invenção de um caminho singular que se inaugura a partir da leitura e dos sentidos que ela abarca, pois permite ao sujeito encontrar palavras para se contar, diz ela, palavras para contar-se bem. A autora problematiza esse tema, pois não se trata de uma identidade imutável, aferrada em valores e sentidos fechados. É o oposto que entra em cena, justamente pela potência de brincar com as palavras, tabuleiro do jogo literário. É de uma identidade em aberto que Petit fala, que não exclui, mas que segue em construção, escrevendo e inscrevendo marcas.

Para Petit (2009), quanto mais capazes os sujeitos estiverem de nomear, mais infalíveis serão em viver e transformar o mundo, ao passo que, na ausência de palavra para pensar sobre si, para manifestar a angústia, a raiva e os sonhos, o que resta a falar é o corpo. São os contornos dos corpos estirados no chão que as crianças desenham. Após escutar a história de Dandara, que põe fim a sua vida para não ser escravizada novamente, é possível brincar de pega-pega. A brincadeira convida a um jogo de corpo, que captura e deixa fugir. Ainda assim, os traços do contorno no chão, dificilmente não recordam corpos sem vida, assassinados, atropelados, uma cena de crime, uma injustiça, um ato extremo de violência. Há uma borda para um corpo, que pode recobri-lo de sentidos. É preciso do outro e de sua escuta para provocar o ato de nomear.

As marcas que aparecem nos traços das crianças e a pluralidade de sentidos que a eles podem ser atribuídos também podem ser as marcas que elas carregam em seu próprio corpo, ainda em construção. Para a criança ser mais autora de sua história, precisa de referências simbólicas e de outro que reconheça suas criações e auxilie no processo de significação.

De acordo com Rodulfo (1990, é função do analista intervir nas identificações que estão se processando na infância quando essas se cristalizam nas construções do superego parental, não sendo favoráveis ao sujeito. Se ampliarmos o conceito de superego parental, introduzindo a ideia de outras referências imaginárias e simbólicas, podemos afirmar que é função do analista intervir quando as condições são desfavoráveis aos sujeitos que escutam.

Sabemos que a desigualdade social e racial fragiliza o acesso das crianças ao mundo da fantasia, da escrita, da leitura, da cultura, conforme discutimos. Há, por vezes, uma precariedade na capacidade de simbolizar, imaginar, ocupar outro lugar no mundo. Onde enxergamos violência e sofrimento, é preciso usar mais palavras. A leitura é capaz de oferecer voz ao sofrimento, dar forma aos sonhos e desejos. Dandara convidou os pequenos a dar forma a um corpo que historicamente é massacrado. Inscreveu-se pelas ruas da comunidade, seu nome foi pronunciado a céu aberto para quem quisesse ouvir. Dandara carregou para aquele pequeno espaço da cidade a função que ela tem na história.

Mas o conto não termina ali. Dandara abriu o caminho para outros contos, para que outros e outras personagens, negros e negras, entrassem em cena ao lado dos que já costumavam habitar o espaço. Deu-se lugar aos contos sobre os orixás e sobre princesas negras, num processo de reposicionamento de lugares na história das crianças e das contadoras, psicanalistas, dos corpos negros e brancos, das histórias de luta que a todos libertam.

Os traços que contornaram Dandara continuam desenhando e questionando a cor da pele. Num outro dia, enquanto desenhavam, uma criança pede para a outra alcançar o lápis cor da pele. Ao que essa última responde: qual cor de pele? Esse fato fez com que a equipe se perguntasse pela paleta de cores dos lápis que havia no espaço e introduzisse a caixa de lápis com várias cores de pele.

Finalizamos esta seção com as palavras de uma das crianças, num momento de discussão e briga, quando novamente retorna à cena o "nego preto" utilizado como agressão. A criança agredida não entra na briga e responde: "qual cor?" e, colocando seu braço ao lado do braço do outro, diz "cada um tem uma cor diferente". Consideramos que há aqui uma intervenção que mostra um deslocamento em relação aos sentidos que emergiam cristalizados em outros momentos.

 

Conta outra vez: Um Fim que Não Termina

Do mesmo modo que as crianças solicitam a repetição das histórias, nós teremos que repetir nossas interrogações, introduzir novamente os contos, nos questionarmos sobre nossa escuta, nesse processo tão doloroso para todos que é o enfrentamento do racismo, especialmente quando ele se coloca como resistência na escuta do analista. Precisaremos contar uma e outra vez nossas histórias para, a cada vez, colocar uma diferença na repetição.

A apresentação das oficinas de literatura e contação de histórias como dispositivo clínico em situações de violência tem se mostrado uma intervenção eficaz ao longo dos anos, porém silenciando a desigualdade racial. À medida que o silêncio emergiu, nossa escuta tem sido colocada em análise, uma análise de processo, da qual este texto é somente um percurso.

Do processo analítico aqui apresentado, destaca-se o racismo estrutural presente no Brasil, o qual atinge não somente as pessoas no seu cotidiano, mas, sobretudo, a produção cultural e científica. As nossas ferramentas de intervenção, isto é, a psicanálise e a literatura, não estão fora dessa cegueira e surdez. Na experiência aqui narrada, o silêncio frente ao racismo se colocou no campo da escuta quando as agressões raciais entre as crianças foram indiscriminadas de outras agressões, mas, fundamentalmente, quando nossa escuta não se direcionava para os efeitos produzidos pelas diferenças raciais. Uma resistência que precisou de um tempo de elaboração para se deslocar e produzir intervenções.

No campo da literatura, a ausência de referências negro-brasileiras e negro-africanas ecoou a cegueira em face da desigualdade racial. Fez parte do processo de elaboração da resistência na nossa escuta, a procura por contos e histórias que as incluíssem. Foi assim que outras narrativas habitaram o espaço das oficinas, permitindo às crianças falar sobre os efeitos do racismo. Efeitos marcados em seus corpos e por elas não percebidos. Efeitos que produziam adjetivos que partiam das características fenotípicas e se estendiam a outros âmbitos da vida. O "nego" era sempre "feio" e "sujo". O cabelo "ruim", que precisava vir sempre amarrado, adjetivou e amarrou outros processos, por exemplo, o da escrita e da leitura: letra ruim, burrice por "não ler direito", interrupção do processo de alfabetização.

Recortamos, neste texto, a contação da história de Dandara dos Palmares, princesa negra envolvida na luta pela libertação dos escravos, analisando os efeitos nos processos de subjetivação que essa história produziu, quando se apresentou como um espelho que valorizou o corpo e a ação dos negros e das negras. Assim, no espaço especular puderam surgir outras Dandaras, dando lugar a novos processos de simbolização: numa das oficinas, uma menina acrescenta Dandara ao dizer seu nome; em outra, questiona-se o nome do lápis "cor da pele". Enfim, é possível às crianças falar das diferenças de cor, de cabelo, de vida.

Além disso, se o efeito foi subjetivante para as crianças, o foi também para equipe. À equipe também foi possível falar sobre o racismo e a branquitude, se desacomodar e incomodar-se, estudar, debater e discutir. Nesse processo, Dandara libertou a todos os participantes da oficina, ecoando a afirmação de Cuti (2017) quando diz que soltar a palavra "negro" produz um reposicionamento de todos.

Assim, destacamos que há, neste texto, um fim que não termina. Apostamos e desejamos que os psicanalistas brasileiros continuem teorizando a partir do trabalho com a resistência na escuta da desigualdade racial para que a psicanálise possa ampliar as condições que foram as do seu nascimento (Derrida, 2001), incluindo as condições culturais contemporâneas. Para isso, será necessário descolonizar a escuta e, como demandado pelas crianças, contar "de novo".

 

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Endereço para correspondência:
Marina Gregianin Rocha
E-mail: marinagregianin@gmail.com

Marina da Rocha Rodrigues
E-mail: marinarocharodrigues@gmail.com

Sandra Djambolakdjian Torossian
E-mail: djambo.sandra@gmail.com

Ana Maria Gageiro
E-mail: ag3465@gmail.com

Recebido em: 05/02/2019
Revisado em: 19/11/2019
Aceito em: 25/06/2020
Publicado online: 28/11/2020

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