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versão impressa ISSN 2359-0769versão On-line ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.21 no.3 Fortaleza set./dez. 2021

https://doi.org/10.5020/23590777.rs.v21i3.e8676 

DOSSIÊ: RESILIÊNCIA E DEFICIÊNCIA

 

Resiliência e adoção de crianças com deficiência: estudo de casos múltiplos

 

Resilience and Adoption of Children with Disabilities: A Multiple Case Study

 

Resiliencia y Adopción de Niños con Discapacidad: Estudio de Casos Múltiples

 

Résilience et Adoption d'Enfants Handicapés: Étude de Cas Multiples

 

 

Elisa Avellar Merçon de VargasI; Danielly Bart do NascimentoII; Edinete Maria RosaIII

IProfessora no Departamento de Desenvolvimento Humano e Estudos da Família University of North Carolina at Greensboro (UNCG) - USA. Doutorado em Desenvolvimento Humano e Estudos da Família pela UNCG
IIMestra e Doutora pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES)
IIIDoutora em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo (USP) e Pós-doutorado em Psicologia pela University of North Carolina at Greensboro (UNCG) - USA. Atualmente é Professora Titular da Universidade Federal do Espírito Santo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Ainda que possa haver dificuldades ligadas ao cuidado e estigmas de pessoas com deficiência, devem-se considerar características individuais e contextuais que potencializam o desenvolvimento e a resiliência nesse contexto. O presente estudo visou explorar processos de resiliência para lidar com adversidades vivenciadas por duas famílias adotantes de filhos com deficiência. Realizou-se um total de cinco entrevistas neste estudo de casos múltiplos: duas com as mães de cada família e uma com duas profissionais da escola que uma das crianças frequentava. As entrevistas foram gravadas e transcritas na íntegra. Os dados foram analisados a partir de análise de conteúdo e as categorias a partir dos dados emergidos das entrevistas e guiados pela perspectiva sobre resiliência, utilizada na presente pesquisa. Os resultados apontaram para a vivência de adversidades como falta de estímulos e cuidados à criança na instituição de acolhimento, dificuldades no processo de adoção, cansaço parental, dificuldades no cuidado da criança, circunstâncias individuais e fatores contextuais (por exemplo, o preconceito). Por outro lado, observaram-se diversos processos promotores de resiliência, como o vínculo e afinidade inicial com a criança, estimulação da criança, apoio de familiares e profissionais, experiência prévia com crianças com deficiência, características pessoais e contextuais. Esses processos contribuíram positivamente para o desenvolvimento e condições de saúde das crianças, bem como para a formação de vínculos afetivos. Assim, deve-se promover uma nova cultura da adoção que priorize as necessidades das crianças, compreendendo que adotar uma criança com deficiência é dar a ela a oportunidade de se superar e desenvolver o seu potencial.

Palavras-chave: adoção; deficiência; resiliência; adversidades.


ABSTRACT

Even though there may be difficulties linked to the care and stigma of people with disabilities, individual and contextual characteristics that enhance development and resilience in this context should be considered. The present study aimed to explore resilience processes to deal with adversities experienced by two adoptive families with children with disabilities. A total of five interviews were conducted in this multiple case study: two with the mothers of each family and one with two school staff which one of the children was attended. The interviews were recorded and transcribed in full. The data were analyzed using content analysis and the categories were constructed from the data emerging from the interviews, and then guided by the perspective on resilience used in the present research. The results pointed to the experience of adversities such as lack of encouragement and care to the child while in institutional care, difficulties in the adoption process, parental fatigue, difficulties with child care, individual circumstances, and contextual factors (e.g., prejudice). On the other hand, several processes that promoted resilience were observed, such as the bond and initial affinity with the child, the child's stimulation, support of family and professionals, previous experience with children with disabilities, and personal and contextual characteristics. These processes contributed positively to the children's development and health conditions, beyond the formation of affective bonds. Thus, a new culture of adoption that prioritizes the needs of children should be promoted, through the idea that adopting a child with a disability allows the opportunity to excel and develop to his/her potential.

Keywords: adoption; disabilities; resilience; adversities.


RESUMEN

Aunque pueda haber dificultades relacionadas a la atención y estigmas de personas con discapacidad, se deben considerar características individuales y de contexto que potencian el desarrollo y la resiliencia en este contexto. El presente trabajo tuvo como objetivo explorar procesos de resiliencia para lidiar con adversidades vividas por dos familias adoptantes de hijos con discapacidad. Fueron realizadas un total de cinco entrevistas en este estudio de casos múltiples: dos con las madres de cada familia y una con dos profesionales de la escuela que uno de los niños frecuentaba. Las entrevistas fueron grabadas y transcritas por completo. Los datos fueron analizados a partir de análisis de contenido y las categorías a partir de los datos encontrados en las entrevistas y guiados por la perspectiva sobre resiliencia, utilizada en la presente investigación. Los resultados indicaron para la experiencia de adversidades como falta de estímulo y cuidados con el niño en la institución de acogida, dificultades en el proceso de adopción, agotamiento parental, dificultades en cuidar al niño, circunstancias individuales y factores contextuales (por ejemplo, el prejuicio). Por otro lado, fueron observados distintos procesos promotores de resiliencia, como el vínculo y afinidad inicial con el niño, estimulación del niño, apoyo de familiares y profesionales, experiencia previa con niños con discapacidad, características personales y de contexto. Estos procesos contribuyeron positivamente para el desarrollo y condiciones de salud de los niños, como también para la formación de vínculos afectivos. Así, se debe promover una nueva cultura de la adopción que priorice las necesidades de los niños, comprendiendo que adoptar un niño con discapacidad es darle la oportunidad de superarse y desarrollar su potencial.

Palabras clave: adopción; discapacidad; resiliencia; adversidades.


RÉSUMÉ

Bien qu'il puisse y avoir des difficultés liées aux soins et à la stigmatisation des personnes handicapées, les caractéristiques individuelles et contextuelles qui améliorent le développement et la résilience dans ce contexte doivent être prises en compte. La présente étude visait à explorer les processus de résilience pour faire face aux adversités vécues par deux familles adoptantes d'enfants handicapés. Au total, cinq entretiens ont été réalisés dans cette étude de cas multiples : deux avec les mères de chaque famille et un avec deux professionnels de l'école où étudiait l'un des enfants. Les entretiens ont été enregistrés et retranscrits intégralement. Les données ont été analysées sur la base d'une analyse de contenu et de catégories basées sur les données issues des entretiens et guidées par la perspective sur la résilience utilisée dans cette recherche. Les résultats ont mis en évidence l'expérience d'adversités telles que le manque de stimulation et de soins pour l'enfant dans l'institution d'accueil, les difficultés dans le processus d'adoption, la fatigue parentale, les difficultés dans la garde des enfants, les circonstances individuelles et les facteurs contextuels (par exemple, les préjugés). D'autre part, plusieurs processus en favorisant la résilience ont été observés, tels que le lien et l'affinité initiale avec l'enfant, la stimulation de l'enfant, le soutien des membres de la famille et des professionnels, l'expérience antérieure avec les enfants handicapés, les caractéristiques personnelles et contextuelles. Ces processus ont contribué positivement au développement et aux conditions de santé des enfants, ainsi qu'à la formation de liens affectifs. Ainsi, il faut promouvoir une nouvelle culture de l'adoption qui priorise les besoins des enfants, en comprenant qu'adopter un enfant handicapé, c'est lui donner l'opportunité de se dépasser et de développer son potentiel.

Mots-clés: adoption; handicap; résilience; adversités.


 

 

Adoção de Crianças com Deficiência

No Brasil, a adoção é regulamentada pela Lei n. 8.069 de 13 de julho de 1990, sofrendo várias alterações ao longo dos anos. Desde a Lei n. 12.010 de 3 de agosto de 2009 estão previstas, pelo Art. 87 do parágrafo VII, campanhas que estimulem o acolhimento de crianças e adolescentes com deficiência, além do Art. 97 que instituiu a obrigatoriedade do postulante de participar de curso preparatório que promova as adoções preteridas (como de crianças maiores e adolescentes, adoção inter-racial, de crianças com deficiência e grupos de irmãos). No que se refere às adoções de crianças com deficiência, destaca-se a Lei n. 13.509 de 22 de novembro de 2017, na qual o § 15 do Art. 50 assegura prioridade no processo adotivo a postulantes interessados em adotar criança ou adolescente com algum tipo de deficiência.

Essa medida é importante considerando a baixa disposição para adoção de crianças ou adolescentes com tais características (Bussinger, Merçon-Vargas, Nascimento, & Rosa, 2018; Silva, Cavalcante, & Dell'Aglio, 2016), apesar de essas comporem cerca de 25% das crianças aptas para adoção (Mozzi & Nuernberg, 2016). Por exemplo, Silva, et al. (2016), analisando postulantes interessados em adoção do Cadastro Nacional de Adoção (CNA) entre 2008 e 2012, encontraram que apenas 22% estavam dispostos a adotar criança ou adolescente com deficiência. Esses resultados foram corroborados por Bussinger et al. (2018) com candidatos à adoção entre 2005 e 2018; destes apenas 5,68% aceitavam crianças com deficiências moderadas e com condições de saúde tratável e apenas 1% aceitavam crianças com deficiência e condições de saúde graves. Além disso, estudos internacionais sugerem que crianças com deficiência estão mais sujeitas a uma interrupção da adoção (e.g., Kim, Piescher, & LaLiberte, 2019), apesar de outros estudos apontarem que a adoção de crianças com deficiência não estava ligada ao comprometimento dos pais adotivos ou à dissolução da adoção (e.g., Liao, Dababnah, & Park, 2017). Segundo Burge, Burke, Meiklejohn, e Groll, (2016). existe uma hierarquia de preferências quando se pensa na característica de crianças adotivas, que podem ser classificadas na seguinte ordem descendente: preferências por bebês brancos ou bebês; crianças um pouco mais velhas saudáveis; crianças saudáveis, irmãos ou etnias minoritárias; e, por último, crianças com deficiência.

Silva, Vitorino, e Portes (2019), no intuito de compreender por que as pessoas não desejam adotar crianças com deficiência, realizaram um estudo com nove casais que restringiram essa característica no perfil, quando estavam no processo de adoção. Os resultados mostraram que, embora acreditassem que crianças com deficiência são amáveis e carinhosas, esses pais consideravam que há mais dificuldades do que facilidades para lidar com essas crianças. Dentre as dificuldades estavam: falta de tempo, a dependência da criança, limitações financeiras, despreparo, medo, insegurança e preconceito do casal e das demais pessoas com quem interagem. A visão de que crianças com deficiência são limitadas e incapazes deixava nos pais o medo de que as demandas em relação aos cuidados pudessem interferir de forma negativa na rotina da família em áreas de suas vidas, como o trabalho, por exemplo. Sobre isso, resultados semelhantes foram encontrados na dissertação de mestrado de Oliveira (2020).

Além de buscar dar visibilidade a grupos de crianças aptos para adoção "menos desejáveis", a Lei de 2017 buscou otimizar e acelerar os processos de adoção, já que no Brasil esses processos costumam ser longos e burocráticos (Bortolatto, Loos, & Delvan, 2016; Costa & Kemmelmeier, 2013). Por exemplo, dados do estudo de Costa e Kemmelmeier (2013) com seis postulantes a adoção indicaram que os participantes acreditavam que a demora do processo jurídico para a adoção era um descaso da justiça em relação às crianças em acolhimento. Além disso, os participantes do estudo temiam em demonstrar seu desagrado com a justiça, pois acreditavam que pudessem ser prejudicados em seus processos adotivos.

Entretanto, como há poucos postulantes interessados em crianças com deficiência, o processo de adoção de crianças com essas características já podia ocorrer mais rápido em alguns casos do que os processos de crianças que não contemplam esse perfil (mesmo antes da Lei n. 13.509 de 22 de novembro de 2017). É o que mostrou o estudo de Mozzi & Nuernberg, 2016), no qual pais e mães de 11 famílias entrevistadas relataram que o processo adotivo foi do tempo mínimo para a formalização da adoção para as famílias que já conheciam a criança, e até 18 meses para famílias que não conheciam. Outro fator que acelerou o processo adotivo das famílias no estudo de Mozzi e Nuernberg foi a recusa de postulantes que ocupavam as primeiras posições na lista de espera por não estarem disponíveis para oferecer o suporte necessário que a criança necessitava em função de suas condições de saúde.

A busca por crianças com deficiência também deve ser compreendida em relação às motivações para adoção e as características dos pais adotivos, o que pode estar relacionado às formas de enfrentamento das potenciais adversidades vividas e a formação de vínculos na família. Dentre as motivações apontadas por alguns estudos estão: o desejo de adotar (Fonsêca, Santos, & Dias, 2009); saber que a criança passou por maus tratos e preservar o seu bem-estar físico e psíquico (Denby, Alford, & Ayala, 2011; Fonsêca et al., 2009); reconhecimento da adoção como uma das possibilidades de exercer a paternidade; o contato prévio com a criança possibilitando a formação de vínculo antes do processo adotivo; convivência prévia da família com pessoas com deficiência (Mozzi & Nuernberg, 2016); conhecer pessoas que foram educadas em acolhimento institucional; e o fato de crianças com deficiência serem mais preteridas nas adoções (Denby et al., 2011).

De acordo com Denby et al. (2011), entre as características pessoais presentes nos pais que adotaram crianças com deficiência estavam a paciência, persistência, esperança e crença na decisão de adotar uma criança. Outro fator motivacional importante foi o apoio emocional das famílias extensas e amigos próximos, os quais contribuíram para dar suporte durante a espera da criança no processo adotivo para que pudessem permanecer no processo e enfrentar o desgaste decorrente dele. Os pais entrevistados por Mozzi & Nuernberg (2016) destacaram alguns recursos necessários para o cuidado com as crianças com deficiência, como: recursos financeiros, tempo disponível, tecnologias assistivas e acompanhamento profissional com médicos, fisioterapeutas e fonoaudiólogos, além da possibilidade de poder contar com uma rede pública ou privada de saúde.

Apesar desses fatores positivos, vários autores também destacaram algumas dificuldades vivenciadas pelas famílias que adotaram crianças com deficiência. Dentre essas dificuldades estavam: encontrar uma escola inclusiva de acordo com as necessidades da criança (Mozzi & Nuernberg, 2016) e dificuldades em encontrar pessoas da rede social ou profissionais especializados que pudessem contribuir no cuidado com a criança (Lightburn & Pine, 1996; Mozzi & Nuernberg, 2016). Outras dificuldades foram a demora no processo adotivo, preconceito social, a não aceitação da adoção por parte de um dos cônjuges (Fonsêca et al., 2009), baixa condição socioeconômica (Fonsêca et al., 2009; Lightburn & Pine, 1996) e falta de informações sobre as condições de saúde da criança com diagnósticos incompletos e até incorretos (Lightburn & Pine, 1996). Além disso, o estudo de Liao et al., (2017), com famílias de Illinois nos Estados Unidos que tinham adolescentes adotivos (entre 12 e 17 anos) com deficiência, também apontou como fatores dificultadores os problemas de saúde crônicos e problemas comportamentais; estes associados ao estresse parental.

Apesar dessas dificuldades, os estudos sobre o tema apontaram que as crianças adotivas com deficiência, em geral, se adaptaram bem à suas famílias adotivas. Por exemplo, os pais entrevistados no estudo de Fonsêca et al. (2009) relataram satisfação em relação a experiência com a adoção; para eles a oportunidade de conviver com a deficiência os possibilitou formar uma nova concepção sobre normalidade, dar melhores condições de vida para as crianças e desenvolver amor por elas. Além disso, eles destacaram melhoras nas condições de saúde dos filhos a partir de intervenções médicas, que variaram conforme o grau de comprometimento das crianças.

Um dos fatores indicados como importantes para o resultado positivo desse processo foi o fato de a maior parte das crianças nos estudos terem sido adotadas quando bebês. Além disso, o tempo de convivência e interação com as crianças, que pode ser maior em decorrência dos cuidados necessários dispensados a elas, pode ter favorecido a formação do vínculo entre pais e filhos (Fonsêca et al., 2009; Mozzi & Nuernberg, 2016). No entanto, é importante compreender mais a fundo quais são os processos de resiliência desencadeados frente às adversidades vividas por essas famílias que promovem o desenvolvimento positivo das crianças, bem como a formação de vínculo afetivo.

 

Resiliência

Compreende-se a resiliência enquanto processo dinâmico, no qual o ambiente estabelece uma relação interdependente com o indivíduo que prossegue em seu desenvolvimento e se adapta mesmo em um contexto adverso (Bernard, 1999; Kaplan, 1999; Masten, 1999). Dessa forma, três características estão presentes no processo de resiliência: (a) a presença de uma ameaça ou risco para o desenvolvimento humano, (b) a superação da adversidade por meio da adaptação positiva e (c) a interação entre os mecanismos emocionais, cognitivos e socioculturais que atuam no desenvolvimento (Luthar, Cicchetti, & Becker, 2000).

A partir de tais características, devem-se compreender outros conceitos ligados à resiliência, como fatores de risco, vulnerabilidade, fatores de proteção e competência. Fatores de risco são situações desencadeadoras de comportamentos comprometedores da saúde, da adaptação ao contexto, do bem-estar e do desempenho social do indivíduo (Masten & Garmezy, 1985). Vulnerabilidade é a predisposição para desenvolver variadas formas de psicopatologias ou comportamentos não eficazes, ou a susceptibilidade para um resultado negativo no desenvolvimento (Pesce, Assis, Santos, & Oliveira, 2004). Por outro lado, fatores de proteção são compreendidos como aqueles que modificam ou alteram a resposta pessoal frente a algum risco que predispõe um resultado mal adaptativo, por exemplo: o estágio do desenvolvimento da criança, seu temperamento e a habilidade de resolução de problemas da pessoa (Rutter, 1985). Nesse sentido, compreender o conceito de competência se faz necessário, pois é a aquisição e o desenvolvimento de conhecimento, habilidade e/ou a capacidade de conduzir e direcionar o próprio comportamento em situações e áreas de desenvolvimento.

A adaptação positiva do indivíduo não é construída apenas por ele, mas a partir da inter-relação sistêmica presente no contexto (Masten, 2001). Ungar (2011) chama atenção para uma maior ênfase no papel das ecologias físicas e sociais no desenvolvimento positivo e para os aspectos contextuais que potencializam o desenvolvimento e a resiliência. Para esse autor, mais condições físicas e sociais ao redor dos indivíduos em risco fazem com que os recursos que eles precisam sejam utilizáveis. Assim, a resiliência não é simplesmente um traço pessoal que se pode supor que exista antecipadamente e que surge frente a fatores de risco preestabelecidos. A resiliência precisa ser compreendida a partir da interpretação da pessoa em relação às adversidades presentes em seu contexto, pois não há como estabelecer fatores de risco universais (Libório, Castro, & Coêlho, 2006).

Além disso, a resiliência é multidimensional, podendo ser pesquisada em grupos, como a família (Libório et al., 2006). McCubbin, Thompson, e McCubbin (1996) definiram a resiliência familiar como um processo de adaptação ocorrido a partir da experiência de eventos estressores. Já Walsh (1996) definiu a resiliência familiar como um processo de superação de adversidades internas e externas ao contexto familiar que resultam no crescimento de seus membros. Ungar (2011) menciona uma etnografia familiar relacionada aos recursos da comunidade encontrados e acessados pelas famílias. A experiência de ter uma criança com deficiência é um elemento importante para as famílias, que também vivem essa experiência, enfrentando barreiras e preconceitos (Mozzi & Nuernberg, 2016).

Assim, em geral, ao se pensar em resiliência, pensa-se em um processo que se dá frente às adversidades, tanto no âmbito individual como no familiar. Pode-se considerar tanto a deficiência quanto a adoção como potenciais fatores de risco na medida em que existem estigmas e preconceitos ligados a essas experiências. Ainda, pode-se considerar a falta ou limitação ao acesso de recursos necessários às pessoas com deficiência como fator de risco para a ocorrência de adversidades. Ou seja, considera-se que a deficiência e a adoção não são em si uma adversidade, mas sim os fatores sociais ligados a essas experiências. Com base nisso, é importante compreender não apenas as adversidades vividas por famílias que adotaram crianças com deficiência, mas também os processos de resiliência contribuintes para o desenvolvimento positivo e vinculação afetiva nessas famílias. O presente estudo, portanto, visou identificar e descrever (a) as adversidades vivenciadas por duas famílias que adotaram crianças com deficiência, (b) os processos de resiliência desencadeados para lidar com essas adversidades e (c) a percepção sobre o desenvolvimento das crianças e a formação do vínculo afetivo nessas famílias.

 

Método

A pesquisa se configurou como um estudo de casos múltiplos, composto por duas famílias que adotaram crianças com deficiência. Cada família foi tratada como uma unidade específica e buscando-se mostrar a vitalidade única de cada caso, sendo posteriormente observada no contexto geral das experiências da adoção e da deficiência (Stake, 2006). Com isso buscou-se destacar tanto aspectos semelhantes nas famílias como suas particularidades.

Participantes

Caracterização da família 1.

A família era composta pela mãe, (58 anos), e o filho adotivo (oito anos de idade). A mãe possuía especialização, trabalhava na área da saúde e tinha uma renda mensal de 15 a 20 salários mínimos. Apesar de morarem apenas a mãe e o filho, a avó frequentava a casa habitualmente. Além disso, a família contava, diariamente, com uma funcionária para os cuidados da casa e ajuda nos cuidados com a criança. O processo de adoção havia sido finalizado próximo dos dois anos da criança (ou seja, há cerca de seis anos no momento da entrevista), apesar de já haver a convivência desde os dois meses de idade da criança. Para a família 1, participaram ainda de entrevistas a professora e a supervisora da escola particular que o filho por adoção frequentava.

Caracterização da família 2.

A família era composta por mãe (34 anos), pai (34 anos), filho biológico (um ano e sete meses) e o filho adotivo (quatro anos). A mãe possuía curso superior incompleto e o pai ensino médio completo. A mãe não atuava profissionalmente e o pai trabalhava no setor de prestação de serviços. Eram casados há seis anos e possuíam uma renda mensal de um a três salários mínimos. No momento da entrevista (ano), a família havia finalizado o processo de adoção há cinco meses, apesar de já estarem em convivência com a criança pelo programa de apadrinhamento afetivo desde 2016.

Instrumento

O instrumento foi constituído de dois roteiros de entrevista para as mães e um roteiro para ser aplicado na escola, com a professora e a supervisora. Os três roteiros de entrevista foram elaborados para a presente pesquisa. O primeiro roteiro de entrevista com as famílias continha perguntas referente às: (a) características demográficas da família (composição familiar, profissão, idade da criança e das participantes, renda, etc.), (b) história da adoção (como aconteceu, idade da criança, diagnóstico da criança, motivação para adoção, processo judicial da adoção, etc.), e (c) adaptação e convivência familiar (adaptação inicial, rotina, interação, parentalidade, cuidados necessários, acompanhamento profissional, rede de apoio, percepções sobre o desenvolvimento da criança, etc.). As entrevistas nesse primeiro momento foram realizadas de forma narrativa, solicitando às participantes que contassem suas histórias. As narrativas foram complementadas com algumas perguntas (emergidas durante a entrevista) que objetivaram esclarecer a história contada.

O segundo roteiro de entrevista foi elaborado a fim de explorar questões específicas relacionadas às adversidades vividas e aos processos de resiliência da família. Nesse segundo momento de entrevista foram abordadas as seguintes temáticas: (a) conceito e percepções sobre resiliência e adversidades, (b) vivência de adversidades e situações estressantes, (c) estratégias de enfrentamento, (d) recursos pessoais e sociais para lidar com as dificuldades e demandas vindas da deficiência do filho e da adoção, (e) apoio profissional e social (e.g., amigos e familiares), (f) percepção sobre adversidades vivenciadas pelos filhos em diferentes contextos (e.g., escola, amigos, etc.), e (g) recursos pessoais e sociais dos filhos para lidar com as adversidades.

Para a entrevista realizada na escola utilizou-se um roteiro que consistia das seguintes temáticas: (a) adaptação escolar da criança, (b) vivência da criança na escola, (c) interação com colegas e profissionais, (d) o relacionamento família-escola, (e) adversidades e preconceitos vivenciados no contexto escolar, (g) recursos pessoais da criança para lidar com adversidades, (e) percepção dos processos de resiliência pela escola, e (h) recursos encontrados no contexto escolar que contribuem para lidar com adversidades e promover resiliência.

Procedimentos

A presente pesquisa faz parte do projeto intitulado Pelos caminhos da adoção: do interesse dos pretendentes ao convívio com as famílias adotivas. Este projeto teve início em agosto de 2015 com o objetivo de conhecer a experiência de pessoas adotantes e de crianças e adolescentes adotadas, bem como de suas vivências relacionadas ao estabelecimento de vínculos. Para tal, buscou-se acompanhar famílias adotantes nos dois primeiros anos de adoção. No projeto de pesquisa maior não havia previsão de acompanhamento das famílias que tinham adotado crianças com deficiência, por isso este estudo se constituiu à parte, sendo os dados coletados em somente dois tempos com intervalo de apenas 15 dias. Dessa forma, para a presente pesquisa e projeto mencionado acima, os entrevistados foram contatados a partir de uma lista levantada de famílias adotivas.

Após contato inicial com as mães, via telefone, e tendo elas concordado na participação do estudo, as pesquisadoras foram às suas residências para realização das entrevistas. Assim, a primeira entrevista foi precedida da apresentação do termo de consentimento livre e esclarecido, no qual constavam informações gerais da pesquisa e dos pesquisadores responsáveis. Respeitando os preceitos da Resolução nº 510 de 7 de abril de 2016 do Conselho Nacional de Saúde (CNS) (Ministério da Saúde [MS], 2016), foram-lhes assegurados a confidencialidade, o anonimato e o direito de desistir da pesquisa a qualquer momento. No termo também constava o contato do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Espírito Santo que aprovou o projeto sob o número: 1.579.323. As entrevistas duraram em torno de 25-50 minutos cada. A entrevista da professora e da supervisora foi realizada em conjunto nas dependências da escola logo após contato telefônico com a escola e teve duração de aproximadamente 30 minutos. Também a elas foram apresentados os termos de consentimento, realizando-se as entrevistas logo após as suas concordâncias com os termos.

No total foram conduzidas cinco entrevistas com quatro participantes. O pai de uma das crianças não pôde participar por motivos de trabalho e a outra família era monoparental. As famílias residiam em dois municípios distintos da região da Grande Vitória. Não foram conduzidas entrevistas com as crianças por impossibilidades cognitivas, como, por exemplo, e a fala da criança em uma das famílias. Na outra família decidiu-se não conduzir entrevista diretamente com a criança, pois a mãe ainda não havia explicitamente usado o termo adoção em conversas com a criança, apesar de ter contado a sua história e conversado sobre o tema em geral. No entanto, as crianças estiveram presentes em algumas entrevistas com as mães e foi possível observar a interação familiar.

Todas as entrevistas foram gravadas em áudio e transcritas na íntegra. A análise dos dados seguiu as orientações da análise de conteúdo apresentadas por Bardin (1977/2016), sendo seguidas as etapas de: (a) pré-análise; (b) exploração do material; e (c) tratamento dos resultados, inferências e interpretações. As categorias foram definidas a partir da reunião de conteúdos com similaridades semânticas emergidos das falas dos participantes (Bardin, 1977/2016). Para a criação de categorias utilizou-se uma combinação de estratégias dedutivas e indutivas (ou top-down e bottom-up; Shepherd & Sutcliffe, 2011), na qual os temas abrangentes foram primeiramente identificados e guiados pela perspectiva sobre resiliência que embasa a presente pesquisa (e.g., adversidades e fatores promotores de resiliência) e, em seguida, subtemas foram identificados e extraídos a partir dos dados (a posteriori) dentre cada uma das categorias mais abrangentes (e.g., dificuldades no processo de adoção e fatores circunstanciais). Assim, através da leitura exaustiva das entrevistas, foram destacados e codificados os principais temas emergidos, os quais foram organizados em quatro categorias abrangentes: histórico de adoção, adversidades, fatores promotores de resiliência, e resultados de resiliência. Em seguida, foram identificadas e codificadas subcategorias dentro de cada uma dessas categorias.

 

Resultados

Os dados foram organizados nos seguintes eixos temáticos: (a) histórico de adoção, (b) adversidades, (c) fatores promotores de resiliência e (d) resultados da resiliência. Cada um desses eixos temáticos é composto por unidades de significado emergidas das entrevistas, como pode ser visto no modelo conceitual disposto na Figura 1. Os resultados com base nas categorias e subcategorias encontradas em cada um dos eixos temáticos estão resumidos na Tabela 1 e serão descritos abaixo.

Histórico de Adoção

O contato inicial com o filho adotivo na família 1 se deu por meio de um trabalho voluntário que a mãe fazia em uma instituição de acolhimento para crianças com deficiência, motivada pelo filho biológico que tinha paralisia cerebral. Como relatado pela mãe, em um dia em que estava na instituição, uma enfermeira lhe informou que havia chegado um menino anencéfalo. No entanto, ao ver o menino e seus exames a mãe percebeu que a criança não possuía anencefalia, mas sim esquizencefalia, apresentando uma diminuição de força de um lado do corpo. Isso a motivou a levar a criança na fisioterapia do seu filho biológico e incluí-lo no seu plano de saúde, a fim de estimular a criança. Foi quando a assistente social lhe chamou atenção de que isso parecia "caminho para adoção", e foi quando a mãe relatou que percebeu que "estava grávida". A partir daí a mãe começou o processo, entrando na fila de adoção. Como a criança possuía um problema neurológico, a mãe seria a primeira da fila, e a criança foi para sua casa, onde permaneceu por cerca de cinco meses de convívio. No entanto, houve uma denúncia de que a ordem da fila de adoção não teria sido respeitada. A juíza (que estava de férias quando dada a entrada no pedido da adoção) decidiu então pela separação da criança com a família adotiva, regressando-a para a instituição de acolhimento. Porém, mesmo assim, nesse período a mãe teve contato com a criança por prestar serviços para a instituição e seguiu buscando reaver a criança, a partir da contratação de advogado e especialistas. Assim, depois de cerca de um ano, ela conseguiu adoção regularizada, onde vive desde então.

A mãe na família 2 relatou ter conhecido o filho adotivo por meio de um grupo de adoção. Por não ter restrições na adoção, em uma visita à instituição de acolhimento, uma colega a apresentou à criança que possui hidrocefalia e já estava na fila para adoção internacional. No dia da visita, apesar da criança estar dormindo, o que impedia de ter sido pega no colo, a mãe relatou sentir que teria uma história com a criança. Como estava cursando faculdade, ela pensou primeiramente no programa de apadrinhamento afetivo; apesar de o juizado inicialmente ter negado devido aos cuidados intensos que a criança precisava. Porém pela insistência dela, acabou conseguindo a convivência com a criança pelo programa.

Após a comemoração do natal com a família, ao deixar a criança de volta na instituição e chegar em casa, a mãe relatou que ela e o marido choraram com a falta da criança e se deram conta de que teriam que entrar com o processo da adoção. No entanto, com o foco de término da faculdade pela mãe antes de proceder com o pedido de adoção, para que tivesse mais tempo de cuidar da criança, esta deu continuidade nas visitas pelo programa de apadrinhamento por mais um semestre. Nesse processo, houve um fortalecimento do vínculo afetivo com a criança, causando aflição e a mãe se disse cada vez mais aflita por de não ter os cuidados contínuos da criança. Mediante todo o processo de apadrinhamento e adotivo, a mãe da família 2 descobriu uma gravidez inesperada, o que a fez decidir pelo trancamento da universidade. Alguns eventos se sucederam nesse meio tempo, e com meses da permanência da criança adotiva no seio da família - ainda de forma instável, como família acolhedora - coincidiu-se, no início de 2018, o nascimento do filho biológico e o término do processo de adoção de seu filho. Foi quando descobriu que estava grávida e pensou que tinha que entrar com o processo de adoção logo, decidindo por trancar a faculdade. A criança foi para a casa da família ainda como família acolhedora alguns meses depois. Três meses depois da chegada da criança adotiva, a mãe deu à luz ao filho biológico. O processo de adoção foi finalizado no início do ano de 2018.

Adversidades Vivenciadas pelas Famílias

Diversas foram as adversidades vivenciadas pelas famílias adotivas, tanto percebidas pelas participantes, como implícitas em seus discursos. Dentre as mais relevantes, foram extraídos sete temas principais: (a) dificuldades no processo de adoção; (b) fatores circunstanciais das famílias; (c) características individuais; (d) cuidados na instituição de acolhimento; (e) cansaço parental; (f) dificuldades nos cuidados da criança; e (g) fatores contextuais. Cada um desses temas será discutido a seguir.

Dificuldades no processo de adoção.

Ambas famílias relataram dificuldades no processo de adoção. Enquanto na família 2 essa dificuldade estava ligada à demora do processo, na família 1 houve acontecimentos que impuseram o afastamento da criança da família por quase um ano. A família 2 relatou a demora de poder levar a criança para casa permanentemente como um fator estressante, pois era constante a preocupação sobre o tratamento da criança na instituição. Por isso gostariam que o processo se desse da forma mais rápida possível. Outro medo constante era a possibilidade de aparecer outro adotante interessado no filho, já que iniciaram o processo com o apadrinhamento afetivo e não estavam na fila da adoção inicialmente, ou seja, não queriam correr o risco de ficar sem o filho.

Como relatado pela mãe na família 1, o início do processo foi bem difícil, pois houve uma denúncia descabida de que ela não teria entrado na fila de adoção, tendo a juíza, então, decidido que a criança deveria retornar para a instituição de acolhimento depois de cinco meses já vivendo com a família adotiva. Segundo a mãe, devido a criança ter um problema neurológico não houve outros candidatos à adoção na fila interessados. A mãe relatou imenso sofrimento com a retirada de seu filho de casa, uma vez que este já estava adaptado, tinha suas necessidades supridas e estava sendo estimulado, apresentando melhoras significativas em seu desenvolvimento. Assim, mesmo com a proibição de contato com a criança, a instituição continuava a necessitar dos serviços da mãe, o que proporcionou a ela a possibilidade de manter certo vínculo com a criança neste período de afastamento. Com isso, a mãe contratou um advogado e outros profissionais para reaver a adoção da criança, conseguindo a adoção definitiva dessa depois de cerca de um ano, quando a criança já tinha quase dois anos de idade.

Fatores circunstanciais.

Diversos acontecimentos se impuseram como adversidades e desafios no percurso das famílias. Por exemplo, a mãe da família 1 sofreu a perda de seu filho biológico (com 10 anos de idade), que possuía paralisia cerebral, poucos meses após ter conseguido a adoção do filho adotivo. Segundo ela, sua dor aumentou por não esperar que seu filho biológico a fosse deixar tão cedo. A mãe ainda relatou que o filho adotivo lhe deu forças para superar a perda. Ela contou ter tido apoio psicológico na época para lidar com o luto e com o filho adotivo e em suas palavras "[...] aprender a ser feliz sem quem você ama mais que tudo é… não é fácil não".

Com relação à família 2, dentre as circunstâncias relatadas como desafiadoras estava o diagnóstico e autismo do filho biológico, pois este também precisava de alguns cuidados especiais, fato que esboçou um receio de não se conseguir prover essas necessidades, além da dificuldade de aceitação do diagnóstico por parte do pai. A mãe, no entanto, relatou não ter ficado triste nem desesperada, mas preocupada, por exemplo, com a interação social que o filho terá na escola no futuro. Outra dificuldade foi com o pediatra, que, segundo a mãe, minimizou as dificuldades e queixas sobre o filho biológico. Além dessa dificuldade, a mãe relatou a sua necessidade em sair da faculdade como um dos seus maiores desafios, por ser algo que amava fazer. A gravidez inesperada foi outra circunstância desafiadora, relatando a mãe ter ficado apavorada por não saber como daria conta de dois bebês, ainda mais com o filho adotivo necessitando de cuidados intensos e médicos. Adicionado a isso, a mãe descobriu ter hipertireoidismo, o que a deixava ainda mais estressada.

Características individuais

Percebeu-se no discurso da família 2 que algumas características pessoais seriam desafiadoras do processo de resiliência. Por exemplo, a mãe relatou ter medo de não conseguir "dar conta" de cuidar de seus filhos e, ao mesmo tempo, de saber lidar com as deficiências do filho. Ela também relatou que a dificuldade de "se virar" e o medo de errar eram barreiras para a busca de alguma atividade remunerada, o que acabava prejudicando a família. A necessidade de se dedicar aos filhos a impedia de se engajar em uma atividade laborativa que pudesse contribuir financeiramente com a família. A falta de um curso superior do marido também foi indicada como uma barreira para buscar melhores condições financeiras.

Cuidados nas instituições de acolhimento.

Ambas as famílias demonstraram preocupação com os cuidados realizados nas instituições que seus filhos se encontravam antes da adoção, principalmente devido aos potenciais prejuízos advindos desses cuidados. A mãe da família 2 relatou preocupação com a saúde e os cuidados do filho quando esse tinha que retornar para a instituição de acolhimento, pois lá a criança ficava no berço, enquanto em sua casa havia sido acostumada no colo. Para ela, a criança não tinha a atenção e supervisão constantes e necessárias na instituição; por exemplo, ela expressou medo da criança contrair pneumonia novamente, ter uma crise de asma e não ter os cuidados necessários. A mãe contou um episódio em que a criança se machucou no berço da instituição e o sentimento de angústia por não poder estar com o filho.

A mãe da família 1 relatou que a criança apresentou regressão no desenvolvimento quando retornou para a instituição (por exemplo, se arrastava para se locomover e não ficava mais sentado), e que isso se deu em parte pelo fato de que muitas vezes a criança ficava sozinha, sem monitoramento e estimulação. Relatou que o filho era deixado em um quarto chorando até adormecer e que por isso até hoje ele não gostava de dormir sozinho. Segundo a mãe, no período em que retornou à instituição, o filho começou a se morder quando era contrariado, o que seria atribuído à síndrome do confinamento. A mãe também relatou uma visita na instituição em que encontrou a criança sozinha, quieta em um canto e que a cena a "chocou".

Cansaço parental.

O cansaço foi trazido por ambas as famílias, apesar de ser mais ressaltado pela mãe da família 2. Segundo ela, a rotina de cuidados era "bem puxada", com desafios diários, especialmente após o nascimento de seu filho biológico. A mãe ainda relatou que ela e o marido gostariam de sair mais com as crianças, mas não conseguiam pelo cansaço e apontou o cansaço como o seu maior desafio. Já a mãe da família 1 apontou para a dificuldade inicial e o cansaço de cuidar de duas crianças com deficiência; no entanto, isso era facilitado, pois contava diariamente com cuidados de profissionais para com os filhos. Relatou também que a rotina atual do trabalho era cansativa, mas que é algo que qualquer pessoa passa.

Dificuldades nos cuidados da criança.

Algumas dificuldades nos cuidados com as crianças foram ressaltadas. Na família 1, a mãe relatou dificuldades normativas de cuidados, como a falta de obediência por parte do filho, além da negativa quanto à imposição de limites. Já a mãe da família 2 relatou dificuldades iniciais de não saber lidar com algumas das necessidades de seu filho adotivo e de ter que levá-lo a médicos e especialistas sozinha, sem poder contar com ninguém. Com a chegada do filho biológico essa dificuldade se aprofundou, tendo que esperar o marido chegar do trabalho para ficar com um dos filhos para que pudesse, enfim, levar o outro para os atendimentos necessários.

Fatores contextuais.

Alguns fatores contextuais foram trazidos como desafiadores pelas famílias, tais como o preconceito explícito ou implícito, principalmente com a questão da deficiência. Por exemplo, a mãe da família 2 relatou perceber uma dificuldade nas pessoas de entenderem a deficiência do filho, fazendo perguntas, as quais ela fazia questão de responder para informar e educar. Para ela, o preconceito tanto em relação a portadores de deficiência quanto pela adoção é devido à desinformação das pessoas. Ainda relatou algumas dificuldades com amigos e família, como o distanciamento de alguns amigos e uma resistência em algumas pessoas da família, inicialmente, apesar da criança ter sido bem aceita no geral. Segundo a mãe, às vezes, na visita de algumas pessoas para seu filho biológico, quando esse nasceu, não falavam com o filho adotivo, tendo que ser indelicada para chamar a atenção dessas pessoas, salientando que queria o mesmo carinho e respeito com seus dois filhos. Segundo ela, enquanto o preconceito das pessoas de fora da família se dava mais pela adoção, dentre os familiares seria mais em relação à deficiência, pois estes veem que "[...] ele fica quietinho, então não interage, então 'ah, então eu não preciso interagir porque ele não interage, então eu não preciso ter esse contato'".

Já a mãe da família 1 não relatou perceber preconceito com relação à adoção, mas sim potencialmente em relação à deficiência, opinião também dividida pela coordenadora da escola. Para ela isso pode ser devido à dificuldade motora da criança ser mais visível e chamar mais atenção das pessoas. A mãe ainda relatou que alguns colegas do trabalho a questionaram sobre a adoção de uma criança com deficiência por ela já ter um filho biológico que necessitava de cuidados intensos. Além disso, relatou que a família aceitou, não foi contra, mas que ouviu alguns questionamentos semelhantes ao dos colegas devido aos possíveis cuidados que viria a ter, o que para ela se deu como impacto inicial e surpresa das pessoas. Ainda, com relação ao preconceito percebido, a mãe relatou uma situação na escola que ouviu um menino dizendo "lá vem aquele menino esquisito", o que nessa situação a mãe se sentiu compelida a abordar o menino gentilmente e dizer que o filho tinha um nome. Relatou também o medo de seu filho sofrer bullying no futuro, pois o considera uma criança sensível, apesar de até o momento não ter enfrentado muitas situações dessas. Esse receio também foi trazido pela escola, que disse estar atenta aos potenciais riscos de bullying.

Fatores Promotores de Resiliência

A despeito das adversidades encontradas, as famílias apontaram em seu discurso vários fatores considerados como promotores de resiliência. Dentre esses, se encontram: (a) o contato e vínculo inicial com a criança; (b) o apoio e orientação profissional, de familiares e amigos; (c) a estimulação da criança nas famílias adotivas; (d) experiências prévias com crianças que possuíam deficiência; (e) características pessoais tanto dos pais como das crianças; e (f) fatores contextuais.

Contato e vínculo inicial com a criança.

Ambas as famílias relataram como o contato inicial e a adoção da criança foram importantes para a decisão da adoção e para a construção do vínculo. Para a mãe da família 2, o desejo de adotar já existia, mas foi o contato e convivência com o filho adotivo em específico que a fizeram decidir pela adoção dele. Ela ainda relatou que o marido não tinha esse desejo de adoção como ela, mas que ao conhecer o filho decidiu que queria adotá-lo. A mãe da família 1 também relatou que o desejo de adotar já estava presente antes da adoção, mas que foi com o conhecimento e vínculo com a criança, em específico, que esse desejo se tornou realidade. Foi no contato com a criança que a mãe diz ter se descoberto "grávida". Assim, ambas as famílias tiveram contato com a criança por meses antes da efetiva adoção e, portanto, desenvolveram fortes laços afetivos nessa convivência.

Apoio e orientação profissional e de familiares e amigos.

As famílias relataram o recebimento de apoio e orientação de diversos profissionais, bem como o suporte de familiares e amigos. Esses apoios e estímulos profissionais promoveram avanços importantes no desenvolvimento das crianças. Por exemplo, a mãe da família 1 relatou ter contado com diversos profissionais tanto para cuidar do filho, como para as dificuldades encontradas no processo de adoção; ela contratou um advogado para lidar com o processo de adoção e profissionais como fisioterapeuta e pedagoga para ajudar nos cuidados do filho. Além disso, ela contava com a mesma funcionária diariamente desde que o filho chegou, ajudando-a nos cuidados da casa e da criança. Também mencionou ter contado com o apoio e cuidados dos familiares. Segundo ela "[...] é bom ter uma ajuda assim, né? Como eu não sou perfeita". Já a mãe da família 2 disse poder contar com profissionais para os cuidados do filho através de um programa de apadrinhamento de uma empresa pelo qual recebia ajuda financeira necessária para atendimentos especializados, como fisioterapia. Além disso, disse que também contava com o apoio de seus familiares quando necessário, apesar de ter havido momentos em que esse apoio não foi possível, por exemplo, quando seu sobrinho foi diagnosticado com câncer.

Estimulação da criança nas famílias adotivas.

Um fator importante para a promoção da resiliência trazido pelas participantes foi a importância da estimulação da criança, que contribuiu significativamente para o desenvolvimento destas. Isso é visto, por exemplo, no conhecimento da mãe na família 1 sobre a importância de se estimular o desenvolvimento tanto cognitivo como físico da criança antes dos dois anos de idade, para a menor lesão possível e minimização de qualquer prejuízo. A mãe ainda afirmou estimular a criança a fazer as atividades normalmente, sem superprotegê-la, o que também foi trazido pelas profissionais da escola. A criança então era incentivada, tanto em casa como na escola, a fazer todas as atividades de forma independente. Já a mãe da família 2 apontou a importância do cuidado e estimulação individualizados voltados para a criança, bem como os progressos no desenvolvimento do filho a partir do momento em que teve esses cuidados, por meio, por exemplo, do investimento parental e contato com profissionais.

Experiências prévias com crianças que possuíam deficiência.

Outro fator importante trata-se sobre a experiência anterior que essas famílias possuíam com outras crianças ou outras pessoas com deficiência. Isso se destacou mais profundamente na família 1, visto que a mãe tinha um filho com paralisia cerebral que já havia falecido. Segundo a mãe, o exemplo e a aceitação do filho biológico também a fazia acreditar que a estimulação era efetiva e necessária para o desenvolvimento infantil. Dessa forma, a partir das experiências com o filho biológico ela sentiu-se capaz de cuidar do seu filho adotivo. Já a mãe da família 2, apesar de não ter tido uma experiência prévia na família com crianças portadoras de deficiência, afirmou ter tido alguma experiência profissional na época que ainda fazia faculdade, e essa identidade profissional contribuiu para seu senso de capacidade de cuidar do filho adotivo.

Características pessoais.

Algumas características pessoais foram trazidas como importantes para o processo de resiliência. Por exemplo, a vontade e a motivação para adotar e o foco no bem-estar da criança ajudavam na superação dos desafios encontrados em ambas as famílias e contribuíam para o fortalecimento de vínculos. Especificamente, a mãe da família 2 relatou que o que contribuía para superar os desafios era sua história pessoal, já que sempre teve que enfrentar várias situações difíceis, como a saída do pai de casa, viver em uma situação de pobreza, por vezes sem água e luz e passando dias sem comer. Tais situações a fizeram, segundo a própria, ser resistente. Além disso, ela apontou que a paciência do seu marido era algo que ajudava a lidar com as dificuldades.

Para a mãe da família 1, sua aceitação pela condição do filho contribuía para lidar com as dificuldades. Além disso, seu senso de capacidade de auxílio e suporte para o filho também contribuíam para enfrentar os desafios encontrados por ele. De acordo com ela "[...] eu me sentia capaz de ser mãe dele sem é… sem aquela coisa egoísta de ser só é… ter um filho perfeitinho pra mim, um filho melhor, tá entendendo? Eu poderia fazer uma coisa muito boa pra ele e ele é… teria o retorno de ser meu filho". Para ela, o bom prognóstico da criança a motivou a querer dar a oportunidade para a criança se desenvolver plenamente, tendo todo o investimento necessário. Nas palavras da mãe: "[...] esse menino tem que ser estimulado se não ele vai ficar, só vai piorar, não vai ter a chance dele de andar, de tudo, né, talvez até falar". A mãe ainda disse que dentre suas características que ajudavam na superação de desafios estava a capacidade de resolução de problemas e a proatividade. Junto a isso, algumas características positivas da criança na resolução de adversidades foram apontadas tanto pela mãe quanto pelas profissionais da escola, como a boa autoestima, ser determinado, "se virar", ter autoeficácia (se achar capaz), ser bem resolvido ser e afetivo.

Fatores contextuais.

Dentre os fatores contextuais trazidos pelas participantes, destaca-se, na família 2, o apoio da família extensa que tanto recebeu bem a criança como se interessou pelo seu processo de adoção. Segundo a mãe "a nossa família, assim, adotou o [criança] junto, né. A minha mãe também se apaixonou por ele quando conheceu. [...] As crianças é... como não tinham costume, nunca tinham visto uma criança com hidro [hidrocefalia], né, elas ficavam perto, ficavam olhando, fazendo pergunta. Hoje já são mais já interagem mais com ele". Ademais, a mãe relatou que algumas amizades foram fortalecidas e serviram como importante apoio para a família, bem como a boa relação conjugal com o marido, baseada no companheirismo e na amizade.

A família 1 também destacou o apoio e a aceitação familiar como algo importante, tendo recebido suporte prático e emocional. A relação entre os filhos (o filho biológico já falecido) foi trazida como algo positivo e afetivo, a qual a mãe buscava manter viva, sempre mostrando fotos e relembrando ao filho adotivo. Ela ainda destacou a boa relação que a criança tinha com seu ex-companheiro, o qual chamava de pai e que mantinha um vínculo afetivo.

Tanto a mãe da família 1 como as profissionais da escola relataram a importância da relação família-escola, com o objetivo de dar um suporte e direcionamento consistente à criança em ambos ambientes. Segundo a orientadora da escola "[...] eu acho que a gente acaba, assim, fortalecendo o que a família trabalha com ele... Você é bom, você é capaz... A gente faz a mesma coisa. Então são dois eixos falando a mesma linguagem, escola e família". A boa relação com os amigos na escola também foi algo apontado pela mãe e pelas profissionais da escola como algo importante para o desenvolvimento da criança e enfretamento de possíveis dificuldades no futuro.

Resultados da Resiliência

Ao entender conjuntamente os fatores de adversidades e promotores de resiliência acima descritos, destaca-se alguns resultados da resiliência encontrados nessas famílias. Dentre esses resultados, destacam-se: (a) aspectos do desenvolvimento, como os avanços em diversas áreas do desenvolvimento da criança adotada, bem como uma melhora na saúde destas e (b) aspectos familiares, como a formação de vínculos fortes, a afetividade e a satisfação com a adoção.

Desenvolvimento da criança.

Ao longo das entrevistas com as famílias foram destacados diversos aspectos indicados como adoção, sendo o investimento parental e o recebimento de apoio profissional uma contribuição positiva para o desenvolvimento das crianças em diversas áreas. Apesar das capacidades cognitivas e motoras da criança na família 2 serem mais comprometidas, a mãe relatou que com os estímulos, cuidados profissionais e atenção, o filho demonstrou progressos significativos no seu desenvolvimento. Por exemplo, começou a ficar sentado e em pé apoiado em uma mureta, coisa que antes não conseguia fazer. Além disso, ela relatou que depois que a criança chegou à família adotiva não adoeceu mais (havia tido dengue e pneumonia enquanto na instituição de acolhimento). Segundo a mãe, "[...] ele melhorou bastante, muita medicação diminuiu, medição respiratória é só quando ele tá em crise, neurologicamente diminuiu, vai diminuindo, porque ele não tem tido convulsões, faz mais de seis meses que ele não tem. Então acho que daqui seis meses a um ano a gente vai começar a diminuir a medicação. É… do refluxo também diminuiu bastante".

Já a mãe da família 1 relatou que a criança chegou na família sem falar, provavelmente por falta de estímulos na instituição de acolhimento, mas que com os estímulos e cuidados profissionais a criança muito rapidamente começou a falar e logo já não precisava da ajuda profissional. De acordo com a mãe, "foi surpreendente! Começou a falar. Cada semana ele tinha palavra e frase, assim, parecia que tudo estava guardado nele, quando acho que se sentiu à vontade". Além disso, algumas regressões desenvolvimentais se reverteram com a ida definitiva para a família adotiva; por exemplo, a criança que havia voltado a se arrastar no chão para se locomover no tempo em que voltou para a instituição, começou a sentar sozinha e a desenvolver a capacidade de andar. Para a mãe, além dos estímulos profissionais, isso se deu também pela criança começar a se sentir amada. Também, com a chegada à família, a criança começou a parar de se morder, um comportamento desenvolvido no seu regresso à instituição de acolhimento, sendo um sinal positivo de adaptação na família, na opinião da mãe. O progresso no desenvolvimento social da criança também foi destacado pelas profissionais da escola, apontando para a interação positiva com os colegas e profissionais e o sentimento de pertencimento à escola.

Aspectos familiares.

Outros aspectos importantes observados nas famílias como resultantes dos processos de resiliência foram a afetividade, o processo de construção de vínculo, a satisfação com a adoção e a realização de ser mãe. Isso pode ser constatado tanto nas observações das interações mãe-criança, como nas falas durante as entrevistas. Por exemplo, na família 1, a mãe relatou de noite assim, a gente abraça, e fala 'eu te amo, eu te amo' aí a gente disputa quem ama mais, né? [...] 'eu agradeço a Deus [...] obrigada por esse meu filho e tudo,' ele 'ai, eu também agradeço porque foi a mãe que eu pedi a Deus, se não fosse você… se fosse outra mãe eu não ia obedecer'". Além disso, ambas as mães destacaram que se sentiam realizadas por serem mães e demonstraram satisfação com a adoção.

 

Discussão e Conclusões

O presente estudo traz contribuições significativas para a compreensão de como se dão os processos de resiliência frente às adversidades enfrentadas por famílias adotantes de crianças com deficiência. Observa-se que apesar de algumas adversidades e processos de resiliência serem semelhantes entre as famílias estudadas, cada uma dessas possuía suas particularidades, fatores essenciais para a compreensão da resiliência - que por sua vez está relacionada a diversos fatores, dentre eles às deficiências das crianças. Por outro lado, as famílias não indicaram muitos fatores adversos relacionados à adoção em si.

Mais especificamente, é possível notar adversidades semelhantes entre as famílias, como a falta de estímulos e fatores contextuais às crianças na instituição de acolhimento, enquanto reação negativa de alguns amigos e familiares, representando um "estranhamento" (possível preconceito) frente à adoção de uma criança com deficiência. Além do preconceito social também apontado por Fonsêca et al. (2009), nota-se que a falta de cuidados na instituição, apesar de poder ser considerada um fator geral, pode ser agravada na situação de deficiência. Além disso, algumas dificuldades no cuidado da criança foram apontadas pelas participantes, apesar de na família 2 terem sido mais ressaltadas. Isso provavelmente se deu pela menor condição financeira para investir em apoio profissional, dentre outros fatores. Alguns autores também indicaram a baixa condição socioeconômica como dificuldades vivenciadas por famílias que adotaram crianças com deficiência (Fonsêca et al., 2009; Lightburn & Pine, 1996; Oliveira, 2020).

Apesar disso, destaca-se que uma menor condição financeira em si não se faz como o principal impedimento de processos de resiliência, apesar de poder servir como um fator de risco. Assim, os potenciais fatores de risco presentes em cada contexto familiar são importantes para a compreensão das adversidades vividas, influenciando a forma como os processos de resiliência se dão - por exemplo, ter baixa escolaridade, desemprego, falta de apoio social, escasso acesso a instituições de saúde, etc.

Ademais, houve diversas circunstâncias particulares vivenciadas pelas famílias que se mostraram desafiadoras. Percebe-se que as dificuldades no processo legal de adoção se destacaram mais na família 1, apesar da demora no processo também ter sido trazida na outra família. Nesse âmbito, percebeu-se que ainda que leis mais recentes (como a de 2017) priorizem a adoção de crianças com deficiência, a demora nos processos de adoção ainda é uma realidade para as famílias adotantes, como exemplificado pela família 1 que passou por maiores dificuldades judiciais por ter seu processo anterior a essa lei, o que pode ter contribuído para as complicações no processo de adoção.

Outras circunstâncias particulares das famílias foram tidas como adversidades. Por exemplo: a perda de um filho (biológico) na família 1; o diagnóstico de autismo (de um dos filhos) e a saída da mãe da universidade na família 2. Pôde-se notar também que a família que passou pelo processo de adoção mais recentemente (família 2) parecia ainda estar lidando com maiores desafios, apontando para o fator progressivo e a importância do tempo para os processos de resiliência. Outro fator presente traz características relacionadas com a insuficiência parental - o medo de não "dar conta" - por parte da família, e em específico a mãe, que estava vivenciando o processo adotivo há pouco tempo.

No entanto, apesar dessas dificuldades, as famílias demonstraram capacidade de resolução com as diversas adversidades, graças a fatores como acesso a apoio social e profissional. Compreende-se também que o tempo de convivência e interação com as crianças também contribuiu para a formação do vínculo entre pais e filhos, como encontrado em outros estudos (Fonsêca et al., 2009; Mozzi & Nuernberg, 2016). Além disso, experiências prévias com pessoas portadoras de deficiências contribuem para estratégias de enfrentamento das dificuldades, resultado também apontado por Oliveira (2020).

Assim, diversos fatores no processo de resiliência - contextuais e individuais - foram observados, contribuindo para um desenvolvimento infantil positivo e para a formação de vínculos afetivos entre os membros da família. Importante dizer que esses processos de resiliência só foram possíveis devido a presença de fatores protetivos, como o apoio social, o acesso a serviços de saúde, etc. Observa-se também que alguns processos de resiliência são produtos e produtores de resiliência, tais como os vínculos afetivos. Assim, bem como em outros estudos (Fonsêca et al., 2009), a satisfação em relação a experiência com a adoção e as melhoras nas condições de saúde e desenvolvimento dos filhos foram encontradas em ambas as famílias deste estudo.

Além disso, a adoção de crianças com deficiência deve ser compreendida em relação às motivações para adoção e às características dos pais adotivos. O presente estudo corroborou com a literatura existente, encontrando como motivações o desejo de adotar, a preservação do bem-estar físico e psíquico da criança, o contato prévio com a criança possibilitando a formação de vínculo antes do processo adotivo, a convivência prévia da família com pessoas com deficiência, etc. (Denby et al., 2011; Fonsêca et al., 2009; Mozzi & Nuernberg, 2016). Constatou-se, portanto, como motivações para o processo adotivo a questão da adoção em prol do bem-estar da criança. Ademais, como trazido na literatura, algumas características individuais são importantes para os processos de resiliência, como, por exemplo, a persistência (Denby et al., 2011), o apoio emocional das famílias extensas e amigos próximos, recursos financeiros, tempo disponível e acompanhamento profissional (Mozzi & Nuernberg, 2016). Isso está de acordo com a perspectiva adotada nesse estudo, a qual compreende resiliência como um processo multidimensional, construído na interação sistêmica presente no contexto das famílias (Libório et al., 2006; Masten, 2001; Ungar, 2011).

Por fim, ao se considerar a adoção de crianças com deficiência, deve-se fortalecer os aspectos protetivos e neutralizar os fatores de risco, a fim de propiciar processos de resiliência que sejam promotores de desenvolvimento positivo e formação de vínculos afetivos. Deve-se, ainda, buscar promover a disseminação de uma nova cultura da adoção, que visa priorizar as necessidades das crianças. Para tanto, é essencial informar e sensibilizar a sociedade com relação à adoção de crianças com deficiência e compreender que adotar uma criança com deficiência é dar a ela a oportunidade de se superar e desenvolver o seu potencial (Fonsêca et al., 2009).

 

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Endereço para correspondência:
Elisa Avellar Merçon de Vargas
E-mail: elisa.amv@gmail.com

Danielly Bart do Nascimento
E-mail: danybartnasc@yahoo.com.br

Edinete Maria Rosa
E-mail: edineter@gmail.com

Recebido em: 14/04/2019
Revisado em: 15/05/2021
Aceito em: 24/05/2021
Publicado online: 02/02/2022

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