Propomos tensionar as relações étnico-raciais e os processos de subjetivação sociorraciais no Brasil, tomando como pano de fundo a categoria branquitude, na esteira de Franz Fanon (2008) e como corpus analítico, o texto teatral Anjo Negro, do dramaturgo brasileiro Nelson Rodrigues. Principiamos apresentando nossos caminhos metodológicos e a forma como operamos conceitos, a partir do método ensaístico, ao nos debruçarmos sobre a analítica de objetos da cultura. Em um segundo momento, apresentamos uma breve contextualização de Nelson Rodrigues e do teatro moderno brasileiro, bem como a justificativa que embasou a escolha do texto. Seguimos, então, com um breve resumo da obra, finalizando com a análise comentada de trechos do espetáculo em consonância com o conceito de branquitude. Por último, algumas considerações sobre o processo e seu principal efeito: pensar formas e condições de produção da escrita que põem em cena as relações étnico-raciais.
Assim, nossos principais objetivos com esta pesquisa são de problematizar a operação do racismo no Brasil e os processos de subjetivação que lhe subjazem, bem como suas peculiaridades históricas, como a chamada “ideologia da democracia racial”, e a importância de pensarmos a identidade branca como elemento no combate à estrutura racista do Estado.
Caminhos metodológicos – o que nos faz ensaiar?
O título deste tópico antecede o que, em última instância, deve ser dito com alguma precisão: qual a metodologia empregada para problematizar um texto teatral e sua relação com a subjetivação racial? Faz-se importante, contudo, considerando as linhas que sucedem este tópico, apresentarmos de que modo lançamos mão de conceitos a fim de possibilitar o trânsito em nossa proposta teórico-metodológica. Talvez seja melhor considerarmos que este tópico se coloca como a difícil tarefa de ilustrar os fluxos com os quais construímos nossa análise crítica de um texto teatral, bem como sua relação com o devir negro e a produção da identidade branca. A esta última é que o nosso processo investigativo se detém com mais afinco. Para isso, há de se considerar de que modo olhamos para o texto dramatúrgico.
O ato de criação, segundo Deleuze (1999), faz-se não por um mero acaso ou forças exteriores, ainda que estas também operem sobre o sujeito em múltiplas contingências, mas antes por uma necessidade. Necessidade, para Deleuze (1988), enquanto forças que operam em um pensamento que só pode ser enquanto pensamento que é coagido, forçado. Nem o artista, nem o filósofo, nem o cientista podem dizer de fato qualquer coisa sem que sejam acometidos por uma necessidade incontida de escrever, de criar, de operar conceitos. É, também, e não só disso, que se faz essa escrita. Partimos de um imperativo, de uma urgência incontida de pensar racismo e processos de subjetivação e, para tanto, assumimos os riscos de um estilo próximo da experiência ensaística para tomar a arte como expressão das relações étnico-raciais. Entendemos a arte, aqui, como agenciamento e potência, como força motriz para todo e qualquer movimento interpretativo. Não há, pois, a menor possibilidade de cindir o ato de criação da cena de nossa caminhada até então. Pois, se tomamos a dramaturgia de Nelson Rodrigues, através da peça Anjo Negro, é porque, a partir dela e de seu contexto de criação no final do Estado Novo, em meio ao auge da ideologia da democracia racial, temos a possibilidade de problematizar os desdobramentos dos discursos sobre mestiçagem e branqueamento da população na construção da narrativa identitária nacional (M. L. Silva, 2017a). Embranquecer o país foi encarado pela política brasileira, sobretudo a partir dos anos 1930, como tarefa de tamanha urgência que pensar como a arte dramatúrgica foi e é território de resistência diante das contingências históricas se constituiu como nosso propósito.
Pareceu-nos de extrema importância aproximar as esferas da criação artística e dos processos de subjetivação nas relações étnico-raciais com o teatro de Rodrigues, que não somente foi inquietante para o seu tempo, mas ainda hoje desperta incômodo ao levar ao palco o cotidiano brasileiro desnudado. Anjo Negro nos oferece o drama estruturante da formação social brasileira, aponta-nos para as rasuras da democracia racial, expõe seu cinismo e esgotamento, provoca o cânone e incita a transgressão do arranjo social calcado na negação do racismo. Em Anjo Negro, como veremos, temos a possibilidade de sentir os tensionamentos estruturantes do racismo e da produção da branquitude no Brasil.
No texto de Rodrigues, encontramos elementos que apontam para diversos aspectos do dispositivo racial, sobre o qual trataremos mais adiante. Há no dramaturgo uma dose incomensurável de insurreição, de transgressão, que opera no âmbito da resistência, e é enquanto resistência que tomaremos a dramaturgia de Anjo Negro, já que arte e insurreição nos parecem elementos de uma mesma operação. A primeira, quando em seu aspecto criativo e livre da expressão do sentimento humano, insurge na direção do indizível, rebela-se em oposição à norma e movimenta o campo imaginativo, apresentando, ainda que despretensiosamente, novos campos para as inventividades humanas. A insurreição, por sua vez, é a própria negativa da ordem. Trata-se de denunciar o estabelecido na norma. Arte e insurreição operam sobre um mesmo elemento de contrassenso: a resistência.
A obra de arte não é um instrumento de comunicação. A obra de arte não tem nada a ver com a comunicação. A obra de arte não contém, estritamente, a mínima informação. Em compensação, existe uma afinidade fundamental entre a obra de arte e o ato de resistência. Isto sim. Ela tem algo a ver com a informação e a comunicação a título de ato de resistência (Deleuze, 1999, p. 13).
Sob a perspectiva do ato de criação como comunicação do ato de resistência, não concebemos a escrita de Rodrigues como una, traduzindo uma imagem do autor, e sim como a obra e suas multiplicidades de correlações que põem em jogo forças que operam nas relações raciais das personagens e não só. Para Deleuze e Guattari (1995), um livro não possui objeto ou sujeito, mas é formado de estratos e territorialidades, de matérias, velocidades e diferentes datas. Quando se atribui a escrita a um autor, negligencia-se toda a exterioridade de suas correlações. “Num livro, como em qualquer coisa, há linhas de articulação ou segmentaridade, estratos, territorialidades, mas também linhas de fuga, movimentos de desterritorialização e desestratificação” (Deleuze & Guattari, 1995, p. 10).
É desse modo que concebemos o livro de Rodrigues, como um mapa, ou antes, como um agenciamento. Uma produção que não cria o múltiplo no uno, mas o substantiva. Para Deleuze e Guttari (1995), as linhas e as velocidades mensuráveis acabam por se constituírem enquanto agenciamento. Um agenciamento maquínico.
É uma multiplicidade, “(...) um agenciamento maquínico é direcionado para os estratos que fazem dele, sem dúvida, uma espécie de organismo, ou bem uma totalidade significante, ou bem uma determinação atribuível a um sujeito, mas ele não é menos direcionado para um corpo sem órgãos1” (Deleuze & Guattari, 1995, p. 11).
Temos aqui dois elementos coexistentes em um mesmo universo da multiplicidade da escrita, logo, não um universo, mas a multiplicidade substantivada: uma multiplicidade. Embora tomemos como corpus analítico um livro, trata-se de uma escrita dramatúrgica. Nela, dentre tantas outras coisas, reside uma carpintaria para a cena, constituída de todas as desterritorializações e desestratificações já mencionadas. Um texto de teatro pode ser um livro, e isso diz respeito aos rumos que aquele que assina tal escrito dá a este agenciamento, mas com certeza uma escrita dramatúrgica será direcionada à produção de uma obra cênica. Tomamos a escrita deste modo: ato de criação. Um ato que surge do pensamento, mas um pensamento que é forçado a pensar por todos os jogos de forças que lhe atravessam. Isso nos faz questionar quais são os agenciamentos dessa escrita teatral com quem Rodrigues dialogou e o que, quem, quando e com quais tempos e velocidades nasceu Anjo Negro e a obra, em si e em seus muitos, enquanto comunicação de resistência, opera de que forma?
Deleuze e Guttari (1995) lançaram-se na difícil tarefa de denunciar as falhas e desenhar rotas de fuga ao Édipo na psicanálise, na psiquiatria e no pensamento na modernidade. No volume 1 de Mil Platôs – Capitalismo e Esquizofrenia, os próprios autores admitem que a pretensão de acabar com o Édipo era grande demais para os dois. Para além disso, o conjunto da obra dos autores lançou importantes proposições ao modo como construímos o pensamento em Hegel, subtraindo o imperativo do uno na linguística de Chomsky para apresentar uma filosofia de multiplicidades, ou, multipheidades. Essa tarefa propunha não observar o pensamento e seus fluxos em multiplicidades, mas fazer da multiplicidade o substantivo: uma multiplicidade. Multiplicidade do pensar em uma filosofia da diferença, abandonar o modelo linguístico da árvore de Chomsky e dar vazão ao pensamento que se estrutura e funciona enquanto rizoma, cuja forma não começa nem conclui, mas se localiza no meio, no entre-ser.
A árvore é filiação, mas o rizoma é aliança, unicamente aliança. A árvore impõe o verbo "ser", mas o rizoma tem como tecido a conjunção "e... e... e...". Assim, há, nessa conjunção, força suficiente para sacudir e desenraizar o verbo ser. Entre as coisas, não designa uma correlação localizável que vai de uma para outra e reciprocamente, mas uma direção perpendicular, um movimento transversal que as carrega uma e outra, riacho sem início nem fim, que rói suas duas margens e adquire velocidade no meio (Deleuze & Guattari, 1995, p. 4).
Quevedo (2001, p. 114), ao tratar da crítica de Deleuze ao pensamento Hegeliano, aponta que:
Hegel e outros dialéticos sustentam que a realidade se gera pela construção antagônica de fenômenos polares opostos, pelo “trabalho do negativo”. Essa é uma interpretação dinâmica do mundo onde as diferenças são sempre subsumidas sob uma unidade subjacente, onde as contradições buscam sempre uma síntese mais alta, e o movimento se resolve em último termo em “estaticidade” e morte.
A própria mestiçagem enquanto política de branqueamento provoca uma leitura em multiplicidade do país em cujo qual o racismo é estruturalmente epidérmico, colorista e multifacetado (Lopes, 2017). Contudo, com qual segurança navegamos e operamos com conceitos? Nos caminhos metodológicos que engendram a necessidade de criar, encontramos algum território possível no método ensaístico. No que ele consiste? Em produzir e produzir-se, ensaiar e ensaiar-se. Isso não basta para explicá-lo, contudo, é necessário ainda uma última antecipação sobre sua construção enquanto método. Conforme Duarte (2007), sua primeira aparição enquanto gênero de escrita remonta ao início do século XVI com Michel de Montaigne e fora criticada e marginalizada porque faltaria a ela cientificidade, traduzida em uma pressuposta carência de alguma coisa como precisão, comprovação, totalização... Essa afirmação remonta também as reivindicações de Sigmund Freud pelo caráter científico da psicanálise. Reivindicação própria do contexto do século XIX, quando qualquer discurso que se pretendia validado precisava estar alicerçado na legitimidade dos processos de veridicção da ciência. Contudo, é disso que se vale a escrita e o método ensaístico conforme Duarte (2007): ambiguidade, incompletude, segmentaridade, inconclusividade. Elementos esses que o pensamento pode ter e que o ensaio possui. Ensaio é, em primeiro lugar, falar teórica e conceitualmente de algum objeto existente no mundo. Configura-se desse modo porque se compreende como uma forma escrita não regulada do pensamento.
O ensaio é um experimento. Um experimento do pensamento, da forma como pensa o ensaísta, um experimento do que escreve e de como escreve. É, acima de tudo, um experimento que dispõe, sobre a mesa, jogos de verdade e tecnologias do eu com ferramentas teóricas, com uma maneira de pensar de que modo uma ideia se constrói e se torna verdade, suspendendo os imperativos e questionando seus lugares. É aí que Foucault lança sua contribuição: produzindo ferramentas para operar o ensaio e tornando o experimento da escrita como ferramenta do pensamento. Para Foucault (1998), o ensaio é a experiência modificadora de si e o corpo vivo da filosofia. Não se trata de pensar a forma do ensaio, e sim a operação do ensaio. Trata-se de uma forma não regulada tanto da escrita quanto do pensamento. Mais do que um gênero de escrita, a metodologia ensaística é uma atitude existencial que fala de um modo de tratar da realidade, de habitar no mundo.
Poder-se-ia dizer, talvez, que o ensaio é o escrito precipitado de uma atitude existencial que, obviamente, mostra enormes variações históricas, contextuais e, portanto, subjetivas. Poder-se-ia dizer, talvez, que o ensaio é uma determinada operação no pensamento, na escrita e na vida, que se realiza de diferentes modos em diferentes épocas, em diferentes contextos e por diferentes pessoas. Poder-se-ia dizer, talvez, que o ensaio é o modo experimental do pensamento, o modo experimental de uma escrita que ainda pretende ser uma escrita pensante, pensativa, que ainda se produz como uma escrita que dá o que pensar; e o modo experimental, por último, da vida, de uma forma de vida que não renuncia a uma constante reflexão sobre si mesma, a uma permanente metamorfose (Larrosa, 2004, p. 32).
Contudo e, para finalizar, este não é um ensaio propriamente dito, mas sim uma operação com o método ensaístico. Lemos e analisamos tomando o livro como agenciamento coletivo, pensando a necessidade de Rodrigues de produzir sua dramaturgia e seus encontros; não de conceitos (destes, lançamos mão com algum risco), mas de ideias. Assim, operamos também. A necessidade é a de reconstituir uma nova figura a partir de nossa criação. O que faz questão para a arte? O modo de ver é o modo de fazer. Necessidade é produto das contingências de quem escreve.
Então, do que tratam, em última instância, os objetivos dessa escrita que evoca os territórios da arte e da racialidade por meio do ensaio? Tomamos emprestado o comentário de Deleuze acerca de Foucault ao se referir ao filósofo enquanto alguém que preenchia a função da filosofia definida por Nietzsche: “incomodar a besteira” (Deleuze, 1992, p. 188). Embora nossa pretensão cumpra função infinitamente menor, é também disso que tratamos neste trabalho e é exatamente por isso que necessitamos escrevê-lo, de apresentá-lo como uma carta/manifesto, de fluxos, platôs e territorialidades, mas que objetiva tão somente atear fogo por sobre as vozes do racismo e “para envergonhar a estupidez, para fazer da estupidez qualquer coisa de vergonhoso” (Deleuze, 1992, p. 143).
Por que Rodrigues e Anjo Negro? – brevidades do necessário
A dramaturgia de Nelson Rodrigues (1912 - 1980) é considerada um dos grandes marcos da literatura brasileira. Embora a Semana de Arte Moderna tenha ocorrido em 1922, é o teatro de Rodrigues que dá forma e inaugura o fazer teatral moderno com a peça Vestido de Noiva, encenada pela primeira vez em 1943 sob direção do polonês Ziembinski. Nelson Rodrigues é reconhecido por levar aos palcos brasileiros a psique humana e a dramática da vida cotidiana, com proposições estéticas míticas, inspiradas nas grandes tragédias gregas, vestidas com as roupagens de um país que atravessava a Era Vargas.
O ano de 1946 marca o fim do Estado Novo e a promulgação da quinta Constituição da história do Brasil. É nesse mesmo ano que Nelson Rodrigues escreve Anjo Negro, espetáculo que escandalizou a sociedade conservadora da época ao abordar a violência das relações raciais no Brasil e, sobretudo, seus efeitos nas subjetividades e sofrimentos da população negra. O impacto sobre a sociedade da época foi tamanho que a primeira montagem, cuja estreia estava prevista para 1948, foi interditada pela censura federal três meses antes da primeira apresentação.
Considerando o contexto dos anos 1940, Anjo Negro é subversiva por ousar desconstruir o que podemos chamar de dispositivo de segurança da democracia racial, um dispositivo que age como amortecedor dos conflitos raciais, que opera pela subjetivação da mestiçagem e dessubjetivação da negritude, fenômeno que implode as possibilidades de polarização racial, cuja materialidade encontramos na crescente afirmação do cromatismo sintetizado na figura do pardo (Weschenfelder & Silva, 2018). Trata-se, portanto, de uma obra atual, que toca nas questões que hoje os movimentos antirracistas ainda demandam. Anjo Negro conversa com o presente, quando consideramos a potência do livro em problematizar a branquitude e os processos de subjetivação que operam nas hierarquias raciais no país. Apresenta ao leitor ou, quando montada, ao expectador, importantes elementos que sinalizam a perversidade das relações raciais no Brasil. Coloca-nos frente a um sistema social que nega o racismo, mas o atualiza constantemente. Anjo Negro expõe a violência racial, a secura que se opera no seio da população brasileira, que põe em movimento processos de normalização que expõem à “vida nua” (Zoé), para usar a expressão de Agamben (2002), determinados grupos em detrimento de outros. Coloca-nos frente a uma sociedade cujo luto é seletivo, que ignora o sofrimento e a morte, que não se incomoda com determinadas mortes, que defasa a humanidade daqueles a quem a cor marca com o sinal do bando soberano, que podem ser mortos sem que com isso se cometa assassinato (Agamben, 2002). Anjo Negro é uma obra que mantém a atualidade, que permite olhar criticamente o contemporâneo (Agamben, 2010). Um livro pode envelhecer, ou crescer:
Com o passar dos anos, os livros envelhecem, ou, ao contrário, recebem uma segunda juventude. Ora eles engordam e incham, ora modificam seus traços, acentuam suas arestas, fazem subir à superfície novos planos. Não cabe aos autores determinar um tal destino objetivo. Mas cabe a eles refletir sobre o lugar que tal livro ocupou, com o tempo, no conjunto de seu projeto (destino subjetivo), ao passo que ele ocupava todo o projeto no momento em que foi escrito. (Deleuze & Guattari, 1995, p. 7)
Assim, tomamos Anjo Negro como uma obra que jamais envelheceu para a dramaturgia e pode operar no campo teórico como uma segunda juventude.
Anjo Negro: uma história múltipla
A tragédia se passa em três atos. A cenografia proposta por Rodrigues não possui nenhum aspecto realista e a ação se passa, conforme o autor, em qualquer tempo e em qualquer lugar, embora o espaço cênico seja tratado como a casa das personagens. O palco é dividido em diferentes planos: num deles, uma criança está sendo velada. Noutro, um quarto com duas camas, estando uma delas quebrada e disposta como se acabara de ser bagunçada. A peça conta a história de Ismael e Virgínia, um casal inter-racial que vivencia uma relação configurada de paixão e ódio. Ele, um homem negro, médico, que renuncia sua família de origem abominando tudo que remeta sua negritude. Ela, sua esposa, uma mulher branca, aprisionada pelo marido entre as muralhas da mansão: “A casa não tem teto, para que a noite possa entrar e possuir os moradores. Ao fundo, grandes muros que crescem à medida que aumenta a solidão do negro (Rodrigues, 1981, p. 125).
A história é pontuada por seis senhoras designadas por Rodrigues como “Coro das Pretas Descalças” (Rodrigues, 1981, p. 05), que cumprem, conforme sugere o nome, função semelhante ao coro nas tragédias gregas, anunciando o que não pode ser modificado. Para Paula (2007), no jogo ritualístico da tragédia, o protagonista domina as palavras, mas é o coro que domina o que as palavras produzem.
A história de Virgínia e Ismael principia a partir de um estupro. Quando jovem, Virgínia apaixonou-se pelo noivo de uma de suas cinco primas. Ao serem flagrados juntos pela própria noiva e sua mãe, tia de Virgínia, o noivo foge para não mais retornar. Após algumas horas trancafiada no banheiro, a noiva comete suicídio. Tomada pela dor e pelo ódio, a tia pede que Ismael, até então desconhecido, entre no quarto de Virgínia e a viole, obrigando-a a se casar com ele. Virgínia abomina a relação oriunda da violência, mas é mantida prisioneira na mansão de Ismael. Ao longo do espetáculo, descobre-se que a criança que está sendo velada é o terceiro filho do casal e que todos foram assassinados por Virgínia, que rejeita maternar uma criança negra, fruto da relação forçada com Ismael.
Mesmo com as imensas muralhas, um novo personagem invade a mansão. Trata-se de Elias, irmão branco de Ismael que fora por ele cegado para que não pudesse vê-lo negro. Elias desperta a paixão de Virgínia, que há muitos anos não via ninguém além de Ismael e os empregados. Os dois transam e são flagrados novamente pela tia de Virgínia, que viera para o velório da criança. A mulher, então, conta sobre a traição para Ismael, que mata o irmão com um tiro. Virgínia, que havia engravidado de Elias, espera manter um relacionamento incestuoso com o futuro filho que, segundo ela, nascerá branco e de feições suaves. No entanto, no último ato, descobre-se que nascera uma menina, Ana Maria, e que 15 anos já se passaram. Ismael, que abominava a criança, filha do irmão, também lhe cega para que ela não saiba que o padrasto (que Ana Maria pensa ser seu pai) é um homem negro. Mais do que isso, Ismael alimenta na filha a ilusão de que ele é único homem branco no mundo. O protagonista mantém relações incestuosas com a filha e sua esposa descobre. Virgínia, então, declara que mentira esse tempo todo e que ama Ismael e sua negritude. Após convencê-lo, os dois prendem Ana Maria em um mausoléu de vidro e esperam pelo nascimento de um novo anjo negro, que terá, ou não, o mesmo destino dos outros três.
Isto não é um ensaio: branquitude em cena
Isto não é um ensaio. Antes, uma tentativa. Antes, um descompasso. Na música, o contratempo. No teatro, a pausa dramática. Os acordes que compõem a melodia de uma peça musical necessitam de um tempo fraco: um contratempo. Quando silencioso, é habitado pelo instante de vazio. Quando preenchido, é feito de pouco: pouco som, pouco volume, sutileza... Sua existência não é a substância, mas, sem ele, não há movimento. Deixemos a arte musical livre. No teatro, a pausa dramática é o contratempo da melodia. Quem fala precisa de contratempo, do silêncio que precede a palavra, de Brecht a Beckett. O que se passa com o ator e a atriz quando silenciam? Deixemos o teatro livre. Falemos somente de um lugar possível.
Essa escrita é composta de contratempo e pausa dramática, ou melhor: de movimento. Trata-se de uma tentativa de observar os fluxos que compõem um objeto da cultura e seus devires no que tange à racialidade. Que tem Anjo Negro quanto à racialidade? Como é possível pensar nas descontinuidades de uma proposta quando tomamos o objeto da cultura como um plano onde operam ideias? Para tanto, é necessário primeiro que suspendamos a rigidez das representações. Elas estão, sim, presentes, mas como usina. Deleuze e Guattari dedicaram-se à decodificação, ou, antes, à composição de uma rota de fuga ao inconsciente capitalístico da psicanálise. Aos autores, emergia a necessidade (e só ela era capaz de um ato de criação) de uma escrita outra, de um pensamento outro, onde o romance edípico cedesse lugar a um inconsciente que funciona antes como usina do que como teatro.
Tanto em o Anti-Édipo quanto em Mil Platôs – Capitalismo e Esquizofrenia, as multipheidades são o foco dos autores. Para Deleuze e Guattari (1995, p.7), as multipheidades constituem-se como o real, sem supor ou convocar uma unidade, “não entram em nenhuma totalidade e tampouco remetem a um sujeito. As subjetivações, as totalizações, as unificações são, ao contrário, processos que se produzem e aparecem nas multipheidades”.
Os princípios característicos das multipheidades concernem a seus elementos, que são singularidades; a suas relações, que são devires; a seus acontecimentos, que são hecceidades (quer dizer, individuações sem sujeito); a seus espaços-tempos, que são espaços e tempos livres; a seu modelo de realização, que é o rizoma (por oposição ao modelo da árvore); a seu plano de composição, que constitui platôs (zonas de intensidade contínua); aos vetores que as atravessam, e que constituem territórios e graus de desterritorialização. (Deleuze & Guattari, 1995, p. 7)
Rodrigues cria para sua cena um cenário e um universo. De certa forma, um espaço onde pode operar um dado inconsciente. Um fundo. Seu modo de escrever traz consigo a efervescência dos escritos do teatro moderno, retirando os muros do realismo e operando em dramaturgias psicológicas. É na tentativa de compor este novo teatro, em que o concreto cede espaço a um novo fazer teatral, que Magaldi (1997) nos diz que existem dramas na terra que escapam na noção de razão humana. No teatro moderno, foi necessário pôr em cena, dentre tantos agenciamentos, o delírio.
O dramaturgo Nelson Rodrigues constrói para a cenografia uma perspectiva de diferentes níveis cênicos. Sugere que o palco seja divido em níveis, tablados sobrepostos, onde cenas diferentes ocorrem, por vezes simultâneas e, noutras, assincrônicas. Constrói muros muito altos que aumentam de tamanho no decorrer do espetáculo. Muros que, conforme o autor, compõem a solidão do negro e o delírio das personagens. Cria para Ismael, o protagonista, o que tomamos enquanto um plano de imanência: um fundo não conceitual, embora não exista sem o seu próprio conceito, mas antes um fundo onde podem ser operados os conceitos dessa operação de ensaio, como a branquitude, em suas diferentes datas, velocidades, estratos, etc. “O plano envolve movimentos infinitos que o percorrem e retornam, mas os conceitos são velocidades infinitas de movimentos finitos, que percorrem cada vez somente seus próprios componentes” (Deleuze & Guattari, 1992, p. 51).
Se o plano de imanência é o fundo de onde é possível operar conceitos e seus desdobramentos, tomemos o espetáculo como uma aventura estética nesse plano. Embora Rodrigues e mesmo a arte ocupem-se não de criar conceitos, mas sim de ato de criação que opera no âmbito da resistência, deixemos que essa ideia nos toque em igual aventura ético-estética da composição dessa escrita: O espaço cenográfico, de diferentes níveis, tomado enquanto platô... Assim, nos permitimos. Compreendemos Platôs, na perspectiva de Deleuze e Guattari (1995, p. 30), ao se referirem como “toda multiplicidade conectável com outras hastes subterrâneas superficiais de maneira a formar e estender um rizoma”. Os níveis de tablado permitem nossa incursão nas diferentes cenas, buscando intersecções no delírio de um inconsciente maquínico das personagens.
Nessa aventura ético-estética, com quem dialoga com Ismael? E Virgínia, as demais personagens, a cenografia, a palavra, a ação? Com que forças? Um primeiro ponto que nos toca está localizado na composição pensada por Rodrigues quanto ao figurino do personagem Ismael. Um homem negro, médico, que abomina sua ancestralidade e sua negritude. Ismael veste branco, das roupas ao chapéu e sapatos. Quando Ismael constrói seus muros, é por um motivo:
Ismael emprega uma fuga. Vestido de branco, constrói seus muros em busca de um lugar onde o desejo branco não lhe alcance e que o plano do delírio oferece. Tais linhas de fuga nos apontam para algumas considerações: Ismael tenta fugir da operação da norma branca exterior, mas a reitera em seu plano psíquico. Por todos os lados, sua negritude é uma marca, um demarcador. Quando escrevemos, dizemos: Ismael, um homem negro, médico... No entanto, quando falamos de um homem branco, dizemos apenas: Um homem, um médico, e está feito.
Para Fanon (2008), o sujeito negro possui duas dimensões fruto do colonialismo europeu que despontou o homem branco como norma: comportando-se de um modo para com o seu semelhante e de outro modo para o branco. Tal ideia se constrói mais assertiva quando Fanon (2008, p.14) afirma que “o negro antilhano será tanto mais branco, isto é, se aproximará mais do homem verdadeiro, na medida em que adotar a língua francesa”. Um dos momentos que demarcam a constituição da compreensão do negro faz referência ao acesso à escrita:
O segundo momento corresponde ao acesso à escrita e tem início no final do século XVIII, quando, pelos seus próprios traços, os Negros, estes seres-capturados-pelos-outros, conseguiram articular uma linguagem para si, reivindicando o estatuto de sujeitos completos do mundo vivo. (Mbembe, 2017, p. 12)
Embora se trate de autores de períodos e perspectivas diferentes, Fanon e Mbembe apontam para a linguagem como elemento central na constituição do delírio das raças. Contudo, Fanon, ao tratar do acesso à escrita, que fora fundamental na organização das lutas de resistência negra, lembra-nos de que “um homem que possui a linguagem possui, em contrapartida, o mundo que essa linguagem expressa e que lhe é implícito” (Fanon, 2008, p. 34). Destarte, se o sujeito negro, em busca do que Fanon denomina “brancura” ou “embranquecer-se”, assumiu a linguagem, paralelamente a essa foi garantida sua subserviência a tudo que compõe tal linguagem, a linguagem gestada no seio da branquitude.
Fanon nos aponta um caminho para começarmos a pensar com que forças Ismael joga o jogo no delírio. Forças que lhe interpelam a evocar para si um lugar, longe do mundo branco, onde possa embranquecer, livre do estranhamento e da coisificação. O figurino completamente alvo, a psiquiatria, o dinheiro. Nada disso o fez embranquecer, mas alcançar algum privilégio, alguma fagulha que a norma branca lhe pode oferecer por sua negação à negritude e seu empreendimento de embranquecimento. Ali, na solidão de seu delírio, pode, então, ser branco? Mesmo ali, preso aos seus muros, o mundo branco lhe invade, preso em cada linha da composição de um delírio que delira num mundo branco. Ao concebermos o plano de imanência de Deleuze, pensemos no espaço cênico enquanto este plano, onde operam indivíduos e forças que deliram as raças. A que se deve este delírio? Mbembe (2017), ao tratar do delírio das raças, põe-nos a pensar o negro enquanto fabulação, produto do processo mercantil do sistema de escravidão e plantação.
Primeiro, deve-se ao facto de o Negro ser aquele (ou ainda aquele) que vemos quando nada se vê, quando nada compreendemos e, sobretudo, quando nada queremos compreender. Em qualquer lado onde apareça, o Negro liberta dinâmicas passionais e provoca uma exuberância irracional que tem abalado o próprio sistema racional. (Mbembe, 2017, p. 11)
Essas dinâmicas passionais constituíram no passado e mantêm fixadas no presente do liberalismo o lugar que fundiu negro e raça como uma mesma categoria. Para Mbembe (2017, p. 10), o pensamento europeu abordou a questão da identidade, não enquanto pertença mútua a um mesmo mundo, mas a partir do estranhamento que opôs a imagem do europeu e sua autocontemplação (homem) ao negro (coisa).
Nelson Rodrigues, ao escrever Anjo Negro, não teve contato com a obra de Fanon ou Mbembe, haja vista as datas de publicação das respectivas produções. Contudo, o enredo parece antecipar o que mais tarde seria discutido por ambos os pensadores. Para Fernández e Santiago (2019), o que Rodrigues capturou para sua escrita antes talvez diga respeito aos tensionamentos do discurso da democracia racial de Gilberto Freyre. Há, de certa forma, uma captura do território, dos enunciados e do discurso imperativo do imaginário de que o Brasil vivia a plenitude de suas pazes com a questão do racismo. Daí, observemos como Rodrigues opera na contramão desta ideia e no exercício da resistência frente à normativa: o figurino e os sapatos brancos de Ismael nos parecem apontar para esses jogos de força a que está submetido o personagem. Fixado em seu delírio, transita por sua inconformidade com a sua identidade negra em oposição à identidade branca. Ismael delira o mundo branco, mas dentro de seu próprio mundo. Vejamos outros dois trechos do texto:
Na Figura 2, as Senhoras discutem o que é a criança morta que está sendo velada: moreninho, moreno, mulatinho disfarçado ou preto? De toda sorte, alguma coisa. Uma criança coisificada. Na Figura 3, Ismael questiona por que Virgínia não chora a morte da criança, e por si próprio responde “porque ele é preto”. Os efeitos da constituição da identidade branca operam a todo o momento como um ideal de Ismael e pela negativa das personagens à imagem do negro em cena. Lembremos que esta trama de objetificação do negro inicia quando Ismael viola Virgínia a pedido de sua tia para obrigá-la a casar-se com ele e, assim, castigá-la. Não há, no contexto da peça, nada mais punitivo do que desposar um negro.
Retornemos à Figura 2 e à dúvida das Senhoras quanto à negritude da criança de Ismael e Virgínia. No livro Branquitude – Estudos Sobre a Identidade Branca no Brasil, organizado por Muller e Cardoso (2017), já em seu prefácio rememora a explosão dos debates acerca das discussões sobre cotas raciais no Brasil, quando uma das questões apresentadas por aqueles que condenavam a política era: como definir o negro no Brasil se trata-se de um país mestiço? Mas a provocação segue quando o antropólogo Munanga questiona o fato de que a branquitude nunca é questionada.
A questão da racialidade é um elemento central neste trabalho. Quando utilizamos esse conceito, pensamo-lo enquanto um dispositivo: dispositivo da racialidade, que dispõe de estratégias, agenciamentos, instituições e saberes que têm a capacidade de dar materialidade ao poder, ou melhor, ao governo, à condução de condutas e à incitação a determinadas subjetivações. O dispositivo estabelece redes que organizam a intervenção e o governo. Na clássica formulação de Foucault (1979, p. 244), dispositivo é:
(...) um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não-dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes elementos.
A racialidade é o modo como é operada a questão da raça à dinâmica social brasileira, em um conjunto de enunciados que configura a legitimação de um discurso e que produz um determinado sujeito e como ele se subjetiva a partir deste constructo. Para Tedesco (2006), falar de subjetividade é falar de “processo de produção dirigido à geração de modos de existências, ou seja, modos de agir, de sentir, de dizer o mundo. É analisar um processo de produção que tem a si mesmo, o sujeito, como produto”.
A dinâmica do racismo possui raízes que estão conectadas à construção da identidade nacional sustentada na ideia de democracia racial, um dos dispositivos da racialidade do Brasil, e que não estão ausentes na produção da subjetividade. Até a segunda metade do século XIX, a miscigenação foi refutada pelos teóricos da degenerescência. O diagnóstico sobre o devir da identidade da nação não apontava uma perspectiva otimista. Considerava-se a formação racial brasileira, impulsionada pela miscigenação, uma degeneração composta pela presença do negro na construção de uma ideia de uma identidade nacional (P. E. Silva, 2017). Tal visão encontrou suporte nos escritos e considerações de Gobineau, citado em obras como Ensaio Sobre a Desigualdade das Raças Humanas, de 1953. As ideias de Joseph Arthur de Gobineau e outros naturalistas, com teses como a da degenerescência, dominavam a Europa e os Estados Unidos, ecoando também no Brasil que começava a discutir o problema da raça. Para o conde Gobineau, a miscigenação destruiria o país em 270 anos. Constatações como esta representam um recorte das ideias que habitavam o imaginário daqueles tempos. Vale lembrar que, até a metade do século XIX, as poucas instituições de saber brasileiras não se debruçavam sobre as questões raciais. Contudo, tal perspectiva começa a se deslocar com a introdução do “problema do negro” à sociedade brasileira.
A partir de 1910, devido às expedições científicas a diferentes regiões do território nacional, um Brasil até então desconhecido é “revelado”, tensionando o argumento de que os problemas do país estariam ligados à mestiçagem (Souza, 2012). A miscigenação passou a ser percebida como uma possibilidade por intelectuais e cientistas que, ou não viam problema biológico algum no fenômeno, ou que, dentro de uma perspectiva eugenista, percebiam-na como estratégia de branqueamento da população (P. E. Silva, 2017, p. 604). Em vistas da inviabilidade do determinismo racial e com o impulsionamento das instituições eugenistas e do darwinismo social, a miscigenação passa de uma possibilidade para se tornar uma política de Estado. Desse modo, o prognóstico de branqueamento da população era de um século, uma vez considerada a superioridade do branco, conforme a famosa conferência do diretor do Museu Nacional do Rio de Janeiro, Batista de Lacerda (1846-1915) (1912), intitulada Sur les Metis au Brésil, proferida no Congresso Universal das Raças, realizado em Londres no ano de 1911.
Ainda que com algum dissenso entre teóricos brasileiros, é através de Casa-Grande & Senzala, de autoria do sociólogo pernambucano Gilberto Freyre, que a ideia de que a miscigenação poupava o Brasil da racionalidade que institui o racismo (pressuposto do mito da democracia racial) é formada (M. L. Silva, 2017b, p. 12).
Para além das vozes nominadas sobre a autoria do “mito”, o importante é considerar aqui o funcionamento estratégico da democracia racial como um dispositivo, um dispositivo biopolítico que articula os enunciados que tiveram implicação efetiva nos processos de subjetivação e regulação do que Michel Foucault chamou de corpo-espécie da população, no caso, da população brasileira. Em outros termos, consideramos aqui a democracia racial como dispositivo de segurança a partir do qual foi possível constituir uma narrativa do “não racismo” como matriz “identitária” no Brasil.
Ao observarmos todos os deslocamentos necessários para que uma ideia de superioridade branca possa manter seu escopo no governamento de uma população, mesmo que isso represente a justaposição inversamente proporcional ao primeiro ideário (leia-se da condenação da miscigenação à tomada desta como ideal na construção da identidade nacional), pensemos: a constituição da identidade negra no Brasil é posta em “xeque” pelo próprio ideal branco.
Em Anjo Negro, a intersecção que simboliza a conversão da abominação da negritude de Ismael em seu delírio ao empreendimento do branqueamento enquanto estratégia de governamento na cena nos é entregue por Virgínia. Ao manter relações com sua enteada cega e convencê-la de ser o único homem branco no mundo, Ismael incorpora Ana Maria ao seu delírio enquanto representação da branquitude, que só pode conceber o outro (o outro do colonizador) enquanto o que não se vê: o sujeito negro que só pode ser quando embranquecido no delírio colonial. Isolada pelas muralhas da mansão e pela opacidade da visão, a enteada oferece a concretude de que Ismael necessita, mas não o reconhecimento. A ideia de reconhecimento só pode passar por alguém de quem nada se pode esconder: Virgínia. Isso nos aponta ao simulacro sustentado pela ideia de raça, que só existe enquanto um duplo que põe em conflito as passionalidades da construção de raça enquanto categoria. A figura mítica de Ana Maria traduz que o homem negro só pode ser enxergado enquanto ábdito, não branco e não humano:
O trabalho do racismo consiste em relegá-lo para segundo plano, ou cobri-lo com um véu. No lugar deste rosto, faz-se renascer das profundezas da imaginação um rosto de fantasia, um simulacro de rosto, até uma silhueta que, assim, substitui um corpo e um rosto de homem. Aliás, o racismo consiste, antes de tudo, em converter em algo diferente, uma realidade diferente. Além de uma força de desvio do real e que fixa afetos, é também uma forma de distúrbio psíquico, e é por isso que o seu conteúdo reprimido vem brutalmente à superfície. Para o racista, ver um negro é não ver que ele não está lá; que ele não existe; que ele mais não é do que o ponto de fixação patológico de uma ausência de relação. É, portanto, necessário considerar a raça enquanto um aquém e um além do ser. É uma operação do imaginário, o lugar onde se encontram as regiões obscuras e sombrias do inconsciente. (Mbembe, 2017, p. 66)
De tal modo, ao se relacionar com Ana Maria e receber o reconhecimento de Virgínia, o branqueamento cumpre sua função no plano do delírio das raças. Tal operação revela na cena os descaminhos da subjetivação da identidade branca enquanto categoria de neutralidade e norma, guiada sob a égide da formação eurocentrista da identidade. A branquitude pode ser entendida como a identidade branca que se constitui em oposição ao negro, ou, conforme P. E. Silva (2017, p. 27), como:
Um constructo ideológico no qual o branco se vê e classifica os não brancos a partir de seu ponto de vista. Ela implica vantagens materiais e simbólicas aos brancos em detrimento dos não brancos (...). Ela se apresenta como norma, ao mesmo tempo em que como identidade neutra, tendo a prerrogativa de se fazer presente na consciência de seu portador, quando é conveniente, isto é, quando o que está em jogo é a perda de vantagens e privilégios.
A partir da identidade branca, que só pode ser quanto identidade constituída na oposição, que a criança – filho de Ismael e Virgínia, em Anjo Negro – é, para as Senhoras, uma identidade não definida. O debate entre as personagens sobre o lugar étnico-racial que a criança velada ocupa no imaginário cênico aponta para o constructo narrativo da democracia racial brasileira e a formação de um não lugar detido na figura da criança morta. Expecta-se que ela, sendo “mulata”, conforme as personagens, poder-se-ia ser elevada ao status de ser, o que não se realiza. A coisificação do outro encontra no Brasil a intersecção do processo de mestiçagem, tensionando as hierarquias fenotípicas de “um” ou “outro” e apresentando, segundo Lopes (2017, p. 156), símbolos raciais de “um e outro, o mesmo e o diferente, nem um nem outro, ser e não ser, pertencer e não pertencer”.
Destarte, após a morte de todos os filhos negros que não foram elevados ao status de ser e com Ana Maria cegada e presa num mausoléu de vidro, Virgínia e Ismael aguardam o nascimento de um novo anjo negro. Seria este que, mediante mestiçagem, nasceria para cumprir o ideal da estratégia de embranquecimento das gerações vindouras?
Algumas considerações
A cada 23 minutos, um negro é assassinado no Brasil. Segundo o informativo Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil, divulgado em 2019 pelo Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE, 2019), a população negra tem 2,7 mais chances de ser assassinada do que a população branca. Já, segundo o levantamento do Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro (ISP-RJ, 2020), negros e pardos representaram 78% dos mortos por intervenção policial no Rio de Janeiro em 2019.
O que é o devir negro no Brasil? O que é e o que virá a ser a vida de uma mulher, um homem, um jovem, uma criança negra, ao trocar passos sinuosos, cambaleantes de incertezas e lentificados pelo medo, embora o peito com alguma certeza aperte a pressa para ir ao mercado, à igreja, carregar um desinfetante, estar na escola, jogar com um amigo em casa, na tentativa de cumprir o isolamento social, andar pelas ruas de um país que adotou uma política de extermínio pelo branqueamento, pelo cárcere, pela desigualdade e pelo assassinato? O que significa ser negro num país que apresenta tais estatísticas? Abdias do Nascimento (2016) respondeu: estar à mercê de um genocídio. O mesmo Abdias do Nascimento que, ao pensar em fundar o Teatro Experimental do Negro (TEN), contou com uma força importante na validação de uma prática teatral que foi vista com maus olhos por parte da crítica artística do período.
Nelson Rodrigues era um homem branco. Um homem, jornalista, escritor e dramaturgo branco, tomado pelo inconformismo pela configuração das relações raciais no Brasil. Viveu o auge do discurso da democracia racial. Sendo branco, falou de um lugar possível. Sentiu muitas dores ao longo de sua vida e de sua carreira: presenciou o assassinato do irmão, a morte do pai, o desprezo da elite artística. Jogou tudo no palco, como um grito. É o que a arte faz: grita o que não pode ser dito de outra forma. Contudo, jamais sentiu na pele (justo a pele, imagem fulgural do delírio da raça) o que é ser negro. Rodrigues teve apenas uma capacidade, que é, para nós, o fundamento único possível para pensar a racialidade a partir do lugar em que escrevemos: a capacidade de afetar-se. Quais as possibilidades de escrever, em plena Era Vargas, uma dramaturgia que leva ao palco e dispõe em pedaços, como “navalha na carne”, o processo de racialização no Brasil, senão pela capacidade do exercício tão infindável, inatingível quanto fundamental de buscar vestir uma outra pele? Deleuze (2002, p. 56), ao pensar o afeto em Espinoza, trata enquanto afecção que “remete a um estado do corpo afetado e implica a presença do corpo afetante, ao passo que o afeto remete à transição de um estado a outro, tendo em conta variação correlativa dos corpos afetantes”.
Rodrigues pensou, a partir de seu corpo e seu lugar possível, outros corpos. Corpos que, não por acaso, são tratados enquanto “outros”, nunca a norma. No corpo e pelo corpo, o dramaturgo – seus afetos e seus muitos – compôs um fundo para os processos de subjetivação. Assim como tentamos igualmente fazê-lo. Em nossas limitações no pensar, compreendemos, neste arriscado modo de escrever o que nos afeta, que o branco, enquanto norma produzida pelo delírio do processo de colonização capitalística, absteve-se de pensar o seu lugar no racismo. Quando trazemos Fanon e Mbembe para a discussão, não é para traduzir a obra de Rodrigues e dar a ela uma interpretação psicológica, mas pensar, com ela, a sua forma, seus territórios, seus descompassos. Reside aí um certo encanto. Dialogar com diferentes sujeitos não contemporâneos um objeto da cultura que apresenta uma escrita do passado e que, infelizmente, sem dificuldade, veste-se com as roupagens de um presente gritante. Para quê? Para que, de alguma forma, ateemos fogo no racismo e na sua estupidez. Repetindo-nos em Deleuze (1992, p. 143), para “envergonhar a estupidez, para fazer da estupidez qualquer coisa de vergonhoso”.